Artigo Original Retalho de glândula submandibular na reconstrução de defeitos da cavidade oral e orofaringe em cirurgias oncológicas de cabeça e pescoço: Descrição da técnica e resultados iniciais Submandibular gland flap for reconstruction of oral cavity and oropharynx after head and neck oncologic surgery: Technique and initial results RESUMO Introdução: Um dos grandes avanços modernos na cirurgia de cabeça e pescoço foi a introdução das técnicas de reconstrução na especialidade, que ampliou as possibilidades de ressecção radical e reconstrução imediata. A utilização da rotação do retalho da glândula submandibular foi descrito para correção cirúrgica da laringe e hipofaringe. Entretanto, não encontramos descrita na literatura a utilização desse retalho para correção de defeitos cirúrgicos da cavidade oral e orofaringe em cirurgias oncológicas de cabeça e pescoço. Objetivo: Descrever a técnica de rotação do retalho de glândula submandibular para reconstrução de defeito cirúrgico na cavidade oral e orofaringe e os resultados dessa reconstrução. Métodos: Este é um estudo retrospectivo que inclui 16 pacientes submetidos ao retalho da glândula submandibular entre setembro de 2007 a fevereiro de 2009. Resultados: A maioria dos pacientes era do gênero masculino, com idade média de 55 anos. Encontramos 43,75% T3; e 56,25% T4. Oito pacientes (50%) apresentavam-se com linfonodos metastáticos. Houve seis (37,5%) complicações locais: um seroma, uma deiscência parcial e osteonecrose, uma fístula salivar e três infecções. No seguimento, um paciente apresentou recidiva local e um caso de recidiva cervical em partes moles. Conclusão: A rotação do retalho de glândula submandibular é factível e viável para correção de defeitos cirúrgicos da cavidade oral e orofaringe, apresentando baixa morbidade e sendo realizada em tempo cirúrgico satisfatório. Essa técnica pode ser considerada uma opção de reconstrução, em casos selecionados, sem comprometer o caráter oncológico das cirurgias. Marcelo de Andrade Vieira1 Carlos Roberto dos Santos2 André Lopes de Carvalho3 ABSTRACT Introdution: One of the greatest advances in the modern era of head and neck surgery was the introduction of reconstructive techniques, which allowed for larger oncological resections followed by immediate reconstruction. The use of submandibular gland flap has been described for surgical defect in larynx and hypopharynx. However, we did not find its use for oral cavity surgical and oropharynx defects after head and neck oncologic surgery. Objective: To describe the technique of the submandibular gland flap for oral cavity and oropharynx reconstruction and its preliminary results. Methods: This is a retrospective study including 16 patients who underwent this reconstruction during the period from September 2007 to February 2009. Results: The majority of the cases were men with an average age of 55 years. There were staged as T3 in 43.75%; and 56.25% T4. Eight patients (50%) presented with lymph node metastasis. We observed 6 (37.5%) local postoperative complications being 1 seroma, 1 fistula, 3 local infections and 1 partial dehiscence with osteonecrose. During the follow up period 1 patient presented with local tumor recurrence and 1 regional recurrence was observed. Conclusion: The submandibular gland flap is feasible for selected oral cavity surgical and oropharynx defects presenting with low morbidity and in a reasonable time. This technique could be considered as an option for selected cases after head and neck oncologic surgery. Key words: Submandibular Gland. Reconstructive Surgery. Surgical Flaps. Head And Neck Neoplasms. Descritores: Glândula Submandibular. Cirurgia Reconstrutora. Retalhos Cirúrgicos. Neoplasias de Cabeça e Pescoço. INTRODUÇÃO Um dos grandes avanços modernos na cirurgia de cabeça e pescoço foi à introdução das técnicas de reconstrução na especialidade, que possibilitou um avanço na indicação de ressecção radical de tumor com reconstrução imediata do defeito cirúrgico1. Na década de 80, houve a popularização dos retalhos músculocutâneos e, na década de 90, a reconstrução microcirúrgica, que possibilitou a transferência de retalhos vascularizados obtidos à distância do defeito2. A versatilidade e segurança do método tornaram-no a principal alternativa no tratamento de diversos tumores de cabeça e pescoço com objetivo de obterem-se revestimento e preenchimento, além de reconstruções de transito alimentar, ósseas e de nervos3-5. Entretanto, na prática diária, a reconstrução microcirúrgica não está acessível para todos os pacientes ou em todos os serviços e o retalho músculocutâneo mais popular e confiável da especialidade, o retalho do músculo peitoral maior é, muitas 1) Residente de Cirurgia Oncológica do Hospital de Câncer de Barretos – Fundação Pio XII, Barretos/SP, Brasil. 