A MÚSICA BRASILEIRA DE RAIZ: da origem à inserção na Indústria

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A MÚSICA BRASILEIRA DE RAIZ:
da origem à inserção na Indústria Cultural
Autoria: Cecília Chiarini Sales de OLIVEIRA1
Felipe Pereira MALLOZZI2
Noemí Corrêa BUENO3
Orientadora: Profª Drª Maria Antonia Vieira Soares
Instituição: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação Social – FAAC. Campus Bauru.
Resumo: Em um mundo cada vez mais globalizado, que impõe uma ideologia e se
desfaz ou apropria do que provém da cultura popular, a Música Caipira ainda
permanece viva com sua riqueza estética e diversidade temática. Essa música é uma
manifestação espontânea de uma população rural, ligada à produção, ao trabalho, à
religião, ao lazer, enfim a todas as formas de sociabilidade predominantes no mundo
caipira, cujo estilo de vida seria impossível sem a música (CALDAS, 1979, p. 80). Por
isso, a sua valorização e seu reconhecimento são importantes para o desenvolvimento de
um senso crítico que valorize nossas verdadeiras raízes resistindo à Indústria Cultural.
Desta forma, buscamos neste artigo analisar essa cultura salientando sua diversidade,
nacionalidade e riqueza estética e traçando sua trajetória histórica desde sua formação
até a contemporaneidade, em que a Indústria Cultural busca apropriar-se de suas
características mais expressivas.
Palavras-Chave: música caipira, cultura, regionalismo, música de raiz, Indústria
Cultural.
O século XX ficará na história, segundo Umberto Eco, como o período em
que a música se voltou para a satisfação de exigências banais, imediatas e transitórias e
se tornou produto da Indústria Cultural que não almeja nenhuma intenção de arte, e sim
satisfazer as demandas do mercado. Por outro lado, para a Indústria Cultural produzir
produtos de fácil acesso à população, necessita explorar a cultura popular, desfazendose da função desta. Segundo Theodor Adorno (In: CALDAS, 1979, p. XVII), “a função
1
Graduada em Comunicação Social: Relações Públicas, pela Universidade Estadual Paulista (UNESP,
campus Bauru).
2
Graduado em Comunicação Social: Relações Públicas, pela Universidade Estadual Paulista (UNESP,
campus Bauru).
3
Graduada em Comunicação Social: Relações Públicas, pela Universidade Estadual Paulista (UNESP,
campus Bauru), e, aluna regular do curso de Pós Graduação Comunicação Midiática na UNESP – Bauru.
da Indústria Cultural não é satisfazer o gosto popular, mas sim explorá-lo, ainda que
de forma velada”. Mas, a vivência de outras camadas sociais as habilita para a produção
cultural, e aqui se encaixa a Música Caipira, pois esta recusa as embalagens, o
planejamento e as imposições do mercado fonográfico, que lhes daria a visibilidade de
mercadoria atraente e rentável.
Foi dentro desse contexto que decidimos desenvolver nosso artigo e
destacar a Música Caipira, reconhecendo-a como manifestação espontânea de uma
população rural. Buscamos mostrar o equívoco dos estereótipos em torno dessa cultura
e levar a discussão sobre a verdadeira diversidade, nacionalidade e riqueza estética que
vão além das diferenças e conferem ao país um sentido particular. Pois, a Música
Caipira, ao contrário do que se imagina, ainda está muito viva.
A trajetória histórica da música caipira
O surgimento da música caipira está ligado aos romances tradicionais
ibéricos (textos feitos para serem musicados e recitados com o acompanhamento
instrumental da vilhuela de mano4) que apresentavam padrões formais poético-oral,
harmônicos e rítmicos. Mas estes, ainda, não possuíam características populares, pois
sua temática tratava das epopéias medievais, religiosas e sentimentais, do zoomorfismo,
das canções laudatórias e de heróis.
No Brasil, estes romances tradicionais, por meio de uma temática
nacionalista, retratavam heróis indígenas e negros como bons selvagens. Aqui,
sobreviveram em diversas regiões do país, variando sua temática e adaptando-se ao
contexto histórico-geográfico da região, ganhando nova forma, mas conservando sua
principal característica: a oralidade.
A Música Caipira, proveniente dos romanceiros medievais, apresenta
uma linguagem direta, coloquial, dinâmica e originalmente oral, estando sujeita às
adaptações ao meio e à imaginação, sendo modificada pelas novas gerações de cantores
e ouvintes, sofrendo um contínuo e persistente processo de reelaboração, assim como
todas as formas de literatura popular.
Essa produção cultural popular é ligada à sonoridade, à poética e à
musicalidade, ao uso expressivo do espaço e às manifestações corporais do intérprete.
4
A vilhuela é um instrumento que alcançou seu máximo esplendor na península ibérica durante o século
XVI, em torno de um ambiente cortesão e sobre as capelas musicais de reis e nobres. É um instrumento
de cordas com formato parecido com a guitarra. Seu fundo é plano e conta com seis ou sete ordens de
cordas que se acredita que afinavam em uníssono. As cordas eram de tripa, sendo as mais graves
banhadas entornadas de prata. Seu tamanho era variável, as mais pequenas afinadas em Lá e Sol (em
referência a primeira corda) e as maiores em Fá, Mi e Ré. Geralmente é aceito que a primeira corda era
simples, se bem que há vihuelistas que usam duas primeiras.
