A CRISTOLOGIA DE SÃO LEÃO MAGNO NOS SEUS SERMÕES DO NATAL Pe. Paulo Tadeu Nascimento de Oliveira 1. Quem foi São Leão Magno? Leão Magno foi o primeiro bispo de Roma que levou o nome de Leão. É oriundo da região da Toscana, na Itália. Foi diácono da Igreja de Roma por volta do ano 430, e com o tempo alcançou nela uma posição de grande importância. No verão de 440 morre o Papa Sisto III e como seu sucessor, foi eleito Leão, que recebeu a notícia enquanto desempenhava sua missão de paz na Gália. Foi consagrado a 29 de Setembro de 440, em Roma. Tinha assim início o seu pontificado, que durou mais de 21 anos, e que foi sem dúvida um dos mais importantes na história da Igreja, que lhe atribui o título de Magno. Quando faleceu, a 10 de Novembro de 461, o Papa foi sepultado junto do túmulo de São Pedro. As suas relíquias estão conservadas ainda hoje num dos altares da Basílica Vaticana. Em 1754 foi proclamado por Bento XIV doutor da Igreja. Viveu em tempos revoltos, num contexto onde aconteciam repetidas invasões bárbaras, um progressivo enfraquecimento no Ocidente da autoridade imperial e uma longa crise social. Isso causara que o Bispo de Roma como teria acontecido com evidência ainda maior um século e meio mais tarde, durante o pontificado de Gregório Magno assumisse um papel de relevo também nas vicissitudes civis e políticas Aplicou toda a sua solicitude tanto nas questões políticas, negociando com os invasores Átila e Genserico, quanto no interior da Igreja, intervindo nas discussões teológicas, na organização da Liturgia, na vida monástica e na disciplina eclesiástica. Foi cognominado defensor da civilização ocidental. Dele se conta vários episódios donde ficou gravada a valentia deste destemido pontífice. Remonta a 452, quando o Papa em Mântua, juntamente com uma delegação romana, encontrou Átila, chefe dos Unos, e o dissuadiu de não prosseguir a guerra de invasão com a qual já tinha devastado as regiões norte-orientais da Itália. E assim salvou o resto da Península. Este importante acontecimento tornou-se depressa memorável e permanece como um sinal emblemático da ação de paz desempenhada pelo Pontífice. Leão é o primeiro Papa cujos sermões ou homilias, dirigidas ao povo que o rodeava durante as celebrações, chegaram até nós.61 Conservam-se 96 sermões e 144 cartas. A maior parte deles faz referência ao ano litúrgico. Neles o autor se preocupa em extirpar os costumes pagãos e aquelas superstições impregnadas na alma romana como a astrologia. Polemiza contra os hereges e faz frente aos maniqueus que ainda perduram em Roma. 61 A. CHAVASSE: CCL 138 (1973) sermones I-XXXVIII y CCL 138A sermones XXXIX-XC VI. Revista De Magistro de Filosofia Ano VIII no. 16 – 2015/2 Com grande êxito consegue orientar a vida cristã a partir dos tempos litúrgicos que é o fio condutor de seus sermões. Marcante em seu pontificado foi sua intervenção no Concílio de Calcedônia, onde é lida a sua carta chamada "Tomus ad Flavianum", ao que ressoou com eloquência da parte dos bispos presentes a famosa expressão: "Pedro falou por boca de Leão". Esse Concílio teve lugar no ano 451, e com os trezentos e cinquenta Bispos que nele participaram foi a mais importante assembleia até então celebrada na história da Igreja. Calcedônia representa a meta certa da cristologia dos três Concílios ecumênicos precedentes: o de Niceia de 325, o de Constantinopla de 381 e o de Éfeso de 431. Já no século VI estes quatro Concílios, que resumem a fé da Igreja antiga, foram de fato comparados com os quatro Evangelhos: é quanto afirma Gregório Magno numa famosa carta (I, 24), na qual declara "acolher e venerar, como os quatro livros do Santo Evangelho, os quatro Concílios", porque sobre eles, explica ainda Gregório, "como sobre uma pedra quadrada se eleva a estrutura da santa fé". O Concílio de Calcedônia, ao recusar a heresia de Eutiques que negava a verdadeira natureza humana do Filho de Deus, afirmou a união na sua única Pessoa, sem confusão e sem separação, das duas naturezas humana e divina.62 Leão Magno soube estar próximo do povo e dos fiéis com a ação pastoral e com a pregação. Incentivou a caridade numa Roma provada pelas carestias, pela afluência dos prófugos, pelas injustiças e pela pobreza. Contrastou as superstições pagãs e a ação dos grupos maniqueus. Relacionou a liturgia com a vida quotidiana dos cristãos: por exemplo, unindo a prática do jejum com a caridade e com a esmola sobretudo por ocasião das Quatro têmporas, que marcam no decorrer do ano a mudança das estações. Em particular Leão Magno ensinou aos seus fiéis, e ainda hoje as suas palavras são válidas para nós, que a liturgia cristã não é a recordação de acontecimentos