adorno: a dialética da expressão na música tonal

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ADORNO: A DIALÉTICA DA EXPRESSÃO NA MÚSICA TONAL
Philippe Curimbaba Freitas
[email protected]
Mestre em música pelo IA - UNESP
Professor de filosofia no ICT – UNIFESP
Resumo: O conceito de expressão delineia-se na estética musical a partir da ideia de que
a música é uma exteriorização e de um eu interior. Embora a Estética do Sentimento
tenha, a partir do século XVIII, desenvolvido um dos conceitos fundamentais para uma
estética da expressão – o conceito de sujeito – ela se torna cada vez mais insuficiente
para a compreensão da música pura, que ganhou destaque ao longo dos séculos XVIII e
XIX. Tal insuficiência foi sentida por alguns autores do século XIX, como Eduard
Hanslick, que empreendeu uma revisão dos princípios da estética musical. Ao pensar a
música como uma arte autônoma e aconceitual, a estética de Hanslick desvincula a
expressão dos conteúdos externos à música e não atribui a ela se não a capacidade de
expressar ideias musicais. O conceito de autonomia da forma é fundamental para o
pensamento de Adorno, que toma a forma, não obstante, como um dos momentos da
expressão musical – o momento negativo –, inseparável do outro momento, qual seja, o
do conteúdo expressivo. Porém, este conteúdo não pode mais ser pensado como um
conceito: Adorno o pensa como o gesto, o qual, ao contrario do conceito, é não intencional.
Palavras chave: Adorno, expressão. Hanslick, autonomia da forma.
Grande parte da musicologia que se deparou com o expressionismo musical
abordou-o de um ponto de vista estritamente técnico-musical, secundarizando a
questão da expressão ou apresentando-a de maneira genérica, ou a título de
contextualização histórica, quando não omitindo. Ao contrário destes autores, em
sua Filosofia da Nova Música Adorno identificou no próprio conceito de expressão
o núcleo da transformação introduzida pelo expressionismo, e tomou as
mudanças técnico-musicais como desdobramentos exigidos por uma ideia de
expressão e de expressivo. O expressivo expressionista – cuja referência central é
a produção de Arnold Schoenberg entre os anos 1908 e 1913 – é qualitativamente
diferente do expressivo da música anterior ao expressionismo. Assim o
expressionismo é uma crítica à expressão tal como era concebida até então: em
primeiro lugar, à expressão romântica, e também à dramática, que se refere ao
século XVII e a Monteverdi e se estende até o romantismo do fim do século XIX.
Adorno qualifica esta expressão como uma simulação de paixões: a expressão se
define aqui pelas relações da música com os sentimentos, e se baseia na
capacidade que ela tem de representá-los. Em segundo lugar, o expressionismo é
também uma crítica de um outro expressivo cuja formulação teórica – que
encontramos na estética romântica, ou, mais precisamente, em Do Belo Musical
de Eduard Hanslick (Hanslick, 2011) – estabelece relações estreitas com o
conceito de autonomia da forma. Seu campo objetivo, entretanto, não se limita ao
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romantismo musical, mas se estende ao classicismo. Trata-se da expressão
compreendida como um comando da organização racional dos diferentes
caracteres musicais em função de uma unidade formal, isto é, de uma totalidade
articulada.
O objetivo deste trabalho é estabelecer os principais referenciais históricos
e estéticos que estão na base destes dois tipos de expressão que Adorno contrapõe
à expressão expressionista. No caso do primeiro tipo de expressão mencionado, a
referência central é a música de Richard Wagner; no do segundo tipo, é a estética
musical de Eduard Hanslick. Pretende-se mostrar também como, a partir das
críticas tanto à música de Wagner como à estética de Hanslick, delineia-se na
obra de Adorno, um modo original de compreensão do expressivo da música tonal,
em que a expressão emerge através de uma dialética com seu oposto, qual seja, a
construção formal. O presente texto é parte de uma pesquisa de mestrado sobre o
expressionismo musical de Schoenberg1. Durante a realização desta pesquisa, o
autor sentiu a necessidade intransponível de determinar algumas bases
históricas e estéticas sobre as quais o pensamento de Adorno se desenvolvia, e
disto resultaram as principais ideias deste texto.
PAIXÕES SIMULADAS
O sentimento como conteúdo ou finalidade da música possui uma história.
Dahlhaus apresenta, em um de seus ensaios – intitulado Transformações da
Estética do Sentimento –, um desenvolvimento histórico da Estética do
Sentimento que perpassa cinco séculos, desde o século XV até o XIX (Dahlhaus,
2003).
O musicólogo baseia-se em uma distinção da teoria linguística de Karl
Bühler entre três diferentes funções que as frases podem desempenhar:
desencadeamento [Auslösung], representação [Darstellung] e notificação, ou
manifestação [Kundgabe]. “As ações são desencadeadas [ausgelöst], os estados de
coisas representados [dargestellt], os estados anímicos manifestados
[kundgegeben]” (Dahlhaus, 2003, p. 31). Cada uma destas funções corresponde a
uma época diferente na história da Estética do Sentimento. Para autores dos
séculos XV e XVI como Johannes Tinctoris, Nicola Vicentino e Gioseffo Zarlino, a
função da música era desencadear efeitos no ouvinte. Os estímulos sonoros
incitavam sentimentos, os quais não eram objetivados por eles, mas
simplesmente percebidos e sentidos como seus. Aqui não se pode falar em
expressão dos sentimentos. A função da música é – baseando-se no modelo
linguístico apresentado – “desencadear” sentimentos ou afetos, em um sentido
FREITAS, P. C. Antinomia da expressão: Adorno ante o sismógrafo de Erwartung, Op. 17 de
Arnold Schoenberg. Dissertação de Mestrado em Música. IA – UNESP, 2012.
1
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próximo ao de causalidade mecânica que permite afirmar que o atrito entre dois
corpos causa elevação da temperatura.
Contrariamente a isso, autores do século XVIII, tais como Charles Batteux,
Friedrich Wilhelm Marpurg e Jean-Jacqcues Rousseau, esperavam que a música
representasse ou imitasse as paixões, porém não as do compositor nem as do
ouvinte. As paixões eram tomadas como coisas que existem objetivamente,
independentemente de serem ou não experimentadas por este ou aquele
compositor ou ouvinte, e que a música deveria representar, isto é, re-apresentar,
assim como uma pintura representa – ou re-apresenta – uma catedral, uma
pessoa etc.
