glaucia silva

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31.º Encontro Anual da ANPOCS
Seminário Temático 15 – Economia-política da cultura
Painel
Título do trabalho:
“Maracatu Atômico” – síntese da transformação contemporânea
expressa no “Mangue”
Glaucia Peres da Silva
Mestranda do Depto de Sociologia/USP
Setembro/2007
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A gravação da canção “Maracatu Atômico”, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, pelo
grupo Chico Science e Nação Zumbi em seu segundo disco, “Afrociberdelia” (1996), lançado
pelo selo Chaos ligado a Sony Music, é um momento chave para se compreender as articulações
entre o que ficou conhecido como “Movimento Mangue” e a indústria fonográfica, cuja análise
possibilita discutir as transformações do mundo contemporâneo nos termos da música popular.
Cabe ressaltar que essa canção não fazia parte do repertório da banda e só foi gravada após um
acordo com a gravadora, visto por alguns membros do grupo como uma exigência. Para entender
as razões desse fato, é preciso conhecer um pouco melhor como se iniciou essa relação.
O “Mangue” foi criado em Recife, cidade que contou com a experiência de criação de
uma gravadora local ainda nos anos 70, chamada Rozenblit, que durou alguns anos, e também de
um selo independente, comandado pelo músico Lula Côrtes em parceria com sua esposa, que
tentou empreender projetos alternativos na cidade. Nesse sentido, a idéia de desenvolver o
“Mangue” como um movimento cultural que permitisse a profissionalização de várias bandas
locais, mesmo que em um mercado dito “independente” ou “alternativo”, não era estranha a seus
articuladores. Considerando também que os três referentes identitários desses articuladores eram
os movimentos punk e hip-hop, além do movimento negro baiano expresso no samba-reggae, a
aproximação do “Mangue” à idéia de uma atuação em um mercado “independente” se torna ainda
mais clara.
O primeiro empreendimento do grupo nessa direção foi a tentativa de lançamento de uma
coletânea chamada “Caranguejos com cérebro” pelo selo “Rock Express”, ligado a uma loja de
discos homônima administrada por Paulo André (futuro produtor do grupo Chico Science e
Nação Zumbi), no início dos anos 90, que reuniria trabalhos das bandas mundo livre s/a
(formada em 1984), Loustal (formada em 1989), Bloco Afro Lamento Negro (formado no final
dos anos 80) e Chico Science e Nação Zumbi (recém-formada a partir de experimentos musicais
conjuntos das bandas Loustal e Bloco Afro Lamento Negro). Embora a coletânea não tenha sido
lançada por problemas administrativos do selo, que nunca se firmou no mercado fonográfico, as
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canções gravadas foram reunidas em uma fita demo, enviada para a imprensa e para as principais
gravadoras atuantes no Brasil, junto com um press-release.
Nessa época, os articuladores do “Mangue” organizavam festas na cidade do Recife, que
freqüentemente contavam com divulgação na imprensa local. Ao enviarem o press-release e a fita
demo da coletânea “Caranguejos com cérebro” à imprensa local, esta transformou o texto em
manifesto. Isso ajudou a torná-los conhecidos, porém, ainda não tinham tido efetivamente seus
trabalhos divulgados o suficiente para se profissionalizarem no mercado fonográfico. Foi, então,
que criaram uma espécie de “book do Mangue” em 1992, com recortes de jornais, cartazes e
panfletos das festas que organizavam, e uma segunda versão do press-release já transformado em
manifesto. Com este novo impacto na imprensa, em janeiro de 1993, a MTV levou ao ar um
programa que tinha a intenção de “mapear” a música que estava sendo feita no Brasil, e
entrevistou Chico Science (do grupo Chico Science e Nação Zumbi) e Fred 04 (do grupo mundo
livre s/a), divulgando o “Mangue” em rede nacional. Dois meses depois, José Teles, jornalista
pernambucano, escreveu uma matéria para a revista Bizz, sob o título “Da lama para a fama Recife inventa o mangue-beat”, em que afirma que o grupo formado pelas bandas “Mangue” “já
apareceu na MTV e agora ameaça sair de vez da lama com seu som, sendo ouvido Brasil afora
através da gravadora independente Tinitus. Pena Schmidt quer o pessoal do mangue na sua
próxima coletânea”.1 Um mês após essa divulgação, aconteceu em Recife a primeira edição do
festival “Abril Pro Rock”, organizado por Paulo André, em que as bandas Chico Science e Nação
Zumbi e mundo livre s/a se apresentaram. Após o festival, a equipe da filial da gravadora Sony
em Recife enviou uma fita demo das bandas para a matriz no Rio de Janeiro, que se interessou
pelo material e foi assistir uma apresentação dos grupos em Recife. Depois, teriam dito que
gostariam de poder vê-los tocando no sul do país. Foi quando se organizaram para fazer
apresentações em São Paulo, onde participaram também do programa “Fanzine”, da TV Cultura, e
foram matéria do jornal Folha de São Paulo, e Belo Horizonte, o que rendeu a contratação do
grupo Chico Science e Nação Zumbi pela gravadora. Alguns meses depois, o grupo mundo livre
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Teles, José. Do frevo ao manguebeat. SP: Ed. 34, 2000. p. 288.
