Entre cordas e estrelas: apontamentos sobre o tempo e o espaço hixkaryana e suas transformações1 Maria Luísa Lucas (Doutoranda PPGAS/MN/UFRJ) Resumo: Esse trabalho tem como objetivo principal apresentar um caso etnográfico ainda pouco explorado. A saber, a cosmologia hixkaryana e suas transformações desde o contato permanente com os brancos. Aqui busco pensar especificamente nos conceitos e práticas indígenas expressos na maneira com que os Hixkaryana, ao longo da história, lidaram com a temática do tempoespaço. Palavras chave: Hixkaryana, Espaço, Tempo, Transformações. “Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muitas vezes desperto Olavo Bilac A impressionante maneira com que Evans-Pritchard (2007), em um curto período de campo, consegue descrever a ecologia e a política dos Nuer surpreende também por sua capacidade de dar conta de modo tão acurado de dois temas clássicos para a antropologia, o tempo e o espaço. Leitura obrigatória para qualquer aspirante a antropólogo, a etnografia sobre esse povo nilota pode, junto a todas suas outras contribuições, incitar-nos agora a mais um questionamento. Uma vez que a maioria de nós não conhece os Nuer senão pela obra de Evans-Pritchard (o que nos permite pouco mais que elaborar algumas hipóteses), podemos perguntamo-nos como, em outros casos etnográficos, a dinâmica tempo-espaço funciona. Discussões mais recentes a respeito da fabricação de “grandes divisores” na Antropologia (Goldman&Stolze, 1998; Latour, 1994) nos subsidiam a refletir sobre o rendimento analítico da replicação Trabalho apresentado no XI CAAS (Congreso Argentino de Antropología Social) em Rosário – 23 a 26 de Julho de 2014. 1 1 de categorizações que, alicerçadas em nosso pensamento cartesiano, já nos soam bastante naturais. O caso que desejo apresentar parece dar indicações de que, ao menos no contexto Hixkaryana, tanto as transformações do tempoespaço caminharam juntas no correr da história quanto, no limite, não podem ser pensadas autonomamente se buscamos ser o mais fiel possível ao pensamento nativo. Os índios hoje conhecidos como Hixkaryana2 são falantes de uma língua Carib e vivem nas áreas de várzea dos rios Nhamundá (11 aldeias) e Jatapu (2 aldeias), dois afluentes da margem esquerda do Rio Amazonas, no Norte Amazônico, somando cerca de 970 pessoas. Há ainda alguns Hixkaryana (geralmente homens jovens) vivendo, ao menos intermitentemente, nas cidades de Nhamundá, Parintins e Manaus. Como em muitos outros grupos ameríndios, o casamento dá-se preferencialmente entre primos cruzados bilaterais, o que é também expresso na terminologia de parentesco. Também como em alguns outros grupos (donde o caso Wayana parece ser, na região, o mais parecido 3), a onomástica hixkaryana opera de modo a transmitir os nomes da geração +3 aos recém-nascidos. Outros aspectos da vida social hixkaryana, porém, podem nos ser mais interessantes para os fins desse trabalho. Para isso, voltemo-nos para um passado nem tão longínquo. No tempo dos antigos, amnyehran komo Em primeiro lugar, sabemos que as aldeias hixkaryana, antes do contato permanente com os brancos nos anos 1960, estavam dispersas em um vasto território entre os rios Nhamundá, Jatapu e seus tributários, em áreas de várzea e terra firme. Famílias nucleares, reunidas em volta de uma figura masculina que, não raro, era também o sogro dos homens mais jovens (a residência hixkaryana é predominantemente uxorilocal), habitavam juntas uma grande maloca, nàmno. 2 Meu contato com os Hixkaryana aconteceu em 2013, na ocasião de minha pesquisa de mestrado, tendo permanecido de março a junho deste ano entre eles no rio Nhamundá. Outros desenvolvimentos dessa pesquisa podem ser conferidos em minha dissertação de mestrado (Lucas, 2014a). Antes disso, durante a graduação, desenvolvi uma curta pesquisa sobre os Waiwai, povo imediatamente vizinho aos Hixkaryana e seus tradicionais parceiros de troca. 3 Cf. Barbosa (2005). 