É apenas na segunda metade do século XVIII que aparecem autores
daquilo que pode ser mais propriamente chamado de uma estética da expressão,
entre os quais Dahlhaus destaca Daniel Schubart e Carl Philipp Emmanuel
Bach. Aparece então a figura do compositor como sujeito que se encontra por trás
da música e se expressa por meio dela. A expressão não se define mais pela
representação objetiva de afetos nem tampouco pela capacidade que a música
deve ter de incitar os sentimentos, mas pela exigência de que o íntimo do
compositor torne-se apto para a música, o que implica a exigência de
originalidade, pois “só quem retorna a si mesmo e cria a partir do próprio íntimo
é ‘original’. O princípio da originalidade não exige a simples novidade, mas
também e, sobretudo, que uma obra de arte seja uma ‘verdadeira emanação do
coração’ ” (Dahlhaus, 2003, p. 35).
Essa distinção que Dahlhaus apresenta entre a expressão até meados do
século XVIII – representação dos afetos – e a expressão baseada na idéia de um
compositor que expressa o seu íntimo – manifestação dos afetos – não parece ser
aceita por Adorno, que reúne toda a música desde o século XVII até o final do XIX
sob o mesmo nome de “música expressiva ocidental”. A ideia estética que
Dahlhaus designa como expressão subjetiva, ou manifestação do íntimo não
aparece no texto de Adorno, embora a música que lhe corresponde – isto é, a
romântica – esteja incluída por Adorno no conjunto da “musica expressiva
ocidental”. Este conjunto compreende três tipos de expressão musical: a
expressão dramática de um Monteverdi, cuja formulação estética é identificada
por Dahlhaus em autores do século XVIII, e para a qual o musicólogo julga mais
adequado o termo “representação”; a expressão não dramática, cuja referência
central parece ser a música romântica, baseada nos preceitos estéticos da
expressão subjetiva do compositor encontrados nos textos estéticos a partir da
segunda metade do século XVIII, conforme mostra Dahlhaus; e a expressão
wagneriana, cujo gênero dramático remonta a Monteverdi, mas que apresenta,
aos olhos de Adorno, elementos claramente românticos.
Antes de mais nada, é importante ter em conta uma diferença
metodológica entre Adorno e Dahlhaus que em parte explica essas tensões:
enquanto a análise dos escritos estéticos constituem a força centrípeta do ensaio
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de Dahlhaus, no ensaio de Adorno são as obras musicais propriamente ditas que
aparecem no centro. Dahlhaus formula suas questões com base no conteúdo
apresentado pelos escritos que analisa, enquanto Adorno se baseia na própria
música e nas questões que ela mesma coloca. Isto não significa que Adorno
negligencia as questões estéticas, nem que Dahlhaus negligencia o fenômeno
musical propriamente dito. De qualquer modo, essa diferença de metodologia
entre duas obras que versam sobre um mesmo objeto – a estética musical – talvez
possa revelar bastante sobre a diferença entre os dois autores, cuja afinidade é,
em todo caso, muito significativa.
Para além das diferenças de metodologia, o que une a partir do conceito de
expressão músicas tão diferentes entre si e as separa do expressionismo é o
caráter de paixões simuladas, isto é, a ideia, latente a todas elas, de que os
caracteres musicais são significantes, dos quais os afetos aparecem como
significados. Assim, os caracteres musicais são um meio de acesso aos conteúdos
afetivos, os quais pré-existem em relação aos primeiros, ou seja, a expressão como
simulação de paixões é uma expressão mediata.
Neste conceito de expressão mediata, ou de simulação de paixões, é difícil
negar a referência ao lied romântico, no entanto é Wagner quem aparece como
uma das referências mais importantes para Adorno, que dedica à sua obra
operística uma grande monografia intitulada Ensaio sobre Wagner (Adorno,
2008). O livro é atravessado do começo ao fim pela questão da expressão, a qual
se apresenta intrincada com outras questões, mas é no segundo e terceiro
capítulos que ela é posta no centro da discussão. Adorno inicia a abordagem do
expressivo wagneriano a partir daquilo que considera um impulso social presente
na obra do compositor, qual seja, o de uma conciliação com o público da audiência,
por meio da adequação da composição às condições de compreensibilidade desse
público. Tal impulso se insere em um contexto musical em que as composições
mais avançadas e inovadoras vão progressivamente se separando do público dos
concertos e se fechando a estreitos grupos de espectadores e inclusive tornando-se
economicamente insustentáveis. Entre o compositor e a audiência cava-se um
fosso cada vez maior. Não obstante, Adorno não apresenta esse impulso social na
forma de um comentário geral sobre a obra de Wagner, mas a partir de elementos
técnico-musicais nos quais se manifesta: “Sua música está (...) concebida para o
gesto de marcar o compasso e dominada pela imagem do marcar o compasso”.
(Adorno, 2008, p. 31).
O gesto é, para Adorno, o motor da expressão. Toda a expressão da música
moderna ocidental deriva de seu conteúdo gestual. Não fosse essa capacidade de
mimetizar o gesto, a música não seria mais do que um movimento agradável de
formas, porém sonoras e não visuais (Adorno, 2002, p. 139). Se ela mimetiza os
gestos, isto só é possível na medida em que o conteúdo gestual se apresenta nela
como uma estrutura musical objetiva e tecnicamente descritível, isto é, como um
motivo. Na medida em que se apresenta como um motivo, o gesto torna-se uma
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identidade musical determinada, possível de ser apreendida, memorizada e
consequentemente identificada a cada vez que é repetida, ainda que essas
repetições não sejam exatas.
A identidade musical baseia-se na unidade métrica do compasso, uma
unidade que se estabelece a despeito do conteúdo que o gesto – convertido em
motivo – apresenta, e se fixa como um denominador comum. A articulação não
depende de um desenvolvimento dos caracteres internos do motivo. Em um ato de
conivência ao ouvinte, o que há é uma repetição do padrão métrico, indiferente ao
material com o qual os compassos são preenchidos: “toda a música parece
primeiro estruturada em compassos e depois recheada” (Adorno, 2008, p. 33).