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s/a teria sido contratado pelo selo “Banguela”, ligado a Warner. Assim, percebe-se a importância
da intermediação da mídia como acesso ao mercado fonográfico.
Entendo que a divulgação na mídia local ajudou a formatar o “Mangue” como um produto
comercial ao transformar o press-release em manifesto, e permitiu que as mídias especializadas
entrassem em contato com esse movimento cultural. Como esses veículos segmentados de
comunicação servem como um parâmetro para os mercados específicos, ter o trabalho divulgado
nesses veículos significa, para as bandas, existir no mercado fonográfico. Se as mídias local e
segmentada mostraram interesse pelo novo produto musical, restava à gravadora testar seu
potencial comercial nas mídias nacionais não segmentadas, o que os forçou a ir a São Paulo e
Belo Horizonte. Somente após essa aceitação da mídia em três diferentes âmbitos é que as bandas
foram contratadas. Cabe aqui chamar a atenção para o que me parece ser uma mudança na atuação
da mídia. A partir dos anos 90, parece que a segmentação da mídia forma uma espécie de
“escada” que permite, por um lado, testar a abrangência de um produto musical, e por outro,
mostrar um caminho possível de acesso ao mercado fonográfico.
A contratação das bandas “Mangue” por grandes gravadoras foi parte de uma “renovação”
do casting das gravadoras ou da ampliação do mercado para novas bandas pois, no início dos anos
90, outros novos artistas brasileiros que tocavam pop foram contratados. Por exemplo, a
gravadora Sony, por meio do selo Chaos, contratou os grupos Skank (MG), Gabriel, o Pensador
(RJ), Chico Science e Nação Zumbi (PE), e Jorge Cabeleira e o dia em que seremos todos
inúteis (PE), e o selo Banguela, ligado a Warner, contratou os grupos Raimundos (DF), e mundo
livre s/a (PE).
Com relação a esse cenário, é possível pensar que o tipo de música apresentado pelas
bandas “Mangue” não era exatamente exclusivo, entendendo que outras bandas recém-contratadas
pelas gravadoras também apresentavam uma música que podemos chamar de rock com sotaque
nordestino, caso dos grupos Raimundos, que toca “forrócore” (forró com hardcore), e Jorge
Cabeleira e o dia em que seremos todos inúteis, cujo primeiro sucesso foi a canção “Carolina
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(pout-pourri)”, que incluía trechos da canção “Xote das Meninas” (1953), de Luiz Gonzaga. Desta
perspectiva, podemos pensar que o “Mangue” como movimento cultural era menos importante do
que o tipo de música que as bandas “Mangue” faziam, que estava em sintonia com o que as
gravadoras procuravam.
Após a contratação das bandas e lançamento dos primeiros discos em 1994, os resultados
em vendas foram bem desiguais quando se compara o desempenho das bandas “Mangue” e as
outras contratadas na mesma época, citadas acima. Embora eu não tenha ainda os números de
vendas de cada disco, depoimentos das duas bandas afirmam que as expectativas das gravadoras
foram frustradas. Apesar do grupo Chico Science e Nação Zumbi ter participado de diversos
programas da mídia nacional não segmentada, depoimentos do produtor Paulo André, que
também passou a produzir a banda após sua contratação pela gravadora, afirmam que eles não
conseguiram tocar nas rádios. Diferente das outras novas bandas daquela época, que tinham
músicas mais facilmente identificadas ao rock ou ao pop, o que permitiu uma rápida aceitação por
parte das rádios segmentadas, as bandas “Mangue” eram tidas como “muito regionais” para as
rádios rock, e “muito rock” para as rádios de música regional. Nesse sentido, as bandas não
conseguiram vender seus discos localmente, pois não havia nenhum outro meio de divulgação de
suas músicas a não ser as notícias nos jornais locais, e também não venderam em outros lugares
do país, mesmo contando com uma canção na trilha sonora de uma novela da Rede Globo. Os
discos tinham sido distribuídos para as lojas e devolvidos para as gravadoras, e o caminho
percorrido pelos discos não seguiu a trilha aberta pela imprensa, o que parece ter sido o oposto do
acontecido com os outros grupos recém-contratados.
