RECONSTRUINDO SENTIDOS DE VIDA O Modelo biopsicossocial de tratamento das dependências em Comunidade Terapêutica aplicado a indivíduos em programa de metadona1 Renata Alves2, Miguel Ferreira3,Joaquim Rodrigues 4 Com recurso aos dados registados nos processos individuais dos utentes admitidos no Programa de tratamento da Comunidade Terapêutica (CT) do Centro de Fátima da Comunidade Vida e Paz (CVPaz), entre julho de 2009 e dezembro de 2014, os autores procedem ao levantamento dos dados respeitantes à história pessoal/familiar e ao tipo de “saída” do programa de tratamento adotado naquela CT, tendo em vista testar a hipótese formulada nos seguintes termos: “os utentes que à entrada no Programa de Tratamento da CT se encontravam em programa de substituição com metadona, não se diferenciam dos demais utentes, no que ao tipo de saída daquele programa de tratamento diz respeito”. Constituem para o efeito três subgrupos alcoólicos//toxicodependentes//toxicodependentes em programa de substituição com metadona - e, comparando os dados recolhidos, concluem pela confirmação da hipótese inicialmente formulada. 1. Enquadramento O Centro de Fátima está em funcionamento desde 1997 e está destinado ao tratamento de pessoas em condição de sem abrigo, que apresentam a problemática da toxicodependência e alcoolismo. O tratamento decorre de um programa terapêutico biopsicossocial e espiritual com o foco na abstinência total assente em dois modelos: Minnesota e Hierárquico, complementado com a formação oficinal, em regime de internamento, com duração variável entre 6 a 12 meses. O tratamento é desenvolvido em duas unidades distintas (primária e secundária) com objetivos específicos diferentes e com duração de tempo variável. A 1ª Unidade pode ter uma duração entre 2/3meses e a Unidade Secundária entre 4 a 10 meses. O tratamento é orientado por uma equipa multidisciplinar composta por diferentes especialidades. Em julho de 2009, a Direção propôs à equipa do Centro de Fátima passar a admitir e tratar, a título experimental, toxicodependentes em programa de substituição; sendo que na altura foram feitas várias reflexões em equipa e ouvidos técnicos de outras comunidades e serviços com experiência em programas de substituição. Foram vários os mitos e preconceitos que surgiram na altura face às questões que eram levantadas por quem estava a considerar a metadona a partir de uma perspetiva ideológica (uma droga); sabemos e a partir de uma perspetiva científica que a metadona é um fármaco utilizado no tratamento de toxicodependentes e do ponto vista da sua atuação em termos neurológicos não deve comparar-se com as drogas. Existiam também, reservas quanto à capacidade de adesão dos utentes em programa 1 Trabalho apresentado no workshop que teve lugar em 19.02.2015, no Centro de Fátima da CVPaz Psicóloga, diretora do Centro de Fátima da CVPaz.([email protected]) 3 Psicopedagogo, coordenador terapêutico no Centro de Fátima da CVPaz.([email protected]) 4 Psicólogo, responsável pela coordenação da intervenção da CVPaz ([email protected]). 