Se o gesto torna-se apto para a música ao apresentar-se como um motivo, a
repetição motívica torna-se fundamental. A expressão não pode se limitar a uma
mera enunciação de um motivo que mimetiza um gesto, até mesmo porque um
motivo não se constitui enquanto tal em uma única enunciação, isto é, como algo
isolado: só se converte em motivo na medida em que é repetido. Por outro lado, a
expressão como efusão do coração, como manifestação do íntimo (Dahlhaus, 2003,
p. 37) e da singularidade do gesto orgânico, exige a originalidade e a
irrepetibilidade contra a rigidez mecânica da repetição literal. É nessa tensão
entre a necessidade de repetição pressuposta pelo motivo e pelo trabalho motívico
e o impulso expressivo pela originalidade e irrepetibilidade que surge a
necessidade de uma intensa articulação formal. Por meio de procedimentos
compositivos como o desenvolvimento, a variação e a mediação de contrastes é
possível desdobrar um determinado motivo em novas configurações que
conservam certos elementos do primeiro motivo e transformam outros, de
maneira que torna-se possível estabelecer musicalmente uma relação dialética
entre identidade e não identidade, repetição e originalidade. Essa relação
constitui para Adorno o cerne da expressividade de toda música moderna
ocidental2. É exatamente neste ponto que Adorno identifica uma fraqueza técnica
na música de Wagner, fraqueza esta que não decorre de uma insuficiência técnica
ou incapacidade do compositor, mas precisamente do gesto de marcar compasso,
isto é, da abstração do padrão métrico em relação aos elementos internos dos
motivos que preenchem os compassos:
Em Wagner as insuficiências da organização técnica da composição
derivam sem exceção do fato de que a lógica musical pressuposta em toda
parte pelo material de sua época é amolecida e é substituída por uma
espécie de gesticulação (...). Certamente, toda música remonta a este
elemento gestual e o conserva em si. No Ocidente, entretanto, ele foi
O termo “música moderna ocidental” não é de Adorno, mas de Max Weber, sociólogo do início do
século XX que escreveu uma obra de sociologia da música, intitulada Fundamentos Racionais e
Sociológicos da Música (Weber, 1995) e que Adorno tinha em conta em suas reflexões sobre a
música. Este termo não designa a música de vanguarda do modernismo artístico, mas aquela cujo
início remonta ao barroco até a música tonal de fins do século XIX e início do XX.
2
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espiritualizado
e
interiorizado
como
expressão,
enquanto
simultaneamente todo discurso musical se submete à síntese lógica pela
construção; a grande música se esforçou pela nivelação de ambos
elementos. Wagner se opõe; sua música (...) não consuma em si nenhuma
história. O momento expressivo potenciado ao máximo dificilmente se
contém no espaço interior, na consciência do tempo, e se lança para fora
como gesto. (...) A força do elemento construtivo é consumida pela
intensidade exteriorizada, por assim dizer física (Adorno, 2008, p. 35).
Em Wagner o desdobramento e a renovação dos caracteres internos do
gesto por meio da lógica musical e em nome da expressão é substituído pela
gesticulação, isto é, não pelo gesto refletido musicalmente em caracteres
motívicos, mas pelo gesto que se constitui pela mera obediência à unidade
métrica abstrata, a despeito do conteúdo motívico que preenche os compassos.
Essa expressão calcada nas potencialidades internas do gesto, e que ganha
significância graças à articulação formal, está, para Adorno, bloqueada em
Wagner. Nele, o conteúdo da expressão é exterior à forma musical: se lança para
fora como uma gesticulação abstraída do material, de suas qualidades internas e
das possibilidades de articulação formal que ele apresenta:
Para exteriorizar-se como gesto tão sensivelmente como exige o
procedimento wagneriano, a expressão não pode nunca contentar-se
consigo mesma, mas deve acentuar-se e em seguida inclusive exagerar-se
por sua crescente repetição. (...) a emoção expressiva, ao aparecer por
segunda vez, torna-se comentário enfático de si mesma (Adorno, 2008, p.
38).
A expressão fica, por assim dizer, congelada no gesto e ganha sua força não
da diferenciação, mas fundamentalmente das repetições exatas ou quase exatas
do motivo expressivo inicial e da intensificação, por exemplo por meio do
crescimento do volume sonoro pelo acréscimo de instrumentos na orquestração. A
emoção expressiva torna-se, assim, “comentário enfático de si mesma”: uma autoreferência que não sofre nenhum tipo de resistência dos materiais musicais, isto
é, dos significantes que a portam. Deste modo, aquilo que aparece como
significado, isto é, os conteúdos expressados, não se encontra entre os caracteres
musicais que imitam gestos anímicos, entre as “emoções musicais individuais que
deveriam refletir as da alma” (Adorno, 2009c, p. 42), mas fora da música, como
conteúdos que pré-existem em relação a ela, e que são por ela evocados. Assim, o
conteúdo da expressão é um conceito extra-musical e não uma potência
mobilizada pela música:
Se a unidade de gesto e expressão não se alcança no Leitmotiv [pois o
gesto é meramente repetido e não se diferencia por meio da construção
temática], se o motivo, enquanto portador da expressão, se aferra sempre
ao mesmo tempo ao caráter drasticamente gestual, isto não indica menos
que o fato de que sem mediação o gesto nunca pode dotar-se de alma.
Diferentemente, representa algo dotado de alma. O momento intencional
é específico da expressão wagneriana: o motivo media enquanto signo um
significado coagulado. A pesar de toda a ênfase e a intensidade, a música
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de Wagner se comporta como a escritura com palavra. (...) Sua expressão
não se representa, mas é representada. A apreensão de um elemento
fragmentado da totalidade espiritualizada, meramente exterior, por
significados que este deve representar e que podem permutar-se tão bem
como seus representantes, faz dos Leitmotive wagnerianos alegorias
(Adorno, 2008, p. 44).
É a essa representação de conteúdos anímicos exteriores à música e préexistentes em relação a ela que Adorno se refere como simulação de paixões, como
expressão mediata, que toma os caracteres musicais como meios de acesso a
conteúdos extra-musicais, representados por esses caracteres. O gesto musical
propriamente dito só se torna expressivo, só pode “dotar-se de alma”, a partir do
momento em que entra para a forma, isto é, em que ganha uma articulação
técnica em virtude da qual ele se desdobra motivicamente em caracteres que
apresentem uma formulação original da ideia gestual, e torna-se, assim,
expressivo. A expressão musical só é possível, portanto, pela mediação da forma.