Apesar de conservar várias características do romanceiro, como o estilo (redondilhas,
oralidade e ritmo) e a narrativa (na maioria das vezes em primeira pessoa), a Música
Caipira apresenta uma diferença essencial: a figura do caipira.
O caipira é o resultado da mistura do colonizador português com o índio.
Foram os primeiros lavradores rústicos, caracterizados pela estabilidade das relações do
grupo com o meio, pela grande hospitalidade, costumes rudes, homens valentes e
desconfiados (comportamento resultado da violência e segregação com que foram
tratados), pela vida social fechada e pelo grande conhecimento sobre os recursos
naturais que facilitaram o desenvolvimento de uma economia de subsistência. É preciso
pensar no caipira como um homem que manteve a herança portuguesa nas suas formas
antigas e nas transformações que ele sofreu, fazendo do velho homem rural brasileiro o
que ele é. O caipira, do ancestral português herdou a língua, a religião e a maioria dos
costumes e crenças; do ancestral índio herdou a familiaridade com o mato, o faro na
caça, a arte das ervas, o ritmo do bate-pé (catira) e a caudalosa eloqüência do cururu.
(CÂNDIDO, 1987, p. 37-254).
Com o desenvolvimento social e econômico da zona rural, houve uma
diminuição de terras disponíveis e o caipira passou a depender cada vez mais da vila e
da cidade, incorporando-se à vida urbana. Nesta nova fase, o caipira ao se comparar
com o morador da cidade, sentiu-se inferiorizado e passou aceitar os padrões da
sociedade urbana, desligando-se cada vez mais de sua cultura original.
Já os que permanecem no campo procuram ajustar-se o mínimo possível
à civilização urbana, preservando ao máximo seu modo de vida e sua cultura. Capazes
de viver por conta própria e multiplicar-se em muitas categorias de trabalhadores,
artistas e artesãos, eles criaram a cultura caipira, cuja aparente rusticidade encobre uma
sabedoria que o homem da cidade busca compreender.
A cultura caipira não é e nunca foi um reino separado, uma espécie de
cultura primitiva independente. Ela representa a adaptação do colonizador ao Brasil e,
portanto, veio na maior parte do exterior, sendo, sob diversos aspectos, sobrevivência do
modo de ser, pensar e agir do português antigo. (Antonio Cândido, in: SANTANA,
2000, p. 64).
Dada a abrangência da cultura caipira, buscamos nesse trabalho dar
ênfase à manifestação musical, retratando, não somente, seus estilos e temática, mas
também seu contexto histórico, suas transformações e sua relação com a Indústria
Cultural.
Música Caipira: características e peculiaridades
Os mais primitivos sons caipiras nasceram na época da colonização do
Brasil, baseados, como já vimos, no romance tradicional, trazido pelos jesuítas a partir
da 1549, que apelaram para a música, inspirada nos ritos religiosos indígenas, como
forma de catequização.
Com o tempo, da Música Caipira foram originando outros gêneros,
conforme as influências regionais. O cururu, típico do Sudeste, canta rimas (herança
árabe) de provocação que são respondidas pelo cururueiro provocado, criando uma
verdadeira competição, onde se devem criar novas carreiras, que evidenciam a
capacidade de cada cururueiro.
A catira (recorte ou cateretê) têm influência africana e ameríndia e é uma
mistura de solos de viola, palmas e sapateado. É uma coreografia simples e muito
comum nas festas populares como as Folias de Reis e de São Gonçalo. Era uma dança
religiosa dos índios, que também foi aproveitada pelo padre José de Anchieta para atraílos ao cristianismo. Tonico e Tinoco e, atualmente, Chico Lobo, são exemplos de
grandes catireiros.
Quatro Coisas
catira
Vieira e Vieirinha, 1976
O home pra sê bem home / Quatro coisa há de sabê: / Jogá e tocá de viola, /
Robá moça e sabê lê. [palmas e sapateado]
Treis coisa eu aprendi, / Uma não pude aprende: / Toco viola e jogo truque, /
Robo moça e não sei lê. (BUSCARLETRAS, 2008).
O fandango é uma mistura das músicas dos roceiros brancos com a dos
escravos negros. Esse gênero é mais conhecido no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.
A toada é mais melodiosa e caracterizada por uma mistura dos cantares
tradicionais brasileiros. Sua temática geralmente é amorosa, dolente e melancólica. São
divididas em dois tempos: uma introdução que é declamada, e que representa
ilusoriamente a realidade e um desenvolvimento cantado, que representa a poetização.
As toadas procuram ultrapassar a trivialidade narrativa, de forma a atingir
profundamente os símbolos e a existência caboclos e coletivos.
As cantigas de Patacoadas apresentam um tom irônico e fazem uma
sátira aos acontecimentos do presente ou mesmo, às épocas passadas. Romildo
Sant’Anna (In: 2000, 64) mostra que, para alcançarem esse tom jocoso, “promovem a
antropoformização do bicho e a zooformização do personagem.” Jararaca e Ratinho e
Alvarenga e Ranchinho, são exemplos de duplas desse gênero cômico.
