Pode o psicólogo fazer previsões de comportamento?

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Pode o psicólogo fazer previsões de comportamento?
Cristina Rauter[1]
Publicado on line http://www.crp07.org.br/gts_04.php
A discussão sobre as possibilidades de previsão de comportamentos a partir de laudos
elaborados por psicólogos e outros profissionais que atuam no sistema penal e sócio-educativo se
liga a questões de ordem prática relacionada à prevenção da criminalidade. Mas é também rica
em implicações teóricas, já que nos conduz de imediato à difícil questão do tempo no campo da
psicologia. A filosofia pode nos ajudar a aprofundar o debate, que não pode ser deixado de lado
por nenhuma das ciências que pretende pensar a vida, entre elas a Psicologia. Apesar das
divergências presentes entre os técnicos que atuam no campo penal, creio poderia haver algum
acordo quando se trata do objetivo final: produzir transformações sobre a subjetividade do
apenado no sentido de que este deixe de trilhar o caminho da criminalidade e possa encontrar
outros rumos para sua vida. É claro que pode ser muito ingênuo propor uma solução individual
para a questão da criminalidade, que repouse apenas sobre os ombros de um apenado, visto
como alguém que deve deixar o caminho da criminalidade com a ajuda de alguns métodos
terapêuticos. Mas aceitemos provisoriamente que todos os psicólogos estariam de acordo quanto
ao que se deseja produzir no campo das terapêuticas dirigidas aos que cometem crimes.
As recentes mudanças havidas na Lei de Execução Penal[2] tornam explícita a intenção de
individualizar o tratamento penal. O psicólogo teria assim essa função, deixando em segundo
plano a função diagnóstica para fins de concessão de livramento condicional e progressão de
regime. O artigo 83 da Lei de Execuções Penais sempre ensejou discussões entre os profissionais
do ”campo psi”[3], colocando-os numa posição no mínimo contraditória, se não esdrúxula. Isto
porque seu saber não lhe permite fazer as tão sonhadas previsões de comportamento. O principal
referencial teórico no campo psi é a psicanálise, e este saber é muito mais retrospectivo que
prospectivo. Quando um psicanalista faz uma interpretação, por exemplo, não pode prever de
antemão seus efeitos. Deve aguardar os desdobramentos da análise a partir de sua intervenção e
só então pode avalia-los. A noção freudiana de a-posteriori vem trazer para o campo da
psicanálise uma certa concepção da temporalidade na qual o presente é o que re-siginifica o
passado. Assim os fatos do passado também não determinam mecanicamente o presente, mas é
o presente em seu contínuo desdobrar que age sobre as marcas do passado[4]. Isso nos leva à
implacável crítica de Nietzsche a propósito dos inconvenientes da história para a vida[5]. Se nos
aferrarmos ao passado, transformar-nos-emos em coveiros do presente. Apenas preencheremos
o novo com o velho, e inconformados com a passagem do tempo, expressaremos apenas
ressentimento e rancor.
Estamos afirmando portanto, a partir de Nietzsche e também de Bérgson, que fazer
previsões é preencher o novo com o velho, é lançar categorias já dadas sobre o desdobrar
contínuo do tempo, paralisando o devir. É humano temer o novo e preencher o novo com o velho.
No entanto, uma psicologia que se proponha a compreender cientificamente os fenômenos
humanos, os fenômenos do organismo vivo, deve ser capaz de compreender o tempo como
transformação. A psicologia não pode ser uma prática movida pelo ressentimento e voltada para
uma visão mecânica e imobilista do passado, na qual este determina cegamente o presente. Em
outras palavras, a psicologia deve ser capaz de construir práticas capazes de se desprender dos
parâmetros de um tipo de racionalidade que exclui a temporalidade. O inconformismo com a
mudança, com a passagem do tempo que tudo transforma é um fenômeno humano, mas uma
psicologia científica não pode estar limitada a esse inconformismo. A psicologia não pode ser uma
prática vinculada ao ressentimento[6].