2 Essas aldeias dispersas no território estabeleciam entre si relações de trocas (de objetos, de tecnologia, de pessoas e de relações) por meio das festas regionais que reuniam com certa frequência contingentes relativamente distantes para dançar, beber cauim e compartilhar alimentos em festivais de dança que podiam durar meses4. Ainda nessa época, o ritmo da vida hixkaryana era mensurado de modo distinto do atual. Os períodos eram contados por quatro cordinhas de sisal com amarrações (tumxemo) que acompanhavam as quadro fases da lua, terminando no primeiro dia de aparição da lua cheia no céu. Cada um desses conjuntos de quatro cordinhas marcava o fim de certos períodos que são esquematizados nas tabelas abaixo. Chaumeil (2005) mostra como, em diversas partes da Amazônia, as cordas foram utilizadas para mensurar o tempo, como é o caso dos Galibi, dos Wapixana, dos Carijona e outros. Além de serem usadas como verdadeiros “calendários”, essas cordas eram também convites enviados a aldeias vizinhas para a realização de festas e festivais de dança, assinalando por meio de um sistema de amarrações e tingimentos os dias indicados para a realização de cada uma das etapas das festas5. Ainda que seja bastante improvável que esses períodos mensurados pelas cordas tumxemo encontrem correspondência exata com os meses ocidentais, os próprios Hixkaryana realizam essa aproximação. Tendo isso em consideração, vemos que a nominação da maioria desses períodos de tempo relaciona-se com a presença de determinadas constelações no céu, com o comportamento de certos animais e com as atividades desenvolvidas em cada época6. 4 Sobre esse assunto ver Lucas (2014b). Assim, “D’une façon générale, les indigènes d’Amazonie ont coutume de fabriquer autant de ficelles qu’il y a de groups inviteés, plus une conservée par l’amphitryon. Dans centains cas (par exemple chez les Waiwai lorsqu’ils donaient une grande danse, um “courrier” plus personnalisé était dépêché avec une invitation en forme de jeu de cordes (un jeu par envité) dotées de noeuds teints en différentes couleurs, qui indiquaient respectivement le nombre de jours nécessaires au messager pour transmettre l’invitation, le nombre de jours nécessaires aux invites pour se préparer, le nombre de jours nécessaires pour qu’ils s’arrive au village, le dernier noeud signalant le jour du début du rituel”. (Chaumeil, 2005: 297). Essas mesmas cordas-convite também estão presentes nas narrativas atuais dos Hixkaryana sobre o passado. 6 Bellier (1994) observa algo semelhante para os Mai huna da Amazônia peruana. Segundo a autora, antes do contato com os brancos o tempo mai huna era pensado em relação às atividades desenvolvidas em cada época e em função dos estados da natureza e do comportamento dos animais, como o canto de determinadas espécies de cigarras. 5 3 Nome Época aproximada Honye (piranha) Janeiro Txekerye (escorpião) Woroko (espécie de roedor que mora no mato e “grita” apenas nessa época) Txemryehà Xeryko ymo (literalmente, “estrela grande”, corresponde à constelação que chamamos de “seteestrelo”) Constelação em forma de escorpião que só aparece nessa época do ano. Março Nesses tempos o guariba e outros macacos estão bem gordos. Maio Hetka (corresponde à constelação que chamamos de “Três Marias”) Nessa época aparece uma estrela que é vermelha como o olho da piranha. Esse é também o tempo em que a piranha desova. Fevereiro Abril Yayhàtho (queixo da anta) Descrição Junho É quando essa constelação aparece no céu. As estrelas são bem pequenininhas, como também são miúdos os pingos de chuva nessa época: chuvisca até anoitecer. Constelação que só aparece nessa época do ano. Nesse tempo também chove grosso, e quando os pingos caem batem forte. É quando a constelação Hetka está para sumir. A posição das estrelas faz menção ao comprimento da coxa do homem. Nessa época chove e faz sol, chove e faz sol. Tabela 1 - Txemryehà Nome Época aproximada Awasknàrà (dia, luz) Julho 4 Descrição É a época em que começa a seca, e há muita luz do sol. Nesse tempo está bem frio e aparece no céu uma estrela bem pequena, chamada xeryko wayhamsànà (abano da estrela). Onuhto ymo (tipo