Entre cordas e estrelas: apontamentos sobre o tempo e o espaço

Propaganda
Entre cordas e estrelas: apontamentos sobre o tempo e o espaço
hixkaryana e suas transformações1
Maria Luísa Lucas (Doutoranda PPGAS/MN/UFRJ)
Resumo: Esse trabalho tem como objetivo principal apresentar um caso
etnográfico ainda pouco explorado. A saber, a cosmologia hixkaryana e suas
transformações desde o contato permanente com os brancos. Aqui busco pensar
especificamente nos conceitos e práticas indígenas expressos na maneira com
que os Hixkaryana, ao longo da história, lidaram com a temática do tempoespaço.
Palavras chave: Hixkaryana, Espaço, Tempo, Transformações.
“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muitas vezes desperto
Olavo Bilac
A impressionante maneira com que Evans-Pritchard (2007), em um curto
período de campo, consegue descrever a ecologia e a política dos Nuer
surpreende também por sua capacidade de dar conta de modo tão acurado de
dois temas clássicos para a antropologia, o tempo e o espaço. Leitura obrigatória
para qualquer aspirante a antropólogo, a etnografia sobre esse povo nilota pode,
junto a todas suas outras contribuições, incitar-nos agora a mais um
questionamento. Uma vez que a maioria de nós não conhece os Nuer senão pela
obra de Evans-Pritchard (o que nos permite pouco mais que elaborar algumas
hipóteses), podemos perguntamo-nos como, em outros casos etnográficos, a
dinâmica tempo-espaço funciona. Discussões mais recentes a respeito da
fabricação de “grandes divisores” na Antropologia (Goldman&Stolze, 1998;
Latour, 1994) nos subsidiam a refletir sobre o rendimento analítico da replicação
Trabalho apresentado no XI CAAS (Congreso Argentino de Antropología Social) em Rosário –
23 a 26 de Julho de 2014.
1
1
de categorizações que, alicerçadas em nosso pensamento cartesiano, já nos
soam bastante naturais. O caso que desejo apresentar parece dar indicações de
que, ao menos no contexto Hixkaryana, tanto as transformações do tempoespaço caminharam juntas no correr da história quanto, no limite, não podem ser
pensadas autonomamente se buscamos ser o mais fiel possível ao pensamento
nativo.
Os índios hoje conhecidos como Hixkaryana2 são falantes de uma língua
Carib e vivem nas áreas de várzea dos rios Nhamundá (11 aldeias) e Jatapu (2
aldeias), dois afluentes da margem esquerda do Rio Amazonas, no Norte
Amazônico, somando cerca de 970 pessoas. Há ainda alguns Hixkaryana
(geralmente homens jovens) vivendo, ao menos intermitentemente, nas cidades
de Nhamundá, Parintins e Manaus. Como em muitos outros grupos ameríndios,
o casamento dá-se preferencialmente entre primos cruzados bilaterais, o que é
também expresso na terminologia de parentesco. Também como em alguns
outros grupos (donde o caso Wayana parece ser, na região, o mais parecido 3),
a onomástica hixkaryana opera de modo a transmitir os nomes da geração +3
aos recém-nascidos. Outros aspectos da vida social hixkaryana, porém, podem
nos ser mais interessantes para os fins desse trabalho. Para isso, voltemo-nos
para um passado nem tão longínquo.
No tempo dos antigos, amnyehran komo
Em primeiro lugar, sabemos que as aldeias hixkaryana, antes do contato
permanente com os brancos nos anos 1960, estavam dispersas em um vasto
território entre os rios Nhamundá, Jatapu e seus tributários, em áreas de várzea
e terra firme. Famílias nucleares, reunidas em volta de uma figura masculina que,
não raro, era também o sogro dos homens mais jovens (a residência hixkaryana
é predominantemente uxorilocal), habitavam juntas uma grande maloca, nàmno.
2
Meu contato com os Hixkaryana aconteceu em 2013, na ocasião de minha pesquisa de
mestrado, tendo permanecido de março a junho deste ano entre eles no rio Nhamundá. Outros
desenvolvimentos dessa pesquisa podem ser conferidos em minha dissertação de mestrado
(Lucas, 2014a). Antes disso, durante a graduação, desenvolvi uma curta pesquisa sobre os
Waiwai, povo imediatamente vizinho aos Hixkaryana e seus tradicionais parceiros de troca.
3 Cf. Barbosa (2005).
2
Essas aldeias dispersas no território estabeleciam entre si relações de
trocas (de objetos, de tecnologia, de pessoas e de relações) por meio das festas
regionais que reuniam com certa frequência contingentes relativamente
distantes para dançar, beber cauim e compartilhar alimentos em festivais de
dança que podiam durar meses4.
