Unidade 3 - Concepção Psicossomática O conceito Popularmente diz-se que doença psicossomática ou doença psicológica é aquela que não apresenta sintoma orgânico real, ou seja, quando você acha que tem uma doença que não existe. Esta definição, embora comum, é errada. Doenças psicossomáticas são manifestações orgânicas que podem ser causadas ou cujos sintomas podem ser agravados por aspectos psíquicos (mental/emocional). Existem, é claro, os casos de SIMULAÇÃO (quando a pessoa finge ter algo) ou de HIPOCONDRIA (fixação na idéia de doenças e preocupação excessiva com a saúde). O correto, no entanto, é utilizar o termo psicossomático apenas para designar doenças que apresentam sintomas reais no corpo físico, mas cuja origem está no psiquismo. Então, se desconsiderarmos estes dois casos, podemos dizer que existem basicamente duas categorias: As doenças por conversão psíquica, quando existe sintoma, porém, nenhum tipo de alteração orgânica é percebida em exames. Por exemplo: uma pessoa não consegue andar, mas não tem nenhum tipo de lesão neurológica ou muscular que justifique a paralisia. E a somatização propriamente dita, quando a energia psíquica foi descarregada no corpo levando à formação de uma ou mais lesões diagnosticáveis, visíveis em exames de raios-X, tomografia ou outros tipos de exames. Por exemplo: os professores que possuem alergia a giz. Existem indícios de que a somatização funciona como uma válvula de escape para emoções e sentimentos com os quais o sujeito não consegue lidar. Poderíamos generalizar e dizer que todas as doenças têm ao menos algum fundamento psíquico. Porém, em alguns casos a participação dos estados emocionais no desencadeamento ou na evolução da doença é mais evidente e determinante. Entre as mais conhecidas temos: doenças alérgicas, como a asma brônquica e as dermatites; doenças gastrointestinais, como as úlceras gástricas e a diverticulite; e as doenças auto-imunes, como o lúpus. As doenças alérgicas, por exemplo, revelam como o sujeito lida com os agentes agressores do ambiente. São formas de defesa exacerbadas, como se cada agente fosse uma grande ameaça contra a qual ele precisa se defender. Ou evita-se o contato com esses agentes (o que muitas vezes é impossível) e se utiliza os corticóides (anti-alérgicos) ou então, busca-se uma desensibilização, modificando as condições internas, o emocional. A relação mente/corpo Todas as doenças são causadas por um conjunto de fatores. A mente é um deles. Sua participação varia, ou seja, em algumas doenças a condição psíquica interfere mais e em outras, menos. Não conhecemos o complexo mecanismo de interação entre mente e corpo, até porque o próprio conceito de MENTE é bastante controverso. No entanto, sabe-se hoje que certas condições orgânicas correspondem a determinados estados emocionais, pois estes interferem na produção de uma série de substâncias, como os hormônios e os neurotransmissores, que atuam na regulação fisiológica. 18 Estados depressivos e as doenças Sabemos que o sistema imunológico é capaz de reconhecer e de combater as células alteradas. Nos casos de depressão há uma diminuição acentuada da imunidade, que predispõe a infecções diversas e, em alguns casos, à proliferação de células alteradas. Assim, não podemos dizer que a depressão seja a causa, mas sim, que pode ser um dos fatores que favorecem o crescimento e a disseminação de células adoecidas. Podemos citar, por exemplo, o câncer que é um termo genérico para diversos tipos de tumores malignos, ou seja, formados por células alteradas, que tendem a se disseminar formando novos tumores. É necessária a associação de uma série de fatores para que o câncer se desenvolva. Dependendo do tipo de câncer, por exemplo, devem-se considerar fatores genéticos e ambientais, que incluem os produtos químicos e radiações. O estado alterado do depressivo pode favorecer a proliferação das células cancerosas. Crises de determinadas doenças imediatamente após brigas, sustos e outros fatos desencadeantes, com sintomas orgânicos não justificados por exames clínicos ou laboratoriais, revelam quadro típico de conversão psíquica. Doenças que surgem apenas em períodos de crise emocional, stress ou mudanças na vida ou doenças crônicas que pioram sob essas condições revelam somatização. Fatores Predisponentes A relação entre as respostas fisiológicas e os transtornos psicofisiológicos tem sido o ponto de partida de muitas teorias explicativas. Entre as diversas emoções com respostas fisiológicas importantes destaquemos a ansiedade e a raiva. Supõe-se, em