de irritação nos olhos) Agosto Awasknàrà Morura ymo (espécie de tatu) Setembro Wayamo ymo (jabuti grande) Outubro Weythuru (luz) Novembro Okoye (cobra) Dezembro Nessa época a chuva que cai traz um vento com fumaça. Todo mundo vai pra dentro de casa, e quem não vai fica com os olhos irritados. Nessa época que aparece um vento muito forte que derruba tudo, assim como o tatu, que é capaz de cavar e derrubar uma árvore inteira. Não chove mais. É quando o jabuti está colocando seus ovos. Nesse tempo as chuvas param completamente e a luz do sol está bem forte. É nessa época também que as roças são abertas e queimadas. É quando aparece a constelação que lembra a forma de uma cobra. Tabela 2 – Awasknàrà Acredito que os dados apresentados nos permitem colocar em relevo ao menos dois pontos interessantes para os fins da reflexão que seguirá. Primeiramente, em larga medida, as divisões esquematizadas acima tratam sobre a importância e a relação dos hixkaryana com alguns animais. Um conjunto (onde estão as referências à piranha, ao woroko7, ao morura ymo8 e ao jabuti) enfatiza o comportamento dos animais (quando desovam, de que forma se comunicam, como se deslocam no espaço). Em outro grupo, os animais aparecem em relação de figuração com certas constelações, algumas delas visíveis apenas em determinadas épocas do ano. Assim, o escorpião, a cobra e o queixo da anta podem, enquanto estrelas, serem vistos no céu hixkaryana. Em segundo lugar, vimos que as fases da lua eram fundamentais na divisão temporal tal como pensada pelos Hixkaryana. A leitura das duas tabelas 7 8 Espécie de roedor não identificada. Espécie de tatu não identificada. 5 nos permite perceber, ainda, como outros astros são sobremaneira importantes9. Desta forma, a palavra que dá nome à fase correspondente à seca (awasknarà) é também o mesmo termo empregado para dia, luz. O período oposto, txemryerà, é lembrado sobretudo pelas constantes precipitações. Se juntarmos isso ao tema das constelações, vemos que as estrelas, o sol, a lua e as chuvas, todos elementos celestes, formam um conjunto de referências importantes para as teorias hixkaryana acerca da dinâmica temporal. Vejamos agora algumas transformações dessas mesmas dinâmicas a fim de que, ao final do trabalho, as possamos relacionar com os dados aqui expostos. Movimentos centrípetos Desde pelo menos o século XVII os Hixkaryana mantiveram contato esporádico com padres jesuítas e capuchinhos que estabeleceram, na foz do rio Nhamundá, um polo missionário. As visitas desses religiosos às aldeias nas cabeceiras, porém, não eram frequentes. O contato com os brancos se intensificou apenas no começo do século XX, com a chegada de extrativistas10 e alguns viajantes. Mais tarde, no começo dos anos 1950, os Hixkaryana entraram em contato com a mensagem cristã evangélica através dos Waiwai, que são conhecidos na literatura por terem tomado, desde o começo de sua conversão, uma postura evangelizadora, buscando atrair para perto de si outros grupos da região (Howard, 2001). Além de “aceitar Jesus”, quiseram eles mesmos se tornar missionários, de modo que empreenderam expedições ao rio Nhamundá a fim de alcançar os Hixkaryana11. 9 A importância das estrelas e de outros astros no universo ameríndio já foi objeto de diversos estudos, como o de Karadimas (1999), onde num diálogo entre Andes e Amazônia o autor busca estabelecer relações entre o lugar das estrelas na mitologia e nos adornos corporais. Contudo, talvez tenha sido Lévi-Strauss quem mais se debruçou sobre o tema, como pode ser conferido na ótima síntese de Perker (2009). 