É possível fazer previsões de comportamento? Sim, é possível, mas não no campo de uma
psicologia científica. Em nossa vida diária, todos fazemos previsões. Deixando de lado os saberes
esotéricos, acreditamos que a previsão de comportamentos é mola mestra do saber espontâneo
dos educadores, dos pais, das autoridades do judiciário, que baseando-se na experiência diária,
nos valores praticados numa sociedade dada, prevêem comportamentos. Quando os pais põem a
filha de castigo – no próximo sábado você não sai – é porque acham que se sair, ela vai encontrar
com aquele namorado, com aqueles amigos com quem os pais não querem que ela encontre. E
como fazem essa “previsão”? Baseando-se no seu comportamento de todo dia e nos valores
morais que permeiam as práticas quotidianas de seu relacionamento familiar. Baseiam-se
também na constatação de que apenas as palavras – “não quero mais que você veja aquele
rapaz” não foram suficientes para impedir que ela continuasse a vê-lo. As práticas quotidianas
que se dão nas famílias estão associadas a previsões de comportamento.
Assim, acredito que um agente penitenciário possa fazer previsões de comportamento. Ele
“sabe” que aquele interno, pelo que costuma acompanhar diariamente, está revoltado contra
tudo e contra todos. Está sempre envolvido em brigas. Um outro, está acomodado, meio morto,
come, dorme. Se lhe for perguntado se o primeiro interno voltará a delinqüir ele dirá sim. Quanto
ao segundo, provavelmente responderá não. Não estamos aqui discutindo quanto ao acerto
dessas previsões, mas quanto à possibilidade de faze-las e quanto ao fato incontestável de que
para viver, do ponto de vista do bom senso, de nossa orientação no mundo, todos fazemos
previsões. Sabemos, como disse há muito tempo Augusto Thompson, em seu livro “A Questão
Penitenciária” que o preso adaptado ao cárcere (o segundo) dificilmente se adaptará de novo vida
lá fora. O que complica um pouco a possibilidade de fazer previsões. Talvez o preso que exibe sua
revolta tivesse mais condições de uma outra vida extra-muros. Mas essas são outras questões.
Como fazem o agente penitenciário, os juízes, os pais e os educadores suas previsões? A
partir do que conhecem do dia a dia do preso ou dos filhos, a partir dos valores que têem
internalizados. Projetam sobre o futuro observações e categorizações que pertencem ao
presente. Assim agem também os economistas do governo quando projetam o crescimento da
economia para o ano seguinte. Mas há algo que não faz parte desse tipo de previsão: a
transformação, que para o filósofo Henri Bérgson é o próprio tempo. Diz Bérgson: ou o tempo é
transformação, ou não é nada. Assim, o que o agente penitenciário, os pais, os economistas,
pensam ser futuro, na verdade é o presente, no dizer de Bergson[7]. Na verdade, o futuro é algo
inteiramente imprevisível nele mesmo. Não o conhecemos, se não a partir do que projetamos
sobre ele a partir do presente. E quando agimos desse modo, apesar de todos os nossos esforços
em antecipa-lo, nos impedimos produzir um conhecimento que dele possa dar conta. Por outro
lado, ao fazer esse tipo de previsão de comportamentos, os pais estão deixando de poder se
aproximar do que está de fato ocorrendo com sua filha e até mesmo de poder interferir. Ou seja,
deixam de poder realizar seu objetivo inicial. Se de um lado evitam um comportamento
indesejado naquele momento, por outro, não podendo acompanhar as transformações subjetivas
pelas quais passa sua filha, se distanciam dela, contribuem para afasta-la cada vez mais de seus
próprios valores e aspirações. Os efeitos, não raro, vão numa direção oposta àquela pretendida
por eles.