geral, que para se desenvolver e manter um transtorno psicofisiológico é necessário dois fatores: predisposição individual: a pessoa tende a experimentar maior reação fisiológica diante da emoção. Significa que essa pessoa tem uma certa excitabilidade exagerada do sistema nervoso autônomo, bem como endócrino e imunológico. reação fisiológica intensa e crônica: como por exemplo, manter níveis altos de ansiedade ou raiva. Portanto, um fator é predominantemente fisiológico e o outro de personalidade. Há anos se estudam as características do perfil de resposta de pessoas com diferentes transtornos psicofisiológicos, tais como a hipertensão arterial, a asma, a úlcera digestiva, as dores de cabeça, vários tipos de dermatites, etc. Os resultados indicam que as pessoas que apresentam tais transtornos costumam ter níveis mais altos de ansiedade do que outras pessoas da mesma idade e sexo. A mesma emoção negativa pode, ainda, se apresentar com características internas ou externas, variando de acordo com a capacidade de controle e dissimulação da pessoa. Assim, segundo Cano (Cano-Vindel & Fernández Rodríguez, 1999), as pessoas com hipertensão essencial têm níveis maiores de raiva interna que os grupos controle, sem hipertensão. Os pacientes com asma, por exemplo, apresentam níveis maiores de raiva externa do que as pessoas sem asma. A raiva, neste caso, ajudaria a manter níveis altos de ativação fisiológica. A maioria das pessoas com estilo repressivo de enfrentamento de suas emoções negativas não costuma ter consciência de sua alta ativação fisiológica e, inclusive, podem referir-se a si mesmos como pessoas relaxadas, calmas e tranqüilas. Na realidade não são bem assim. 19 Embora essas pessoas apresentem baixas pontuações nos testes para ansiedade, apresentam uma alta ativação fisiológica. Esta alta ativação fisiológica continuada será um fator de vulnerabilidade para o desenvolvimento de transtornos psicofisiológicos estes apresentaram maior reatividade cardiovascular com uma resposta de aumento da pressão arterial diastólica. Deve ser destacado que as emoções são reações naturais, universais, que têm uma finalidade adaptativa, mas não obstante quando demasiadamente intensas e/ou freqüentes, essas mesmas reações podem provocar alterações patológicas na saúde. Se essas emoções não podem ser relacionadas diretamente ao desenvolvimento de doenças, no mínimo elas provocam uma alteração no nível e qualidade de vida que favorecem o desenvolvimento patológico. A ansiedade, a tristeza e a raiva, quando em níveis demasiadamente intensos, ou freqüentes, quando se mantêm por um tempo longo, tendem a determinar mudanças na conduta, a ponto de determinar atitudes não sadias, como por exemplo, o consumo de fumo, álcool, sedentarismo, apatia, falta de exercícios, transtornos alimentares (hipo ou hiperfagia), etc. Histórico e correntes Embora as doenças psicossomáticas já pudessem ser observadas há bastante tempo com complexa história tais como na medicina combinada aos cerimoniais religiosos da préhistória, na Bíblia com o Velho Testamento, com Hipócrates (600 aC) e com Jesus, esses "milagres" poderiam ser prontamente explicados pela medicina psicossomática. Durante séculos, por falta de comprovação científica, a medicina psicossomática ficou em latência, embora o termo "psico-somático" tenha sido citado em 1818. O termo "psicossomático" e "somatopsíquico" surgiu realmente apenas em 1918 quando Heinroth procurava distinguir os tipos de influência e as diferentes direções das relações entre mente e corpo. Com Freud, nova luz veio despertar o interesse mente-corpo. Após sua morte em 1939 surge a revista Psychosomatic Medicine, editada por Flanders Dumbar, em que 50 anos depois, os editoriais mostraram o progresso bioquímico e psiconeuroimunológico da correlação mente-corpo, distanciando-se da contribuição psicanalítica que revolucionara os conceitos etiopatogênicos . Ao lado de Georg Groddeck, Felix Deutsch, Franz Alexander, Weisse English, George Engel, Hans Selye, Luiz Chiozza, Rob Carballo, temos os fundadores da psicossomática brasileira: Durval Marcondes, Danilo Perestrello, Helládio Francisco Capisano, José Fernandes Pontes e Luis Miller de Paiva, sendo que os nove primeiros presidentes da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática, eram psicanalistas e médicos associados a atividades docentes e médico-hospitalares. Portanto, em 1965, foi fundada na sede da Associação Paulista de Medicina , a Associação Brasileira de Medicina Psicossomática, onde se reuniram Capisano , Miller, Pontes, Perestrello, Abram Eksterman e mais 142 médicos principalmente do Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo. Existem 3 vertentes teóricas comuns a toda concepção psicossomática: a psicogênica, a Psicologia Médica e a Antropologia Médica. 