10 Sobretudo de pau-rosa (Aniba rosaeodora Ducke) 11 Assim relata Horyeharma, em Kassawá: “Vieram outros, que eram Waiwai. O nome dele era Pywa. Ele era missionário (...), era alguém que tinha ouvido antes um pouquinho. Tinha o filho dele também, o nome dele era Yempu. Ele ainda era menino, um jovem. Ele pregava e falava: “orem assim”. Ele falava: “orem e falem só um pouquinho”. Meu pai e os outros ouviam o que eles oravam: kiriwanyehe, kiriwanyehe, kiriwanyehe, que significa “bom” [em Waiwai], ohxe. Era assim que eles oravam, porque eles não sabiam como fazer. Então eles só diziam kiriwanyehe, kiriwanyehe, kiriwanyehe. Eles não diziam “o Senhor é maravilhoso”, só diziam kiriwanyehe, 6 Com a investida, algumas famílias hixkaryana deixaram o rio Nhamundá em direção a Kanashen, antiga base missionária na Guiana. De acordo com Queiroz (2010), apenas 15 famílias nucleares permaneceram no Nhamundá após as expedições dos Waiwai12. Vários descendentes daqueles que seguiram essa migração permanecem vivendo com os Waiwai, sobretudo em razão da tendência uxorilocal de casamento. É nesse contexto que em 1958 Desmundo13, missionário do SIL14, subiu o rio Nhamundá. Em sua primeira viagem ele fez contato com uma família que vivia na antiga aldeia Mutuma (ou Mutum), no médio curso do rio, comunicandolhes sua intenção de trabalhar na área. Cerca de um ano mais tarde, Desmundo voltou à região, mas tomou conhecimento que o chefe da família que havia conhecido falecera. Assim, seguiu com os filhos desse homem até a recémaberta Kassawá, mais a montante, onde encontrou em Candinho Kaywerye seu principal informante. Desmundo iniciou então sua aprendizagem da língua visando traduzir o Novo Testamento e, ao mesmo tempo, contatou aldeias dispersas no território a fim de reunir os Hixkaryana em Kassawá para evangelizá-los. Para isso, contou ainda com a ajuda de sua esposa, Graça15, que possuía formação em saúde e realizou diversos atendimentos entre os Hixkaryana, que na época sofriam com algumas doenças decorrentes do contato com os brancos. Uma vez concentrados em Kassawá, os Hixkaryana passaram a ouvir de Desmundo sobre as práticas que ele considerava abomináveis, como a poligamia, o sexo fora do casamento e a ingestão de bebida fermentada. Os Hixkaryana, desde então, condenam esses comportamentos, ainda que não seja raro tomar conhecimento de tais ocorrências. Outras práticas, porém, não estavam abertas kiriwanyehe, kiriwanyehe. Eles cantavam também, tinha música também. Eles estavam começando a ouvir. Eles estavam começando a ouvir assim: “Jesus vem, Jesus vem”. Era só isso. Porque eles não sabiam, eles cantavam só a mesma coisa. Eles estavam começando a entender.” 12 Apesar de parecer pouco, muitas pessoas que hoje estão na área hixkaryana são descendentes daqueles que escolheram não sair de sua terra, já que se tratava de uma população, na época, de pouco mais de cem pessoas. 13 Desmond Derbyshire, a quem os Hixkaryana sempre chamaram Desmundo. 14 Summer Institute of Linguistics. 15 Grace Derbyshire. 7 a esse tipo de negociação, onde podemos salientar a residência uxorilocal e, de modo muito significativo, as festas regionais. Kassawá tornou-se, com o passar do tempo, uma aldeia de grandes proporções, onde vivem hoje quase quinhentas pessoas. Todas os núcleos populacionais que estabeleceram contato com Desmundo nessa época acabaram se mudando para a aldeia, formando ali “bairros” distribuídos de acordo com as relações de parentesco16. As casas comunais foram aos poucos sendo substituídas por casas no estilo regional, feitas com palafitas, paredes de madeira e telhados de palha ou amianto, onde vivem famílias nucleares. Recentemente, algumas foram também divididas internamente, formando cômodos. Além disso, novas construções passaram a figurar na paisagem hixkaryana. Dentre as mais importantes, a igreja, a escola, o posto de saúde, o campo de futebol e a pista de pouso. Essa nova configuração espacial pode ser “boa para pensar”. Se, por um lado, a ruptura com o antigo padrão de assentamento salta aos olhos, por outro, é possível colocar relevo na continudade de alguns princípios sociológicos fundamentais. Meggers (1977) argumenta, a partir do croqui de uma antiga aldeia Tarumã-Parukoto17, que dentro da casa comunal havia conjuntos de redes que se organizavam em volta de algumas fontes de fogo. É bastante provável que, no caso Hixkaryana, ela fosse algo como a autora descreve para os Waiwai: As aldeias Waiwai consistem de uma única habitação comunal, em forma circular, que varia em tamanho de acordo com o número de seus ocupantes (...). A casa é construída pelos homens aos quais ela se destina (...). Não há divisões dentro da casa mas cada família nuclear tem sua área bem definida. (MEGGERS, 1987: 130 – 131). Entre os Hixkaryana a maloca nàmno também era uma construção circular com telhado de palha bastante alto e estacas de madeira formando 16 Para uma descrição minuciosa da distribuição das casas em Kassawá de acordo com as relações de parentesco, conferir minha dissertação de mestrado (Lucas, 2014a). 