Quando o procedimento técnico da expressão se limita à repetição do motivo
gestual, o motivo não se apresenta como algo dotado de alma, que é em si
expressivo, mas apenas “representa algo dotado de alma”. Os conteúdos
expressados são indiferentes à música, a qual se limita a evocá-los.
Adorno identifica no procedimento compositivo de Wagner uma tentativa
de contornar essa limitação técnica, decorrente da abstração da unidade de
compasso em relação ao material musical, por meio da fluidez harmônica, que se
contrapõe à rigidez motívica e temática. Na análise que apresenta dos primeiros
compassos do prelúdio de Tristão e Isolda, ele mostra que as repetições motívicas
apresentam-se variadas, mas apenas com o intuito de se acomodar ao esquema
harmônico, que nestes compassos está claramente desenvolvido em torno da
tônica de lá menor, sempre pressuposta ainda que o acorde de tônica não esteja
presente. O desenvolvimento harmônico molda, portanto, as repetições motívicas,
e estas adquirem, portanto, uma plasticidade decorrente das alterações de notas
exigidas pela sucessão harmônica que o motivo deve parafrasear. Essa
plasticidade das repetições motívicas é o que aos olhos de Adorno confere a
Wagner o caráter misterioso, de algo claramente apreensível, mas ao mesmo
tempo paradoxalmente obscuro, expresso na fala de Sachs: “não o posso reter mas
tampouco esquecê-lo” (Sachs apud Adorno, 2008, p. 43). É neste aspecto
paradoxal e ambíguo da obra de Wagner que Adorno identifica um dos elementos
fundamentais das configurações formais de Wagner: por um lado, a fixação nas
partes isoladas do todo e, por outro, uma concepção da grandiosa obra de arte
total como um todo contínuo, sem fissuras. “Wagner conservou ao longo de toda
sua vida tanto o formato colossal de tais produtos como o vestuário com o que
sonham os teatros de aficionados” (Adorno, 2008, p. 30). A compreensão mais
sistêmica da recepção adorniana de Wagner passaria necessariamente por um
desenvolvimento mais aprofundado dessa tensão. Como, porém, isto extravasaria
os propósitos deste texto, apenas a mencionamos no intuito de evidenciar que a
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posição de Adorno em relação a Wagner não é unívoca, já que se trata, para
Adorno, de uma obra que articula muitas contradições estéticas e sociais que
meio século depois o filósofo ainda não via superadas. Em Wagner, “progresso e
reação não se deixam separar como as ovelhas e os carneiros, mas se imbricam
quase indissoluvelmente” (Adorno, 2008, p. 47).
AUTONOMIA DA FORMA E EXPRESSÃO
O segundo conceito de expressão musical abordado por Adorno a
compreende como um comando da organização racional dos diferentes caracteres
musicais em função de uma unidade formal. Pelo princípio da forma autônoma,
como expressão de uma subjetividade autônoma, o compositor comanda os
momentos parciais, que se apresentam inicialmente isolados e carentes de
relação entre si, estabelecendo entre eles relações e, por meio disso, articulando
uma totalidade. A expressão musical aparece aqui intrincada com o princípio de
autonomia da forma, isto é, com a idéia de que a música possui uma
racionalidade e unidade interna que a torna capaz de fundar a partir de si mesma
os critérios valorativos pelos quais seu julgamento deve se pautar. A idéia de
autonomia musical foi formulada teoricamente pelo musicólogo e esteta Eduard
Hanslick em um livro de 1854, intitulado Do belo musical (Hanslick, 2011). O
autor se propõe, nesse trabalho, a empreender uma revisão da Estética do
Sentimento, que abordava a música exclusivamente a partir da sua relação com
os sentimentos, quer seja pelos efeitos anímicos desencadeados por ela, quer seja
pela sua suposta capacidade de representar afetos. A crítica da Estética do
Sentimento e o desenvolvimento de uma estética que fundamentasse o belo
musical não na relação com conteúdos extra-musicais mas na configuração dos
elementos musicais e na sua articulação interna, sem referência a algo exterior,
não são gratuitos: Hanslick formula conceitualmente uma tendência na história
da música no sentido do desenvolvimento das formas musicais autônomas – isto
é, não associadas a ocasiões sociais, tal como missas, danças etc., e nem
subordinada a textos ou programas – e da consequente valorização da música
instrumental pura. Diante desse progressivo florescimento da música absoluta e
da extensão de seus critérios também para as músicas com texto ou programa, a
Estética do Sentimento mostrava-se para Hanslick insuficiente para a
compreensão do artístico na música, o qual em sua época já havia adquirido
suficiente autonomia frente às determinações extra-musicais a ponto de tornar
necessária uma nova estética musical.
Do belo musical é do começo ao fim uma crítica da Estética do Sentimento.
Seus dois primeiros capítulos apresentam a tese negativa de Hanslick, isto é,
mostram aquilo em que a estética musical não deve se fundamentar. A estética
musical não deve se fundamentar nos sentimentos, quer sejam eles considerados
como a finalidade da música – capítulo 1 – quer sejam como o seu conteúdo –
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capítulo 2. É interessante observar que Hanslick aborda aqui duas das estéticas
distinguidas por Dahlhaus a partir da teoria linguística: uma delas que via na
música a função de desencadear efeitos, ou de incitar as paixões, e outra segundo
a qual a música deveria representar paixões como estados de coisas.
Nesses dois capítulos iniciais, as linhas gerais do desenvolvimento do texto
mostram os problemas de se fundamentar a estética na relação da música com os
sentimentos, já que
O efeito da música sobre o sentimento não tem (...) nem a necessidade
nem a constância nem, por fim, a exclusividade que um fenômeno deveria
apresentar para conseguir fundamentar um princípio estético (Hanslick,
2011, p. 15).
