Vontade e arbítrio na Filosofia do Direito de GWF

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Vontade e arbítrio na Filosofia do Direito de G. W. F. Hegel
Wille and Willkür in the Philosophy of Right of G. W. F. Hegel
Iago Orlandi Gazola1
Resumo: O objetivo do seguinte trabalho é fazer uma análise da noção hegeliana de vontade
(Wille) tal como ela aparece na introdução à Filosofia do direito de Hegel e, partindo dela,
analisar a concepção hegeliana do arbítrio (Willkür) e do seu lugar na problemática da vontade.
Em tal obra, Hegel apresenta uma concepção própria acerca do tema, fazendo uso da dialética
para desenvolver o seu processo. Sendo o ponto de partida do direito, a vontade, que, ao final,
se reconhece como livre, está presente em todos os momentos de seu desenvolvimento.
Palavras-chave: Vontade. Arbítrio. Liberdade. Direito.
Abstract: Das Ziel der folgenden Arbeit besteht darin, den hegelschen Begriff Wille zu
analysieren, sowie er in der Einführung derPhilosophie des Rechts steht. Darüber hinaus
versuchen wir den Begriff Willkür zu verstehen, damit wir begreifen können, welche Rolle er in
der ganzen Diskussion über den Willen spielt. In solchem Werk stellt Hegel seinen eigenen
Blick auf das Thema dar und wendet die dialektische Methode an. Als Grund des Rechts
befindet sich der Wille, der sich schließlich als frei erkennt, in allen Momenten der Entwicklung
des Rechts.
Keywords: Wille. Willkür. Freiheit. Recht.
1. Introdução
G. W. F. Hegel é comumente considerado um dos principais representantes do
idealismo alemão. Seu sistema abrange um grande conjunto de temas: arte, religião,
ciências naturais, direito etc. Suas obras apresentam uma unidade pouco comum na
história da filosofia. Falar sobre um tema determinado, em Hegel, é recorrer ao método
dialético, aplicado pelo filósofo alemão às questões sobre as quais ele discorre em suas
obras. O direito não é uma exceção. Hegel escreveu muito acerca do tema, o que deu
origem às Linhas fundamentais da filosofia do direito (ou simplesmente Filosofia do
Direito), que tem papel fundamental na temática da vontade dentro do pensamento
hegeliano e, portanto, serão aqui analisadas.
Hegel diferencia três âmbitos do espírito2: o subjetivo, o objetivo e o absoluto,
no qual se encontram a arte, a religião e a filosofia. O filósofo situa o direito em sua
Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Campus de Marília. Orientador:
Prof. Dr. Pedro Geraldo Aparecido Novelli. E-mail: [email protected]
1
Vontade e Arbítrio na Filosofia do Direito de G. W. F. Hegel
dimensão objetiva. O espírito é sempre ele próprio, mas suas determinações se dão de
maneira diversa. O momento da subjetividade também encontra seu espaço no sistema
hegeliano. O direito, porém, não pertence à pura subjetividade, pois a efetividade
também faz parte dele. Por outro lado, a objetividade do direito não o desprende por
completo da subjetividade. Bernard Bourgeois, em Hegel:os atos do espírito, trata do
espírito objetivo e do espírito absoluto. No que concerne à natureza do direito em Hegel,
o autor afirma que
o direito propriamente dito exprime imediatamente, como seu
primeiro momento, a essência do direito no sentido amplo de espírito
objetivo, de objetivação do espírito, manifestação da unidade da
idealidade e da realidade que, na natureza e no espírito ainda apenas
subjetivo, permanece simplesmente em si e não é ainda presente a ela
mesma como tal. (BOURGEOIS, 2004, p. 38)
Diferentemente do que ocorre em sua dimensão subjetiva, o espírito, no direito,
se naturaliza no mundo, sai de si mesmo em direção a ele e se determina ali. Ele não
permanece em si, como é próprio ao subjetivo ou ao meramente natural. Reconhecer-se
no Outro como é em si mesmo, absolutamente livre, é o destino do espírito no direito.
Ele encontra seu espaço, portanto, também na efetividade. Na Filosofia do Direito, o
filósofo alemão tem, pois, como objetivo a exposição da ideia do direito, que
compreende não somente o seu conceito, mas, outrossim, a sua realização no mundo. A
sua ideia engloba ambos os lados. O direito não é só o que se compreende acerca dele, o
que, significando aqui o todo da investigação, mantê-lo-ia no âmbito puramente
subjetivo, mas, também, o modo como ele se efetiva, se realiza, o que lhe confere uma
objetividade que lhe é única no sistema hegeliano. Essa noção de bilateralidade presente
na ideia do direito mostra como ele se distancia de um caráter meramente conceitual,
que seria, no caso, de acordo com ele, incompleto.