2) Chefe do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital de Câncer de Barretos – Fundação Pio XII, Barretos/SP, Brasil. 3) Cirurgião do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital de Câncer de Barretos – Fundação Pio XII, Barretos/SP, Brasil. Instituição: Hospital de Câncer de Barretos – Fundação Pio XII Correspondência: Marcelo de Andrade Vieira, Avenida Almirante Gago Coutinho, 1306 – 14783-104 Barretos/SP, Brasil. E-mail: [email protected] Recebido em: 10/09/2009; aceito para publicação em: 03/11/2009; publicado online em: 15/11/2009. Conflito de interesse: nenhum. Fonte de fomento: nenhuma. Rev. Bras. Cir. Cabeça Pescoço, v. 38, nº 4, p. 215 - 219, outubro/ novembro / dezembro 2009 215 vezes, grande para um defeito que também não pode ser resolvido com sutura primária4,6. Entre os retalhos de fácil realização, porte cirúrgico pequeno e médio, podemos citar os retalhos do músculo platisma ou o do músculo infra-hióideo7,8. Porém, esses retalhos são descritos como apresentando um índice razoável de necrose parcial ou total9. A utilização da rotação do retalho da glândula submandibular foi descrita na literatura para a correção da parede posterior da hipofaringe, após cirurgias de cabeça e pescoço10. Entretanto, não encontramos, descrita na literatura, a utilização desse retalho para a correção de defeitos cirúrgicos da cavidade oral e orofaringe em cirurgias oncológicas de cabeça e pescoço. Nosso objetivo é descrever a técnica de rotação do retalho de glândula submandibular para reconstrução de defeito cirúrgico na cavidade oral e orofaringe e os resultados dessa reconstrução. Figura 2 – Glândula submandibular sendo isolada. Ligadura da artéria e veia facial junto ao ramo da mandíbula. Esvaziamento cervical completo (supraomo-hioideo). Preservado músculo esternocleidomastóideo, veia jugular interna e nervo acessório. MÉTODOS Realizamos um estudo retrospectivo, de setembro de 2007 a fevereiro de 2009. Foram realizadas 16 cirurgias para tumores de cabeça e pescoço com defeitos cirúrgicos de cavidade oral e orofaringe em que utilizamos o retalho de glândula submandibular para a correção. TÉCNICA CIRÚRGICA Cuidados gerais. Com o paciente sob anestesia geral, é realizada a assepsia com PVPI degermante e tópico e, após incisão, conforme o tipo de cirurgia a ser efetuada, realizamos descolamento do retalho subplatismal superiormente e esvaziamento cervical, conforme indicação cirúrgica, preservando sempre que possível nervo acessório, veia jugular interna e/ou o músculo esternocleidomastóideo – Figura 1. Figura 3 – Glândula submandibular isolada. Figura 4 – Glândula submandibular isolada, irrigada pela parte inferior da artéria e veia facial mais mandibulotomia. Figura1 – Início do esvaziamento cervical IB e ao centro glândula submandibular sendo isolada. À direita observamos sua vascularização na porção superior pela artéria e veia facial. Ramo mandibular do nervo facial acima das estruturas vasculares. Preparo e rotação da glândula submandibular. Durante o esvaziamento do nível IB, realiza-se a identificação da glândula submandibular, isolando-a pela parte superior, onde é feita a ligadura da artéria e veia facial, junto ao ramo da mandíbula, próximo ao ramo mandibular do nervo facial – Figura 2. Após esse procedimento, fazemos a retirada de todas as estruturas linfáticas e linfonodos deste nível, deixando a glândula isolada e pediculada na artéria e veia facial (parte inferior) – Figuras 3 e 4. Há a delimitação e ressecção de todo o tumor com margem de segurança – Figuras 5 e 6. Procede-se à rotação da glândula submandibular de acordo com o defeito cirúrgico a ser reconstruído – Figuras 7 e 8. Faz-se a sutura da glândula nos bordos do defeito cirúrgico da orofaringe ou cavidade oral com fio de Vycril 3-0. Figura 5 – Delimitação da ressecção cirúrgica, com margem de segurança, abrangendo parte distal da mandíbula, palato mole, palato duro e parede lateral da orofaringe. Figura 6 – Peça cirúrgica contendo parte da mandíbula, palato mole, palato duro e parede da orofaringe. 