Se este não foi o caminho seguido pelo “Mangue”, como esperado, de que maneira as
bandas “Mangue” conseguiram lançar mais discos e permanecer ativas no mercado fonográfico?
Entendo que esse resultado foi conseguido por duas razões. A primeira se refere à forma de
trabalho entre a banda e a gravadora.. Se a década de 90 foi marcada pela dinamização do
mercado brasileiro de discos, em que se deu a fragmentação da produção na indústria do disco e a
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autonomização da esfera da produção artística, isso se nota no fato da banda Chico Science e
Nação Zumbi ser contratada da Sony mas ter Paulo André como produtor, que era responsável
pelo festival “Abril Pro Rock”, e da banda mundo livre s/a também trabalhar com um produtor
autônomo, Guti, mesmo depois de contratados pela Banguela. Assim, me parece claro que a
existência de um produtor autônomo que gozasse da liberdade de ação que eles tiveram só poderia
existir em tempos de fragmentação do processo produtivo da indústria fonográfica. No caso
específico do grupo Chico Science e Nação Zumbi, após um ano do lançamento do primeiro
disco “Da lama ao caos” (1994) e ainda com poucas vendas, Paulo André organizou a primeira
turnê internacional para a banda, que passou pelos Estados Unidos e quatro países da Europa
(Bélgica, Alemanha, Suíça e Holanda), fazendo vinte e um shows em cinqüenta e quatro dias,
incluindo uma apresentação ao lado de Gilberto Gil no Summer Stage, do Central Park (Nova
Iorque). Para esta excursão, o produtor conseguiu que o governo pagasse as passagens aéreas, e
não contou com o apoio da gravadora, que achava muito cedo a banda fazer uma turnê
internacional, uma vez que ainda não tinha conseguido conquistar o mercado nacional. Os
contatos com a produção dos festivais internacionais onde eles tocaram foram feitos diretamente
por Paulo André, que dizia trabalhar em seu quarto com um aparelho de fax, porque ele conheceu
um jornalista que trabalhava para revista “Afro-pop worldwide”, em um dos shows que a banda
fez na Bahia no final de 94, e ganhou dele o “Afro-pop worldwide listeners guide”, um guia para
amantes da chamada world music, com endereço de festivais, rádios e casas noturnas nos Estados
Unidos e Europa. Assim, segundo Paulo André, ele percebeu que o diferencial da banda em
relação às outras que haviam sido contratadas na mesma época pelas grandes gravadoras estava no
fato das bandas “Mangue” terem potencial internacional.
Assim, chegamos a segunda razão da permanência das bandas “Mangue” no mercado
fonográfico. Porque já existia um mercado formado para as músicas que se enquadravam no
rótulo “world music” é que Paulo André pode entrar em contato com festivais, rádios, gravadoras
e casas noturnas da Europa e Estados Unidos que se interessavam por esse tipo de música e tentar
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inserir a banda nesse mercado. Sem a existência da world music, não seria possível pensar em
uma turnê internacional para uma banda não consagrada no mercado interno. Devemos notar que
esse mercado para a world music não está referido a qualquer lugar, mas especificamente ao
centro do sistema mundial, ou ao Ocidente. Mas por que as bandas “Mangue” teriam potencial
internacional como world music? Para tentar sugerir uma resposta, farei uma seqüência de
hipóteses que me parecem plausíveis.