Ainda nessa época, o ritmo da vida hixkaryana era mensurado de modo
distinto do atual. Os períodos eram contados por quatro cordinhas de sisal com
amarrações (tumxemo) que acompanhavam as quadro fases da lua, terminando
no primeiro dia de aparição da lua cheia no céu. Cada um desses conjuntos de
quatro cordinhas marcava o fim de certos períodos que são esquematizados nas
tabelas abaixo. Chaumeil (2005) mostra como, em diversas partes da Amazônia,
as cordas foram utilizadas para mensurar o tempo, como é o caso dos Galibi,
dos Wapixana, dos Carijona e outros. Além de serem usadas como verdadeiros
“calendários”, essas cordas eram também convites enviados a aldeias vizinhas
para a realização de festas e festivais de dança, assinalando por meio de um
sistema de amarrações e tingimentos os dias indicados para a realização de
cada uma das etapas das festas5.
Ainda que seja bastante improvável que esses períodos mensurados
pelas cordas tumxemo encontrem correspondência exata com os meses
ocidentais, os próprios Hixkaryana realizam essa aproximação. Tendo isso em
consideração, vemos que a nominação da maioria desses períodos de tempo
relaciona-se com a presença de determinadas constelações no céu, com o
comportamento de certos animais e com as atividades desenvolvidas em cada
época6.
4
Sobre esse assunto ver Lucas (2014b).
Assim, “D’une façon générale, les indigènes d’Amazonie ont coutume de fabriquer autant de
ficelles qu’il y a de groups inviteés, plus une conservée par l’amphitryon. Dans centains cas (par
exemple chez les Waiwai lorsqu’ils donaient une grande danse, um “courrier” plus personnalisé
était dépêché avec une invitation en forme de jeu de cordes (un jeu par envité) dotées de noeuds
teints en différentes couleurs, qui indiquaient respectivement le nombre de jours nécessaires au
messager pour transmettre l’invitation, le nombre de jours nécessaires aux invites pour se
préparer, le nombre de jours nécessaires pour qu’ils s’arrive au village, le dernier noeud signalant
le jour du début du rituel”. (Chaumeil, 2005: 297). Essas mesmas cordas-convite também estão
presentes nas narrativas atuais dos Hixkaryana sobre o passado.
6 Bellier (1994) observa algo semelhante para os Mai huna da Amazônia peruana. Segundo a
autora, antes do contato com os brancos o tempo mai huna era pensado em relação às atividades
desenvolvidas em cada época e em função dos estados da natureza e do comportamento dos
animais, como o canto de determinadas espécies de cigarras.
5
3
Nome
Época
aproximada
Honye
(piranha)
Janeiro
Txekerye
(escorpião)
Woroko
(espécie de roedor que
mora no mato e “grita”
apenas nessa época)
Txemryehà
Xeryko ymo
(literalmente, “estrela
grande”, corresponde à
constelação que
chamamos de “seteestrelo”)
Constelação em forma de
escorpião que só aparece
nessa época do ano.
Março
Nesses tempos o guariba
e outros macacos estão
bem gordos.
Maio
Hetka
(corresponde à
constelação que
chamamos de “Três
Marias”)
Nessa época aparece
uma estrela que é
vermelha como o olho da
piranha. Esse é também o
tempo em que a piranha
desova.
Fevereiro
Abril
Yayhàtho
(queixo da anta)
Descrição
Junho
É
quando
essa
constelação aparece no
céu. As estrelas são bem
pequenininhas,
como
também são miúdos os
pingos de chuva nessa
época:
chuvisca
até
anoitecer.
Constelação
que
só
aparece nessa época do
ano.
Nesse
tempo
também chove grosso, e
quando os pingos caem
batem forte.
É quando a constelação
Hetka está para sumir. A
posição das estrelas faz
menção ao comprimento
da coxa do homem.
Nessa época chove e faz
sol, chove e faz sol.
Tabela 1 - Txemryehà
Nome
Época
aproximada
Awasknàrà
(dia, luz)
Julho
4
Descrição
É a época em que
começa a seca, e há
muita luz do sol. Nesse
tempo está bem frio e
aparece no céu uma
estrela bem pequena,
chamada
xeryko
wayhamsànà (abano da
estrela).
Onuhto ymo
(tipo de irritação nos
olhos)
Agosto
Awasknàrà
Morura ymo
(espécie de tatu)
Setembro
Wayamo ymo
(jabuti grande)
Outubro
Weythuru
(luz)
Novembro
Okoye
(cobra)
Dezembro
Nessa época a chuva que
cai traz um vento com
fumaça. Todo mundo vai
pra dentro de casa, e
quem não vai fica com os
olhos irritados.