17 É bastante provável que as designações Tarumã e Parukoto tenham no passado, cada uma a seu turno, correspondido a determinados conjuntos de pessoas endogamicamente relacionadas. Nota-se, entretanto, que na literatura disponível sobre a região a terminologia Tarumã-Parukoto é aplicada para referir-se àqueles que moram na área dos afluentes da margem esquerda do baixo rio Amazonas (donde se incluem os Hixkaryana), entre os territórios Waimiri-Atrori, a oeste; Tiriyó e grupos relacionados, a leste, e à serra do Acari, na porção norte. 8 paredes18. Sendo o interior bastante escuro, abrigos (como o warehxato) do lado de fora da nàmno eram usados para tarefas domésticas, sobretudo as femininas, como o preparo dos alimentos. Muito provavelmente se tratava também de uma família extensa organizada por núcleos e composta por sogro, esposa, filhas casadas, genros e filhos solteiros. Uma forma de representar essa organização pode ser a que segue, se consideramos que o círculo grande corresponde à nàmno, os quadrados sem preenchimentos aos genros e suas famílias, o quadrado preto ao sogro, junto à esposa e filhos solteiros e os círculos pequenos às fontes de fogo: Ao redor da nàmno, Meggers registra a presença de algumas construções utilizadas para o trabalho (prateleira de secagem, alpendre), já mais próximas do limite da clareira e dos caminhos que seguem para as áreas de mata e beira de rio. Entre os Hixkaryana, como vimos, a concentração em Kassawá fez com que diversas dessas nàmno fossem dissolvidas. Observa-se, porém, que tais casas permanecem, assim como as redes do passado dentro da nàmno, reunidas nas proximidades da casa do sogro. De modo semelhante, essas famílias continuam convivendo diariamente nas casas de farinha e cozinhas que, nas redondezas de suas casas, servem para o preparo e o consumo de alimentos. É nesses lugares, por exemplo, que a caça, o beiju e bebida de goma são compartilhados 18 Tive notícias de que em algumas construções o telhado estendia-se até o chão, não havendo paredes na nàmno. 9 no cotidiano entre famílias aparentadas por laços de afinidade do tipo sogro/genro. Além disso, apesar de seu desaparecimento enquanto local de moradia, as características da nàmno foram transferidas para outra construção. O maya é uma maloca grande, de telhado de palha e paredes de madeira, com duas colunas centrais que ultrapassam a cobertura. Lá acontecem as festas cristãs do Natal e da Páscoa, as reuniões políticas e algumas refeições que precedem os trabalhos coletivos como a limpeza da aldeia. Assim, além das cozinhas e casas de farinha, locais de convivência dos núcleos familiares nos bairros, o maya é um lugar de reunião de toda a comunidade, acionado em diversas ocasiões. Seu interior possui uma espécie de arquibancada de ripas de madeira que, percorrendo toda a circunferência da construção, acomoda as pessoas sentadas em torno de seu centro. Se nos atemos à figura acima, em que a antiga composição das nàmno é esquematizada, podemos elaborar outra representação, na qual veremos, grosso modo, a replicação da composição das antigas malocas nos espaços hoje conhecidos como “bairros”. Ao invés de redes, porém, temos as casas separadas por famílias nucleares. Os fogos, neste esquema, são substituídos pelas cozinhas e casas de farinha que cumprem o papel de reunir em seu redor alguns dos grupos dispersos nas casas. A figura do sogro, aqui, permanece sendo importante na formação e manutenção dessas composições, de modo que sua morte ou migração são fatores que influenciam a mudança dessas configurações. 