Ao falar de direito, porém, deve-se levar em conta que se tem como alvo
principal a vontade. Segundo Hegel,
De acordo com Hegel, “o espírito tem para nós a natureza por sua pressuposição, da qual ele é a
verdade[...]. Nessa verdade, a natureza desvaneceu, e o espírito se produziu como ideia que chegou ao seu
ser-para-si, cujo objeto, assim como o sujeito, é o conceito. Essa identidade é a negatividade absoluta,
porque o conceito tem na natureza sua objetividade externa consumada, porém essa sua extrusão é
suprassumida, e o conceito tornou-se nela idêntico a si mesmo.” (HEGEL, 1995, p. 15). O espírito
pertence à natureza; é uma extensão sua. Toda obra sua é, também, obra da natureza, a qual, como
espírito, se revela a si mesma e alcança a perfeita identidade consigo, tornando-se sujeito e objeto,
unicamente ideia. O espírito é a negatividade da natureza, a qual, num primeiro momento, permanece na
pura objetividade irreflexiva. Essa negatividade é o segundo momento, o momento do seu
reconhecimento.
2
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o terreno do direito é, em geral, o espiritual, e seu lugar e seu ponto de
partida mais precisos são a vontade, que é livre, de modo que a
liberdade constitui sua substância e sua determinação e que o sistema
do direito é o reino da liberdade efetivada, o mundo do espírito
produzido a partir dele mesmo, enquanto uma segunda natureza.
(HEGEL, 2010, p. 56)
Todo o desenvolvimento do direito diz respeito à vontade que se efetiva e se
reconhece como livre. Na obra aqui analisada, o objetivo do filósofo é a exposição de
todos os momentos em que o direito aparece. Ele não visa a um exame de algo que
permanece oculto no que concerne à realidade, algo que não se revele numa suposta
aparência do real, como se a vontade tivesse de ser reencontrada atrás de todo o aparato
de um direito sem fundamento em si mesmo.
O que Hegel busca é a exposição do direito em seus vários momentos, em suas
várias formas de determinar-se, pois o que é feito no direito concerne à vontade. O
direito é resultado da expressão da vontade. Hegel fala, nessa ordem, de seu nível
abstrato, a esfera primeira do direito, da moralidade, em que está contida a concepção
de Bem e Mal e na qual o sujeito é compreendido como inteiramente outro frente às
determinações do mundo, e da eticidade, momento em que aparece o Estado, que,
segundo ele, é a expressão máxima da liberdade. Discorrer sobre o direito é
compreender como a vontade se coloca no mundo objetivamente. O ponto inicial é,
pois,a vontade, que origina todas as fases nas quais está manifesto o direito.
2. A dialética da vontade
No sistema hegeliano, a dialética é a lógica do real. A negação faz a passagem
de um momento a outro. Por meio de suprassunções o real se constrói. O espírito
objetivo não é exceção, já que a dialética também opera nele. A vontade passa de um
momento a outro e dá origem às várias determinações do direito, desde a sua mais pura
abstração até o reconhecimento da liberdade absoluta no âmbito do Estado. Para
compreender essa passagem, Konder, em sua obra intitulada Hegel, a razão quase
enlouquecida, escreve que
não podemos deixar de recorrer a um conceito essencial da filosofia
hegeliana: o conceito de superação dialética ("Aufhebung").