20 Unidade 4 – Psicologia e equipe médica A introdução das Ciências Humanas no campo da saúde coloca em questão o discurso biológico puro através da crítica da soberania do saber médico e a exclusão de outros saberes sobre a doença e a saúde. À medida que o padrão de saúde foi mudando, a contribuição exclusiva do modelo biomédico passou a ser questionado, sendo necessário o surgimento de um modelo que considere os aspectos psicológicos e sociais do paciente. Um único profissional não é o bastante para analisar um paciente em seus vários aspectos e chegar a um diagnóstico preciso e fechado. Desta forma, na ciência do século XXI, a troca de conhecimentos entre as diversas disciplinas torna-se imprescindível para o entendimento do sujeito em sua totalidade. 4.1- Psicologia Médica Nas palavras de Abram Eksterman, “a Psicologia Médica é um capítulo novo na história da Medicina. Pretende estudar a psicologia do estudante, do médico, do paciente, da relação entre estes, da família e do próprio contexto institucional destas relações”. O principal objetivo da Psicologia Médica é a otimização dos procedimentos clínicos e a prevenção da iatrogenia ou iatropatogenia (ocorrência de doença decorrente da própria ação médica). Conforme foi desenvolvido por Abram Eksterman, o método utilizado é a “História da Pessoa”, que é constituída pela: - biografia do doente (como ele conta): os dados biográficos tornam o doente uma pessoa para o médico e não apenas uma patologia. A vantagem se baseia na individualização do caso clínico, com a conseqüente adaptação das medidas terapêuticas específicas para aquele doente; - estabelecimento das circunstâncias do adoecer: o conhecimento das circunstâncias de vida nas quais sobreveio a enfermidade possibilita evitar revivescências das mesmas circunstâncias morbígenas no relacionamento clínico; - compreensão da relação médico-paciente: possibilita a organização de uma estratégia assistencial, isto é, uma terapêutica individualizada. A relação médico-paciente pode ser fonte de graves iatrogenias, algumas das quais induzidas pelo paciente, sem que o médico disso se aperceba. A compreensão da relação médico-paciente também permite uma aliança criteriosa e harmoniosa com o paciente.. O objetivo final é a Medicina da Pessoa, ou seja, o atendimento ao ser humano, enfermo em função de sua biografia e do mundo ao qual ele se adaptou. 4.2- Psicologia Hospitalar A psicologia hospitalar tem construído sua história, passo a passo, considerando que há menos de duas décadas, a atuação do psicólogo em instituições hospitalares não estava regulamentada como uma ampla e necessária práxis psicológica. Os profissionais aventuraram-se por este caminho, mas muitos já o trilhavam, delineando os rumos desta área como a conhecemos hoje. Nos hospitais gerais, faz-se, então, necessário a escuta terapêutica com usuários, e, conseqüentemente, a escuta de seus familiares. Porém a psicologia hospitalar não pertence 21 unicamente à área clinica, pois ela também abrange áreas como a organizacional, social e educacional, utilizando-se de recursos técnicos, metodológicos e teóricos de diversos saberes psicológicos. A Psicologia Hospitalar busca comprometer-se com questões ligadas à qualidade de vida dos usuários bem como dos profissionais da saúde, portanto, não se restringindo ao atendimento clínico, mesmo este sendo uma prática universal dos psicólogos hospitalares. O pressuposto que permeia as atividades do psicólogo no hospital geral mostra outra visão de indivíduo, não fragmentada, mas como um todo, como um ser biopsicossocioespiritual com o direito inalienável à dignidade e respeito. A psicologia hospitalar ganhou reconhecimento da comunidade cientifica. Ganhou notoriedade junto a outras profissões. Ajudou e ajuda na humanização da prática dos profissionais de saúde dentro do contexto hospitalar. É determinante da própria mudança da postura médica diante de um quadro imenso de patologias onde os aspectos emocionais passaram a ser considerados no quadro geral do paciente. A psicologia hospitalar também é o renovar da esperança de que a dor seja entendida de uma forma mais humana. E de que os profissionais de saúde possam aprender a escutar a angústia, o sofrimento, a ansiedade,o medo, etc., presentes em cada manifestação física de dor e sofrimento emocional. Do coração que vibra em ânsia antes e após cada cirurgia. Da família que sofre junto do paciente sua dor, medo e angústia. E até mesmo da clarificação dos sentimentos do profissional de saúde que se envolve com a dor do paciente e que igualmente sofre a dor por esse envolvimento. 