Nessa época que aparece
um vento muito forte que
derruba tudo, assim como
o tatu, que é capaz de
cavar e derrubar uma
árvore inteira. Não chove
mais.
É quando o jabuti está
colocando seus ovos.
Nesse tempo as chuvas
param completamente e a
luz do sol está bem forte.
É nessa época também
que as roças são abertas
e queimadas.
É quando aparece a
constelação que lembra a
forma de uma cobra.
Tabela 2 – Awasknàrà
Acredito que os dados apresentados nos permitem colocar em relevo ao
menos dois pontos interessantes para os fins da reflexão que seguirá.
Primeiramente, em larga medida, as divisões esquematizadas acima tratam
sobre a importância e a relação dos hixkaryana com alguns animais. Um
conjunto (onde estão as referências à piranha, ao woroko7, ao morura ymo8 e ao
jabuti) enfatiza o comportamento dos animais (quando desovam, de que forma
se comunicam, como se deslocam no espaço). Em outro grupo, os animais
aparecem em relação de figuração com certas constelações, algumas delas
visíveis apenas em determinadas épocas do ano. Assim, o escorpião, a cobra e
o queixo da anta podem, enquanto estrelas, serem vistos no céu hixkaryana.
Em segundo lugar, vimos que as fases da lua eram fundamentais na
divisão temporal tal como pensada pelos Hixkaryana. A leitura das duas tabelas
7
8
Espécie de roedor não identificada.
Espécie de tatu não identificada.
5
nos permite perceber, ainda, como outros astros são sobremaneira importantes9.
Desta forma, a palavra que dá nome à fase correspondente à seca (awasknarà)
é também o mesmo termo empregado para dia, luz. O período oposto,
txemryerà, é lembrado sobretudo pelas constantes precipitações. Se juntarmos
isso ao tema das constelações, vemos que as estrelas, o sol, a lua e as chuvas,
todos elementos celestes, formam um conjunto de referências importantes para
as teorias hixkaryana acerca da dinâmica temporal.
Vejamos agora algumas transformações dessas mesmas dinâmicas a fim
de que, ao final do trabalho, as possamos relacionar com os dados aqui
expostos.
Movimentos centrípetos
Desde pelo menos o século XVII os Hixkaryana mantiveram contato
esporádico com padres jesuítas e capuchinhos que estabeleceram, na foz do rio
Nhamundá, um polo missionário. As visitas desses religiosos às aldeias nas
cabeceiras, porém, não eram frequentes. O contato com os brancos se
intensificou apenas no começo do século XX, com a chegada de extrativistas10
e alguns viajantes. Mais tarde, no começo dos anos 1950, os Hixkaryana
entraram em contato com a mensagem cristã evangélica através dos Waiwai,
que são conhecidos na literatura por terem tomado, desde o começo de sua
conversão, uma postura evangelizadora, buscando atrair para perto de si outros
grupos da região (Howard, 2001). Além de “aceitar Jesus”, quiseram eles
mesmos se tornar missionários, de modo que empreenderam expedições ao rio
Nhamundá a fim de alcançar os Hixkaryana11.
9
A importância das estrelas e de outros astros no universo ameríndio já foi objeto de diversos
estudos, como o de Karadimas (1999), onde num diálogo entre Andes e Amazônia o autor busca
estabelecer relações entre o lugar das estrelas na mitologia e nos adornos corporais. Contudo,
talvez tenha sido Lévi-Strauss quem mais se debruçou sobre o tema, como pode ser conferido
na ótima síntese de Perker (2009).
10 Sobretudo de pau-rosa (Aniba rosaeodora Ducke)
11 Assim relata Horyeharma, em Kassawá: “Vieram outros, que eram Waiwai. O nome dele era
Pywa. Ele era missionário (...), era alguém que tinha ouvido antes um pouquinho. Tinha o filho
dele também, o nome dele era Yempu. Ele ainda era menino, um jovem. Ele pregava e falava:
“orem assim”. Ele falava: “orem e falem só um pouquinho”. Meu pai e os outros ouviam o que
eles oravam: kiriwanyehe, kiriwanyehe, kiriwanyehe, que significa “bom” [em Waiwai], ohxe. Era
assim que eles oravam, porque eles não sabiam como fazer. Então eles só diziam kiriwanyehe,
kiriwanyehe, kiriwanyehe. Eles não diziam “o Senhor é maravilhoso”, só diziam kiriwanyehe,
6
Com a investida, algumas famílias hixkaryana deixaram o rio Nhamundá
em direção a Kanashen, antiga base missionária na Guiana. De acordo com
Queiroz (2010), apenas 15 famílias nucleares permaneceram no Nhamundá
após as expedições dos Waiwai12. Vários descendentes daqueles que seguiram
essa migração permanecem vivendo com os Waiwai, sobretudo em razão da
tendência uxorilocal de casamento.