Podemos considerar que, nas últimas décadas, com o início de um período chamado por
alguns autores de pós-colonial, houve um processo migratório no sentido inverso ao que acontecia
durante o período de colonização, qual seja, da periferia para o centro. Esses grupos de migrantes
nos territórios de suas antigas metrópoles formaram comunidades “estrangeiras” que não
cessaram seus contatos com seus países de origem, o que permitiu que as novas gerações nascidas
já em terras “estrangeiras” adotassem a música de seu alegado país de origem como forma de
auto-afirmação identitária e cultural. A existência desses grupos de imigrantes nos países centrais
é encarada pelos governos desses países como um problema político e cultural para o qual eles
ainda não encontraram uma solução. Nesse sentido, a visibilidade da música do outro no mercado
local ocidental criou a necessidade de se organizar um espaço dentro da indústria cultural para
abrigar essas diferenças, sem que elas colocassem em risco as próprias culturas nacionais dos
países do centro, o que poderia aparecer como uma solução paliativa, porém necessária para
manutenção de uma certa organização social que se aproximasse do que existia durante o período
colonial. Assim, se o Ocidente formou sua identidade sempre em relação ao outro colonizado,
não-ocidental, do ponto de vista do Ocidente, a possibilidade de mistura entre este outro e o
sujeito ocidental colocaria em risco a própria identidade ocidental, que precisaria ser preservada.
Se as trocas culturais entre os grupos imigrantes e seus alegados países de origem não se dão
apenas de maneira pontual e controlável, mas contam com suportes materiais com alto poder de
difusão como as ondas de rádio, transmissões de TV via satélite, além dos discos que podem ser
tocadas em festas, etc., então, a criação de um espaço dentro da indústria cultural que restringisse
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a difusão desses produtos culturais seria uma alternativa que minimizaria os riscos para a
identidade ocidental, pois restringiria as possibilidades de mistura entre o que é e não é ocidental
ao abrigar qualquer tipo de “hibridização” sob o rótulo da world music, ao mesmo tempo em que
este enquadramento garantiria a permanência dos elementos característicos do “outro” em relação
ao ocidental, qual sejam, o exótico, não racional, primitivo, que estariam marcados na música pelo
uso de instrumentos percussivos, outras harmonias, etc.
Isto teria acontecido durante um período em que as trocas econômicas internacionais se
intensificaram, o que gerou um crescimento no mercado internacional de música, assim como em
outros mercados também, que impulsionou, por sua vez, a criação e/ou ampliação de mercados
locais, que passaram a comercializar mais artistas e mais tipos de música diferentes,
transformando suas canções em mercadorias musicais. Do ponto de vista de quem está no centro,
esse processo é entendido como um aumento na diversidade cultural, pois novos produtos são
entregues ao mercado internacional de música, e do ponto de vista de quem está na periferia,
existiria um perigo de homogeneização cultural porque as músicas teriam de se adaptar às regras
do mercado internacionalizado para poderem existir como mercadoria. Nesse sentido, não se
trataria de discutir “homogeneização cultural” ou preservação da diversidade cultural, mas apenas
de compreender que se trata da ampliação de um mercado internacional, que intensifica a troca
entre aqueles que pertencem a esse mercado.
Se a interpretação desse panorama internacional estiver correta, podemos entender que as
bandas “Mangue” foram vistas como passíveis de terem seus trabalhos enquadrados como world
music porque, do ponto de vista do centro, do Ocidente, suas músicas apresentavam uma certa
mistura do que é tido como exótico, primitivo, como a percussão do maracatu, por exemplo, com
o que é entendido como moderno, como as guitarras. Com isso, não quero afirmar que as músicas
“Mangue” são marcadas pela mistura ou fusão de ritmos, apenas indicar que esta é uma leitura
possível da música que fazem e que sem ela, não teria sido possível seu enquadramento como
world music e, portanto, as turnês internacionais para as bandas.
A
importância
desse
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enquadramento internacional como world music para as bandas “Mangue”, principalmente para o
grupo Chico Science e Nação Zumbi, está no fato de que, por possibilitar uma inserção no
mercado internacional, permitiu que a banda tivesse uma nova fonte de renda que não dependesse
exclusivamente dos mercados nacional e local.