4.3- Psicologia da saúde No Brasil há um grande número de psicólogos com diferentes orientações teóricas, que desenvolvem vários tipos de trabalhos na área de saúde. A atuação do psicólogo da saúde pode ocorrer em diferentes contextos: ambulatórios, enfermarias, serviços de pronto-socorro e emergência, unidades de terapia intensiva, CAPs, centro de saúde-escola, centros comunitários, PSFs, postos de saúde e faculdades de medicina. Dentre as atividades desenvolvidas por este profissional, destacam-se: a avaliação de pacientes candidatos a diferentes procedimentos cirúrgicos; atendimento psicoeducacional; grupos para modificação de comportamento de risco; avaliação neuropsicológica para diagnóstico e proposta de intervenção; atuação multidisciplinar com outros profissionais de saúde; auxilio na reabilitação de pacientes com deficiências físicas; intervenções para o controle de sintomas (como, por exemplo, pacientes submetidos à quimioterapia); atendimento em psicologia pediátrica e saúde do trabalhador. 4.4- Humanização da assistência em saúde “Muitos pensam que humanizar nossa prática médica é sermos simpáticos com o doente, recebê-lo com civilidade, estimularmos a confiança, tudo na base de tornarmos a consulta agradável, assim como quem decora o consultório, pinta o hospital com cores atraentes, disfarça o agressivo dos instrumentos cirúrgicos, acrescenta áreas de recreio, música, televisão, brincadeiras para diminuir o estresse da intervenção médica, tipo Patch Adams, e assim por diante. Conhecemos bem estas práticas, que são acessórios, mas não afetivamente humanizam. O que humaniza nossa prática é a relação humana que construímos com nossos doentes. Assim como no texto bíblico o que humanizou o barro foi 22 a relação com Deus, ou seja, seu Criador, na medicina o que humaniza nossa prática é nossa relação com o doente, é o tipo de vínculo que construímos com ele. Não se trata de sermos simpáticos e educados, mas efetivos participantes de um momento crítico da vida de alguém. E esta capacidade deve ser aprendida. Raros são os médicos que a praticam de forma espontânea; muitos aprenderam nas lições clínicas do quotidiano; a maioria disfarça a enorme ignorância e incompetência com justificativas institucionais, ou mesmo nem percebe que não pratica medicina humana e que se tornou mero instrumento de protocolos e manuais baratos e inconseqüentes de terapêuticas sintomáticas. E, para nosso lamento, muitos também se tornaram francamente iatropatogênicos. Uma sólida base antropológica deveria fazer parte da formação médica. O médico deveria, antes de qualquer coisa, entender de gente, para poder tratá-la.(...) Há muita confusão entre estabilidade neuro-humoral e felicidade; entre ataxia e bem-estar; entre sucesso econômico e realização humana. A realização humana não se realiza através da conjugação do verbo ter, mas do verbo ser. E o ser se revela e se cria na relação com os outros; e a relação com os outros se faz através de nossa vida mental.Vida mental, portanto, é uma transcendência de nossa precária unidade humana. Ela não se faz na pessoa, mas entre pessoas. E nesse entre é que o ser humano se revela, e é na relação médico/paciente, compreendida em sua complexidade diagnóstica e terapêutica, que a medicina humana se realiza.(...) Um longo caminho temos que percorrer para que essa medicina seja praticada. Formação médica, novos currículos, novas nosografias, redimensionamentos terapêuticos. Por enquanto, tateamos com abordagens psicossomáticas, com equipes multidisciplinares que incluem psicólogos com titubeantes estudos e práticas, como os da psicologia médica. Estes passos preliminares são inevitáveis, como o foram o gesto carinhoso e a palavra amável do clínico geral do passado. Em um trabalho publicado há tempos atrás, afirmava que a maior descoberta realizada pela medicina do século XX foi a do próprio homem. Já no século XXI, verifico que essa descoberta ainda não se concluiu.” Abram Eksterman Professor Titular da Faculdade de Medicina da Fundação Técnico Educacional Souza Marques; Diretor do Centro de Medicina Psicossomática e Psicologia Médica do Hospital Geral da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. 23