"Aufheben — o verbo — significa, na acepção que lhe dá o filósofo,
ao mesmo tempo negar algo, aproveitar o conteúdo válido daquilo que
está sendo negado e elevá-lo a um nível superior. Essa tríplice
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operação nos permite articular no desenvolvimento (no "tornar-se") a
continuidade e a ruptura, a inovação qualitativa radical e a
persistência. (KONDER, 1991, p. 63)3
Assim como no direito mesmo, a vontade, passando de um momento a outro,
não nega em absoluto o precedente, pois traz consigo aquilo que superou. É importante
notar que a concepção hegeliana do que seja o direito torna-se abrangente, porquanto
não se restringe ao direito positivo, às leis de uma constituição, mas alcança todas as
esferas do agir humano, incluindo todos os elementos que compõem a vida em comum,
como, por exemplo, os costumes4. Todavia, na introdução às Linhas fundamentais da
filosofia do direito, mais precisamente entre os parágrafos 4 e 15, os quais serão aqui
analisados, Hegel ainda não se refere às determinações objetivas mesmas do direito, isto
é, ele ainda não trata de modo explícito da eticidade, da moralidade ou do direito
abstrato. A vontade é analisada aí apenas em si, no seu movimento até a compreensão
de si. Nesse trecho, ele se detém na vontade em seu desvelamento, passando de uma
determinação a outra ainda no nível do Eu, ou seja, dela mesma, e se contenta tãosomente em tornar claro os seus movimentos e a sua relação com a objetividade, com o
seu tornar-se outro. De qualquer modo, nota-se já nesse momento a correspondência das
fases da vontade com as fases do direito.
O filósofo fala de Eu, espírito, impulsos, desejos, mas tudo isso está contido na
vontade, faz parte de seu conceito. De parágrafo em parágrafo, Hegel segue
desenvolvendo o seu movimento e se ocupa, também, do arbítrio. A idéia do arbítrio e a
questão acerca da liberdade estão muito próximas, chocam-se muitas vezes. O que
Hegel propõe, porém, é a coexistência da vontade livre com um arbítrio que é
contradição, isto é, que engloba o ser livre da vontade com uma determinidade, sem a
qual a vontade seria meramente abstrata. Ora, uma liberdade que não pudesse
Alguns autores traduzem o termo “Aufhebung” com um neologismo criado especialmente para o seu uso
na tradução dos textos hegelianos, o qual aparece na tradução aqui usada das Linhas fundamentais da
filosofia do direito: “suprassunção”, que transmitiria não somente a ideia de superação, mas, além dela, a
ideia de que o que foi superado foi assumido pelo momento seguinte como parte sua. O termo
“superação”, com o qual Konder traduz “Aufhebung”, embora não se distancie muito do significado
contido pelo neologismo, parece não transmitir a ideia da preservação do que foi superado, a qual é muito
importante na compreensão do processo dialético hegeliano.
4
O termo “costume”, (“Sitte”) que, no alemão, dá origem a “Sittlichkeit” (termo usado por Hegel que é
traduzido por “eticidade”, um dos momentos do direito para o filósofo), é um indício do caráter
abrangente do direito na filosofia hegeliana. As leis têm, sim, seu espaço nele, mas não são a sua
expressão maior. São apenas uma das suas determinações. Realmente, são elas uma das suas objetivações,
essenciais a uma nação e à formação da ideia do Estado, mas não propriamente a essência mesma do
direito.
3
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determinar-se não seria propriamente liberdade, pois sequer se daria o direito de
escolha. A liberdade hegeliana aparece também no momento da determinação.
O filósofo alemão toma a vontade como livre em todos os seus momentos,
mesmo que nem sempre ela se reconheça como tal. Inwood faz uma breve exposição
sobre os termos “vontade” (“Wille”) e “arbítrio” (“Willkür”) em seu Dicionário Hegel,
conforme o filósofo os desenvolve na obra analisada. Seus apontamentos explicitam a
visão hegeliana da vontade como absolutamente livre. O autor escreve que “o Wille é
essencialmente livre, mas tem três fases principais” (INWOOD, 1997, p. 326). Com
isso, não se quer dizer que a liberdade é maior ou menor em uma das fases.
Para Hegel, a vontade não passa de um momento de menor liberdade a outro,
como se o direito fosse o resultado de uma batalha da vontade contra a servidão e o seu
alvo fosse a posse de sua própria liberdade, na qual ela, enfim, se completaria. É-se livre
tanto no crime quanto no cumprimento da lei. A vontade é absolutamente livre e a
demonstração da sua liberdade só pode aparecer na exposição de todo o seu
desenvolvimento, atendo-se a todos os seus momentos. Nas palavras de Hegel, “que a
vontade seja livre e o que sejam vontade e liberdade – a dedução disso [...] apenas pode
ter lugar no contexto do todo” (HEGEL, 2010, p.56). Apenas a demonstração do pôr-se
da vontade no mundo revelará o seu ser livre.
3. A vontade em seus momentos5
O método dialético é essencial no tratamento da vontade pelo filósofo alemão.