Moda da Pinga
moda-de-viola – cantiga de patacoada
Ochélsis Aguiar Laureano / Raul Torres
Com a marvada pinga é que eu atrapaio, / Eu entro na venda e já dô meu taio,
/ Eu pego no copo e dali não saio, / Ali mesmo eu bebo, ali mesmo eu caio. /
Só pra carrega é que eu dô trabaio, oi, lá.
Venho da cidade, já venho cantano, / Trago um garrafão, que venho chupano,
/ Venho pros caminho, venho trupicano, / Chifrano os barranco, venho
cambeteano. / E no lugar que eu caio, já fico roncano, oi, lá. / Cada vez que
eu caio, caio deferente, / Meaço pá trás e caio pra frente, / Caio devagar, caio
de repente, / Vô de rodopio, vô deretamente. / Mas sendo de pinga, eu caio
contente, oi, lá.
Pego o garrafão e já balanceio, / Que é pra mor de ver se tá mesmo cheio, /
Não bebo de vez porque acho feio, / No primeiro golpe chego inté no meio.
No segundo trago é que desfazeio, oi, lá ... (CIFRANTIGA, 2008).
Tema muito recorrente na Moda Caipira é a cantiga de campeão que
exalta a proeza de fazer versos e rimas do cantador-violeiro. Como exemplo, a modade-viola Marreta (1960) e Resposta da Marreta (1964), interpretadas por Vieira e
Vieirinha:
Marreta
moda-de-viola
Vieira e Vieirinha, 1960
Ai, lá no bairro adonde eu moro, / Ansim o pessoar suspeita: / Ai, eu sô um
inventor de moda, / Eu pego às dúzia, é por empreita, / Eu sento na bera da
mesa, / Eu tiro o bloque da gaveta.
Ai, no prazo de meia hora, / Eu tenho quatro moda feita, / Ai, gente, que eu
passo na idéia, / E copeio na cardeneta, / Ai, moda de verso dobrado, /
Conforme vem na receita. (SANT’ANNA, 2000, p. 311).
A forma de apresentação da música caipira preserva características do
romance tradicional, pois também é cantada “à capela” acompanhada de uma viola que
é batida e outra que é ponteada, evidenciadas entre as estrofes. Assim, a narrativa tornase mais importante que a melodia e o som do instrumento. Sua estrutura permite solos
de viola e longos versos que narram fatos históricos e acontecimentos marcantes da vida
das comunidades rurais.
Podemos citar a moda Nova Londrina de Vieira e Vieirinha, interpretadas
por Teddy Vieira e Serrinha, como exemplo da presença de antigas motivações
temáticas. Fica evidente a permanência das histórias antigas que são incorporadas ao
imaginário caipira, pois, por meio da cultura popular, os acontecimentos reais ou
imaginários pertencentes à memória coletiva, transformam-se em verídicos artísticos.
Nova Londrina
moda-de-viola
Vieira e Vieirinha, 1966
Pra corrê o Norte do Paraná / Eu comprei uma mula argentina / Por ser besta
boa pra marchá / Puis o nome de Campolina. / Vô cortá trinta légua de mata /
No dobrar daquelas colina / Quatro ferradura de prata / E uma fita amarrado
na crina.
Me veio na lembrança os treis par de França, / Seis home valente, matô muita
gente, / Eu abanco o Rordão, naquele sertão / De Nova Londrina.
(SANT’ANNA, 2000, p. 52).
O cantador e/ou compositor da moda-de-viola lança mão de toda sua
percepção cultural e intuição para fazer sua composição artística, que é, para ele, uma
necessidade de expressão. Tal característica é evidenciada no depoimento de Rubens
Vieira Marques, da dupla Vieira e Vieirinha que enfatiza a influência das métricas e das
rimas do romanceiro tradicional.
Pra escreve uma moda boa, a primeira coisa que eu faço é tira trinta e duas
trova, que é uma moda pa gravá, de quatro verso [4 estrofes de 8 versos cada
= 32]. Vai pondo as trova tudo certinho, as rima ... São trinta e duas rima.
Então cê faiz a métrica pra cabe naquelas trova. Tem que sê certinho, porque
se cê faiz um verso muito comprido e outro curto, num fica certo, né? As
trova têm que sê tudo certinha pra cabe na moda. Cê pega o tema, escolhe a
rima e vai fazendo. Tem rima que não dá moda. (...) A pessoa aprende a fazer
verso por influência lá de cima, acho que é o Deus. (Rubens Vieira Marques
in: SANT’ANNA, 2000, p. 78-79).
A fala caipira é estigmatizada por sua despreocupação com as regras de
concordância. Realmente o caipira se expressa de forma diferente da língua padrão, mas
isso ocorre porque ele fala um dialeto, não a língua portuguesa propriamente. Esse
“modo de falar” é proveniente do nheengatu5, desenvolvido pelos jesuítas nos séculos
XVI e XVII, com base no vocabulário e na pronúncia tupi enriquecido com palavras
portuguesas e espanholas. Essa “língua geral” foi usada até o século XVIII, quando foi
proibida pelo rei de Portugal. Mas continuou sendo falada e como remanescente ficou o
dialeto caipira. Sobraram pronúncias da língua tupi e adaptações da língua portuguesa.