do passado mas a atualização de realidades invisíveis que agem na vida de cada um. 2. Cristologia nos Sermões do Natal São Leão Magno escreveu quatro sermões sobre o Natal que terão grande acolhimento nos textos litúrgicos como as Vésperas do dia 25 de dezembro. Neles, a união hipostática é o principio gerador do seu pensamento que também assegura unidade a seu ensinamento. A vida de Cristo e a redenção se esclarecem na Encarnação; a natureza íntima da Igreja depende também dela, a moral se desprende como uma consequência imediata dela. A doutrina dos dois nascimentos, do Pai antes dos séculos e da Virgem no tempo, e a dupla consubstancialidade, consubstancial ao Pai e a nós, são fundamentalmente soteriológicas.63 Se Leão se opõe às vezes com tanta energia aos erros dos maniqueus, é porque negam a humanidade de Cristo, estritamente necessária para a salvação. 62 Bento XVI, Audiência Geral, São Leão Magno, quarta-feira, 05 de março de 2008. B. STUDER, "Consubstantialis Patri - consubstantialis matri. Une antithèse christologique chez Léon le Grand", en REAug 18 (1972) 87-115. 63 Revista De Magistro de Filosofia Ano VIII no. 16 – 2015/2 Uma de suas principais preocupações como pastor foi a oposição ao maniqueísmo e o monofisismo de Eutiques64 e outras heresias. Durante seus primeiros anos de pontificado se difundiu, além da doutrina de Manes, o pelagianismo, o nestorianismo, o priscilianismo e o monofisismo. No que se refere ao maniqueísmo, Leão o aponta como fundamental oposição à encarnação: negação da humanidade de Cristo segundo a carne, chegando a negar como consequência também sua morte e ressurreição. Por isso, sublinhará continuamente o realismo dos atos humanos do Salvador. O pelagianismo suscitou como reação a insistência do Papa acerca da necessidade absoluta do Redentor e de sua graça na obra da santificação, enquanto que o nestorianismo chamou sua atenção sobre a humanidade de Cristo e sua relação com a divindade. Não obstante as perseguições de Diocleciano e as leis imperiais contra os maniqueus, esta seita, nascida no século III, se desenvolveu entre os séculos IV a VI. O maniqueísmo impulsionou o Papa a ressaltar fortemente a humanidade verdadeira de Cristo, Filho de Deus e também a orientar-se rumo a um otimismo de base em vista a natureza humana e a criação. Efetivamente, para o maniqueísmo, a matéria era intrinsecamente má e, portanto, era impossível que Deus se unisse a ela. O Papa Leão faz notar a diferença entre o maniqueísmo e as outras heresia. Reconhece que nas outras heresias (de Ário, Macedônio, Sabélio, Fotino, Apolinário), ainda que devam ser condenadas, é possível encontrar nelas elementos de verdade; em contrapartida, no maniqueísmo não ha nada que possa ser aceitável. No tocante à teologia trinitária, Leão assume da tradição latina a distinção entre pessoa e natureza. Pessoa significa nesse contexto: inconfundibilidade e individualidade na mesma natureza espiritual.65 Usando a expressão 'uma pessoa' só quer mostrar o único e mesmo sujeito que assume a realidade da natureza humana, mas não é sua intenção refletir ou explicar o conceito de pessoa66 No primeiro sermão do Natal, o autor diz que o Filho de Deus, ao tomar a natureza humana, combateu o inimigo com a mesma natureza que esse havia vencido, numa total equidade de regras, pois venceu o ímpio inimigo já não usando de sua majestade divina como Filho de Deus, mas com a nossa pequenez. Ao tomar a baixeza de nossa condição, não foi diminuída sua majestade. Permanecendo o que era assumiu o que não era, realizando entre as duas naturezas uma união tão estreita, que nem o inferior foi absorvido por esta glorificação, nem o superior foi diminuído por esta assunção. Assim, a majestade se revestiu de humildade; a força, de fraqueza; a eternidade, de caducidade. A fim de pagar a dívida devida por nossa condição, a natureza imutável se une a uma natureza passível, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, um só Senhor, que pôde morrer, em virtude de uma das duas naturezas (a humana), e ressuscitar em virtude da outra natureza (a divina). 64 Sustentava que em Cristo havia uma só natureza: a divina. Cf. A. GRILLMEIER, Gesù il Cristo nella fede della Chiesa vol. II/I, Brescia, 1996, 234. 66 Revista Teológica, Tomo XLI Nº 84 Ano 2004 - 95-103. 