É nesse contexto que em 1958 Desmundo13, missionário do SIL14, subiu
o rio Nhamundá. Em sua primeira viagem ele fez contato com uma família que
vivia na antiga aldeia Mutuma (ou Mutum), no médio curso do rio, comunicandolhes sua intenção de trabalhar na área. Cerca de um ano mais tarde, Desmundo
voltou à região, mas tomou conhecimento que o chefe da família que havia
conhecido falecera. Assim, seguiu com os filhos desse homem até a recémaberta Kassawá, mais a montante, onde encontrou em Candinho Kaywerye seu
principal informante.
Desmundo iniciou então sua aprendizagem da língua visando traduzir o
Novo Testamento e, ao mesmo tempo, contatou aldeias dispersas no território a
fim de reunir os Hixkaryana em Kassawá para evangelizá-los. Para isso, contou
ainda com a ajuda de sua esposa, Graça15, que possuía formação em saúde e
realizou diversos atendimentos entre os Hixkaryana, que na época sofriam com
algumas doenças decorrentes do contato com os brancos. Uma vez
concentrados em Kassawá, os Hixkaryana passaram a ouvir de Desmundo
sobre as práticas que ele considerava abomináveis, como a poligamia, o sexo
fora do casamento e a ingestão de bebida fermentada. Os Hixkaryana, desde
então, condenam esses comportamentos, ainda que não seja raro tomar
conhecimento de tais ocorrências. Outras práticas, porém, não estavam abertas
kiriwanyehe, kiriwanyehe. Eles cantavam também, tinha música também. Eles estavam
começando a ouvir. Eles estavam começando a ouvir assim: “Jesus vem, Jesus vem”. Era só
isso. Porque eles não sabiam, eles cantavam só a mesma coisa. Eles estavam começando a
entender.”
12 Apesar de parecer pouco, muitas pessoas que hoje estão na área hixkaryana são
descendentes daqueles que escolheram não sair de sua terra, já que se tratava de uma
população, na época, de pouco mais de cem pessoas.
13 Desmond Derbyshire, a quem os Hixkaryana sempre chamaram Desmundo.
14 Summer Institute of Linguistics.
15 Grace Derbyshire.
7
a esse tipo de negociação, onde podemos salientar a residência uxorilocal e, de
modo muito significativo, as festas regionais.
Kassawá tornou-se, com o passar do tempo, uma aldeia de grandes
proporções, onde vivem hoje quase quinhentas pessoas. Todas os núcleos
populacionais que estabeleceram contato com Desmundo nessa época
acabaram se mudando para a aldeia, formando ali “bairros” distribuídos de
acordo com as relações de parentesco16. As casas comunais foram aos poucos
sendo substituídas por casas no estilo regional, feitas com palafitas, paredes de
madeira e telhados de palha ou amianto, onde vivem famílias nucleares.
Recentemente, algumas foram também divididas internamente, formando
cômodos. Além disso, novas construções passaram a figurar na paisagem
hixkaryana. Dentre as mais importantes, a igreja, a escola, o posto de saúde, o
campo de futebol e a pista de pouso.
Essa nova configuração espacial pode ser “boa para pensar”. Se, por um
lado, a ruptura com o antigo padrão de assentamento salta aos olhos, por outro,
é possível colocar relevo na continudade de alguns princípios sociológicos
fundamentais. Meggers (1977) argumenta, a partir do croqui de uma antiga
aldeia Tarumã-Parukoto17, que dentro da casa comunal havia conjuntos de redes
que se organizavam em volta de algumas fontes de fogo. É bastante provável
que, no caso Hixkaryana, ela fosse algo como a autora descreve para os Waiwai:
As aldeias Waiwai consistem de uma única habitação comunal,
em forma circular, que varia em tamanho de acordo com o
número de seus ocupantes (...). A casa é construída pelos
homens aos quais ela se destina (...). Não há divisões dentro da
casa mas cada família nuclear tem sua área bem definida.
(MEGGERS, 1987: 130 – 131).
Entre os Hixkaryana a maloca nàmno também era uma construção
circular com telhado de palha bastante alto e estacas de madeira formando
16
Para uma descrição minuciosa da distribuição das casas em Kassawá de acordo com as
relações de parentesco, conferir minha dissertação de mestrado (Lucas, 2014a).
17 É bastante provável que as designações Tarumã e Parukoto tenham no passado, cada uma a
seu turno, correspondido a determinados conjuntos de pessoas endogamicamente relacionadas.