Temos de considerar também que a busca de inserção internacional tinha um outro
interesse complementar que era o de diferenciar as bandas “Mangue” no mercado nacional. Fazer
uma rápida passagem pelo mercado internacional, no espaço da world music, conferiu uma
legitimidade às bandas “Mangue” frente às gravadoras, pois não é qualquer artista brasileiro que
consegue ter seu trabalho ouvido no centro do sistema mundial, mesmo que seja sob o rótulo de
world music, o que reforçou o discurso “Mangue” de distinção no mercado nacional. Embora esse
rótulo tenha permitido um acesso facilitado dos artistas brasileiros ao mercado internacional,
ainda assim, era preciso fazer uma música que pudesse ser vista como brasileira antes de ser pop
ou rock, ou ainda eletrônica, o que não era o caso das outras bandas recém contratadas pelas
gravadoras. Se o apoio da mídia local e nacional não foi suficiente para aumentar as vendas dos
discos, nem mesmo os diversos shows que fizeram, era preciso que a gravadora mudasse a
estratégia de atuação junto à banda para conseguir efetivamente aumentar suas vendas no mercado
brasileiro, para a gravadora cobrir, de fato, os investimentos feitos. Se até então se trabalhava para
que o produto musical tivesse seus custos cobertos pelas vendas em território nacional,
caracterizando sua exportação como uma garantia de lucro, esse não foi o caso das bandas
“Mangue”. Agora, foi o investimento direto da banda e de seu produtor em um mercado
internacional que, embora possa não ter trazido lucro imediato para eles, possibilitou que a
gravadora vislumbrasse maior lucratividade no trabalho com a banda em território nacional e,
conseqüentemente, uma profissionalização para a banda e seu produtor, que teriam maior garantia
de renda ao lado da gravadora.
Nessa nova etapa do trabalho conjunto da gravadora, da banda e seu produtor, foi pensado
um novo disco para o grupo Chico Science e Nação Zumbi, que seria lançado em 1996. Nesse
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novo projeto, era necessário que a banda gravasse alguma canção que tocasse no rádio, que
criasse um hit que gerasse a venda dos discos. Foi quando a gravadora sugeriu à banda que
gravasse a canção “Maracatu Atômico”, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, que ainda não tinha
entrado no repertório, mas que era facilmente associável ao trabalho que vinham desenvolvendo
por reforçar a presença do maracatu em sua musicalidade, por ter sido gravada pela primeira vez
por Gilberto Gil, que já faria uma participação em uma outra faixa do novo disco da banda, e por
ser uma canção que já tinha alcançado certo sucesso e que teria maior acesso às rádios. Segundo
Paulo André, a gravação dessa canção foi uma decisão conjunta das três partes envolvidas, banda,
gravadora e produtor, mas para alguns integrantes da banda, isso apareceu como uma imposição
da gravadora que teria dificultado ainda mais o relacionamento entre as partes.
De qualquer forma, a canção fez parte do segundo disco da banda, “Afrociberdelia”
(1996), o que permitiu que a gravadora aproveitasse a proximidade de Gilberto Gil para aumentar
as associações possíveis entre uma banda em amadurecimento e um artista consagrado, e também
assim, entre o “Mangue” e a “Tropicália”, e conseguir espaço nas rádios com uma música que já
era sucesso. Além disso, dos três videoclipes feitos para o segundo disco, um contou com a
participação de Gilberto Gil (da canção “Macô”) e outro foi da canção “Maracatu Atômico”, o
que garantia que tudo isso fosse acessível também pela TV. Do ponto de vista de alguns membros
da banda, a gravadora queria transformá-los em um grupo de “maracatu pop” para o “Mangue”
ser o Axé Music de Pernambuco. Mas eles não queriam ser um grupo de maracatu, nem ser
tratados como seguidores da Tropicália. Por isso, reafirmam constantemente que nem a imprensa,
nem as gravadoras entenderam o que faziam e o que era o “Mangue”. Entretanto, foi esse aparente
qüiproquó que ajudou a projetar mais a banda, a associá-la ainda mais ao maracatu, a estimular
mais o interesse dos jovens pernambucanos pela cultural local e a transformar o maracatu em uma
“moda”.