Para ele, a vontade é plural. Em suas palavras, num primeiro momento, ela apresenta
o elemento da pura indeterminidade ou da pura reflexão do eu dentro
de si, no qual estão dissolvidos toda delimitação, todo conteúdo dado
e determinado, imediatamente ali presente pela natureza, pelos
carecimentos, pelos desejos e pelos impulsos, ou então seja pelo que
for; [ela contém] a infinitudeindelimitada da abstração absoluta ou da
universalidade, o puro pensar de seu si mesmo. (HEGEL, 2010, p. 57)
5
Acerca da ordem dos momentos da vontade, é importante deixar claro que não há propriamente um
início tampouco um fim. Hegel estabelece uma ordem com o único objetivo de expor a vontade tal como
ela se dá em seus momentos, de uma maneira própria ao entendimento, isto é, fixando as partes, como se
fossem imóveis. A dialética, porém, introduz na análise da vontade o movimento de uma das partes à
outra, a identificação da vontade universal e da vontade particular. Não há propriamente um começo. Ao
reconhecer-se enquanto universal, a vontade também percebe o seu elemento particular. Hegel ilustra bem
esse último ponto na seguinte passagem: “Como o particular em geral está contido no universal, assim
também o segundo momento já está contido no primeiro e é somente um pôr o que o primeiro já é em si”
(HEGEL, 2010, p. 59).
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Tal é o momento da subjetividade da vontade. Como dito, embora não abranja
toda a vontade, o âmbito subjetivo faz parte de seu conceito. Mas, enquanto ainda não
está no mundo, não se coloca nele, ela, nesse primeiro momento, é indeterminada e
permanece em sua universalidade, estranha a qualquer conteúdo externo a si. Para ele,
essa abstração a que se destina a vontade também é uma maneira pela qual ela se
determina. Ela se identifica com o pensamento na abstração de qualquer conteúdo dado
e se determina em si mesma, isolada, portanto, de um conteúdo externo. É importante
levar em conta, entretanto, que não há absoluta identidade entre pensamento e vontade.
Trata-se tão somente de um dos seus momentos.
As manifestações desse momento da vontade revelam, segundo o filósofo
alemão, uma liberdade negativa, que se abstém do conteúdo do mundo. Como vontade,
é livre, mas sua liberdade significa abstenção. Segundo Inwood, que se refere a ela
como vontade universal, “seu tipo de liberdade é totalmente negativo e só se apresenta,
numa forma pura, em tais iniciativas insatisfatórias como o suicídio, o misticismo
oriental e a destrutividade do terror revolucionário francês” (INWOOD, 1997, p. 326).
Hegel enfatiza o elemento da destrutividade com que tal vontade se afirma.
Permanecendo em si mesma, universal, nega qualquer determinação particular, pois “o
que ela opina querer somente pode ser, por si, uma representação abstrata e a efetivação
dessa apenas pode ser a fúria da destruição” (HEGEL, 2010, p. 58). O resultado de tal
vontade no mundo é o aniquilamento de toda ordem particular:
é somente quando destrói algo que essa vontade negativa tem o
sentido de seu ser-aí; ela tem mesmo a opinião de que quer uma
situação positiva, por exemplo, a situação de igualdade universal ou
de vida religiosa universal, mas, de fato, não quer a efetividade
positiva do mesmo, pois ocasionaria logo uma ordem qualquer, uma
determinação particular, tanto da instituição como dos indivíduos.
(HEGEL, 2010, p. 58)
A vontade é, pois, aqui, puro pensar de si como abstração. Envolta em si mesma,
não vai ao mundo. Ela permanece reclusa e se afirma como pura abstração. Hegel
refere-se mesmo à liberdade negativa da vontade universal como liberdade do
entendimento, o qual se abstém da efetividade e se isola em si mesmo, alheio ao mundo.
Como reação a qualquer manifestação determinada no âmbito da objetividade, a
vontade universal torna-se destrutiva, já que o universal que ela é nega absolutamente a
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particularidade que tende a objetivá-lo. Ocorre, aqui, um choque entre universal e
particular.
Mas, não sendo apenas pura subjetividade, a vontade contém em si um outro
elemento, oposto a esse primeiro. A vontade não pode permanecer indeterminada. A
indeterminação de si mesma só pode levar à sua continuidade enquanto coisa
indeterminada, que não engendra reações no mundo, que não se realiza na efetividade.