Vários são os exemplos que evidenciam essa falta de necessidade, essa
contingência que o autor identifica na relação da música com os sentimentos por
ela suscitados ou representados. A mesma música, afirma Hanslick, suscita
paixões diferentes “em diferentes nacionalidades, temperamentos, idades e
circunstancias, mas ainda, na igualdade de todas estas condições em diferentes
indivíduos” (Hanslick, 2011, p. 14). Uma música com texto, que adquire, portanto,
uma função de representar conceitos, se presta tão bem para representar um
determinado conteúdo conceitual como outro totalmente diferente, com mudança
integral do texto. Isto ocorre, por exemplo “quando se representa a ópera Os
Huguenotes de Meyerbeer, com mudança de cenário, de época, das personagens,
da ação e das palavras, como os Gibelinos em Pisa” (Hanslick, 2011, p. 30), onde
todo o conteúdo religioso e o sentimento piedoso desaparece. Não obstante, essa
transposição não “lesa no mínimo a expressão puramente musical” (Hanslick,
2011, p. 30). Além disso, um mesmo trecho musical pode representar um
sentimento determinado tão bem como o seu oposto (Hanslick, 2011, p. 29). São
inumeráveis os trechos do livro em que o autor mostra esse caráter problemático
da relação entre a música e os conteúdos que ela se põe a representar. Eles
atravessam todo o livro, desdobrando-se a partir das questões desenvolvidas em
cada capítulo e seria exaustivo e desnecessário enumerá-los aqui. Mais proveitoso
é identificar a origem dessa incompatibilidade que o autor atribui à relação entre
as estruturas musicais e os conteúdos representados por elas. Sua origem deriva
do paradoxo de uma arte não conceitual como a música se propor a representar
conteúdos conceituais. O caráter não conceitual da musica é, para Hanslick,
consequência de sua não referência a conteúdos extra-musicais, isto é, do fato de
que ela só pode ser compreendida esteticamente a partir de seus elementos
internos. Os sentimentos, por sua parte, dependem essencialmente de definições
conceituais e só assim podem ser compreendidos e distinguidos entre si.
Adorno compartilha com Hanslick a ideia de que a música não pensa por
conceitos, e muito da sua crítica a Wagner se baseia nisso. Muito da tensão
interna que Adorno vê na obra dramática de Wagner deriva também do conflito
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desse caráter conceitual presente em uma música que, ao mesmo tempo,
reivindica o ideal de autonomia da música, a despeito das afirmações de Wagner
de que a música é essencialmente uma arte não autônoma, subordinada ao
drama (Wagner, 1893, p. 26-7). O ideal de autonomia se manifesta na aspiração à
forma musical contínua e unitária, em virtude da continuidade harmônica,
conforme vimos, mas também da melodia infinita, da orquestração e de outros
parâmetros abordados por Adorno no Ensaio sobre Wagner. A continuidade sem
fissuras – buscada por uma articulação intra-musical – é desmentida, afirma
Adorno, pela falta de desenvolvimento motívico, a qual é substituída pela
gesticulação. Assim, o expressivo se estabelece de fora para dentro, a partir de
uma expressão que “não se representa, mas é representada” (Adorno, 2008, p.
44), que não se desdobra a partir da elaboração formal dos próprios materiais
musicais – isto é, como aconceitual – mas se apresenta como um significado
conceitual pré-existente em relação à música.
A partir do terceiro capítulo de Do belo musical, o texto caminha no sentido
de expor a posição que a arte musical autônoma toma em relação aos materiais
musicais e que, consequentemente, a estética musical também deve tomar.
Hanslick não nega o caráter simbólico de determinados sons, em virtude do qual
eles são associados a determinados conteúdos. No entanto, afirma que a arte
musical começa onde termina a simbologia dos sons, isto é, a partir do momento
em que os sons passam a ser considerados não isoladamente, mas através de suas
articulações formais. Aqui Hanslick já anuncia o giro da estética do sentimento
em direção a uma estética da totalidade da forma. A crítica adorniana da
expressão como simulação de paixões já é delineada, portanto, em Hanslick, que
varre todos os conteúdos afetivos, todas as “paixões simuladas” para fora do
terreno da música, traça uma linha que os separa inequivocamente da arte
musical, na qual os sons “seguem leis inteiramente diversas” (Hanslick, 2011, p.
24). Conforme veremos mais adiante, a posição de Adorno no que toca à relação
da música com os elementos extra-musicais é diferente da de Hanslick, no
entanto é possível afirmar que Adorno vê em Hanslick um dos momentos da
dialética da expressão, qual seja, o negativo, o da construção e da forma, em que a
expressão imediata, pura e simples, é negada pela objetividade da forma.
Hanslick traça um limite que separa nitidamente os sons musicais e os não
musicais. Isto porque os sons seguem, na música, leis diferentes daquelas que
seguem em sua “manifestação isolada”. Na arte musical, os sons não estão
isolados, mas combinados entre si, e nisto consiste o salto do som simbólico – que
já é algo em si mesmo, isoladamente – para o som musical – que só se torna algo
através da relação com outros sons. Os conteúdos particulares tornam-se, assim,
artísticos ao serem reconfigurados, relativizados, transformados, combinados, etc.
no interior na forma artística espiritualizada e, portanto, intelectual. Não se
trata de afirmar que certos sons são exclusivamente artísticos e os demais,
exclusivamente naturais, simbólicos. Muitos dos sons são ao mesmo tempo
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naturais e musicais, mas sua consideração enquanto som espiritual, ou artístico,
exclui as referências às suas características naturais isoladas e à sua simbologia.
Ao contrário do som natural, que se relaciona com os sentimentos, os sons
musicais se movem no terreno da autonomia da forma. Seu caráter artístico e,
portanto, sua beleza não deriva de sua relação com os sentimentos, mas das
relações que estabelecem entre si. A ideia da totalidade da forma – que, conforme
vimos, articula-se, em Hanslick à de uma determinada concepção de expressão
musical – é levada pelo autor às últimas conseqüências. Em contrapartida, se é
possível a ideia de um artístico musical para Adorno, ela se baseia em uma
relação orgânica que a parte (os detalhes e os momentos isolados) e o todo nela
estabelecem entre si. Se é verdade que os momentos individuais estão
subsumidos pela unidade e totalidade da forma, também é verdade que essa
totalidade só se legitima através do seu confronto com tais momentos, e não como
um princípio hipostasiado de todo particular e que os deduz a partir de si. O valor
estético da música depende dessa dinâmica entre a parte e o todo. Em Hanslick, a
forma artística se separa da natureza e de todas as representações isoladas por
uma linha bem traçada. O espiritual da música se move em uma esfera aparte do
som natural. A ênfase incide, pois, sobre a unidade do todo formal:
O mestre revela ‘estilo’ quando, ao realizar a idéia claramente concebida,
suprime tudo o que é mesquinho, inconveniente, trivial, conservando
assim uniformemente em cada pormenor técnico a atitude artística do
todo (...).
O aspecto arquitetônico do belo musical vem claramente para primeiro
plano na questão do estilo. Uma legalidade superior (...) será danificada
pelo estilo de uma peça musical por meio de um único compasso que,
embora em si irrepreensível, se não harmoniza com a expressão do todo
(Hanslick, 2011, p. 65).