Vale destacar que o próprio nome caipira é proveniente do nheengatu, onde caa quer
dizer mato e pir, aquele que corta. Assim, caipira significa aquele que corta o mato.
Os jesuítas, no século XVI, observaram que os índios tinham grande
dificuldade em pronunciar os sons do /l/ e do /r/, especialmente na finalização de
palavras e verbos. Assim, esses sons foram suprimidos, transformando quintal e animal
em quintá e animá e cantar, dizer e fugir em cantá, dizê e fugí. Os jesuítas também
perceberam a dificuldade em pronunciar consoantes dobradas, daí que no dialeto
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Dialeto que nasceu do Tupi, foi disseminado por toda Amazônia e é responsável por cerca de 10 mil
palavras da língua portuguesa.
caipira, orelha tenha se tornado orêia, coalho seja coaio, colher seja cuié. Uma
abundância de vogais em detrimento das consoantes, até mesmo com a introdução de
vogais onde não existiam. Nesse dialeto as vogais finais inacentuadas /e/ e /o/ têm uma
duração maior e não se reduzem a /i/ e /u/. O /r/ entre vogais e no final da sílaba é
retroflexo, comum no inglês. As concordâncias verbais e nominais se reduzem a uma só
forma (“nóis não falava isso”), os possessivos não são deslocados (“berrante eu num
toco mais”) e os indefinidos todo, todos, todas são expressos como tudo, tudos, tudas.
Talvez pelo desconhecimento de sua origem, do desconhecimento desse
dialeto caipira, tentou-se inúmeras vezes corrigir essa forma de falar, principalmente a
partir do maior contato do homem da cidade com o do campo. Isso causou um choque
no contexto sócio-histórico, iniciando um processo de descaracterização da sociedade
caipira. Podemos notar esse processo de “correção de linguagem”, próprios do padrão
da escrita, na moda-de-viola O Milagre da Vela, interpretado por Tião Carreiro e
Pardinho. Podemos verificar também nessa música, os efeitos sentimentais
(evidenciados pelos “ais”), emocionais e míticos (reaparição do morto), presentes em
boa parte das modas caipiras.
O Milagre da Vela
moda-de-viola
Tião Carreiro e Pardinho, 1984
Lá no bairro aonde eu moro, / Um dia desses passado, / Se deu um causo
emprissionante / Que ficamô admirado. / Uma vizinha de casa / Que há
tempo tinha viuvado, / Fico ela e treis filhinho, / Residiam num sobrado. / O
velho quando morreu, ai, / Deixô alguns cobre guardado.
Era meia-noite e meia, / O relógio tinha marcado, / E a viúva não dormia, /
Virando pra todo lado. / Quando quis pegar no sono, / Escuto um forte
chamado. / E ela então reconheceu, ai, / Que era a voz do seu finado: / -Vai
acudir nossos filhos / Pra não morrê queimado.
A velha viro pro canto, / Pensô que tinha sonhado, / Quando a voz se repetia:
/ -Vai faze o meu mandado. / Ela levantô depressa, / E o quarto estava
fechado. / Arrombo a porta e entro, ai, / Num gesto desesperado. / Um vela
sobre a mesa / Já com fogo no toalhado.
Com o barulho da porta, / Os menino acordô assustado. / E a mesinha em
lavareda, / Na cama estava encostado: / -Meus filhos, pra quê esta vela / Se a
força não tem faltado! / -Minha mãe, quinze de agosto, / Nóis estamos bem
lembrado. / Que hoje completa um ano / Que papai foi sepultado.
(BUSCARLETRAS, 2008).
É interessante notar que nessa moda, a mudança dos costumes quando se
sai do campo para a cidade é mostrado simbolicamente pela vela. A viúva deixa de vê-la
como um símbolo religioso, pensando apenas como um objeto para quando falta a luz.
Outro enfoque dentro da temática sentimental da música caipira (presente
principalmente nas toadas) é a solidão do homem, que reflete não só o isolamento dos
grupos regionais, mas também a situação histórica do índio, do negro e do português
banidos da terra de origem. A tristeza e a tragédia existencial do caipira se refletem na
destruição íntima, representada simbolicamente pela perda da casa ou pela traição
amorosa, que é o motivo aparente de sua melancolia e solidão.
Vale ressaltar o prolongamento do romanceiro tradicional e as derivações
das cantigas amorosas trovadorescas na música caipira, pela presença da voz masculina
que lamenta um amor impossível, proibido ou mesmo não correspondido e pela
idealização da mulher amada. Essa temática sentimental-medieval, essa agonia amorosa,
pode ser percebida no cateretê Amargurado, de Lupicínio Rodrigues, gravada por Tião
Carreiro e Dino Franco.
Não podemos deixar de lado a temática da própria viola, instrumento
indissociável da música caipira. A viola ganhou forma durante o período renascentista
na Península Ibérica, a partir do século XV e chegou ao Brasil por meio dos
portugueses. Aqui, ganhou novos formatos, mais cordas, afinações diferentes e se
tornou o símbolo da resistência do homem sertanejo, expressando toda sua simplicidade
e riqueza, marcando presença nas manifestações folclóricas brasileiras.