Caso estivesse em questão um outro tipo de “custódia” realizada por agentes
penitenciários, ou uma política penitenciária, através da qual se pretendesse produzir
transformações subjetivas nos apenados, custodiar presos significaria também cuidar, acolher,
tratar. Mas o uso dessas expressões para referir-se ao que se passa entre presos e agentes, ou
entre adolescentes e monitores do sistema sócio-educativo parece descabido porque não há real
intenção, por parte do estado brasileiro e de suas instituições, de verdadeiramente buscar
produzir transformações sobre a subjetividade dos que trilham os caminhos do crime. Isso
transparece no modo como são treinados[8] e formados os agentes penitenciários e monitores,
no modo como são treinados e formados os policiais. No modo como são remunerados. Essa
ausência de intenções oficiais no sentido de realizar qualquer tratamento é particularmente
evidente quando observamos a superlotação carcerária, mesmo em regiões ricas do país, onde
isto dificilmente poderia se justificar do ponto de vista econômico, ou as práticas humilhantes
como as chamadas “revistas íntimas”[9], desnecessárias com os meios tecnológicos de que se
dispõe hoje para revistar pessoas à entrada de estabelecimentos prisionais..
Essas “previsões”, nas quais se projeta sobre o futuro categorias do presente, são
tributárias de um certo tipo de racionalidade que exclui do campo científico a variação. Tal
concepção de ciência, já ultrapassada inclusive no campo de ciências como a física e a biologia,
revela-se insuficiente para uma adequada compreensão dos fenômenos da vida de um modo
geral. Já mencionamos um outro campo no qual este tipo de racionalidade é insuficiente: o da
economia. Nos dizem os economistas empenhados em seguir cegamente a cartilha imposta pelo
banco mundial, assim como muitos políticos, que o superávit primário e a lei de responsabilidade
fiscal são entes técnicos, que todos os países do mundo devem gerar esses superávits, que devem
respeitar rigorosamente os orçamentos, cumprir rigorosamente os contratos, não importando se
há crianças com fome, sem escola, sem saúde. Se há presos amontoados em espaços superlotados, se o desemprego cresce a cada dia. Porém Marx[10] já nos falava que a economia é
política (lição atualmente esquecida), que no campo da economia, esfera importante da vida, não
há esfera que seja exclusivamente técnica, lógica, numérica, já que é nas relações de produção,
nas relações que os homens estabelecem entre si para produzir, para gerar riquezas e para
distribui-las é que está o cerne da economia. O cerne da economia está portanto não nas
estatísticas, nos cálculos matemáticos, mas nas relações de poder que os homens estabelecem na
vida social e no modo como repartem a riqueza produzida por todos.
Não é o que pensa, por exemplo, o ex-presidente do Partido dos Trabalhadores, José
Genoino. Diz ele “Na economia ... instrumentos de controle fiscal não são de direita, esquerda ou
centro. São instrumentos necessários a qualquer país moderno, não têm nada a ver com ajuste
neo-liberal ou estado mínimo”[11].
Este tipo de concepção econômica e científica, quer justamente retirar de cena os aspectos
políticos da economia, da mesma maneira que numa concepção clássica de ciência, pensava-se
que a verdadeira ciência só pudesse ser praticada numa espécie de “retiro” onde condições
ideais, diferentes daquelas existentes na natureza, pudessem ser criadas. No entanto, a partir de
novas concepções da termodinâmica e da biologia, a ciência é pensada como algo que é capaz de
pensar a variação, os sistemas longe do equilíbrio, ou o caos como positividade[12]. Ao pensarem
a economia longe da vida, os técnicos do governo, os homens da economia, distanciam-se das
demandas da população e não conseguem produzir nenhuma mudança, nada de novo, apenas
mais mortes de crianças por fome, menos políticas sociais, menos saúde, mais criminalidade.