Esse processo unilateral que Hanslick encontra na música, por meio do
qual o princípio geral da forma desdobra as partes a partir de si mesmo, e estas,
por seu turno, são dóceis à soberania da forma, ganha uma determinação técnica
a partir do conceito de tema. O tema é “a unidade autônoma, esteticamente
indivisível, musical de pensamento” (Hanslick, 2011, p. 110), a partir da qual
todo o mais se desenvolve. Ele é a origem à qual todas as configurações formais
remetem, e quase poderíamos dizer: a rigor não há nada além do próprio tema, já
que todos os desenvolvimentos posteriores não são mais do que a sua
confirmação, a evidência de seu caráter total e implacável, e de sua
impermeabilidade a tudo aquilo que não proceda dele. Se é verdade que o
compositor coloca o tema em diferentes situações, o ambienta de diferentes
maneiras, também é verdade que tudo na criação musical é consequência dele,
que tudo o que não é tema só é pensado e configurado em relação a ele (Hanslick,
2011, p. 111).
350
É difícil negar a importância do pensamento de Hanslick para Adorno.
Embora as citações e as referências indiretas não sejam frequentes, a mobilização
do conceito de autonomia para pensar a forma musical e tudo aquilo que se
relaciona a esse conceito – a concepção da totalidade da forma e inclusive o
conceito de expressão – mostra o tributo de Adorno a Hanslick, mais presente nas
entrelinhas do que nas referências expressas. Assim como Hanslick, Adorno está
atento para o caráter instável da relação da música com os significados que se
lhes possa atribuir, e não nega que o artístico de uma arte autônoma como a
música não pode ser buscado imediatamente nos conteúdos particulares que ela
representa. No entanto, para ele a relação entre o musical e o extra-musical é
bastante complexa e só pode ser encaminhada de maneira dialética.
Adorno aborda a relação entre os caracteres musicais e os conteúdos
afetivos que eles expressam em um texto sobre o caráter linguístico da música,
intitulado Sobre a Relação Contemporânea entre Filosofia e Música (Adorno,
2002). Todo o texto gira em torno da questão sobre o significado na música, sobre
a possibilidade ou impossibilidade de determinação de sua essência em termos
conceituais, extra-musicais. Adorno compara a música com as artes que
empregam signos verbais – tanto em poesia como em prosa – e com as artes
visuais. A “participação no medium que é simultaneamente o medium da
cognição [Erkenntnis]” (Adorno, 2002, p. 139) no primeiro caso, e as configurações
formais a partir de objetos do mundo exterior – que inclusive na pintura abstrata
se mesclam com o conteúdo – no segundo; em ambos casos tem-se a impressão de
que a arte estabelece uma referência inequívoca entre significante e significado,
embora Adorno reconheça que “aquilo que emerge como o significado” de uma
obra é diferente do seu conteúdo. A referência inequívoca a conteúdos extraartísticos encobre um caráter enigmático que a arte apresenta diante da pergunta
pelo seu significado, caráter este que a música, ao contrário, expõe a nu:
(...) é impossível determinar de alguma maneira compreensível o
significado da música, isto é, aquilo por meio do qual ela adquire seu
direito de existir. (...) É algo enigmático que aparece em toda a música.
(...) Trata-se (...) do fato de que não há absolutamente nenhum momento
geral que pode ser encontrado, e que seja capaz de ir para além da
descrição da música, que indique seu significado e justificação. Se então
aproxima-se da música o suficiente para que ela seja vista com
estranhamento; se, em outras palavras, não se associa sua existência
enquanto fenômeno com sua justificação, então torna-se impossível
entender de onde deriva a dignidade que foi atribuída a ela na nossa
cultura (Adorno, 2002, p. 158).
Não é possível encontrar para a música nenhum tipo de significado que
emirja categoricamente, tal como ocorre nas artes visuais, e na literatura. Adorno
se refere a uma crise da música, “que não precisa ser introduzida” (Adorno, 2002,
p. 135), pois trata-se de um diagnóstico geral da primeira metade do século
XX, delineado a partir das últimas experiências musicais mais avançadas que
351
datam desde os primeiros anos do século. Alguns sintomas mais evidentes dessa
crise são “as dificuldades de criação formal consistente e substancial”, “o
endurecimento e nivelamento comerciais da vida musical” e “a ruptura entre a
produção autônoma e o público” (Adorno, 2002, p. 135). As formulações mais
comuns desta crise a atribuem a um “perigo radical” (Adorno, 2002, p. 137) que
ameaça a música. No entanto, argumenta Adorno, se a música está exposta a um
perigo radical, é necessário que se interrogue o que ela é, qual é sua essência,
pois, para que algo esteja posto em perigo, é necessário que exista, e que
apresente uma essência definível conceitualmente. Para que o seu final seja
temido, é necessário que isso que existe e apresenta uma essência tenha uma
dignidade em virtude da qual ganhe sua legitimidade, seu propósito ou sentido de
existir [raison d’être]. No entanto, vimos que essa questão pelo sentido da música
não pode ser solucionada, já que não é possível atribuir à música algum
significado intrinsecamente musical, do qual derivaria sua essência e seu sentido
de existir. Desta forma, até mesmo essa presumida crise que ameaça a música
torna-se enigmática, pois não é possível identificar a que ela se refere. Essa
aporia constitui a fibra do texto de Adorno, para quem a solução só pode ser
dialética. Adorno é sensível às reflexões de Hanslick na medida em que reconhece
a música como uma arte autônoma e recusa, portanto, a possibilidade de uma
simples subsunção dela a uma essência universal e extra-musical, subsunção esta
pressuposta na pergunta pelo seu significado. Mesmo assim, a posição de
Hanslick não é acatada por Adorno:
(...) a suposta felicidade que é provocada por formas sonoras em
movimento é um princípio muito estreito e abstrato para servir de
fundamento a uma forma arte altamente organizada. Caso se tratasse
apenas disso, então não haveria diferença entre um caleidoscópio e um
quarteto de Beethoven exceto a diferença no material (Adorno, 2002, p.
139).