É importante ressaltar que esse mesmo percurso no mercado fonográfico foi feito pelo
grupo Mestre Ambrósio, considerado a terceira banda “Mangue” pela imprensa nacional. Esse
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grupo conseguiu se projetar localmente, na cidade de Recife, ao fazer uma temporada de quatro
meses seguidos no Bar Soparia, a casa noturna que estava na moda na cidade na primeira metade
dos anos 90. Em 1995, gravaram seu primeiro disco pelo selo “Rec-Beat”, administrado pelo
produtor Guti, que também trabalhava com a banda mundo livre s/a, sem se ligar a nenhuma
grande gravadora para fazer sua distribuição. Nessa época, Paulo André tinha acabado de voltar
da turnê na Europa e Estados Unidos com o grupo Chico Science e Nação Zumbi, e embora não
pudesse trabalhar como produtor para o grupo Mestre Ambrósio, passou a eles todos os contatos
dos festivais com quem tinha trabalhado no exterior. Sem produtor, a banda fez diretamente o
contato com os festivais e realizou sua primeira turnê internacional em 1996. Quando voltaram,
passaram uma temporada em São Paulo, onde fizeram algumas apresentações e para onde
decidiram se mudar definitivamente no ano seguinte. Somente no primeiro semestre de 1998 é
que a banda foi contratada também pelo selo Chaos da Sony e lançou o seu segundo disco, “Fuá
na casa de Cabral”. Portanto, mais uma vez, a passagem pelo espaço da world music no centro do
sistema mundial não só se deu independentemente da atuação de uma grande gravadora, como
também antes de sua contratação por ela e da conquista de um mercado nacional. De maneira
geral, esse mesmo percurso tem sido percorrido por diversas bandas novas surgidas em
Pernambuco.
Entendo que esse tipo de estratégia mercadológica, de acessar primeiro o mercado
internacional para poder se legitimar e, então, alcançar o mercado nacional, seria uma marca
distintiva de nosso tempo presente. Não quero afirmar que não existiam possibilidades de transitar
no mercado internacional anteriormente, mas apenas frisar que essa movimentação simultânea nos
três âmbitos – local, nacional e internacional – também segue esta dinâmica atualmente. Assim, o
“Mangue” existe como movimento cultural porque esse trânsito foi possível não para um ou outro
artista em particular, mas para uma série de artistas e bandas que surgiram em Recife a partir da
década de 90, e porque são desse e não de outro lugar, puderam criar uma música que coubesse no
rótulo world music, que é o espaço da música da periferia produtora de mercadorias musicais no
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centro do sistema mundial, e assim, se legitimar no mercado nacional de seu país de origem.
Cabe ressaltar que o processo de legitimação no mercado nacional se deu, em grande
medida, porque o grupo Mestre Ambrósio se mudou definitivamente para São Paulo, que eles
justificam por um desejo de “expandir” seus trabalhos. Todos os integrantes da banda afirmam
que já tinham se apresentado em todos os lugares de Recife e alcançado todo o sucesso possível
na cidade, e decidiram se mudar porque São Paulo seria mais “central” quando se pensa na
facilidade de deslocamento dentro do Brasil, porque teriam o contato de um produtor que poderia
ajudá-los na cidade e que eles acreditavam que os projetaria no mercado nacional, porque havia o
incentivo de pessoas mais experientes que reconheceram seus talentos, mas de forma nenhuma se
tratava de resolver problemas financeiros. Segundo afirmam, eles teriam contribuído para uma
mudança no olhar sobre Recife por quem está fora da cidade, o que teria ajudado a aumentar a
confiança e a auto-estima dos pernambucanos.
Assim, só podemos entender a permanência das bandas “Mangue” no mercado
fonográfico se pensarmos na existência dessa espécie de tripé, apoiado (1) na movimentação
cultural de Recife – criação de festivais, uma casa para temporadas de shows e o apoio da
imprensa local –, (2) na possibilidade de se enquadrar no rótulo world music e fazer excursões
internacionais, e (3) na mudança para São Paulo e conseqüente legitimação no mercado nacional.
No caso do grupo Chico Science e Nação Zumbi, a gravação da canção “Maracatu Atômico”
sintetiza bem esse tripé, porque porta um dado local forte – o maracatu – que possibilita o trânsito
no espaço da world music ao mesmo tempo em que permite a legitimação no mercado nacional.
Referências bibliográficas
DIAS, Marica R. Tosta. Os donos da voz. SP: Boitempo, 2000.
FRITH, Simon. World Music, politics and social change. Papers from the International
Association for the Study of Popular Music. Manchester/NewYork: Manchester
University Press, 1989.
ROBINSON, Buck & Cuthbert. Music at the margins. Popular Musica and Global Cultural
Diversity (Communication and human values). California: Sage, 1991.
TELES, José. Do frevo ao manguebeat. SP: Ed. 34, 2000.
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