216 Rev. Bras. Cir. Cabeça Pescoço, v. 38, nº 4,p. 215 - 219, outubro/ novembro / dezembro 2009 Tabela 1 – Distribuição quanto ao tipo de esvaziamento cervical. Esvaziamento Cervical Freqüência % Supraomo-hioideo 15 93,8 1 6,2 16 100 Júgulocarotídeo Niveis 1A e 1B Total Figura 7 – Defeito cirúrgico. Tabela 2 – Complicações locais após rotação da glândula submandibular. Com plicações Locais Figura 8 – Rotação da glândula submandibular para correção do defeito cirúrgico. Frequência % Não 10 62,5 Infecção 3 18,8 Seroma 1 6,3 Desicência parcial 1 6,3 Fístula salivar 1 6,3 Necrose do retalho 0 0 16 100 Osteonecrose Finalização da cirurgia. Faz-se traqueostomia quando necessário. Coloca-se dreno na região cervical a vácuo. Procede-se ao fechamento da incisão cirúrgica por planos. Total RESULTADOS A maioria dos casos era do gênero masculino (93,8%), com idade média de 55 anos. A localização do tumor primário na cavidade oral variou, sendo mais comum em soalho de boca, língua, gengiva inferior e região retromolar. Quanto ao estadiamento inicial, encontramos 43,75 % T3 (sete pacientes); 56,25% T4 (nove pacientes); um paciente (6,3%) era N2b; sete pacientes (43,8%) eram N1 e oito pacientes (50%) eram N0. Destes, oito pacientes (50%) apresentavam-se com linfonodos metastáticos na região cervical ipsilateral, nenhum paciente apresentou linfonodo metastático contralateral. Apenas um paciente havia sido submetido a tratamento prévio neoadjuvante com radio e quimioterapia. As cirurgias foram divididas em quatro grupos. Três pacientes (18,8%) foram submetidos a ressecções de lesões locais, três (18,8%) pelveglossectomias, cinco (31,3%) pelveglossomandibulectomias e cinco (31,3%) bucofaringectomias. Todos foram submetidos a esvaziamento cervical ipsilateral, sendo 15 supraomo-hióideo, um jugulocarotídeo e níveis 1A e 1B posteriormente (foi submetido a duas cirurgias e na segunda foi reconstruído o defeito cirúrgico com a glândula submandibular) – Tabela 1. Em todos os casos foi utilizada a glândula submandibular ipsilateral. O tempo cirúrgico foi, em média, 200 minutos. Apenas dois pacientes (12,5%) realizaram pós-operatório imediato na UTI. O tempo médio de internação foi em média três dias. Em dois casos (12,5%), foram observadas margens comprometidas. Na nossa casuística, tivemos seis (37,5%) complicações locais e nenhuma sistêmica, sendo um (6,3%) seroma, uma (6,3%) deiscência parcial e osteonecrose , uma (6,3%) fístula salivar e três (18,8%) infecções – Tabela 2. Não houve necrose do retalho. Todos pacientes foram seguidos em um período que variou de quatro meses a dois anos. Durante o período de seguimento, um paciente apresentou recidiva local e optou por radioterapia e quimioterapia adjuvante e nenhum paciente apresentou recidiva cervical. DISCUSSÃO Na literatura revisada, não encontramos nenhum artigo sobre correção do defeito cirúrgico da cavidade oral e ororfaringe com retalho de glândula submandibular. Mozolewski et al.10 descreveram a utilização da glândula submandibular e tireóidea para correção de defeitos após laringectomias parciais. Acompanharam 81 casos com seguimento médio de oito anos. Desses casos, três apresentaram recidivas. Essa cirurgia mostrou ter resultados superiores às técnicas utilizadas convencionalmente para correção desses tipos de defeitos cirúrgicos. Outros autores11 descreveram a utilização de retalho submentoniano para correção de defeitos cirúrgicos após ressecções oncológicas. Foram operados 12 pacientes, com um seguimento de cinco anos, apresentando uma média de idade de 67 anos e mostrou bons resultados. Foi descrito um caso de fístula orocutânea. Em 2001, descreveu-se a utilização da glândula submandibular e diversos outros tecidos contíguos para reconstrução após laringectomias parciais verticais e horizontais12. Em nosso estudo, obtivemos seis complicações encontradas. Um caso que apresentou seroma era um paciente masculino de 50 anos com tumor em língua. Foi submetido à pelveglossectomia e esvaziamento cervical modificado, com duração de 180 minutos e permaneceu apenas dois dias internado. Apresentou melhora clínica espontânea após uma semana. Três casos foram devidos a infecções da ferida cirúrgica, mas responderam ao tratamento clínico com antibioticoterapia. Tivemos um caso de um paciente de 62 anos que apresentava tumor nas regiões do palato mole, amígdala e parede posterior orofaringe, classificado como estadiamento