no fedro, as veredas da filosofia resumo résumé

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REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO DE FILOSOFIA – I.F
SCIENCE INSTITUTE
ISSN 1984-5804
NO FEDRO, AS VEREDAS DA FILOSOFIA
Sílvia Maria de Contaldo1
RESUMO
O artigo procura mostrar que o mito das cigarras de Platão, narrado ao final de sua obra
Fedro , é ponto de chegada (e partida) para explicitar as possibilidades da Filosofia, no que se
refere ao seu papel fundamental e imprescindível na formação ética do sujeito. Os mitos
platônicos, em muitos casos, enfatizam o eixo condutor de seu projeto político, construído
mediante o diálogo, a interlocução e o ofício maiêutico, qual seja, a investigação que a razão
deve sempre empreender. Especialmente no mito das cigarras, aparentemente uma pequena
fábula, o diálogo entre Sócrates e Fedro, aponta para essa direção e finalidade educativa.
Palavras-chave: Filosofia. Educação. Platão
RÉSUMÉ
Il essaie de montrer que le mythe des cigales de Platon, rapporté par la fin de son ouvrage,
Phèdre, est le point d'arrivée (et de départ) pour clarifier la portée de la philosophie, à l'égard
de son rôle fondamental et indispensable dans le sujet éthique. Les mythes de Platon, dans de
nombreux cas, soulignent le pivot de son projet politique, fondé sur le dialogue, la
communication et la lettre maïeutique, qui est, de la recherche que la raison doit toujours être
prises. En particulier dans le mythe des cigales, apparemment une petite fable, le dialogue
entre Socrate et Phèdre souligne ce sens et le but de l'éducation.
Mots-clés: Philosophie - Education - Platon
1
Professora de Filosofia
[email protected]
da
Puc-Minas
e
do
Instituto
Santo
Tomás
de
Aquino.
E-mail:
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1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
“Por isso, Zeus, temeroso por nossa espécie ameaçada de extinção, envia Hermes
para trazer aos homens o pudor e a justiça, a fim de que houvesse nas cidades harmonia e
laços criadores de amizade. [...] Hermes pergunta a Zeus de que maneira deve conceder aos
homens o pudor e a justiça: ‘Devo distribui-los como foi feito com as outras artes... um único
médico é o bastante para muitos leigos... Devo reparti-los entre todos? Entre todos, disse
Zeus, ‘e que cada um receba sua parte, pois as cidades não poderiam sobreviver se alguns
fossem deles providos, como acontece com algumas artes; além disso, estabelecerás esta lei
em meu nome: que todo homem incapaz de compartilhar do pudor e da justiça deve ser
entregue à morte, por ser um flagelo para a cidade” (Platão, Protágoras, 322c 322 d).
O trecho acima demonstra o eixo condutor da obra platônica, em seu conjunto.
Trata-se de uma investigação filosófica, rigorosa, conceitual acerca da ética e da política,
atualíssima. Ou, trata-se de obra ético - política cujo vetor está na interrogação sobre a
natureza da virtude, para viver bem. Fica bastante clara nesse trecho que a justiça – virtude
primeira – é condição de vida em sociedade. Daí o projeto platônico ético-político
essencialmente educativo. É preciso aprender, apreender, compreender o que é justiça, o bem,
a prudência, a virtude mediante o diálogo, a discussão, a palavra dialogada.
Opiniões, no nível do que ‘parece ser’ só fazem mal à cidade e fragmenta o todo,
visto que cada um agirá segundo seu ponto de vista ou sua vontade despótica. Platão procurou
muito mais do que isso. Nem consenso, nem acordo, mas a discussão pedagógica de modo
que os homens sejam capazes de compartilhar da justiça para viver em sociedade.
Lemos em Christophe Rogue:
“a filosofia platônica é, portanto, uma grande empresa de despertar. Atenas,
machucada pela guerra do Peloponeso, tornara-se um mundo adormecido,
vivendo da lembrança dessa glória tão próxima em que seu esplendor a
colocava na primeira fila de todo o mundo conhecido. Agora diminuída no
plano político, enfraquecida pela pilhagem da África, a cidade consumia-se
num torpor embalado apenas pelo fausto de outrora. Os prestígios da
sofística pareciam ter desligado os laços naturais da linguagem e das coisas;
como num sonho, as pessoas se distraíam ouvindo os sofistas falar tão bem
que, falassem o que quisessem, o que eles diziam parecia sempre verdadeiro.
Num semi-sono, as pessoas se deixavam levar pelo hábito ao tempo de um
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deus que se honrava maquinalmente, sem mesmo saber por quê.”(ROGUE,
2005, p.177).
É nessa perspectiva que recorro ao “mito das cigarras”, do diálogo Fedro, a fim de
exemplificar a força e validade do diálogo filosófico platônico na formação do individuo, para
que ele – o indivíduo - não se torne um ‘flagelo’ para a cidade. Parece-me que esse mito tem
também por intenção demonstrar que é empreendimento da Filosofia manter a razão desperta.