10 Acredito, assim, que é possível supor que se trata, nos dois momentos, de um modelo concêntrico, no sentido em que propôs Lévi-Strauss (2008). Em ambos os casos, o centro é ocupado pela maloca, antes nàmno, hoje maya. Porém, no primeiro exemplo, a periferia era preenchida pelas construções destinadas ao trabalho, e agora, já que os Hixkaryana deixaram de viver nessa casa grande, o maya encontra-se rodeado pelas mesmas construções para o trabalho (cozinhas e casas de farinha) e pelas habitações separadas por famílias nucleares, sendo utilizado apenas em determinadas situações de reunião de pessoas. O terceiro termo desse esquema, entretanto, permanecendo sendo o mesmo em ambos os casos. À oposição nàmno ou maya/casas de trabalho e casas de habitação, sobrepõe-se outra, entre aldeia/floresta, onde, poderíamos pensar, as roças ocupam posição intermediária: 11 A descrição feita acima a partir dos dados antigos e recentes sobre as aldeias hixkaryana serve para, dentre outras coisas, observar que embora o padrão de pequenas aldeias endogamicamente organizadas – resumido no argumento de Rivière (2001) do assentamento guianense enquanto unidade social de análise – não esteja evidente em Kassawá, o que notamos é a persistência muito marcante da uxorilocalidade como modo de residência pósmarital e a continuidade existente entre a antiga maloca, onde todos coresidiam, e o maya, construção nos mesmos moldes e que, embora com utilização diferente, parece à antiga nàmno ao reunir pessoas. Junto a essas transformações expostas outras podem ser trazidas à tona ainda no contexto do debate sobre a maneira com que os Hixkaryana pensam a dinâmica tempo-espaço. Parte da atuação dos missionários no rio Nhamundá passou por implantar em Kassawá uma escola com educação bilíngue (Hixkaryana e Português). Com o passar do tempo, as atribuições relativas à educação passaram para o controle da SEDUC/AM19, e atualmente todos os professores nas aldeias hixkaryana são indígenas. Essa mudança fez com que os Hixkaryana se envolvessem, como mestres e alunos, no calendário escolar tal como elaborado pelos órgãos governamentais. Assim, as aulas acontecem 19 Secretaria de Educação do Estado do Amazonas. 12 de segunda a sexta-feira20. Da mesma forma, os cultos evangélicos são feitos sempre às quartas e domingos, sendo reservada a sexta-feira para uma celebração exclusivamente feminina. Digo isso para ressaltar que, atualmente, os Hixkaryana organizam muitas de suas atividades de acordo com o calendário ocidental divido em dias da semana e meses. Controlam tais convenções de modo que não usam mais as cordas-convite, por exemplo, para organizar festas e encontros religiosos. Ao mesmo tempo, nota-se que a dinâmica seca e chuva permanece sendo fundamental. Hoje os Hixkaryana estão ocupados diariamente com o processamento da mandioca na forma de farinha, beiju e bebida de goma (woknano), sob responsabilidade das mulheres; com a pesca e a caça, trabalho atribuído aos homens e com a coleta de frutos (buriti, patauá, bacaba, açaí, etc.), que conta com a participação apenas eventual das mulheres21. Contudo, ainda que essas sejam atividades rotineiras, sofrem variações sazonais. Assim, na época da seca (setembro a dezembro) as roças são abertas com a derrubada da mata, a limpeza do terreno e o plantio de cultivares 22. As duas primeiras etapas são tarefas masculinas, e comumente o homem buscará ajuda para tal com seus parentes mais próximos, cabendo às mulheres de sua família providenciar o alimento aos auxiliares23. A quantidade de pessoas que um homem consegue reunir para esse tipo de trabalho depende de sua influência política e da quantidade de parentes que possui perto de si. No período da cheia 20 Vale ressaltar que ao assumir tal compromisso com as atividades escolares, uma importante atividade hixkaryana ficou comprometida, a coleta da castanha. Antes levada a cabo entre os meses de março e junho, quando famílias inteiras se deslocavam para acampamentos provisórios nas áreas de castanhais, atualmente o lido com a castanha tem se tornado cada vez menos expressivo e envolvido cada vez menos gente (a bem verdade, em parte também em razão da falta de apoio logístico por parte da coordenação regional da FUNAI, que no passado fornecia ajuda material aos índios). 