incial em T3N1. Submetido à ressecção local da loja amigdaliana, palato mole e esvaziamento jugulocarotídeo. Durante a revisão da patologia, foram observadas margens positivas. Foi então submetido à radioterapia e quimioterapia adjuvante, entretanto apresentou Rev. Bras. Cir. Cabeça Pescoço, v. 38, nº 4, p. 215 - 219, outubro/ novembro / dezembro 2009 217 recidiva com sete meses de seguimento e foi novamente submetido à ressecção da parede lateral da laringe, associada à rotação da glândula submandibular, desta vez com margens negativas ao anatomopatológico. Apresentou o aparecimento de fístula que se resolveu espontaneamente após um mês. Após dois meses, apresentou nova recidiva cervical e o paciente optou por realização de radioterapia e quimioterapia adjuvantes. Obtivemos um caso de um paciente de 39 anos com tumor em soalho e região retromolar, que foi submetido à pelvemandibulectomia marginal, associada à rotação da glândula submandibular, traqueostomia e esvaziamento cervical supraomohioideo. A cirurgia teve duração de 210 minutos e pósoperatório na enfermaria. Ficou internado por dois dias. A revisão do anatomopatológico evidenciou sete linfonodos metastáticos e, no seguimento de um ano, não apresentava recidiva. Porém, desenvolveu, no pós-operatório imediato, deiscência parcial da sutura intra-oral e, tardiamente, osteonecrose. No momento, encontra-se aguardando retorno ambulatorial para tratamento. No nosso estudo, apesar da casuística ser pequena, pôde ser observado que a rotação de retalho de glândula submandibular não levou ao aumento do número de complicações tanto locais como sistêmicas. Por ser um tecido bem vascularizado e próximo ao local de rotação dos defeitos da cavidade oral e orofaringe, não observamos nenhuma perda do retalho cirúrgico. Não houve aumento do tempo de permanência hospitalar. Este ocorreu em média de três dias, corroborando com a literatura analisada10-14. Os dois únicos pacientes que realizaram pós-operatório na UTI foi devido ao alto risco cirúrgico. Um deles permaneceu internado durante três dias e outro quatro dias. Nenhum deles apresentou complicações pós-operatórias. Como observado, a maioria dos pacientes (nove casos – 56,3%) encontrava-se em estágios mais avançados da doença T4. Em dois pacientes (12,5%), durante a revisão da patologia, foram observadas margens comprometidas, tendo sido submetidos à radioterapia pós-operatória. Foram acompanhados clinicamente por um período de um ano e não apresentaram recidiva da doença. Em todos os casos do nosso estudo, haveria necessidade de reconstrução com retalho musculocutâneo (músculo peitoral maior, infra-hióideo, platisma etc.) ou, mais recentemente, retalhos microcirúrgicos. Esses retalhos acarretariam em maior morbidade, maior tempo cirúrgico, maiores dias de internação hospitalar e maiores custos financeiros. Outra vantagem é que esse retalho de glândula submandibular pode ser confeccionado pelo próprio cirurgião de cabeça e pescoço sem a necessidade de uma segunda equipe cirúrgica. Observamos, após um ano e nove meses de uma bucofaringectomia, o resultado cirúrgico estético intraoral (Figura 9) e a cicatriz da região cervical vista lateral (Figura 10) e vista frontal (Figura 11). Esse paciente encontra-se com deglutição adequada, voz anasalada e sem recidiva tanto locorregional quanto cervical. Figura 9 – Pós-operatório tardio da rotação de glândula submandibular. Pode ser observada a metaplasia da glândula submandibular (área esbranquiçada) na orofaringe. 218 Figura 10 – Cicatriz cirúrgica da região cervical em pós-operatório tardio de bucofaringectomia (vista lateral). Figura 11 – Cicatriz cirúrgica da região cervical em pós-operatório tardio de bucofaringectomia (vista frontal). CONCLUSÃO A rotação do retalho de glândula submandibular é factível e viável para correção de defeitos cirúrgicos da cavidade oral e orofaringe apresentando baixa morbidade, baixo custo e sendo realizada em tempo cirúrgico satisfatório quando comparado com outro tipo de reconstrução. Essa técnica pode ser considerada como uma opção de reconstrução em casos selecionados sem comprometer o caráter oncológico das cirurgias. AGRADECIMENTOS À secretária Allini Mafra da Costa do Núcleo de Apoio ao pesquisador; à Estatística Milene Corso Mitsuyuki ;e à Professora de Português Maria Auxiliadora de Andrade Vieira. REFERÊNCIAS 1. Barreiros RT, Yadav PS. 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