Nota-se, entretanto, que na literatura disponível sobre a região a terminologia Tarumã-Parukoto
é aplicada para referir-se àqueles que moram na área dos afluentes da margem esquerda do
baixo rio Amazonas (donde se incluem os Hixkaryana), entre os territórios Waimiri-Atrori, a oeste;
Tiriyó e grupos relacionados, a leste, e à serra do Acari, na porção norte.
8
paredes18. Sendo o interior bastante escuro, abrigos (como o warehxato) do lado
de fora da nàmno eram usados para tarefas domésticas, sobretudo as femininas,
como o preparo dos alimentos.
Muito provavelmente se tratava também de uma família extensa
organizada por núcleos e composta por sogro, esposa, filhas casadas, genros e
filhos solteiros. Uma forma de representar essa organização pode ser a que
segue, se consideramos que o círculo grande corresponde à nàmno, os
quadrados sem preenchimentos aos genros e suas famílias, o quadrado preto
ao sogro, junto à esposa e filhos solteiros e os círculos pequenos às fontes de
fogo:
Ao redor da nàmno, Meggers registra a presença de algumas construções
utilizadas para o trabalho (prateleira de secagem, alpendre), já mais próximas do
limite da clareira e dos caminhos que seguem para as áreas de mata e beira de
rio. Entre os Hixkaryana, como vimos, a concentração em Kassawá fez com que
diversas dessas nàmno fossem dissolvidas. Observa-se, porém, que tais casas
permanecem, assim como as redes do passado dentro da nàmno, reunidas nas
proximidades da casa do sogro. De modo semelhante, essas famílias continuam
convivendo diariamente nas casas de farinha e cozinhas que, nas redondezas
de suas casas, servem para o preparo e o consumo de alimentos. É nesses
lugares, por exemplo, que a caça, o beiju e bebida de goma são compartilhados
18
Tive notícias de que em algumas construções o telhado estendia-se até o chão, não havendo
paredes na nàmno.
9
no cotidiano entre famílias aparentadas por laços de afinidade do tipo
sogro/genro.
Além disso, apesar de seu desaparecimento enquanto local de moradia,
as características da nàmno foram transferidas para outra construção. O maya
é uma maloca grande, de telhado de palha e paredes de madeira, com duas
colunas centrais que ultrapassam a cobertura. Lá acontecem as festas cristãs do
Natal e da Páscoa, as reuniões políticas e algumas refeições que precedem os
trabalhos coletivos como a limpeza da aldeia. Assim, além das cozinhas e casas
de farinha, locais de convivência dos núcleos familiares nos bairros, o maya é
um lugar de reunião de toda a comunidade, acionado em diversas ocasiões. Seu
interior possui uma espécie de arquibancada de ripas de madeira que,
percorrendo toda a circunferência da construção, acomoda as pessoas sentadas
em torno de seu centro.
Se nos atemos à figura acima, em que a antiga composição das nàmno é
esquematizada, podemos elaborar outra representação, na qual veremos,
grosso modo, a replicação da composição das antigas malocas nos espaços hoje
conhecidos como “bairros”. Ao invés de redes, porém, temos as casas separadas
por famílias nucleares. Os fogos, neste esquema, são substituídos pelas
cozinhas e casas de farinha que cumprem o papel de reunir em seu redor alguns
dos grupos dispersos nas casas. A figura do sogro, aqui, permanece sendo
importante na formação e manutenção dessas composições, de modo que sua
morte ou migração são fatores que influenciam a mudança dessas
configurações.
10
Acredito, assim, que é possível supor que se trata, nos dois momentos,
de um modelo concêntrico, no sentido em que propôs Lévi-Strauss (2008). Em
ambos os casos, o centro é ocupado pela maloca, antes nàmno, hoje maya.
Porém, no primeiro exemplo, a periferia era preenchida pelas construções
destinadas ao trabalho, e agora, já que os Hixkaryana deixaram de viver nessa
casa grande, o maya encontra-se rodeado pelas mesmas construções para o
trabalho (cozinhas e casas de farinha) e pelas habitações separadas por famílias
nucleares, sendo utilizado apenas em determinadas situações de reunião de
pessoas. O terceiro termo desse esquema, entretanto, permanecendo sendo o
mesmo em ambos os casos. À oposição nàmno ou maya/casas de trabalho e
casas de habitação, sobrepõe-se outra, entre aldeia/floresta, onde, poderíamos
pensar, as roças ocupam posição intermediária:
11
A descrição feita acima a partir dos dados antigos e recentes sobre as
aldeias hixkaryana serve para, dentre outras coisas, observar que embora o
padrão de pequenas aldeias endogamicamente organizadas – resumido no
argumento de Rivière (2001) do assentamento guianense enquanto unidade
social de análise – não esteja evidente em Kassawá, o que notamos é a
persistência muito marcante da uxorilocalidade como modo de residência pósmarital e a continuidade existente entre a antiga maloca, onde todos coresidiam,
e o maya, construção nos mesmos moldes e que, embora com utilização
diferente, parece à antiga nàmno ao reunir pessoas.