O exemplo do caleidoscópio é uma metáfora usada pelo próprio Hanslick
para ilustrar o belo musical como um auto-referido movimento de formas, umas
em relação às outras. No entanto, o nível de articulação formal da música é
imensamente superior ao de um caleidoscópio e um princípio tão vago não é
suficiente para caracterizar a singularidade artística de uma música
determinada, ou a especificidade de um estilo, já que apenas descreve algo que
acontece a todas as música e, no melhor dos casos,
afirma a própria
singularidade do artístico de cada música, sendo que esta mesma singularidade,
na medida em que é atribuída a todas elas, torna-se uma característica geral.
Todas as músicas artísticas são singulares: nisto todas elas se assemelham.
Adorno não vê com bons olhos qualquer tentativa de definir a música de
uma maneira universal, já que isso necessariamente leva concepções demasiado
abstratas incapazes de realizar aquilo que julgam realizar. É o que ocorre se a
definimos como uma linguagem sui generis ou como um algo marcado por um
352
tempo e um espaço diferentes do tempo e do espaço empíricos, pois não podemos
separá-la, enquanto linguagem sui generis, das outras linguagens e, enquanto
algo temporal e espacialmente distinto do mundo empírico, do tempo e do espaço
empíricos, a não ser por meio de um enunciado abstrato que não afirma mais que
a própria diferença, dispensando-se de determinar em que ela consiste (Adorno,
2002, p. 142). Para ser categoricamente separada do não musical, a música deve
tomar determinações tão abstratas que a acabam paradoxalmente fundindo ao
não musical. A diferença característica da música frente ao mundo empírico, às
outras formas de linguagem e a tudo aquilo que não é música não se baseia em
uma formulação categórica, abstrata ou atemporal: concerne às particularidades,
isto é, as diferenças concretas: os estilos particulares, as obras particulares de
cada estilo e, além disso, os momentos particulares de cada obra musical, os quais
Adorno, ao contrário de Hanslick, não vê como mera dedução lógica do todo. O
elemento responsável por essas diferenças singulares é a expressão. Entretanto,
(...) o momento de expressão, no qual percebeu-se o corretivo do princípio
de Hanslick citado acima, é muito ambíguo, em qualquer instância
isolada, e muito vago para representar o conteúdo da música por si
mesmo (Adorno, 2002, p. 139).
A singularização expressiva é o elemento no qual a reflexão conceitual
sobre a música deve se basear para superar a contradição das definições que, por
demasiado abstratas, nada definem. No entanto, o momento expressivo nada
soluciona “por si mesmo”, isto é, se considerado de maneira isolada, como um
princípio independente do momento objetivo da obra unitária e organizada, pois
assim permanece ambíguo. E aqui produz-se o curto-circuito do texto: “toda
música é caracterizada de uma maneira primária por aquilo que, na linguagem,
com as palavras, apenas ocorre como resultado de uma concentração alienante”
(Adorno, 2002, p. 139). O que ocorre na música de uma maneira primária, isto é,
sem a mediação dos conceitos, das palavras e, em suma, dos universais, só pode
ocorrer na linguagem verbal por meio de um agrupamento de diversos singulares
sob um conceito universal que abstrai as diferenças entre eles: por meio da perda
da singularidade enquanto tal, enquanto não subsumida à universalidade do
conceito, isto é, de uma alienação. A espinhosa tarefa de uma reflexão conceitual
sobre a música torna-se um enigma insolúvel na medida em que a música,
conforme já afirmava Hanslick, é uma arte não conceitual e, portanto, resistente
ao esquema de subsunção do singular ao universal, que está na base de toda
linguagem verbal.
A música olha seu ouvinte com olhos vazios, e quanto mais
profundamente se imerge nela, mais incompreensível torna-se sua
proposta última, até que aprende-se que a resposta, se tal é possível, não
está na contemplação, mas na interpretação. Em outras palavras, a única
pessoa que pode solucionar o mistério da música é aquele que a toca
corretamente, como algo total. Seu enigma se burla do ouvinte ao seduzi-
353
lo a hipostasiar, como ser, o que é em si um ato, um devir e, como devir
humano, um comportamento (Adorno, 2002, p. 139).
A vacuidade conceitual da música, que “olha seu ouvinte com olhos vazios”,
obriga a reflexão sobre ela a abandonar a pergunta pelo seu sentido extra-musical
em prol de uma compreensão orgânica, da música como comportamento ou gesto.
Em música, estamos diante de gestos e não de significados. Na medida
em que música é linguagem, é, como a notação na história da música,
uma linguagem sedimentada de gestos. Não é possível perguntar à
música o que ela traz como seu significado; na realidade a música tem
como seu tema a questão: como podem os gestos tornarem-se eternos? (...)
Como linguagem, a música tende ao puro nomear, à unidade absoluta
entre objeto e signo, que em sua imediaticidade está perdido para todo
conhecimento humano (Adorno, 2002, p. 139).
Ao evidenciar o paradoxo de uma arte não conceitual que representa
conteúdos conceituais, Hanslick já apresenta, não obstante, o corretivo do caráter
abstrato de sua estética musical: a música não representa os sentimentos, mas
apenas mimetiza os movimentos anímicos que podem acompanhá-los, isto é, os
gestos. Adorno provavelmente diria que Hanslick tem razão contra si mesmo: se
para ele esses movimentos estão subsumidos ao conceito, como adjetivos, e
portanto varridos para fora do terreno da arte musical, para Adorno a
possibilidade da expressão na música se baseia justamente na autonomia dos
gestos frente às representações às quais se subsumem enquanto conceitos. Assim
também, a autonomia musical reflete essa autonomia do movimento anímico e do
gesto frente ao conceitual e abre espaço para a singularidade de uma expressão
que não está subsumida à universalidade do conceito.
Contudo, após serem negados em prol da gestualidade e do orgânico, o
conceito e a razão reaparecem, ainda que transformados. Gesto e linguagem
conjugam-se na música, segundo Adorno. As implicações de sentido extramusicais, “desde o eco de marchas e música bélica na grande sinfonia (...) até os
reais e extra-estéticos shocks e emoções da alma, desde cujos documentos
cristalizou-se a nova linguagem formal da música” (Adorno, 2002, p. 142), por um
lado; e a articulação dos sons no interior de um processo, por meio de uma
construção racional da forma, por outro: estes elementos opostos apresentam-se
na música intrincados, e torna-se, portanto, impossível separá-los um do outro. O
caráter linguístico da música não deve ser entendido como sua participação no
mundo dos significados, pois não é possível separar, no gesto, significante e
significado: no ato do “puro nomear” – diferente do de significar – “o nome
aparece na música como puro som, separado de seu portador, e portanto como o
oposto de todo ato de significação, de toda intenção de sentido” (Adorno, 2002, p.