2 1 RECONSTRUINDO SENTIDOS DE VIDA de metadona, alguns técnicos consideravam que estes abandonariam mais o tratamento, o que não se veio a registar. Foi de acordo com a perspetiva científica que decidimos tratar os utentes e defender a utilização da metadona como um fármaco à semelhança de outros fármacos que os utentes tomam durante o seu processo de tratamento. Após 6 meses de experiência, percebemos que os mitos e as reservas não se justificavam, fizemos um balanço e algumas alterações na intervenção, com vista a melhorarmos a nossa atuação juntos dos utentes em programa de metadona. Concluímos que os utentes neste tipo de programa não abandonavam mais e que inclusivamente apresentavam motivação para que o desmame do fármaco fosse mais rápido. Neste momento e com base numa experi ência de 5 anos considerámos colocar a tónica na pessoa e não no fármaco que ela possa estar a tomar. Sabemos que existem utentes que fazem o desmame da metadona antes do final de tratamento, contudo podem existir e neste momento temos 2 utentes que têm indicação médica para não fazerem o desmame total da metadona antes de terminarem o tratamento, ou seja deverão manter a administração do fármaco, tal como doentes psiquiátricos necessitam de tomar medicação para poderem funcionar adequadamente. 2. Os dados e conclusões da sua leitura No período de análise foram analisados dos 497 utentes que saíram de tratamento, assim distribuídos: 44% de toxicodependentes sem programa de substituição (cerca de 220 casos), 29% de toxicodependentes com programa de substituição, metadona (cerca de 145 casos) e 27% de alcoólicos (cerca de 132 casos). 2.1. Idade Em relação à média de idades da amostra geral era de 40 anos, sendo os alcoólicos mais elevada, cerca de 45,5 anos, 37,8 anos de média para os toxicodependentes sem programa de substituição e 38,5 para toxicodependentes em programa de substituição (metadona). 2 RECONSTRUINDO SENTIDOS DE VIDA 2.2. História pessoal/familiar Consideraram os autores, em dado momento da sua reflexão, que teria sido descurado o peso dos fatores da história pessoal dos indivíduos do conjunto estudado. Decidiram então proceder a uma exploração nesse domínio com base nos elementos constantes dos dossiers individuais, constituindo uma amostra aleatória com seis elementos de cada um dos subgrupos. O resultado do levantamento feito consta do quadro I. Da leitura daquele quadro resulta claro que, no que à história pessoal/familiar diz respeito, não se registam variações dignas de registo entre os três subgrupos. O único fator em que os valores apresentam diferença notória é o respeitante à saúde/adição do pai (1 no subgrupo MET e 4 e 5 nos subgrupos TOX e ALC respetivamente). No que à situação do próprio se reporta o único fator cujos valores apresentam variação que chame à atenção é o que indica o lugar do indivíduo na fratria – 4 dos seis casos do subgrupo MET são os mais velhos da fratria contra 2 no subgrupo TOX e 1 no subgrupo ALC. Face aos resultados da exploração concluíram os autores não haver fundamento suficiente para considerar os fatores da história pessoal, como diferenciador significativo dos três subgrupos e decidiram não o considerar como elemento relevante no estudo comparativo efetuado. 2.3. Permanência no Programa/saídas Em relação à média de permanência em tratamento, verificamos que no total da amostra, foi de 6,3 meses, sendo que esta média resultada das saídas em altas clínicas (aproximadamente 12 meses de previsão) e das outras altas (transferências, saída por decisão do próprio ou da instituição). Pela comparação entre os toxicodependentes sem programa de substituição com os que entraram com programa de substituição, podemos perceber que estes últimos acabam por permanecer um pouco mais tempo em tratamento, sendo neste caso um indicador de permanência. Reparamos também que os alcoólicos acabaram por ficar mais tempo que os toxicodependentes, havendo maior adesão destes à permanência em tratamento. Analisando especificamente o Grupo 1 (toxicodependentes em programa de substituição - metadona), cerca de 145 utentes que saíram durante o período de análise, constatamos que na sua grande maioria, provinham da zona de Lisboa, sendo também acompanhados inicialmente pela nossa resposta Espaço Aberto ao Diálogo. 