Junto a essas transformações expostas outras podem ser trazidas à tona
ainda no contexto do debate sobre a maneira com que os Hixkaryana pensam a
dinâmica tempo-espaço. Parte da atuação dos missionários no rio Nhamundá
passou por implantar em Kassawá uma escola com educação bilíngue
(Hixkaryana e Português). Com o passar do tempo, as atribuições relativas à
educação passaram para o controle da SEDUC/AM19, e atualmente todos os
professores nas aldeias hixkaryana são indígenas. Essa mudança fez com que
os Hixkaryana se envolvessem, como mestres e alunos, no calendário escolar
tal como elaborado pelos órgãos governamentais. Assim, as aulas acontecem
19
Secretaria de Educação do Estado do Amazonas.
12
de segunda a sexta-feira20. Da mesma forma, os cultos evangélicos são feitos
sempre às quartas e domingos, sendo reservada a sexta-feira para uma
celebração exclusivamente feminina.
Digo isso para ressaltar que, atualmente, os Hixkaryana organizam muitas
de suas atividades de acordo com o calendário ocidental divido em dias da
semana e meses. Controlam tais convenções de modo que não usam mais as
cordas-convite, por exemplo, para organizar festas e encontros religiosos. Ao
mesmo tempo, nota-se que a dinâmica seca e chuva permanece sendo
fundamental.
Hoje os Hixkaryana estão ocupados diariamente com o processamento
da mandioca na forma de farinha, beiju e bebida de goma (woknano), sob
responsabilidade das mulheres; com a pesca e a caça, trabalho atribuído aos
homens e com a coleta de frutos (buriti, patauá, bacaba, açaí, etc.), que conta
com a participação apenas eventual das mulheres21. Contudo, ainda que essas
sejam atividades rotineiras, sofrem variações sazonais.
Assim, na época da seca (setembro a dezembro) as roças são abertas
com a derrubada da mata, a limpeza do terreno e o plantio de cultivares 22. As
duas primeiras etapas são tarefas masculinas, e comumente o homem buscará
ajuda para tal com seus parentes mais próximos, cabendo às mulheres de sua
família providenciar o alimento aos auxiliares23. A quantidade de pessoas que
um homem consegue reunir para esse tipo de trabalho depende de sua influência
política e da quantidade de parentes que possui perto de si. No período da cheia
20
Vale ressaltar que ao assumir tal compromisso com as atividades escolares, uma importante
atividade hixkaryana ficou comprometida, a coleta da castanha. Antes levada a cabo entre os
meses de março e junho, quando famílias inteiras se deslocavam para acampamentos
provisórios nas áreas de castanhais, atualmente o lido com a castanha tem se tornado cada vez
menos expressivo e envolvido cada vez menos gente (a bem verdade, em parte também em
razão da falta de apoio logístico por parte da coordenação regional da FUNAI, que no passado
fornecia ajuda material aos índios).
21 Em todos esses eventos algumas crianças costumam acompanhar seus pais ou parentes mais
velhos.
22 Os Hixkaryana têm bastante interesse em plantar espécies novas. Assim, suas roças possuem
variedades de mandioca brava, batata-doce, jerimum, macaxeira, cana e cipós e paus que
servem para a confecção de artesanato (principalmente cestaria) pelos homens. Além disso, é
possível ver ao redor das casas uma grande quantidade de frutas como laranja, mamão, abacaxi,
manga, melancia, limão, graviola, caju e ingá. A mais recorrente, entretanto, é a banana,
presente em diversas variedades. O interesse deles pelo assunto é tanto que uma mulher pediu
que, caso eu voltasse a sua aldeia, lhe trouxesse uma muda de banana do Rio de Janeiro para
compor sua plantação.
23 Algo similar ao que acontece na construção das casas.
13
a pesca é mais escassa e a principal fonte de carne são espécies de caça, como
macacos, anta, queixada, caititu, aves, etc.
Não acredito que se trate, porém, apenas de uma questão de divisão
sazonal do trabalho. De fato, os Hixkaryana, em suas narrativas, estabelecem
de modo importante uma distinção entre o tempo da seca e do tempo da chuva.
Assim, por diversas vezes, ao localizar temporalmente algo que já aconteceu ou
falar sobre planos futuros, as pessoas diziam “na época da chuva” ao invés de
“no mês de maio”. Penso, então, que ainda hoje tais variações, que como vimos
estão estreitamente relacionadas ao mundo celeste, ditam o ritmo da vida
hixkaryana.