Hoje, a viola está presente com grande virtuosidade nos teatros, nas
orquestras e nas universidades, formando arranjos especiais com outros estilos musicais.
A viola “brasileira”, moldada pela cultura ameríndia, africana e peninsular ibérica, está
ligada e representa toda uma cultura caipira que a sublima e a envolve em suas
superstições, como visto na moda-de-viola Viola Vermelha, interpretada por Tião
Carreiro e Jesus Delmiro: “esta viola vermelha, / Cor de bandeira de guerra / Cor de
sangue de caboclo, / Cor de poeira de terra. / Foi a fiel companheira, / Numa longa
trajetória. / De um artista tão querido, / Que deixou nome na história / Um canhoteiro
de fibra, / Um exemplo de violeiro. / Com talento e traquejo, / Do progresso sertanejo, /
Ele foi o pioneiro (...)”. (SANT’ANNA, 2000, p. 213-214).
O boi e o boiadeiro são também presenças constantes nas modas-deviola. O boi pode aparecer relacionado ao caipira, pois também leva uma vida de
trabalho não reconhecido e de exploração, como o caso do boi velho que é dado às
piranhas para que a travessia do rio com o restante da boiada, seja facilitada. Pode
também aparecer como uma projeção simbólica do caboclo, já que várias vezes o boi é
retratado como um tipo de herói. Vamos aos exemplos:
Travessia do Araguaia
moda-de-viola
Dino Franco e Biá, 1972
Naquele estradão deserto / Uma boiada descia, / Pras banda do Araguaia, /
Pra fazer a travessia. / O capataiz era um velho / De muita sabedoria, / As
ordens eram severas, / E a peonada obedecia.
O ponteiro, moço novo, / Muito desembaraçado / Mas era a primeira viagem
/ Que fazia nesses lados. / Não conhecia os tormentos / Do Araguaia
afamado, / Não sabia que as piranhas / Era um perigo danado.
Ao chegarem na barranca, / Disse o velho ao boiadeiro: / -Derrubamos um
boi n’água - / Deu a ordem ao ponteiro -, / Enquanto as piranhas comem /
Temos que passar ligeiro, / Toque logo este boi velho / Que vale pouco
dinheiro.
Era um boi de aspa grande, / Já roído pelos anos, / O coitado não sabia / Do
seu destino tirano. / Sangrando por ferroadas / No Araguaia foi entrando, / As
piranhas vieram loucas / E o boi foram devorando.
Enquanto o pobre velho / Ia sendo devorado / A boiada foi nadando / E saiu
do outro lado. / Naquelas verde pastagem / Tudo estava sossegado. / Disse o
velho ao ponteiro: / -Pode ficar descansado!
O ponteiro revoltado / Disse: -Que barbaridade! / Sacrificar um boi velho /
Pra quê esta crueldade? / Respondeu o boiadeiro: / -Aprenda esta verdade: /
Que Jesus também morreu / Pra salvar a humanidade! (SANT’ANNA, 2000,
p. 299-300)
O boiadeiro evidencia o seminomadismo do caipira, herança dos índios e
bandeirantes, seguindo essa vida, guiando boiadas por longos períodos, transformando
seus “causos” de viagem em música. Os “causos” dos boiadeiros não são apenas
sentimentais, também narram histórias de coragem e valentia, geralmente, como já
vimos, transferidas para o boi que é tomado como herói.
A Música Caipira na Indústria Cultural
Foi a partir de 1910, com Cornélio Pires (1884-1958), que a cultura
caipira começou a traçar novos caminhos. Com um evento sobre a manifestação cultural
do campo no Colégio Mackenzie (onde apresentou o cururu e o cateretê) e uma palestra
na Semana de Arte Moderna, doze anos depois, as manifestações culturais caipiras
começam a receber seus primeiros olhares externos.
Até 1929, a música caipira não tinha representantes nos catálogos das
gravadoras (conseqüência do preconceito dos centros urbanos), quando Cornélio Pires
resolveu gravar um disco com duplas caipiras. O sucesso obtido, com tal ação,
inaugurou um nicho de mercado na história da música brasileira.
As músicas caipiras passaram, então, a ser tocadas nas rádios, mas como
não havia muitos violeiros-cantadores, as gravações não eram realizadas com violas,
mas com violinos, flautas, clarinetes e outros instrumentos. Neste período de
modernização, mineiros e nordestinos vieram a São Paulo e ao Rio de Janeiro com o
intuito de divulgar suas músicas nas rádios, destacando-se, dentre estes, as duplas João
Pacífico e Raul Torres, na década de 30 e Tonico e Tinoco, na década de 40. Foi, ainda,
neste período, caracterizado como o auge da música caipira (já que 60% da população
brasileira era rural), que a Indústria Cultural passou a descaracterizar com maior
notoriedade esta música, a adaptando às tendências do mercado.
A década de 50 foi conhecida pelo processo de desnacionalização da
música brasileira de raiz causada pela concorrência com gêneros estrangeiros e pelo
fortalecimento de uma Indústria Fonográfica moldada no exemplo internacional e
desinteressada pela tradição cultural. A original música caipira ficou, assim, (mal)
disfarçada pelas guaranias6 (responsáveis pela deturpação e empobrecimento musical
das modas de viola), pelas canções sertanejas7 e pelos tangos-canção.