Esse segundo momento nega o seu caráter indefinido e sua abstração, irrompendo
emparticularidade, determinação de si mesma no mundo. Hegel escreve acerca desse
segundo elemento da vontade que é
a passagem da indeterminidade desprovida de diferença à
diferenciação, ao determinar e ao pôr de uma determinidade enquanto
um conteúdo e objeto. – Esse conteúdo pode tanto ser dado pela
natureza ou ser produzido a partir do conceito do espírito. Mediante
esse pôr de seu si mesmo enquanto um determinado, o eu entra no seraí em geral; – [é] o momento absoluto da finitude ou da
particularização do eu. (HEGEL, 2010, p. 58)
O filosofo alemão usa o termo Übergehen, que, na versão portuguesa, é
traduzido como “passagem”.6 O eu (Ich) passa do momento da pura abstração, em que
ele permanece indeterminado, infinito, para o da determinação de si mesmo no mundo,
finitude absoluta. Ele se dá, portanto, um objeto, um conteúdo por meio do qual se
determina no mundo como ser-aí. De si mesmo, abstraído de qualquer conteúdo que
não ele mesmo, o eu passa à afirmação de si num conteúdo que determina a sua
vontade, a qual, então, torna-se finita e é identificada com um conteúdo dado. A vontade
não é mais apenas em si, mas diferenciada de si num conteúdo alheio, posta na
imediatez dos impulsos, finitos, enquanto essa imediatez mesma.
Inwood se refere à vontade nessa fase como particular. Acerca desse seu
momento, ele escreve que “reflete-se em seus desejos e impulsos para ver por quais
deles se optará a fim de determinar-se por um certo curso de ação” (INWOOD, 1997, p.
“...das Übergehen aus unterschiedsloser Unbestimmtheit zur Unterscheidung, Bestimmen und Setzen
einer Bestimmtheit als eines Inhalts und Gegenstands. – Dieser Inhalt sei nun weiter als durch die Natur
gegeben oder aus dem Begriffe des Geistes erzeugt. Durch dies Setzen seiner selbst als eines bestimmten
tritt Ich in das Dasein überhaupt; – das absolute Moment der Endlichkeit oder Besonderung des Ich.”
(HEGEL, 1970, p. 52)
6
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326). A vontade se determina por meio dos instintos (Triebe) e dos desejos (Begierde).
Por meio deles ela se torna finita, diferenciando-se de si mesma7.
Tanto o elemento da universalidade quanto o da particularidade fazem parte da
vontade e surgem em seu desenvolvimento, retendo em si o seu oposto. A
universalidade da vontade se reconhece como tal apenas na sua diferenciação em
relação à sua particularização. Uma vontade que permanecesse abstrata sequer seria
capaz de reconhecer-se como tal, pois não encontraria uma diferenciação que a tornasse
evidente para si. A negatividade do particular torna visível o alcance do universal, assim
como o universal torna o particular reconhecível na diferença que os opõe entre si. Um
dá origem ao outro.8
Desse modo, a vontade torna-se, pois,
a unidade desses dois elementos; – a particularidade refletida dentro
de si e por isso reconduzida à universalidade – singularidade; a
autodeterminação do eu em pôr-se em um como o negativo de si
mesmo, a saber, como determinado, delimitado, e permanecer junto a
si, ou seja, em sua identidade consigo e sua universalidade e na
determinação de não fundir-se senão consigo mesmo. (HEGEL, 2010,
p. 59)
Enquanto universal, ela se reconhece como si mesma e permanece em si. Mas,
ao sair de si, arranja-se no Outro, na determinidade que nega a sua universalidade e,
negando-a, afirma-se, recolocando novamente o universal como parte sua. Mas esse
movimento da vontade de colocar-se como o Outro também é ato seu. A alteridade de si
mesma realizada como conteúdo é posta pela própria vontade que torna-se para si
enquanto se determina e se vê como determinação finita oposta à sua infinitude
enquanto universal, autoconsciência. Ela se volta para si mesma e se quer, enfim, como
finitude, pois agora se sabe nela como universal. No mesmo parágrafo, Hegel afirma
que, em relação a essa determinidade, a vontade, o eu
a sabe como sua e da ideia, como uma mera possibilidade pela qual
não está ligado, porém nela ele apenas é, porque nela se põe. – Tal é a
liberdade da vontade, que constitui seu conceito ou sua
7
Ao discorrer sobre a vontade em sua passagem à particularidade, Inwood se volta para o tema da
felicidade e escreve que, “mesmo que a vontade almeje não a satisfação de um desejo corrente, mas sua
felicidade a longo prazo, o conteúdo de sua felicidade ainda depende do conteúdo de determinados
desejos que lhe são simplesmente dados” (INWOOD, 1997, p. 326). Nesse ponto, o comentador parece
referir-se àquilo que Hegel defende quando afirma que o conteúdo pode tanto ser dado pela natureza
quanto pelo espírito. A felicidade, mesmo que seja produção do espírito, não foge à determinação das
coisas finitas, dos conteúdos dados. Os meios pelos quais a vontade se realiza, partindo do espírito ou da
natureza, serão os mesmos e o seu destino será a sua identificação com o finito.