3 RECONSTRUINDO SENTIDOS DE VIDA Em relação à dosagem na admissão, a média foi de 59 mg, sendo que 78% dos admitidos vinham com dosagem entre os 41 e os 80 mg. Cerca de metade destas admissões, tinham entre os 35 e os 44 anos, idades estas que por norma são a grande faixa etária do perfil dos nossos utentes. Quanto ao tipo de saídas do programa, cerca de 51% interromperam tratamento por decisão do próprio (cerca de 74 utentes), 25% saíram com alta clínica (cerca de 35 utentes), 14% foram transferidos para resposta mais adequada, reinserção apoiada ou como alternativa a expulsão por consumos. 4 RECONSTRUINDO SENTIDOS DE VIDA Analisando especificamente as saídas por alta clínica e transferência, constatamos: a média de idades dos 35 utentes foi de 39 anos, a dosagem média à entrada foi de 55 mg, o tempo médio de tratamento foi de 13 meses, 40% das altas clínicas entraram com dosagens entre os 41 e os 60 mg, 76% com dosagens entre os 41 e os 80 mg. Relativamente aos 20 casos de transferência, 5 foram para reinserção apoiada em comunidade de inserção. Em relação às saídas por decisão do próprio (abandono ou fuga), correspondente a 51% (74 utentes), a dosagem média na admissão foi de 61 mg, a idade média de 39 anos, 41% destas saídas entraram com mais de 60 mg. Cerca de 73% destas saídas foram antes dos 3 meses, sendo este o período crítico de tratamento (entre os 2 e os 3 meses). Independentemente do tipo de saída, cerca de 68 utentes (em 145), saíram com abstinência de metadona. 5 RECONSTRUINDO SENTIDOS DE VIDA 2.3. Comparações mais relevantes Relativamente grupo geral (497 utentes), podemos constatar quanto ao tipo de saídas de tratamento, que cerca de 48,5% das saídas foram por decisão do próprio, ou seja, o utente acabou por decidir terminar tratamento sem alta clínica, sendo que 38,5% dos utentes terminaram tratamento com alta clínica (cerca de 170 utentes), sendo reinserido com apoio residencial ou casa própria e emprego. Comparando os três subgrupos grupos, constatamos que os alcoólicos para além de permanecerem mais tempo em tratamento, foi o subgrupo em que o número de “altas clínicas+transferências” foi superior ao das “interrupções por decisão do próprio”. Relativamente ao subgrupo 1 e 2, a percentagem de saídas por alta clínica é semelhante, entre os 38% e os 39%, concluindo-se que o facto de entrarem para tratamento não significa aumento de interrupção por decisão do próprio, ainda que ao nível das interrupções por decisão da instituição (expulsão por recaída em consumos ou conduta violenta), haja uma pequena percentagem no Grupo 1. 6 RECONSTRUINDO SENTIDOS DE VIDA Comparando o Grupo 1 (tox. em programa) e o Grupo 2 (Tox. sem programa), a percentagem de saídas por decisão do próprio acaba por ser menos no Grupo 1, sendo aqui, uma vez mais a variável (metadona), um fator de permanência. Relativamente às saídas por alta clínica a percentagem é similar, cerca de 25%. Verificamos também alguma diferença nas saídas por decisão da instituição (expulsão por consumos ou conduta agressiva), sendo um pouco mais elevadas no Grupo 1 com mais 3% relativamente ao Grupo 2. Considerando e comparando os dois grupos, quanto às saídas por decisão do próprio, verificamos que até aos 3 meses as saídas do Grupo 2 (sem programa de substituição são mais elevadas, invertendo -se a posição a partir dos 3 meses, confirmando uma vez mais a metadona como fator de permanência. 