Nos anos 60, o crescimento dos centros urbanos e o conseqüente êxodo
rural modificaram os hábitos e interferiram no caminho da música caipira. Sérgio Reis
(saído da Jovem Guarda) e Renato Teixeira (saído dos festivais da TV Record) agitaram
o estilo sertanejo. Tião Carreiro misturou o samba, o coco8 e a música de raiz,
inventando o pagode caipira. Nos anos 80, a dupla mineira Pena Branca e Xavantinho
adaptaram sucessos da MPB à linguagem da viola. Almir Sater uniu a moda de viola ao
blues. Chitãzinho & Xororó, Zezé DiCamargo & Luciano, Leandro & Leonardo com
suas guitarras e grandes arranjos, se inspiraram na música rural e inauguraram a música
sertaneja-pop-romântica.
Já nos anos 90 os novos caipiras (new-caipira ou pós-caipira9)
instrumentistas-compositores como Ivan Vilela, Chico Lobo e Roberto Corrêa tentaram
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A Guarânia é um ritmo tipicamente latino, originaria dos países do hemisfério sul como o Paraguai e a
Bolívia. No Brasil, fez muito sucesso na música popular durante as décadas de 40 e 60 e ainda é muito
presente na música sertaneja.
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A música caipira é uma manifestação espontânea de uma população rural paulista ligado à todas as
formas de sociabilidade (produção, trabalho, religião, lazer) predominante desse universo da “cultura
rústica”. Desempenha o papel de mediador das relações sociais, evitando a própria segregação. Em seus
textos, o autor assume a posição de porta-voz de seu povo e dificilmente particulariza seu discurso, com
mensagens que permitem a identidade da comunidade e que atendem aos seus anseios. Já a música
sertaneja possui um discurso essencialmente profano e particularizante, com experiências amorosas
individuais ou de um cotidiano próprio. Sua função é meramente utilitária e comercial para com o seu
público, enquanto a música caipira possui importante função social. A insistência e a repetição da música
sertaneja com discurso e melodia redundantes fazem com que a maioria das músicas sertanejas seja muito
parecida a ponto de nos dar a impressão de estar ouvindo a mesma música. Esse reducionismo estético de
caráter mercadológico tira a música sertaneja da possibilidade de ser considerada arte ou uma nova
manifestação musical (CALDAS, 1979, p. 85).
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Dança típica das regiões praieiras é conhecida em todo o Norte e Nordeste do Brasil. Alguns
pesquisadores, no entanto, afirmam que ela nasceu nos engenhos, vindo depois para o litoral. A maioria
dos folcloristas concorda, no entanto, que o coco teve origem no canto dos tiradores de coco, e que só
depois transformou-se em ritmo dançado (FUNDAJ, 2005).
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O pós caipira é um movimento de resgate da cultura caipira, mas que lança sobre ela um novo olhar,
influenciado pela vida moderna, pelo rock, pela internet e pela urbanização. Assim, suas músicas voltam-
resgatar e retrabalhar a música caipira original, criando um circuito de gravadoras
independentes e apresentações em teatros, entre São Paulo e Belo Horizonte, irradiando
até o Rio de Janeiro.
Assim, a partir do século XX, a cultura caipira passou a ser incorporada
pela Indústria Cultural (surgida a partir do crescimento progressivo do capitalismo,
como elemento modificador, estimulando o consumo, especialmente nos países
desenvolvidos) que criou um novo estilo de música: a música sertaneja. Assim, essa
música sertaneja produzida em série e de forma industrial, abandonando o caráter de
instrumento crítico e de conhecimento pertencente à música caipira, passou a ser tratada
como um produto trocável por dinheiro e que deve ser consumido como se consome
qualquer outra mercadoria.
Desta forma, a música caipira (representante de nossa cultura) quando
transformada em música sertaneja torna-se produto de mercado. “Com referência às
deformações a que está sujeita a música da cultura popular rural quando manipulada
pela Indústria Cultural, J. de Souza Martins nos esclarece sobre a ‘destruição das bases
da criação arsenal livre, enquadrando-se a produção da música sertaneja por inteiro no
contexto técnico (e evidentemente ideológico) da Indústria Cultural’” (SCHURMAN,
1989, p. 182).
Como produto das estereotipações de idéias criadoras, a música ligeira
de sucesso (um dos maiores expoentes dessa reificação cultural) orienta-se pela eficácia
do que é mais consumido e se firma entre os consumidores, porque o mais conhecido é
aquele que vende mais, portanto faz mais sucesso. (GRANDI, p. 2003)
Estamos vivendo numa sociedade do “descartável”. É o que podemos
chamar de arte para o momento ou música para o momento. A função duradoura é
irrelevante e a presença da qualidade é, geralmente, inversamente proporcional à
duração do uso. Os artistas do descartável poluem a cultura e forçam “conceitos” nas
pessoas que arrefecem a sensibilidade dos sujeitos.