8
Ver nota 3.
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Vontade e Arbítrio na Filosofia do Direito de G. W. F. Hegel
substancialidade, seu peso, assim como o peso constitui a
substancialidade do corpo. (HEGEL, 2010, p. 60)
Eis que a vontade, nesse momento, reconhece-se como livre, porquanto revela-se
para si como é em si. Já era livre antes mesmo de perceber-se, mas o era em si.
Reconhecendo-se na finitude dos impulsos e dos desejos pelos quais se realiza, a
vontade se percebe como universal e vê nas várias determinações pelas quais pode
chegar à efetividade possibilidades nas quais pode colocar-se ou não.
Inwood refere-se a esse momento da vontade, no qual ele a denomina individual,
como uma combinação das duas fases anteriores. A vontade enquanto particular, isto é,
enquanto é determinada, reflete, afirmando-se, a vontade universal, que toma
conhecimento de sua liberdade. Uma necessita da outra para afirmar-se. O universal se
afirma por meio do particular, seu outro, e vice-versa. O autor escreve que, “como a
vontade tem-se agora a si mesma como seu objeto e é totalmente auto-suficiente, ela é
inteiramente livre” (INWOOD, 1997, p. 326).
Aqui, é importante voltar à supracitada afirmação de Konder sobre a dialética e a
função da Aufhebung (suprassunção) na filosofia hegeliana. Nesse terceiro momento, a
vontade universal e a vontade particular não se perdem. Não são descartadas. O
conjunto constitui a manutenção das partes. O que ocorre é que a vontade percebe a sua
trajetória até a apreensão de si mesma. Se, como o próprio Hegel afirma, a liberdade é a
substancialidade da vontade assim como o peso o é do corpo, percebendo-se, ela
reconhece o seu ser livre. Ela mantém os aspectos universal e particular de si mesma,
mas tem-se, sobretudo, como autônoma. A vontade já era livre nas suas próprias
determinações, em sua absoluta imediatez, mas a sua liberdade não se lhe revelava, pois
era livre tão somente em si; era vontade natural, tal como o próprio filósofo se refere a
ela (HEGEL, 2010, p. 61-62).
O eu se reconhece em sua autonomia, irredutível a qualquer finitude, mas,
também, capaz de determinar-se, colocar-se, consciente de sua liberdade, num conteúdo
no qual se vê. O particular reflete o universal revelado a si.
4. O arbítrio na temática da vontade
A questão do arbítrio se insere nesse movimento conflituoso da vontade. De
acordo com Hegel,
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Vontade e Arbítrio na Filosofia do Direito de G. W. F. Hegel
é na vontade que começa a finitude própria da inteligência e é
somente pelo fato de que a vontade se eleva de novo ao pensamento e
dá a seus fins a universalidade imanente que ela suprassume a
diferença da forma e do conteúdo e se faz vontade objetiva, infinita.
(HEGEL, 2010, p. 64)
Frente à finitude das diversas determinações em que se põe, a vontade, enquanto
eu infinito, reconhece-se como universal que pode ou não colocar-se naquele ou nesse
conteúdo. Nesse momento, surge a transposição do subjetivo, infinito, no objetivo,
finito. Mas, para chegar a esse auto-reconhecimento, à sua concretização enquanto
vontade livre realizada, em si e para si, a vontade deve objetivar-se, escolher entre os
conteúdos do mundo. A escolha representa o arbítrio da vontade que transpõe os limites
do subjetivo enquanto autodeterminação num conteúdo particular.