Acredito que essa incapacidade do estado brasileiro e de seus agentes do campo do
judiciário de produzirem transformações nesse difícil campo da delinqüência, da violência, se liga
a também estarem presos a uma racionalidade que não pode pensar a vida, em parte relacionada
àquela a que estão presos também os economistas e políticos do governo. Estando prisioneiros
dessa racionalidade não podem fazer outra coisa se não construir prisões e modos de exercer a
custódia de presos que apenas podem reproduzir o fenômeno que estariam buscando evitar. Se
há algum aspecto positivo na lei federal 10792/03, que alterou a Lei de Execuções Penais e o
Código de Processo Penal este é justamente o de redefinir a atuação do psicólogo do sistema
penal no campo da individualização da pena, no campo do tratamento penitenciário, afastando-o
de uma função que, como acreditamos, não pode desempenhar, por uma impossibilidade lógica e
científica: a de prever comportamentos através de laudos. Alguns interpretaram que a partir
dessas modificações, ao psicólogo e aos demais técnicos penitenciários caberia agora criar
condições minimizadoras dos efeitos perversos da pena de prisão. Por outro lado, a partir da
mesma lei federal já mencionada, as penas se tornaram não só mais rigorosas, mas também mais
letais, do ponto de vista da subjetividade, desde a aprovação do Regime Disciplinar Diferenciado.
A partir de agora, no Brasil, é legal que um preso permaneça em isolamento por até cerca
de um ano. Quanto ao rigor das penas, não se pode deixar de considerar as condições atuais do
nosso sistema penal, de criminosa superlotação, o que adquire proporções verdadeiramente
pavorosas em alguns estados. Na Polinter do Rio de Janeiro, numa delegacia situada na Praça
Mauá, oitenta presos são atualmente mantidos em espaços destinados a abrigar cerca de quinze.
São obrigados a fazer revezamento para dormir e desenvolvem várias patologias ósseas e
musculares por permanecerem todo o dia sem movimentar o corpo, na posição sentada, com
curtos períodos para banho de sol e para permanecer de pé. Nestes locais, há presos que
permanecem por vários anos!
Desde os anos 60 Erwing Goffman[13] já mostrara os efeitos mortificadores do isolamento
nas instituições totais, afirmação que serviu de inspiração para as reformas psiquiátricas dos anos
70. No campo penitenciário, tais ventos transformadores jamais tiveram muita força, no entanto
a intenção de recuperar presos era ao menos anunciada como objetivo oficial. O que assistimos
no momento, no campo penal, pode ser considerado como um retrocesso, não só no Brasil, mas
em outros países, fazendo ressurgir práticas que já se supunha aposentadas no campo penal. O
discurso da recuperação está em flagrante decadência, cedendo lugar ao discurso da eficiência ou
da vingança pura e simples. A situação de superlotação por certo é ilegal ou cai naquela zona
cinzenta onde várias práticas ilegais ocorrem no sistema carcerário sem que nenhuma autoridade
se interesse impedi-las ou em transformar este estado de coisas. Primo Levi[14] chamou de “zona
cinzenta” aquelas práticas de colaboração como os nazistas, exercidas por alguns prisioneiros nos
campo de concentração. Nossa zona cinzenta é constituída por aquelas autoridades que fazem
“vista grossa” ao funcionamento genocida de nossas prisões.