O referido diálogo tem o próprio Fedro e Sócrates como interlocutores principais,
embora haja referência à Lísias e Isócrates. Os dois sentam-se tranqüilamente sob um plátano
para conversar. Motivo da conversa: Fedro tinha consigo um manuscrito de um discurso sobre
o amor, de Lísias. Motivo do passeio: recomendações médicas:
“Venho de junto de Lísias, filho de Céfalo, Sócrates; e vou passear para fora
das muralhas, pois demorei-me ali muito tempo sentado, desde manhã. Em
obediência às instruções do teu e meu amigo, Acúmeno, costumo dar os
meus passeios pelas estradas, porque, segundo ele diz, são mais
revigorantes que os dados nos pórticos”.(Fedro, 227 b).
O diálogo compõe-se de três discursos, articulados e bem tramados, a base da
discussão da arte da retórica em Platão2.
É nessa trama que Platão cria o mito das cigarras, elogio à razão desperta. Uma
espécie de pausa – ao longo do tema principal do referido diálogo - para lembrar a natureza
da razão, interrogativa e interrogante. Compreender sua natureza geométrica, que apreende o
todo e a parte, a parte no todo, o todo em relação à parte, tal qual a relação indivíduosociedade transcrita no início desse texto. A “porção” de justiça não é para satisfazer a parte,
mas para equalizar o todo, vale dizer, a sociedade.
2 O MITO
De autoria do próprio Platão o mito das cigarras narra a causa do seu aparecimento
na terra e sua “função”. Com o nascimento das musas e o surgimento do seu canto na terra,
2
cf PLATÃO, Fedro, p.13.
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alguns homens (já existiam!) ficaram tão maravilhados com essa arte e sentiam nisso tanto
prazer que se esquecia de comer e beber. Só cantando, acabavam morrendo. Desses homens
nasceram as cigarras. Sabe-se que as cigarras cantam até morrer. Morrem de cantar porque
receberam das musas esse privilégio. Não carecem de alimentos. Mas elas ficaram devendo
às musas uma obrigação: devem contar a elas o que se passa aqui na terra, quem lhes presta
homenagens, quem filosofa! Principalmente, deve informar à Calíope - entre os pitagóricos
símbolo da filosofia - e à sua jovem irmã Urânia, musa das coisas do céu, sobre os que
passam a vida filosofando e honram a arte que lhes é própria.(Fedro, 258e-259d).
Essa narrativa é a justificativa de Sócrates para - quando por volta do meio dia e sob
forte calor e ouvindo o canto das cigarras - não permitir que Fedro dê uma "cochilada" sob a
sombra do plátano.
Valia lembrar a Fedro que as cigarras, mensageiras das musas, estão atentas ao que
fazemos. É preciso manter a razão desperta, o logos em vigília: “por muitas razões, portanto,
devemos conversar e não dormir, na hora do meio dia” (Fedro, 259-d), insistiria Sócrates.
Sem alternativa Fedro respondeu: “pois então falemos” (Fedro, 259 d).
3 O PROJETO PLATÔNICO
Conforme já explicado, a ênfase nesse mito não é em razão do tema principal do
diálogo em pauta. Trata-se de reiterar a natureza do projeto educativo de Platão, visto sob
muitos ângulos e em tantos outros diálogos. No caso, o procedimento maiêutico, como era o
costume de Sócrates, é evidente. Explorar o tema esmiuçá-lo, desvenda-lo mediante a ação
dialógica. ‘Falemos’, consentira Fedro.
Por isso a importância do procedimento metodológico no ato de filosofar.
A
filosofia não pode ser apenas discurso contra discurso, palavra contra palavra. A Filosofia,
ação dialógica e dialogada estará sempre em posição de provisoriedade, resguardando o lugar
do ‘não-saber’, da construção do logos.
Em oposição ao discurso eficaz, muitas vezes apenas persuasivo e largamente
utilizado pelos sofistas, Platão insiste no exercício da palavra ‘falada’ para dar vitalidade à
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Filosofia. Ainda no Fedro também fica evidenciada a importância e a necessidade do discurso
que frutifica e fortalece o pensamento em oposição ao discurso que enfeita a palavra:
“Mas, em minha opinião, muito mais bela se torna a ocupação nestas
matérias, quando alguém, no uso da arte dialética, toma uma alma apta e
nela planta e semeia discursos com entendimento – discursos capazes de vir
em socorro de si mesmo e de quem os plantou, não improdutivos mas
possuidores de gérmen, de que mais discursos nascem em outros
temperamentos e podem tornar para sempre essa semente imortal, e assim
conceder ao seu detentor o mais alto grau de felicidade que um ser humano
pode ter” (Fedro, 277 a).