21 Em todos esses eventos algumas crianças costumam acompanhar seus pais ou parentes mais velhos. 22 Os Hixkaryana têm bastante interesse em plantar espécies novas. Assim, suas roças possuem variedades de mandioca brava, batata-doce, jerimum, macaxeira, cana e cipós e paus que servem para a confecção de artesanato (principalmente cestaria) pelos homens. Além disso, é possível ver ao redor das casas uma grande quantidade de frutas como laranja, mamão, abacaxi, manga, melancia, limão, graviola, caju e ingá. A mais recorrente, entretanto, é a banana, presente em diversas variedades. O interesse deles pelo assunto é tanto que uma mulher pediu que, caso eu voltasse a sua aldeia, lhe trouxesse uma muda de banana do Rio de Janeiro para compor sua plantação. 23 Algo similar ao que acontece na construção das casas. 13 a pesca é mais escassa e a principal fonte de carne são espécies de caça, como macacos, anta, queixada, caititu, aves, etc. Não acredito que se trate, porém, apenas de uma questão de divisão sazonal do trabalho. De fato, os Hixkaryana, em suas narrativas, estabelecem de modo importante uma distinção entre o tempo da seca e do tempo da chuva. Assim, por diversas vezes, ao localizar temporalmente algo que já aconteceu ou falar sobre planos futuros, as pessoas diziam “na época da chuva” ao invés de “no mês de maio”. Penso, então, que ainda hoje tais variações, que como vimos estão estreitamente relacionadas ao mundo celeste, ditam o ritmo da vida hixkaryana. Movimentos centrífugos: outras socialidades Já sabemos que antes do contato permanente com os missionários evangélicos os Hixkaryana viviam dispersos ao longo de seu território em pequenas aldeias. A concentração desses grupos em Kassawá empreendida no fim dos anos 1950 permaneceu inalterada somente até algumas décadas atrás. Nos últimos 20 anos, núcleos residenciais distribuídos em “bairros” de Kassawá iniciaram um movimento de dispersão na área, fundando aldeias de pequenas proporções na parte mais baixa do rio. Hoje existem dez dessas novas aldeias, várias delas com pouco mais de vinte pessoas, e as causas apontadas para esses deslocamentos são várias, onde podemos citar desde a morte de um parente até o acesso mais fácil à cidade. As informações disponíveis sobre essas aldeias (Lucas, 2014a) indicam que há hoje, no rio Nhamundá, modos diferentes de viver em comunidade, com variadas configurações possíveis. Desta forma, enquanto em Kassawá quase quinhentas pessoas vivem em um só assentamento, empenhando-se em diversos tipos de relações com agentes não-indígenas (missionários, enfermeiros, funcionários da FUNAI, da SEDUC/AM, etc.) e reunindo-se apenas em determinadas ocasiões como cultos, conferências cristãs, festas e trabalhos coletivos, percebemos que, apesar da maior proximidade com a cidade, essas relações não são as mesmas no cotidiano das aldeias recentes, onde, além de ser menor a circulação dos brancos, as pessoas estão espacial e 14 relacionalmente mais próximas umas das outras, mantendo entre si certo contato diário que faz com que a socialidade em Kassawá e nas demais aldeias seja, para quem toma conhecimento desses contextos, evidentemente diferente em cada um dos casos. Além disso, as atribuições da escola não envolvem de modo tão direito o mesmo contingente de pessoas que em Kassawá e as roças e áreas de caça, por sua vez, costumam estar bem mais próximas nas aldeias pequenas. Ainda que existam maya em algumas dessas aldeias pequenas, acredito que seu propósito de reunir pessoas não seja tão marcante nos pequenos assentamentos porque, de certa forma, as pessoas estão cotidianamente mais em contato do que em Kassawá. Não pretendo afirmar com isso que os Hixkaryana