O arbítrio é, pois, o exato momento da contradição entre a vontade subjetiva,
puramente universal, e a sua determinação, objetivação, como finitude, nos impulsos e
nos desejos. Justamente por se diferenciarem, a vontade tem-se a si mesma por
completo e encontra em suas várias determinações, diferentes dela, possibilidades pelas
quais ela se realiza. Assim escreve Hegel acerca do tema: “a liberdade da vontade é
arbítrio – no qual ambos estão contidos, tanto a livre reflexão que abstrai de tudo como
a dependência em relação ao conteúdo e ao material dado interior ou exteriormente”
(HEGEL, 2010, p. 64). Os dois elementos da vontade, o universal e o particular,
apresentam-se em sua perfeita oposição e chegam ao arbítrio como o momento da
contradição, que tensiona e resulta na vontade como unidade de ambos, a vontade
infinita em si e para si. O universal se preenche com o conteúdo, particular, que ganha
espírito por meio da forma pela qual se molda. Porque há contradição, há unidade.
Ambos, o universal e o particular, afirmam-se enquanto se negam.
Ao discorrer sobre o arbítrio em particular, Hegel chama a atenção para uma
compreensão inadequada da questão. Para o filósofo, arbítrio não significa liberdade,
realizada, em seu sentido pleno. Perguntar se o arbítrio é livre seria errôneo, segundo
Hegel. Isso se pode compreender se se levar em consideração a própria definição do que
seja o arbítrio para o filósofo. O arbítrio, como já foi dito, é a contradição entre a
vontade universal e a vontade enquanto determinação em impulsos e desejos: ele é
apenas um momento da vontade. A vontade que se reconhece em si mesma sem relação
com algum conteúdo diverso de si mesma representa tão somente a
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Vontade e Arbítrio na Filosofia do Direito de G. W. F. Hegel
certeza abstrata que a vontade tem de sua liberdade, mas ela ainda
não é a verdade da mesma [liberdade], porque ela ainda não tem a si
mesma por conteúdo e fim, por isso o aspecto subjetivo é ainda outro
que o aspecto objetivo; por isso o conteúdo dessa autodeterminação
permanece, também, pura e simplesmente, algo apenas finito. O
arbítrio, em vez de ser a vontade em sua verdade, é antes a vontade
enquanto contradição. (HEGEL, 2010, p. 65)
A vontade, permanecendo apenas nessa certeza, em si, é pura abstração. Ela
deve fazer-se como fim, determinar-se. Apenas assim a vontade se torna a verdade de si
mesma, pois alcança a realização do seu processo. O saber abstrato de sua liberdade não
lhe basta. A vontade se reconhece. Porém, como não é apenas abstração, mas, também,
efetividade, ela sai de si mesma e se coloca como fim, conteúdo objetivo.
A pergunta pelo livre arbítrio seria uma ilusão não porque não há liberdade no
que diz respeito à vontade, mas, sim, porque o arbítrio não diz respeito propriamente à
liberdade da vontade. A liberdade está pressuposta em todo o movimento da vontade,
seja ela universal, particular ou individual. O arbítrio não deixa de ser a vontade, mas é
“a vontade enquanto contradição” (Idem., p. 65). Num comentário ao termo, Inwood
afirma que o arbítrio parece não distinguir-se claramente dela, pois é “o Wille na medida
em que escolhe entre alternativas” (INWOOD, 1997, p. 325).
De qualquer modo, Hegel critica pensadores de seu tempo ligados ao
pensamento do filósofo Christian Wolff por cometerem um equívoco acerca dessa
questão. Sobre o tema, Hegel escreve que, “na controvérsia, travada principalmente no
tempo da metafísica de Wolf (sic), se a vontade seria efetivamente livre ou se o saber de
sua liberdade seria apenas uma ilusão[;] era o arbítrio que se tinha diante dos olhos”
(HEGEL, 2010, p. 65). Ao questionarem se a vontade seria realmente livre ou se essa
afirmação seria uma ilusão, o que buscavam era o arbítrio. Ora, para Hegel, a vontade é,
antes de qualquer coisa, livre. Seu processo apenas explicita a sua liberdade. Se ela se
sabe livre, ela o é e se reconhece assim. Se não o sabe, não significa que não seja, mas
apenas que não se sabe livre.
A pergunta pela liberdade deveria, pois, ter como alvo a vontade em todo o seu
percurso. Ao reformular a questão, Hegel responde que o arbítrio não deve ser tomado
como o elemento que garante ou revela a liberdade no âmbito da vontade, como muitas
vezes se pensou no debate acerca do livre arbítrio. Arbítrio e liberdade não são a mesma
coisa. O que fica evidente na proposta hegeliana é que ele não é o principal problema na
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questão envolvendo a liberdade, pois o arbítrio ainda não é “a vontade em sua verdade”
(HEGEL, 2010, p. 65). Restringir a liberdade ao arbítrio tornaria a questão incompleta.