140). Assim, o que a constitui como linguagem é sua participação no mundo da
racionalidade, já que
354
A música não conhece o nome – o absoluto como som – imediatamente,
mas, se é possível expressar-se assim, se esforça por uma construção que
o conjure por meio de um todo, de um processo. Portanto ela está ao
mesmo tempo entrelaçada no interior desse processo, no qual categorias
como racionalidade, sentido, significado, linguagem ganham sua validez
(Adorno, 2002, p. 140).
É nessa tensão entre o anseio pela nomeação de algo imediato e carente de
sentido e a articulação racional em virtude da qual ela se torna possível que
Adorno identifica a contradição essencial no interior da qual se move a criação
musical:
O paradoxo de toda música é que, como um esforço em direção àquilo não
intencional para o qual foi escolhida a inadequada palavra “nome”, ela se
desdobra precisamente apenas por causa de sua participação na
racionalidade no mais amplo sentido (Adorno, 2002, p. 140).
A especificidade da linguagem musical não pode ser compreendida,
segundo Adorno, a não ser a partir dessa essência contraditória.
Por uma parte, [a racionalidade musical] implica que a música, através
da disposição sobre o material da natureza, se transforma em um sistema
mais ou menos rígido, cujos momentos singulares têm um significado
independente do sujeito e ao mesmo tempo aberto a ele. Toda música,
desde o princípio da época do baixo contínuo até hoje, está unida como
um ‘idioma’, que em boa medida está dado pela tonalidade, e cujo poder
continua ainda na negação atual da tonalidade. O que designa o termo
‘musical’ no uso mais simples da linguagem, se refere justamente a esse
caráter idiomático, a uma relação para com a música na qual seu
material, em virtude de sua objetivização, se converte em segunda
natureza do sujeito musical. Mas, por outra parte, também sobrevive, no
momento da música semelhante à linguagem, a herança do pré-racional,
mágico, mimético: graças à sua linguistização, a música se afirmou como
órgão da imitação (Adorno, 2002, p. 145).
A música é determinada, por um lado, pelos seus elementos abstratos e
universais, que estão para além da singularidade de cada música determinada. O
que se obtém por meio desta abstração é aquilo que é comum entre elas: os
elementos musicais sedimentados que se abstraíram desta ou daquela música em
particular para constituírem um referencial abstrato compartilhado daquilo que é
“musical”, que estabeleceria os padrões de reconhecimento e legitimidade ante os
quais os momentos expressivos e particulares de cada música deveriam se curvar
para não se tornarem incompreensíveis. Dito de outro modo, um sistema, um
idioma.
Por outro lado, a música não pode ser compreendida sem uma consideração
de seus momentos expressivos, nos quais vai além dos elementos convencionais,
em direção a algo que tende ao informe e ao “pré-racional”: nesses momentos, ela
se particulariza, se lança para além dos elementos universais criando, por meio
de um processo, novas configurações que são irrepetíveis.
355
Isto pode explicar porque Adorno não menciona a expressão como “efusão
do coração” no trecho que caracteriza a expressividade da “música expressiva
ocidental”. A estética de Adorno, não só na Filosofia da Nova Música mas nos
escritos sobre música e sobre artes em geral, se desenvolve a partir das questões
técnicas e formais apresentadas por cada uma das obras. Adorno não propõe uma
reflexão sobre as doutrinas estéticas enquanto tais, mas sim uma reflexão sobre
as questões estéticas emanadas pelas próprias obras. Sua estética é algo que
podemos chamar de uma estética materialista: não se trata de uma discussão das
idéias enquanto tais, mas sim na medida em que elas estabelecem relações
concretas com a criação artística e sua história.
Essa exigência de uma expressão subjetiva e original deixa de ser apenas
um preceito estético e passa a enredar-se em uma dinâmica histórica concreta na
medida em que mobiliza os elementos construtivos intra-musicais da forma
autônoma. A concepção da forma como um todo coeso e racional abriu um
caminho para que a expressão subjetiva pudesse aparecer como uma força
concreta no interior da música e ganhar o sentido de uma singularização
irrepetível, que paradoxalmente só se torna possível em virtude dos elementos
objetivos da forma. Ao tomar a expressão por princípio, a música se enreda,
portanto, em uma contradição. Dahlhaus também tem isto em mente, conforme é
possível observar em um trecho do mesmo ensaio Transformações da estética do
sentimento (Dahlhaus, 2003), com o qual encerro este texto:
Enquanto composição, enquanto letra escrita, a arte da expressão
musical enreda-se num paradoxo que, no entanto, não se pode abolir
como contradição morta, mas se deve conceber antes como contradição
viva, que impele a evolução histórica. Se a música visa tornar-se (...)
persuasiva e expressiva – e o princípio da expressão é, desde o final do
séc. XVIII, o agente da sua história – deve então, por um lado, para ser
compreensível, cunhar fórmulas: na ópera, constituiu-se um vocabulário
que também se estendeu à música instrumental. Por outro lado, a
expressividade, enquanto ‘efusão do coração’ e expressão do próprio
íntimo, optou pelo desvio do habitual e do batido. (...)
A expressão encontra-se, pois, contraditoriamente cruzada com a
convenção, e o particular com o geral. Se, enquanto subjetiva, é
irrepetível, incorre ao mesmo tempo, para ser clara, na coação à
consolidação. No instante em que se realiza numa existência apreensível,
abandona a sua essência (Dahlhaus, 2003, p. 37).
BIBLIOGRAFIA:
ADORNO, Theodor. Essays on Music. Trad. Susan H. Gillespie. University of
California Press, 2002.
__________. Obra Completa. v. 13: Monografias musicales. Madrid: Akal, 2008.
__________. Obra Completa. v. 12: Filosofia de na nueva música. Madrid: Akal,
2009b.
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DAHLHAUS, Carl. Estética musical. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70,
2003.
HANSLICK, Eduard. Do belo musical. Um contributo para a revisão da Estética
da Arte dos Sons. Covilhã: Lusofonia, 2011.
WAGNER, Richard. Opera and Drama. Trad. William Ashton Ellis. The Wagner
Library, 1893.
WEBER, Max. Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música. Trad.
Leopoldo Waizbort. São Paulo: Edusp, 1995.
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