Movimentos centrífugos: outras socialidades
Já sabemos que antes do contato permanente com os missionários
evangélicos os Hixkaryana viviam dispersos ao longo de seu território em
pequenas aldeias. A concentração desses grupos em Kassawá empreendida no
fim dos anos 1950 permaneceu inalterada somente até algumas décadas atrás.
Nos últimos 20 anos, núcleos residenciais distribuídos em “bairros” de Kassawá
iniciaram um movimento de dispersão na área, fundando aldeias de pequenas
proporções na parte mais baixa do rio. Hoje existem dez dessas novas aldeias,
várias delas com pouco mais de vinte pessoas, e as causas apontadas para
esses deslocamentos são várias, onde podemos citar desde a morte de um
parente até o acesso mais fácil à cidade.
As informações disponíveis sobre essas aldeias (Lucas, 2014a) indicam
que há hoje, no rio Nhamundá, modos diferentes de viver em comunidade, com
variadas configurações possíveis. Desta forma, enquanto em Kassawá quase
quinhentas pessoas vivem em um só assentamento, empenhando-se em
diversos tipos de relações com agentes não-indígenas (missionários,
enfermeiros, funcionários da FUNAI, da SEDUC/AM, etc.) e reunindo-se apenas
em determinadas ocasiões como cultos, conferências cristãs, festas e trabalhos
coletivos, percebemos que, apesar da maior proximidade com a cidade, essas
relações não são as mesmas no cotidiano das aldeias recentes, onde, além de
ser menor a circulação dos brancos, as pessoas estão espacial e
14
relacionalmente mais próximas umas das outras, mantendo entre si certo contato
diário que faz com que a socialidade em Kassawá e nas demais aldeias seja,
para quem toma conhecimento desses contextos, evidentemente diferente em
cada um dos casos.
Além disso, as atribuições da escola não envolvem de modo tão direito o
mesmo contingente de pessoas que em Kassawá e as roças e áreas de caça,
por sua vez, costumam estar bem mais próximas nas aldeias pequenas. Ainda
que existam maya em algumas dessas aldeias pequenas, acredito que seu
propósito de reunir pessoas não seja tão marcante nos pequenos
assentamentos porque, de certa forma, as pessoas estão cotidianamente mais
em contato do que em Kassawá.
Não pretendo afirmar com isso que os Hixkaryana estejam, ao fundar
aldeias menores, envolvendo-se em uma espécie de “volta ao passado”. Me
parece curioso, contudo, que tenha sido justamente nessas aldeias que ouvi a
grande maioria de histórias sobre o tempo dos antigos, amnyehram komo, como
alguns dados que apresentei no começo desse trabalho. Mais do colocar ênfase
em qualquer tipo de resiliência, acredito que essas novas configurações podem
nos ajudar a entender melhor como, ao insistir em determinados conceitos e
práticas, os Hixkaryana podem com isso mostrar-nos o que, para eles, é muito
importante.
Conclusão
Ainda que a onomástica hixkaryana esteja baseada na nominação a partir
de G+3, não há uma ênfase especial na profundidade genealógica ou na
memória dos ancestrais. As pessoas geralmente são enterradas dentro ou ao
lado das casas, e um casal muitas vezes, para saber os nomes que têm à
disposição para dar a seus filhos, terá que recorrer aos mais velhos da família.
Por outro lado, ainda que os Hixkaryana possuam uma elaborada topografia
nativa, com nomes específicos para diversos igarapés e cursos d’água, não
atribuem a eles, como em outros contextos ameríndios, o caráter de lugares
sagrados. Com isso desejo enfatizar, novamente, o fato de que o modo com que
15
os Hixkaryana pensam a dinâmica tempo-espaço, embora possa parecer ao
nosso numa primeira mirada, guarda muitas diferenças.
Dessa forma, acredito ser um desafio para o antropólogo não partir, em
sua análise, de formas pré-concebidas e mesmo naturalizadas de classificar o
mundo. Aqui estou de acordo com a afirmação de Viveiros de Castro (1996)
quando ele diz que não estamos diante de uma multiplicidade de representações
sobre o mundo, mas de mundos diferentes. Nesse contexto, o mundo
hixkaryana, tal qual me foi possível conhecê-lo, mostra-nos que há um modo de
ocupar e se organizar no espaço que, baseado em um modelo concêntrico e na
uxorilocalidade, parece ser capaz de conjugar transformação e continuidade
através da história. Assim, se pensamos o tempo não apenas em relação a seus
modos de mensuração nativa, mas levando em consideração sua perspectiva
diacrônica, temos uma primeira indicação da razão pela qual, como argumentei
no começo, é possível que tempo e espaço sejam, nas teorias hixkaryana,
pensados em conjunto.