Pierre Hadot afirma que “o que caracteriza a pedagogia de Sócrates é que ela
atribuía importância capital ao contato vivo entre os homens” (HADOT, 1999, p.96). Sem
esse ‘contato vivo’ não haveria possibilidade de vida justa, seja no âmbito particular, seja no
âmbito público. Cada um agiria por sua própria conta, destituídos de qualquer projeto político,
de vida em sociedade, de vida justa. Vale transcrever mais uma consideração do mesmo
autor, que expressa a direção filosófica de Platão em seu binômio essencial: educação e
política:
“Sua filosofia não consiste em construir um sistema teórico da realidade e
em “informar” imediatamente seus leitores escrevendo um conjunto de
diálogos que expõe metodicamente esse sistema, mas consiste em “formar”,
isto é, em transformar os indivíduos, fazendo-os experimentar, no exemplo
do diálogo ao qual o leitor tem a ilusão de assistir, as exigências da razão e,
finalmente, a norma do bem” (HADOT, 1999, p.113).
4 NAS VEREDAS DA FILOSOFIA
Nesse trecho ficam evidenciados dois verbos – informar e formar – cuja distinção
seria de fundamental importância para os caminhos da Filosofia em seu percurso ocidental.
O diálogo socrático-platônico, em sua intenção político-educativa liga-se à formação
e não à informação. E não poderia ser de outra maneira. J.B. Libânio, em sua obra A arte de
formar-se, esclarece – para não haver dúvidas – o significado e sentido da palavra formação.
Esse autor recorda que o verbo formar é portador de uma carga etimológica negativa, pois
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lembra fôrma, algo pronto, acabado, muitas vezes imposto, vindo de fora e propõe outro jogo
semântico. Não formar, mas formar-se (LIBANIO, 2001, p.12).
E essa é a riqueza do pensamento platônico. Formar-se é um processo. Mais ainda,
uma maiêutica, no seu significado essencialmente socrático. Mediante o exercício inteligente
da reflexão, do questionamento, da interrogação traz à luz – auxilia o parto de novas idéias.
Faz nascer idéias, não produz artificialmente informação.
Na sociedade atual sabe-se que os aparatos tecnológicos permitiram, desde o século
passado e em curto prazo, transformar o mundo numa rede através da qual todos os homens
estão simultaneamente unidos e informados. No entanto, essa nova integração mundial assusta
“porque os homens, como indivíduos, se integram, e o homem, como conceito de ser, se
desintegra”, nas palavras de Cristóvam Buarque. (BUARQUE, 1995, p.28).
Também a Declaração de Paris para a Filosofia, de fevereiro de 1995, aprovada
durante as Jornadas Internacionais sobre Filosofia e Democracia reiterava, naquela ocasião, a
importância da educação filosófica:
“A educação filosófica, formando espíritos livres e reflexivos, capazes de
resistir às diversas formas de propaganda, fanatismo e exclusão e
intolerância, contribui para a paz e prepara cada um a assumir suas
responsabilidades face às grandes interrogações, notadamente no domínio da
ética” 3.
Claro está que não se pode prescindir do caráter crítico e formador da Filosofia
proposto por Platão. A não ser que se passe a considerar “suficiente tornar-se um produtorconsumidor, inserido em uma sociedade na qual cada um desempenha o papel que lhe é
atribuído. Para isso, bastam fornecer a cada indivíduo as informações necessárias para
desempenhar este papel” (JACQUARD, 1998, p.157).
Assim devemos voltar às veredas platônicas – lá onde estão às cigarras - a cada hora
em que interrogamo-nos acerca das possibilidades da vida política justa: “Sim, é possível que
3
Cf. APPEL, Emmanuel José. Filosofia nos vestibulares e no ensino médio. InformAndes, São Paulo,ano X,
89, p.12,jan/fev.1999.
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exista mesmo uma espécie de trilha que nos conduz de modo reto, quando o raciocínio nos
acompanha na busca” (Fédon, 66 b).
Essa trilha é, para a Filosofia, vereda. No âmbito da geografia a palavra vereda pode
ser também uma trilha de montanha, dificultosa, para ser percorrida a pé.
Na Filosofia, deve-se percorrer essa trilha. Para caminhar em direção ao topo, as
musas sabiamente nos deixaram as cigarras - em permanente vigília - para que a formação do
ser humano e de sua vida política seja permanente interrogação, ainda que inconclusa e
incompleta. Seja propriamente educação filosófica.
REFERÊNCIAS
BUARQUE, Cristovam. A cortina de ouro. Os sustos do final do século e um sonho para o
próximo. São Paulo, Paz e Terra, 1998.
HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga. São Paulo: Loyola, 1999.
JACQUARD, Albert. Filosofia para não-filósofos. São Paulo, Campus, 1998.
LIBANIO, João Batista. A arte de formar-se. São Paulo: Loyola, 2001.
PLATÃO. Fédon. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os Pensadores).
PLATÃO. Fedro. Lisboa: Edições 70, 1997
ROGUE, Christophe. Compreender Platão. Petrópolis: Vozes, 2005
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