65 Revista De Magistro de Filosofia Ano VIII no. 16 – 2015/2 Tal nascimento convinha à fortaleza e sabedoria de Deus, que é Cristo. Por isso, se não fosse Deus, não nos haveria proporcionado o remédio salutar, se não fosse homem, não nos haveria dado o exemplo. Decorrendo dessas premissas, Leão Magno chama o cristão a tomar consciência de sua dignidade, insistindo; "Reconhece, oh cristão, tua dignidade! Participaste da natureza divina, não voltes à antiga miséria com uma vida depravada. Recorda de que Cabeça e de que corpo és membro". No segundo sermão, o autor afirma que Deus tinha desde sempre um plano de amor ao homem e que a queda dos primeiros pais não significou uma mudança nesses planos, já que desde o primeiro momento Deus já tinha um plano oculto para remediar. Nascendo de uma virgem, o Filho de Deus é de origem dessemelhante a nossa, mas com natureza comum a nossa, embora isenta de pecado. Assim, nascendo de um modo novo e preservando a integridade virginal de sua mãe, ele pôde elevar o que era desprezado, dominar as seduções da carne a fim de que a virgindade, que é incompatível com a transmissão da vida, se tornasse compatível aos que iriam renascer na graça. Deus usou de equidade no combate contra o demônio. Embora pudesse usar de outros meios, preferiu aquele sobre o qual o demônio exercia seu poder: a humanidade. De tal modo era Jesus verdadeiro homem, que o "demônio jamais pôde crer que fosse isento da falta inicial aquele que, por tantos indícios, ele reconhecia por um mortal".67 Por isso, usando de suas estratagemas malignas contra Jesus, o demônio se viu humilhado ao não obter nenhum resultado, e a acusação que testemunhava diante de Deus contra os homens se viu reduzida ao nada. Com a própria natureza humana Jesus vence a tentação e o pecado que pesava no homem, assim como por sua morte e ressurreição vence a morte, resgatando o homem de tudo o que o mantinha sob o jugo da escravidão e do demônio. E com seu nascimento renova o nascimento. No terceiro sermão São Leão Magno desenvolve a explicação de como as duas naturezas se uniram em Jesus. Ensina que a Virgem pôs no mundo uma única pessoa, verdadeiramente humana e verdadeiramente divina, porque as duas substâncias não conservaram suas propriedades de tal maneira que se possa fazer nelas distinção de pessoas; nem se pode dizer que a criatura tenha sido tomada e associada a seu Criador de tal forma que ele fosse o habitante e ela a habitação. A diversidade das naturezas se encontra em tal unidade que é um só e mesmo Filho que, enquanto verdadeiro homem, se diz inferior ao Pai e, enquanto verdadeiramente Deus, se declara igual ao Pai. Rebatendo o erro ariano, diz que o Filho na condição de homem é inferior ao Pai, mas na condição de Deus Ele é igual ao Pai. 67 Patrística. Leão Magno, Sermões. Volume 6, p. 41. São Paulo: Paulus 1996. Revista De Magistro de Filosofia Ano VIII no. 16 – 2015/2 Em Jesus, cada natureza conserva o que lhe é próprio; a condição de Deus não suprime a condição de servo, a condição de servo não diminui a condição de Deus. Com o Pai e o Espírito Santo, o Filho forma uma só vontade, uma mesma substância e um poder igual. O Filho assumiu integralmente a nossa natureza, participando da nossa fraqueza, não das nossas faltas. Ele assumiu o que era nosso para poder reparar. Jesus desceu até nós porque nós não podíamos subir até Ele. Só o ensinamento da Lei e as exortações dos profetas não eram capazes de nos salvar; era preciso que isso se unisse a uma vítima, de nossa raça, mas isenta de nossa corrupção. O que a encarnação do Verbo trouxe se refere tanto ao passado como ao futuro. No seu quarto sermão no Natal do Senhor Leão justifica como a encarnação é o ápice da obra divina. Deus já tinha dado muito ao gênero humano em sua origem, criando-nos à sua imagem. Mas concedeu-nos muito mais em nossa restauração, unindo-se ele, o Senhor, à nossa condição servil. São Leão Magno ensina que a profecia de Davi, que diz "da terra germinou a verdade" e a de Isaías, que diz "que a terra dê seu fruto e faça germinar o Salvador", são cumpridas com o nascimento de Cristo. A terra da natureza humana, maldita no primeiro prevaricador, produziu nesse único parto da Santa Virgem um germe abençoado e isento do vício de sua estirpe. Assim, o pecado, que foi então aniquilado por uma santa concepção, aqui é tirado pela ablução mística. O santo nascimento de Cristo pela Virgem esmagou o pecado. Em nós também o pecado é aniquilado pelo novo santo nascimento em Cristo através do Batismo. Deste modo podemos dizer, parafraseando este autor, que, em sentido teológico, o Batismo é para nós o que o seio virginal de Maria foi para Jesus. Por último, São Leão Magno condena o Maniqueísmo como a pior heresia de todas existentes. Com efeito, não acreditando na verdade do nascimento de Jesus, não aceita a verdade de sua paixão e por sua vez na verdade de sua morte e, consequentemente, na verdade da ressurreição, o que anularia a redenção. Revista De Magistro de Filosofia Ano VIII no. 16 – 2015/2