Nesse sentido, a permanência do mundo celeste (desde as constelações
até a separação seca/chuva) nas narrativas sobre o tempo pode ser uma chave
interessante para que estendamos a reflexão aqui levantada sobre a relação
entre a contagem do tempo e o espaço (ou o que conhecemos como “meio
ambiente”, “paisagem”), uma vez que nessas classificações nativas intervêm
tanto o céu quanto a terra, por meio da dinâmica da agricultura e da coleta, e
ainda os animais, seja no modo com que se comportam ou nos regimes da caça.
Assim, quando utilizo a fórmula “tempo-espaço”, o faço pensando que
provavelmente seja mais adequado, para o caso em questão, tratar essas duas
categorias na forma de um contínuo, inseparável porque intimamente
relacionado.
No limite, tal afirmação faz sentido apenas porque essa é uma questão
para o mundo ocidental, que cotidianamente divide e classifica o que há a sua
volta de forma que põe o céu, a terra e o que neles há sob a égide do espaço,
ao mesmo tempo em que atribui ao tempo um sentido abstrato e imaterial24.
24
Não estou aqui ignorando que, ao longo da história, a astronomia desempenhou importante
papel na concepção dos calendários ocidentais, mas analisando a utilização atual do calendário
gregoriano.
16
Quanto aos Hixkaryana, que diga-se de passagem não possuem palavras
nativas correlatas aos nossos termos “tempo” e “espaço”, acredito que reagiriam
a essa discussão com um grande sorriso, oferecendo ao analista desavisado um
beiju ainda quente, saindo do forno, feito com a mesma mandioca que cresce,
no tempo da cheia, sob o céu estrelado e o sol escaldante.
Bibliografia
BARBOSA, G. 2007. Os Aparai e Wayana e suas redes de intercâmbio. São
Paulo: USP. (Tese de Doutorado).
BELLIER, I. 1994. “Los Mai Huna”. Em Guía Etnográfica de la Alta Amazonía
SANTOS, F., BARCLAY, F., vol. I. Quito: FLACSO e Lima: IFEA (Instituto
Francés de Estudios Andinos). pp. 1-179.
CHAUMEIL, J-P. 2005. “Mémoire Nouée: les cordelettes à noeuds en
Amazonie”. In: Brésil Indien: les arts amérindiens du Brésil. Paris: Réunion des
Musées Nacionaux. P. 295 – 303.
EVANS-PRITCHARD, E. 2007 [1940]. Os Nuer: Uma descrição dos modos de
vida e das instituições políticas de um povo nilota. São Paulo. Ed. Perspectiva.
GOLDMAN, M. & STOLZE, T. 1998. "Como se Faz um Grande Divisor? Etnologia
das Sociedades Indígenas e Antropologia das Sociedades Complexas". Revista
Sexta-Feira, nº3.
HOWARD, C. 2001. Wrought identities: the Waiwai expeditions in search of the
“unseen tribes” of Northern Amazonia. Chicago: Univ. of Chicago. (Tese de
doutorado).
KARADIMAS, D. “La constellation des quatre singes. Interprétation
ethnoarchéoastronomique des motifs de “El Carchi-Capuli” (Colombie,
Equateur)”. In: Journal de la Société des Américanistes. Tome 85, 1999. pp. 115145.
LATOUR, B. 1994. Jamais fomos modernos. São Paulo: Ed. 34.
LÉVIS-STRAUSS, C. 2008 [1956]. “As organizações dualistas existem?”. In:
Antropologia Estrutural I. São Paulo: Cosac & Naify. P. 147 a 178
LUCAS, M. 2014a. “Antes a gente tinha vindo do jabuti”: notas etnográficas sobre
algumas transformações entre os Hixkaryana no rio Nhamundá/AM. Museu
Nacional/UFRJ (Dissertação de Mestrado).
LUCAS, M. 2014b. A “volta” dos rawana: notas sobre as festas regionais entre
os Hixkaryana. Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia,
realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.
17
MEGGERS, B. 1977. Amazônia: a ilusão de um paraíso. São Paulo: Ed. Itatiaia
Limitada / Ed. da Universidade de São Paulo
PERKER, J-C. 2009. “O céu estrelado de Claude Lévi-Strauss”. In: Estudos
Avançados, 23 (67). P. 173 – 182.
RIVIÈRE, P. 2001 [1984]. O Indivíduo e a Sociedade na Guiana: um estudo
comparativo da organização social ameríndia. São Paulo: Edusp.
QUEIROZ,
R.
2010.
Verbete
Hixkaryana.
Disponível
em:
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/hixkaryana (ISA, Povos Indígenas no
Brasil).
VIVEIROS DE CASTRO, E. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o
perspectivismo ameríndio”. In: Mana: Estudos de Antropologia Social 2(2). P.
115 – 144.
18
Download