Percebendo o potencial do ritmo, mesmo que a música não evidencie
claramente seu aspecto regional (o que acontece ao se misturar viola com guitarra, por
exemplo), a Indústria Cultural enfatizará o novo para poder transformá-lo em produto
consumível. Para Steven Connor, a Indústria Cultural exige um produto estável e
reprodutível, mas também exige uma invasão periódica de inovação.
Esse é o caso das duplas já citadas, Chitãozinho e Xororó, Zezé de
Camargo e Luciano, Jean e Giovanni que começaram a produzir um novo estilo de
se para a tradição, mas com uma sonoridade própria, que mistura o som do rock com o dos violeiros
tradicionais. Desta forma, o som regional ganha batidas eletrônicas, efeitos de computador, DJ e todo
música sertaneja que se consolidou no mercado fonográfico a partir dos anos 80. O
repertório produzido por elas é definido pelos críticos musicais e pesquisadores como
sertanejo pop, sertanejo romântico ou neo-sertanejo. São duplas mais suscetíveis às
novas influências estilísticas. São artistas populares que vão produzir para um público
de massa também suscetível às mudanças. Produtores, diretores artísticos e profissionais
de marketing fonográfico que atuam em gravadoras conhecem o público e indicam as
inovações para garantir a vendagem dos discos. A viola foi substituída por instrumentos
eletrônicos como guitarra, contra-baixo elétrico e teclados, além de bateria e,
eventualmente instrumentos de percussão. Tanto as composições como os arranjos
apresentam elementos da música urbana de massa, especialmente das baladas
românticas da Jovem Guarda. Portanto, da música caipira de fato restam poucos
aspectos. Talvez, as vozes agudas dos cantores e, os duetos em terça, porém
empregados de modo mais econômico.
Na Indústria Cultural o valor do produto cultural não está no seu
conteúdo e sim na sua forma, que deve ser atraente e rentável. Na música, quando sua
forma não atende mais os objetivos de consumo da Indústria Cultural, há a busca por
novos elementos e por toques mais atuais, ocorrendo o que se chama de multiplicidade
estilística, mesmo que com isso alguns elementos tradicionais ainda sejam mantidos.
Esse é um aspecto importante para a indústria fonográfica atual que investe em músicos
que procuram trabalhar a intertextualidade em sua música. É o caso da banda Mercado
de Peixe que toca a chamada viola turbinada (mistura de viola com guitarra), inspirada
em antigos ritmos como cateretê, cururu, recortado e muitos outros, apresentando uma
nova linguagem e uma fusão de ritmos, que é uma das tendências mundiais para a
divulgação pela Indústria Cultural.
Mesmo assim, o Pós-Caipira (como já citamos) funciona como
laboratório para novas tendências. Para Ricardo Polettini, violeiro e guitarrista do
Mercado de Peixe, uma das bandas mais reconhecidas do new-caipira, o movimento
consiste em uma tentativa de revigorar a cultura caipira, modificando uma de suas
principais vertentes: a música de raiz. Essa foi a única maneira encontrada pelo grupo
de defender a tradição caipira, adequando à globalização que afeta toda a sociedade, e
não mantendo-a em uma redoma fechada e estática para cair no esquecimento. Desta
forma, acreditam trazer até as novas gerações o que há de melhor na música caipira.
Como principal influência desse movimento está o Mangue Beat que fundiu o maracatu
e outros ritmos do Recife somados ao peso da guitarra elétrica. Da mesma forma, a
viola ganhou força no “Rock’n’roça” ou ainda “Moda Nova”, ao lado das guitarras, ou
aparato tecnológico disponível. Podemos citar como representantes do pós caipira as bandas “Mercado de
mesmo da própria viola ligada a amplificadores e pedais. Bandas como Sacicrioulo,
Matuto Moderno e Fulanos de Tal reciclam o tradicional tornando-o atual sem abalar as
raízes.
Para José Roberto Zan (apud KASSAB, 2008), docente do Instituto de
Artes da Unicamp, essa mistura estética pode, em alguns casos, ser de qualidade, como
no de Villa-Lobos e de Camargo Guarnieri que introduziram alguns elementos da
música caipira de raiz em suas obras, realizando uma “apropriação culta da música
popular rural”.
Em relação a essas diferentes formas de apropriação da Música Caipira,
ressaltamos que enquanto a música popularesca urbana é absorvida pelo sistema
capitalista, qualificando-se por seu valor de troca, pois se sujeita aos processos de
compra e venda com o intuito de ser consumida pela maioria da população urbana; a
música caipira, em sua plenitude, se esgota na sua qualidade de valor de uso, devido às
características de sua produção e apropriação. (SCHURMAN, 1989, p. 180).
Assim, não é necessário que entretenimento seja sinônimo de
irresponsabilidade, indiferentismo ou automatismo e, por isso, movimentos para
renovação da música voltam-se contra a canção de consumo.
(...) elaborando ‘falados’, ‘contínuos’ discursivos próprios para dar novo
relevo aos conteúdos, não procurando atenazar a atenção do ouvinte mediante
o fascínio pelo ritmo primitivo, mas sim através da presença envolvente de
conceitos e apelos inusitados. O resultado foi fornecer uma canção que a
pessoa se concentra para escutar. Habitualmente, a canção de consumo é
usada como fundo musical enquanto se faz outra coisa; a canção ‘diferente’
requer respeito e interesse. (ECO, 1972, p. 302).