Caso o estado brasileiro passasse a ter uma outra política criminal que visasse algum tipo
de tratamento do apenado, tal tarefa não poderia ser só do psicólogo. Os demais profissionais do
campo da Justiça Penal, todos deveriam estar envolvidos na tarefa de enfrentar o grande
problema que aflige atualmente a sociedade brasileira: o problema da criminalidade. A criação de
uma instituição que ao mesmo tempo submete os presos a condições desumanas e se propõe a
tratar lembra tristemente os prisioneiros de Auschwitz, que antes de morrer ouviam música
clássica. Não se pode a um só tempo adotar o regime disciplinar diferenciado e pretender
minimizar os efeitos da sanção penal através de um tratamento psicológico. Não se pode “morar”
numa cela sem espaço para dormir ou respirar, e ao mesmo tempo se beneficiar de um programa
de recuperação. A comparação entre as prisões brasileiras e os campos de concentração nazistas
não é descabida, e vem sendo feita em alguns debates públicos recentes[15], inclusive levando à
constatação que os campos talvez fossem melhores ... ao menos tinham espaço! A gravidade do
quadro das prisões brasileiras e a gravidade do fato de ser nosso país um dos que mais se tortura
no mundo, oficialmente, não pode ser ocultada.Também não pode ser ocultado o fato de que na
faixa entre 18 e 25 anos, em brasileiros do sexo masculino, a causa mortis número um é o
homicídio, numa taxa superior à da Colômbia. A questão é grave também porque, da forma como
é experimentada pela sociedade, se apresenta como verdadeiro sintoma, cuja resolução está
longe de ser vislumbrada já que o problema não vem sendo adequadamente enfrentado pelo
poder público.
As famosas avaliações subjetivas de apenados realizadas pelos técnicos penitenciários
sempre são paradoxais, porque avaliam os resultados de um “tratamento penal” inexistente.
Como pretender que alguém, depois de passar pelas condições de nossas prisões, pudesse estar
melhor do que quando entrou, sob algum ponto de vista? Age-se, desse ponto de vista, como um
médico que depois de ministrar uma dose de veneno ao paciente viesse avaliar sua saúde, os
recursos que teve sozinho para expulsar o veneno, sem que ele próprio tivesse feito nada pela
saúde pelo paciente. Rigorosamente, tais avaliações não poderiam nunca ser positivas. Ao
preencher o novo com o velho, elas dizem respeito apenas ao presente, ao presente triste de uma
sociedade criminaliza e encarcera seus pobres.
A criminalidade é antes de tudo o sintoma da situação social vivida pelo país, embora os
discursos contemporâneos procurem escamotear esta ligação entre crime e miséria, pretendendo
fazer deste um problema apenas moral individual e não coletivo e político. A desigualdade na
distribuição da renda nacional, problema já antigo e de herança colonial, não só não foi
solucionado, mas agravado. O recente livro “Os ricos no Brasil”[16] fez um estudo sobre a reconcentração de renda ocorrida no país a partir do governo Collor, agravando-se nos governos
FHC e Lula da Silva, que permitiu um aumento de consumo de itens como Ferraris e roupas de
grifes importadas entre outros itens de consumo dos mais abastados. A pesquisa, realizada pelo
economista Marcio Pochmann provou que apenas 5 mil famílias têm um volume patrimonial o
equivalente a 42% de todo o nosso Produto Interno Bruto (PIB). Diante dessa aberração, indaga o
autor: "Como é possível um país com mais de 177 milhões de habitantes possuir apenas 5 mil
famílias portadoras de um estoque de riqueza equivalente a 2/5 de todo o fluxo de renda gerado
pelo país no período de um ano?". O poder aquisitivo da parcela mais rica da população cresceu
29% na década de 90, enquanto o produto interno bruto estagnou. Enquanto isso, uma diminuta
parcela da pupulação não se incomoda em pagar R$ 5 mil por um terno de corte impecável da
marca italiana Ermenegildo Zegna ou R$ 6.400 num vestidinho estampado com a etiqueta John
Galliano, como publicado em artigo recente da revista Veja.
Tão grave quanto este problema, e profundamente relacionado a ele é a questão do
modelo econômico. Por sinal, esses dois problemas, o da criminalidade e o do modelo econômico,
não podem ser dissociados. No dizer da economista Sophia Mappa autora do livro As
Metamorfoses do Político no Norte e no Sul...