7 RECONSTRUINDO SENTIDOS DE VIDA 3. Conclusões 1) Os toxicodependentes admitidos em programa de substituição, reagiram ao programa de tratamento de forma semelhante aos toxicodependentes s/programa. O desafio colocado ao Centro pela Direção da CVPaz foi um bem-sucedido. 2) A taxa de abstinência (cessação da administração do fármaco) alcançada pelo Grupo 1, independentemente do tipo de saída, surpreendeu-nos: - Em 145 admissões, 40 utentes (27,5%) concluíram programa de tratamento e foram reinseridos; - 68 utentes (47%) saíram abstinentes do programa. Constituirá um elemento de referência para os que não estão em regime residencial. 3) Face aos resultados, é nossa convicção que a defesa que os técnicos eventual mente fazem do programa que aplicam (no presente caso modelo Minesotta/doze Passos), constitui mais uma compreensível “resistência à mudança”, ultrapassável, quando o objetivo da intervenção é responder às necessidades do utente. 4) A exploração da história clínica dos utentes (C e S/M) em função do seu “comportamento” no Programa de tratamento constitui um aspeto que entendemos indispensável incluir na nossa análise. 8 RECONSTRUINDO SENTIDOS DE VIDA Bibliografia/leituras recomendadas - Vários Guidelines for the Psychosocially Assisted Pharmacological Treatment of Opioid Dependence WHO, 2009 - Annette Verster, Ernest Buning Methadone Guidelines, EuroMethwork, Amesterdam, 2000 - J. Ward, R. Mattick, W. Hall Methadone Maintenance Treatment and other mopioide Replacement Therapies Harwood Academic Publishers Amesterdam 1998 - The UK Guidelines (1999)- Drug Misuse and Dependence Guidelines on Clinical Management Department of Health. Websites úteis: http://www.wuromethwork.org http://www.doh.gov.uk/drugdep.htm 06/05/2016 9 RECONSTRUINDO SENTIDOS DE VIDA Quadro I – Elementos da história pessoal dos elementos objeto do estudo a) MET ALC TOX N Si tua çã o fa mi l i a r A- Ida de/média – Pa i 34,5 30,5 34 33,2 - Mã e 29 29,5 31,8 30,1 B- Es ta do civil/casos- Ca sados 2 2 1 5 Separados/divorciados 2 1 3 Pel o menos Um falecido 2 4 4 10 Outra s situações 1 1 B1 – Cons umos abusivos c/s DM associada+ outras perturbações de 7 5 6 18 s a úde graves/casos C – Sa úde – Adição/casos - De ambos - Do pa i 1 5 4 10 - Da mã e 1 1 2 - Perturba ções graves/casos - No Pai 1 1 - Na Mã e 2 1 3 Si tua çã o do Própri o 1.Ida de/Próprio/média 32,6 42,6 34,5 36,5 2.E. Ci vi l /casos– Ca sado/União - Sol teiro 5 4 5 14 - Di vorciada/separado 1 2 1 4 - Vi úvo 3. Número de irmãos/média 2,3 1,8 3 2,3 4. Luga r na fratria - 1º 4 1 2 7 - Úl ti mo 2 3 3 8 5. Com fi l hos/casos - 3 ou + 1 1 - 1-2 1 2 2 5 - Sem 4 4 4 6.Es col aridade/casos – Abaixo do 5º a no 1 1 - Entre 5º e 9º a no 2 4 5 11 - Ma i s do 9º a no 3 2 1 6 8 Des envolvimento. geral – Si tuações Tra umáticas/casos 4 (1) 4 6 14 9. Cons umos/Casos- Idade de início.- Até12a 4 5 2 11 -+12 2 1 4 7 - Subs tância - A+E b) 6 4 6 18 - E b) - A b) 2 0 2 9A- Forma de consumo - F/I b) 6 4 6 18 - F/I+Inj.b) 6 6 10- Cons umos. Evolução/casos a ) Álcool 3 4* 6 13 b) Ha xi xe 3 1* 4 c) Outra -* 11. Cons umos/Episódios críti cos**** 1 3 2 6 13 Si tuação a tual- Desempregado 4 4 5 13 - Á procura de emprego… - Com ba i xa médica 1 1 2 14. Autonomia.- Rendimento- RSI 2 1 3 15 Ques tões pendentes – Policiais/Judiciais 4 3 4 11 16. Nº de tenta tivas de reabilitação - 1 2 3 5 - 2 ou + 2 1 1 4 17.Dependência – Cônjuge – A/E/O b) 1 a) À entra da no Programa; * Falta i nformação de um caso b) A= Ál cool; E= Es tupefaciente/droga; F=Fumada/o; I= Injetado/a; O=Outro/a 10