Considerações Finais
A Indústria Cultural é poderosa, pois tem o poder de decidir e implantar,
na maioria das vezes, o que será consumido, em música, cinema ou literatura. Milhares
de pessoas consomem esses produtos sem perceber que são, na verdade, um subproduto.
Dessa forma, ouve-se Marisa Monte para se sentir atual e cool e, não se ouve Cornélio
Pires, para não ser considerado brega e desatualizado. O jabá (pagamento feito pela
Indústria Fonográfica para as rádios executarem uma música) é um bom exemplo da
manipulação da Indústria Cultural que esconde a verdadeira cultura brasileira.
Aos músicos, atores e cineastas que resistem à imposição das regras pela
Indústria Cultural resta seguir um caminho alternativo, apresentando o problema ao
alcance do público. É o que acontece com a música caipira, que não trilha pelo sucesso
Peixe”, “Fulanos de Tal” e “Sacicrioulo”.
e nem pelos holofotes da Indústria Cultural, mas vem timidamente ganhando espaço e
influenciando músicos com suas raízes e singularidades.
Precisamos entender que a salvação da autonomia musical consiste num
dos aspectos fundamentais para a superação dessa lamentável condição pela qual o
campo musical contemporâneo tem passado. (GRANDI, p. 2003).
Com a ascensão do capitalismo e da globalização, o que é
disponibilizado para o consumo passa a ser influenciado pelos interesses de uma elite,
que impõe sua ideologia. O que é veiculado à venda hoje é, em sua maior parte, música
formatada de influência estrangeira. A típica música de "pano-de-fundo", que tem
importância secundária em relação a outros afazeres.
Essa inversão de valores (conteúdo/forma) é uma tendência geral que
ocorre em larga escala em nosso país, assim, o distanciamento que foi induzido à
música popular de raízes, faz com que tal música, originária do coração do Brasil, perca
sua força e, cada vez mais, seja confundida com a música folclórica.
Neste contexto podemos destacar a música caipira que, como já citamos
no início de nosso artigo, é a manifestação espontânea de uma população rural, ligada à
produção, ao trabalho, à religião, ao lazer, enfim, a todas as formas de sociabilidade
predominantes no mundo do caipira. É uma cultura que está ligada ao homem do
interior e da zona rural, cujo estilo de vida seria impossível sem a música. (CALDAS,
1979, p. 85).
É hora de livrar-se do estereótipo de que caipira equivale ao Jeca Tatu10
(de Monteiro Lobato) e analisar esse homem e sua cultura dentro de seu contexto.
Romildo Sant’Anna fala em seu livro A Moda é Viola: “viver em determinado ambiente
e sob determinado ambiente significa conhecer e interpretar esse ambiente mediante
justamente as categorias da espécie. Cada espécie conduz uma leitura própria do mundo
e precisamente daquela parte do mundo que é adequada às suas categorias”.
Devemos nos conscientizar e levar a discussão de que a música caipira
possui uma riqueza estética e uma diversidade que vão além das diferenças, conferindo
ao país um singular sentido federativo. Pois, a música caipira, ao contrário do que se
pode imaginar, permanece viva.
Cabe à população esclarecida, que mostra uma certa facilidade em mudar
a sua forma de pensar, derrubar tabus e estereótipos pré-supostos por nossa sociedade.
Como ninguém toma gosto pelo desconhecido, o caminho a ser seguido é o autoreconhecimento, pois o caipira está e sempre estará vivo em todos os brasileiros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUENO, Noemi C; MALLOZZI, Felipe P; OLIVEIRA, Cecília C S; SILVA, Danilo A.
Música caipira: raízes resistentes de um campo miscigenado. Bauru: Unesp, 2003
(monog).
BUSCARLETRAS. Cifras e letras. Disponível em: <http://www.buscarletras.com.br>
Acesso em: 05 abr. 2008.
CALDAS, Waldenyr. Acorde na aurora: música caipira e indústria cultural. São
Paulo: Nacional, 1979.
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a
transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades, 1987.
CIFRANTIGA. MPB. Disponível em: <http://cifrantiga3.blogspot.com> Acesso em: 08
abr. 2008.
ECO, Humberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1972.
FUNDAJ. Coco. Brasília. Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/docs/pe.html>
Acesso em: 05 jun. 2005.
GRANDI, Guilherme. Algumas observações sobre a música como mercadoria.
Disponível em: <http://orbita.starmedia.com/~outraspalavras/art04gg.htm> Acesso em:
25 nov. 2003.
KASSAB, Álvaro. Do êxodo rural à indústria cultural. Disponível em:
<http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/julho2003/ju219pg06.html> Acesso
em: 10 abr. 2008.
SANT’ANNA, Romildo. A moda é viola: ensaio do cantar caipira. Marília, SP:
Unimar, 2000.
SCHURMAN, Ernest. A música como linguagem: uma abordagem histórica. São
Paulo: Brasiliense, 1989.
10
Caricatura do caipira realizada por Monteiro Lobato, que caracteriza o homem do campo como
preguiçoso, indolente e que sofre de anemia.
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