As patacoadas postas em revista pelo Andaime, aquele do lugar, na

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LABORATÓRIO – PORTAL TEATRO SEM CORTINAS
TEATRO DE RUA BRASILEIRO
Título: As patacoadas postas em revista pelo Andaime, aquele do lugar, na beira
do porto, onde o peixe - que não é bobo - para...
Autor: Alexandre Mate
Revisão: Sofia Vercelli
Arquivo: 06.TRB.0009
As patacoadas postas em revista pelo Andaime, aquele do lugar, na beira do porto, onde
o peixe - que não é bobo - para...1
Com 23 anos de estrada e um significativo conjunto de espetáculos montados, o
sempre surpreendente Grupo Andaime, de Piracicaba (SP), apresenta, louvando
deliciosamente a cultura caipira paulista por intermédio de As patacoadas de Cornélio
Pires, a obra-pensamento-criação de Cornélio Pires. Para a tarefa, e muito acertadamente,
o grupo convidou o incansável e talentoso diretor, autor, bonequeiro Luiz Carlos
Laranjeiras. Dando nova completude aos citados e porque “um mais um é sempre mais
que dois”, o trio se completa (Laranjeiras, Cornélio Pires e a cultura caipira) pelo valor
dos integrantes do Andaime, e neste, como destaque, o queridíssimo corifeu Antonio
Chapéu.
Muitos são os méritos do espetáculo. Dentre eles, na medida em que uma
proposição dramatúrgica, em sentido amplo, pressupõe um trabalho de amarração,
compreendendo texto e cena (cuja responsabilidade é de Laranjeiras), a estrutura adotada
tem, sobretudo, como ancoradouro o teatro de revista.
Ao cumprimentar o autor-dramaturgo, pelo bom trabalho realizado, este afirma, de
modo assemelhado a tantos revisteiros – como o paulistano Nino Nello, por exemplo –
ter posposto ao título do texto a indicação: “uma estripulia musical em dois atos”,
acompanhada, ainda, de uma chegança. Nesta indicação ocorre a junção de duas formas
teatrais ou de representação: a revista musical e o cortejo popular (representado pela
chegança) e presente em tantos folguedos processionalizados pelo país.
Ao entrar na sala de espetáculos, o espectador é recebido por uma gravação
radiofônica na qual, provavelmente, ouve-se a voz da protagonista que serve de tema à
obra, Cornélio Pires. Segue-se a isso, já iniciando o prólogo, uma dupla de violeiros, da
qual se destaca a maravilha que é Domingos de Salvi Neto... Que emoção ouvi-lo tocar:
que alegria inundante!!! Assim como eu, imagino, não devem ter sido poucos os
“abduzidos emocionalmente!”. Imediatamente ao duo de viola, os tradicionais três sinais
para início do espetáculo são anunciados por meio de um dos atores que bate a enxada no
chão (como para ajustá-la ao cabo). Dado o sinal, um conjunto de músicos
surpreendentes, cujos instrumentos são ferramentas de trabalho e de uso doméstico,
apresenta a apoteose de entrada. No sentido de apresentar alguns dados biográficos de
Cornélio Pires, Laranjeiras, acertadamente – apresenta um pequeno e cômico séquito
religioso em direção ao batismo da criança Cornélio – concentrando na breve cena todas
as informações no próximo quadro. De posse dessas informações, seguem-se belos
quadros, mesclando música e cenas embebidas por vários expedientes do teatro épico.
Parte significativa das músicas apresenta particularidades do universo caipira,
tomando como mote as criações cornelianas; e cenas mesclando narração e interpretação.
Nesse conjunto harmônico de cenas, o ponto de vista é sempre o do caipira, da astúcia do
matuto. Cenas líricas (como a do beijo roubado na igreja, passando por jogo de truco, do
estudante universitário paulistano que vai “estudar” o universo caipira e deixa-se
“seduzir” pela forma espiralada de uma casca de laranja cortada...) De tantas belas cenas,
a do Mal-assombro – ligada aos fantasmas da noite – é muito longa. Apesar de pertinente
em si, quebra a estrutura do espetáculo como um todo.
Durante o debate ocorrido após o espetáculo, Laranjeiras explicita a “irreverência
irreverente” que norteou o processo colaborativo de criação do grupo a partir do mote
central fundamental em Cornélio Pires. Como costuma acontecer na dialética popular, a
irreverência iconoclasta do povo afasta para recriar; para, emocionalmente, trazer mais
para perto. É isso que acontece por quem se deixa atravessar: ser tocado emocionalmente
por algo tão perto e distante de si. Nesse atravessamento uma espécie de encontro
consigo mesmo. Uma descoberta de que nunca se é apenas um, mas sempre mais um.
Como já apontado antes, No Sal da terra: “um mais um sendo sempre mais que dois”.
O lirismo popular, o universo corneliano e caipira é percebido e estetizado por
Laranjeiras, que assina também a dramaturgia. Nesse novo território estetizado, cada
personagem, tanto individual como coletivamente, tem características de bufão. Ao rir
delas, rimos de nós mesmos, abaixo da linha do Equador, nessa imensa periferia: repleta
de sujeitos macaqueadores de cultura, mentalidades e procedimentos que, na realidade,
pouco nos diz respeito. Por aí, e como um pouco de conhecimento de si mesmo não faz
mal a ninguém, um quadro apresenta uma “professora ministrando uma aula de filologia”.
Dentre tantas pérolas, explica a professora o significado de patacoada: jogo, brincadeira.
Por extensão, patacoada tem também o sentido de ludíbrio...
Como apoteose final, o espetáculo se fecha com todo elenco presentificado na
emocionante Cuitelinho, recolhido por Paulo Vanzolini e Antônio Xandó.
Novamente o sentido do bufão. Será, sem perceber, que estamos sendo
ludibriados pelo Andaime? Será que não somos tão caipiras e ingênuos quanto aqueles de
que rimos na obra? Não seremos nós, os que nos autoconcebemos superiores, os caipiras
do mundo? Com Bertolt Brecht, a partir dos versos finais de Perguntas a um operário
que lê, pode-se constatar serem, ainda: “Tantas histórias. Tantas perguntas.”
(em 11 de setembro c’os óio ainda cheio d´água e as vista atrapaiáda.)
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