estejam, ao fundar aldeias menores, envolvendo-se em uma espécie de “volta ao passado”. Me parece curioso, contudo, que tenha sido justamente nessas aldeias que ouvi a grande maioria de histórias sobre o tempo dos antigos, amnyehram komo, como alguns dados que apresentei no começo desse trabalho. Mais do colocar ênfase em qualquer tipo de resiliência, acredito que essas novas configurações podem nos ajudar a entender melhor como, ao insistir em determinados conceitos e práticas, os Hixkaryana podem com isso mostrar-nos o que, para eles, é muito importante. Conclusão Ainda que a onomástica hixkaryana esteja baseada na nominação a partir de G+3, não há uma ênfase especial na profundidade genealógica ou na memória dos ancestrais. As pessoas geralmente são enterradas dentro ou ao lado das casas, e um casal muitas vezes, para saber os nomes que têm à disposição para dar a seus filhos, terá que recorrer aos mais velhos da família. Por outro lado, ainda que os Hixkaryana possuam uma elaborada topografia nativa, com nomes específicos para diversos igarapés e cursos d’água, não atribuem a eles, como em outros contextos ameríndios, o caráter de lugares sagrados. Com isso desejo enfatizar, novamente, o fato de que o modo com que 15 os Hixkaryana pensam a dinâmica tempo-espaço, embora possa parecer ao nosso numa primeira mirada, guarda muitas diferenças. Dessa forma, acredito ser um desafio para o antropólogo não partir, em sua análise, de formas pré-concebidas e mesmo naturalizadas de classificar o mundo. Aqui estou de acordo com a afirmação de Viveiros de Castro (1996) quando ele diz que não estamos diante de uma multiplicidade de representações sobre o mundo, mas de mundos diferentes. Nesse contexto, o mundo hixkaryana, tal qual me foi possível conhecê-lo, mostra-nos que há um modo de ocupar e se organizar no espaço que, baseado em um modelo concêntrico e na uxorilocalidade, parece ser capaz de conjugar transformação e continuidade através da história. Assim, se pensamos o tempo não apenas em relação a seus modos de mensuração nativa, mas levando em consideração sua perspectiva diacrônica, temos uma primeira indicação da razão pela qual, como argumentei no começo, é possível que tempo e espaço sejam, nas teorias hixkaryana, pensados em conjunto. Nesse sentido, a permanência do mundo celeste (desde as constelações até a separação seca/chuva) nas narrativas sobre o tempo pode ser uma chave interessante para que estendamos a reflexão aqui levantada sobre a relação entre a contagem do tempo e o espaço (ou o que conhecemos como “meio ambiente”, “paisagem”), uma vez que nessas classificações nativas intervêm tanto o céu quanto a terra, por meio da dinâmica da agricultura e da coleta, e ainda os animais, seja no modo com que se comportam ou nos regimes da caça. Assim, quando utilizo a fórmula “tempo-espaço”, o faço pensando que provavelmente seja mais adequado, para o caso em questão, tratar essas duas categorias na forma de um contínuo, inseparável porque intimamente relacionado. No limite, tal afirmação faz sentido apenas porque essa é uma questão para o mundo ocidental, que cotidianamente divide e classifica o que há a sua volta de forma que põe o céu, a terra e o que neles há sob a égide do espaço, ao mesmo tempo em que atribui ao tempo um sentido abstrato e imaterial24. 24 Não estou aqui ignorando que, ao longo da história, a astronomia desempenhou importante papel na concepção dos calendários ocidentais, mas analisando a utilização atual do calendário gregoriano. 16 Quanto aos Hixkaryana, que diga-se de passagem não possuem palavras nativas correlatas aos nossos termos “tempo” e “espaço”, acredito que reagiriam a essa discussão com um grande sorriso, oferecendo ao analista desavisado um beiju ainda quente, saindo do forno, feito com a mesma mandioca que cresce, no tempo da cheia, sob o céu estrelado e o sol escaldante. Bibliografia BARBOSA, G. 2007. Os Aparai e Wayana e suas redes de intercâmbio. São Paulo: USP. (Tese de Doutorado). 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