Por sua vez, a pergunta pela liberdade da vontade, sobre se ela é ou não livre, de
acordo com Hegel, só pode ser respondida afirmativamente, pois, mencionando-se uma,
chega-se à outra. São termos que se correspondem. O arbítrio, que surge no
desenvolvimento da vontade, é uma expressão ligada à determinidade que ela abrange.
Mas essa determinidade, efetividade pura, não afasta a vontade de sua liberdade. Se o
arbítrio enquanto liberdade deve ser considerado uma ilusão, ou melhor, um equívoco
nessa discussão, a vontade enquanto liberdade é um pressuposto que se desvela em todo
o sistema do direito, pois ela mesma se coloca no conteúdo do mundo. A sua
determinação é ato puramente seu. Ela é, portanto, inteiramente livre.
5. Conclusão
O direito, âmbito de expressão em que a vontade se insere como ponto de partida
e cuja principal marca é a objetividade do espírito, revela-se em seus momentos, direito
abstrato, moralidade e eticidade, enquanto objetivação dessa mesma vontade. É próprio
do espírito enquanto vontade sair de si mesmo e reencontrar-se consigo na alteridade
que o toma enquanto determinação, finitude. Nisso repousa o caráter de objetividade do
processo que dá origem ao direito. Enquanto o seu âmbito subjetivo não se realiza como
tal na alteridade e permanece em si, sem transpor as próprias barreiras, a objetividade do
direito revela o espírito em sua máxima liberdade, pois, nele, o espírito se reconhece em
sua absoluta autonomia, livre em sua autodeterminação num conteúdo que,
inicialmente, não é ele, mas que é apropriado por ele como sendo seu.
O que se buscou aqui foi, além do arbítrio, uma análise da vontade, tida por
Hegel como o princípio fundante do direito. A vontade, conforme a concebe o filósofo,
é múltipla. Hegel utiliza o método dialético para compreender o seu processo. A
vontade é considerada, inicialmente, como universalidade que permanece em sua
própria abstração. Nesse momento, ela não se reconhece como pertencente ao mundo,
pois o que lhe é dado como determinação é, diferentemente dela, que é plena
universalidade, algo particular, ao qual seu caráter universal é irredutível. Ela se
determina também, mas como indeterminação. A universalidade se apresenta como
oposição irreconciliável com a particularidade. A seguir, a vontade é pensada como
realização imediata, determinação pura. Particularização por meio da qual o eu
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enquanto vontade encontra o seu ser-aí no mundo. Os impulsos e os desejos são
determinações finitas da vontade. A vontade, aparecendo em ambos os momentos,
alcança, então, a unidade entre eles, isto é, reconhece-se como livre e capaz de
determinar um conteúdo no qual se reconhece a si mesma. O universal reflete o
particular e vice-versa. A vontade se percebe autônoma, autodeterminação de si mesma.
O arbítrio, que também foi objeto de análise aqui, surge na temática da vontade
enquanto contradição que dá origem à vontade em si e para si, infinita. Sendo, desde
sempre, livre, a vontade, por fim, reconhece-se como tal. A consciência de sua liberdade
é a consciência sua como capaz de colocar-se ou não nos conteúdos do mundo,
tornando-se soberana na escolha das determinações de si mesma. O particular é, assim,
a determinação por meio da qual a vontade flui e se identifica consigo mesma. Hegel
concebe o arbítrio como esse momento de contradição que surge na transposição do
subjetivo no objetivo, por meio da qual a vontade se descobre no Outro enquanto si
mesma e quer a si mesma. O arbítrio, porém, não representa propriamente a liberdade
da vontade. O arbítrio é apenas um momento da vontade livre.
Referências
BOURGEOIS, B. Hegel: Os atos do espírito.São Leopoldo: Unisinos, 2004. Tradução
de: Paulo Neves.
______. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio: A Filosofia do Espírito.
São Paulo: Loyola, 1995. Tradução de: Paulo Meneses
HEGEL, G. W. F. Grundlinien der Philosophie des Rechts: Naturrecht und
Staatswissenschaft im Grundrisse.Red. Eva Moldenhauer und Karl Markus
Michel.Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970.
______. Linhas fundamentais da filosofia do direito: Direito natural e ciência do Estado
em compêndio. 2. ed.São Leopoldo: Unisinos, 2010. Tradução de: Paulo Meneses et al.
INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
Tradução de: Álvaro Cabral.
KONDER, L. Hegel: A razão quase enlouquecida. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
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