“A principal característica das reformas do estado feitas nos países do sul não é a
democratização do estado ou das sociedades respectivas. A tendência principal é o
enfraquecimento do estado, sua implosão, fragmentação e criminalização[17] ...
A criminalização da sociedade como um todo e também das instituições do próprio estado
está associada ao modelo econômico genocida levado à cabo pelo governos que, mesmo eleitos
com propostas de esquerda, de cunho socializante, depois se escondem atrás de raciocínios
tecnicistas para justificar suas ações em sentido contrário. É este tipo de racionalidade que no
campo das instituições carcerárias se liga a práticas que colocam sobre o indivíduo criminoso todo
o peso das causas da criminalidade, negando os aspectos relacionados à sua produção social. Nós
psicólogos sabemos a partir de Freud, que quando uma questão é negada, recalcada, impedida de
se manifestar, ela retorna. O que permanece na escuridão diz Freud, tende a retornar com muito
mais força, de modo destorcido e anormal. As “soluções” que o estado brasileiro vem adotando
relativamente ao problema da criminalidade não são soluções, mas sintomas do mesmo
problema. Penso a adoção do Regime Disciplinar Diferenciado é mais um sintoma. Os freqüentes
reclamos pela redução da maioridade penal, outro.
Que função restaria ao psicólogo e outros profissionais que atuam na área da justiça caso
não façam laudos de previsão de comportamento? Por certo, há muito o que fazer. Só pelo fato
de deixarem de lado essas práticas de falso cunho científico, pelo fato de saírem de seus
gabinetes e poderem circular pelas instituições onde trabalham, já terão ganho em experiência de
vida, em conhecimento da realidade brasileira. No entanto, toda vez que um psicólogo faz esse
movimento de abandono de práticas falsamente científicas, que excluem, como já nos referimos,
a transformação como essência da vida em geral e da vida humana, ele também sofre represálias.
Ele passa, em certa medida a sofrer os efeitos repressivos da instituição carcerária sobre si
próprio. Por certo, há um lugar oficial atribuído ao psicólogo no sistema penal contemporâneo: é
o de elaborador de diagnósticos com um fim claramente estigmatizante[18] e não associado a
nenhum projeto de reeducação ou de tratamento. Nossa hipótese é de que a função do
diagnósticos no sistema penal e sócioeducativo globalitário[19] é a de “separar” aqueles que
podem se beneficiar de programas da ressocialização daqueles que “não podem” segundo uma
avaliação técnica, ou informar sobre quem deve ser submetido ao Regime Disciplinar Diferenciado
(RDD). Não se vislumbra, no momento atual das políticas penitenciárias, a possibilidade de
transformação subjetiva do apenado, ou não se deseja de investir nesta direção. O diagnóstico de
transtorno anti-social, muito usado no campo penal, se refere a uma condição incurável. Assim, o
que se deseja ao proferir esse tipo de diagnóstico (de incurabilidade) é muito mais mapear,
classificar, mensurar, através de laudos e diagnósticos de personalidade, uma população
carcerária sempre crescente, para elaborar sua gestão e controle. O uso de medicação
psiquiátrica tem se ampliado nas prisões americanas, com uma finalidade claramente repressiva.
Talvez o que esteja refreando este processo de psiquiatrização das prisões brasileiras seja o custo
dos medicamentos, mas a escalada do controle medicamentoso já pode ser observada em
algumas instituições para cumprimento de medidas sócio-educativas onde a psicofarmacologia é
largamente utilizada, recendo o pitoresco apelido dado pelos adolescentes de “se
necessário”[20].
Para isso, os laudos elaborados por profissionais do campo “psi” readquirem uma função
fundamental. Eis porque a questão da chamada “prognose” retorna hoje com força no campo da
psicologia jurídica. O convite para problematiza-la críticamente junto aos psicólogos gaúchos
revela que estes não se deixarão controlar e que estão conscientes da centralidade que estas
lutas hoje adquirem no contexto político global. É sobre a subjetividade que hoje se joga o jogo
político mais duro e o psicólogo, em especial aquele que atua nos sistemas penal e sócioeducativo está colocado num difícil ponto de entrecruzamento das políticas contemporâneas
relacionadas ao crime. Penso que através dessas reflexões possa estar contribuindo para a
construção de práticas de resistência e de uma psicologia que aponte nessa direção.
[1] Doutora em Psicologia Clínica, Professora do Departamento de Psicologia da Universidade
Federal Fluminense; membro da Equipe Clínico-Grupal Tortura Nunca Mais.
[2] CARVALHO, S. Tântalo no Divã. Novas Críticas às Reformas no Sistema Punitivo Brasileiro. In:
Revista Brasileira de Ciências Criminais (50), SP:RT, 2004, pp.91-118.
[3] Aqui nos referimos a psicólogos, psicanalistas e psiquiatras.
[4] Para uma discussão mais aprofundada sobre a questão do tempo na obra de Freud, ver
GONDAR, J. Os Tempos de Freud. Rio, Revinter, 1995.
[5] NIETZSCHE, F.Da Utilidade e Inconvenientes da História para a Vida. Lisboa, Livrolândia, S/D.
[6] Ver a respeito do ressentimento e de sua superação RAUTER, C. Clínica do Esquecimento:
Construção de Uma Superfície. TESE. Departamento de Psicologia Clínica, PUC-SP, 1998.
[7] BERGSON, H.. L'Évolution Créatrice. In: Oeuvres. Paris, Presses Universitaires de France, 1984,
p. 501.
[8] No sistema penitenciário brasileiro, com raras exceções, o que serve de parâmetro para a
atuação dos agentes penitenciários é a experiência anterior de outros agentes, não havendo um
treinamento específico ou de qualidade para esta difícil função. Buscamos aqui tomar essa
ausência de treinamento no que ela revela quanto à natureza das instituições carcerárias
nacionais.
[9] Recentemente registrou-se numa prisão em Passo Fundo, RS, uma rebelião que teve como
motivação o protesto contra a adoção deste tipo de revista, na qual os visitantes devem despir-se
e ficar de cócoras perante um agente penitenciário. Estes procedimentos degradantes estão
disseminados por todo o país.
[10] MARX, K. El Capital. Vol. 1. Mexico, Fuente Cultural, 1945.
[11] Publicado em http://www.lpp-uerj.net/outrobrasil/
[12] STANGER, I. e PRIGOGINE, I. A Nova Aliança.
[13] GOFFMAN, E. Manicômios, Prisões e Conventos.
[14] Levi, P. Os afogados e os sobreviventes. Os delitos, os castigos, as penas, as impunidades.Rio,
Paz e Terra, 1990.
[15] Como num debate realizado no Rio de Janeiro, promovido por uma entidade que congrega
familiares de presos.
[16] POCHMANN, M. (org.)Os ricos no Brasil Cortez Editora, São Paulo, 2004.
[17] Resenha publicada no site Outro Brasil http://www.lpp-uerj.net/outrobrasil/
[18] Ver a esse respeito MORANA, H. Identificação do Ponto de Corte PCJ-R (Psychopaty Checklist
Revised) em População Forense Brasileira. Caracterização de dois subtipos de personalidade:
transtorno global e parcial. São Paulo, Faculdade de Medicina, USP, 2003.
[19] A expressão globalitário, utilizada por Miltom Santos, quer tornar claro que não é a
globalização que necessariamente produz estes fenômenos, mas um certo tipo de globalização
excludente e autoritária.
[20]A prescrição da medicação é feita rotineiramente para ser usada “se necessário”. Pelo visto,
as situações onde esta se torna necessária têm se ampliado. Ver a esse respeito SILVA, R. BUTTES.
Juventude Urbana: Fragmentos do não-lugar.2003. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais),
Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. pp. 96101.
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