história do direito medieval: heranças jurídico-políticas para

Propaganda
HISTÓRIA DO DIREITO MEDIEVAL: HERANÇAS JURÍDICO-POLÍTICAS PARA A CONSTRUÇÃO DA
MODERNIDADE
*
MEDIEVAL LAW HISTORY: POLITICAL AND JURIDICAL HERITAGES FOR THE CONSTRUCTION OF
MODERNITY
LÍGIA MORI MADEIRA**
Resumo:
O artigo pretende apresentar as principais fases da história do direito medieval, com o intuito
de vislumbrar heranças jurídico-políticas e desnaturalizar construções da modernidade. Para
tanto, percorre-se a organização jurídica dos povos germânicos; o direito canônico e as
formações jurídicas eclesiásticas; o direito feudal; o renascimento do direito romano e a
formação das universidades e da cultura do ensino jurídico; os significados do medievo para a
construção da modernidade; e, por fim, as conexões e genealogias da idade média na
formação do direito penal moderno, a partir de uma contribuição de Michel Foucault.
Palavras-chave: história do direito medieval, direito germânico, direito canônico, direito
feudal, cultura jurídica e universidades, instituições modernas.
Abstract:
This article intends to present the main historical phases of Medieval Law, in order to
highlight its political and juridical heritages and also denaturalize the constructions of
modernity. For that matter, we are led through the juridical organization of the Germanic
peoples, the canonic law and the formation of ecclesiastic law, the Feudal law, the rebirth of
Roman law and the creation of universities and the establishment of the juridical teaching
culture. We’re also guided through the meanings of the medieval for the construction of
modernity and, at last, the connections and genealogies of Middle Ages in the formation of
modern penal law, based on a contribution of Michel Foucault.
Keywords: medieval Law history, Germanic Law, canonic Law, feudal Law, juridical culture
and universities, modern institutions.
*
ARTIGO RECEBIDO 08-04-2010 E APROVADO EM 17-02-2011.
** Doutora em Sociologia. Professora do Departamento de Ciência
Política da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Endereço eletrônico: [email protected]
1
Introdução
A intenção desse artigo é dar aos alunos de História do Direito algum subsídio de leitura aos
seus estudos de direito medieval. Não se busca aqui, com essas poucas páginas, dirimir e exaurir a
problemática. Também não se pretende dar lições de história geral; a pequena conexão com fases
históricas dá-se no sentido de uma maior compreensão do fenômeno jurídico. A justificativa para
tanto está calcada no pressuposto de que um bom aluno de Direito deva ter uma boa compreensão
dos acontecimentos históricos.
Assim, o leitor deve utilizar tal texto como um roteiro, uma indicação de leitura, quiçá esperase que tal material sirva para despertar o interesse em aprofundar a temática, a partir de leituras mais
especializadas e aprofundadas.
Dentre as diferentes fases históricas da humanidade, aquela que talvez mais dúvidas suscite, é
o período medieval. Falar em medievo remete-nos sempre a um período de obscuridade, sendo
tratado como “idade de trevas”. Não obstante, a era medieval pode ser considerada imprescindível
para compreendermos o significado da formação do direito moderno, do Estado moderno, e de toda
a organização social e política a que chamaremos modernidade, bem como seus desmembramentos
posteriores: contemporaneidade, modernidade tardia, modernidade reflexiva, pós-modernidade†.
No que se refere ao direito nesse período, temos que entendê-lo a partir da constatação de
Grossi, como uma fase de vigência de inúmeros ordenamentos jurídicos.
He aqui como debemos aproximarnos al Derecho medieval: como a una gran experiência jurídica
que alimenta en su seno una infinidad de ordenamientos, donde el Derecho – antes de ser norma y
mandato – es orden, orden de lo social, motor espontâneo, lo que nace de abajo, de una sociedad
que se autotutela ante la litigiosidad de la incandescência cotidiana construyéndose esta autonomia,
hornacina propia y auténtica protectora del individuo y de los grupos. La sociedad se impregna de
Derecho y sobrevive porque ella misma es, antes que nada, Derecho debido a su articulación en
ordenamientos jurídicos (Grossi, 1996, p. 52).
Assim, o direito medieval é calcado num processo de descentralização política, relativismo,
sobreposição e disputa de poder entre grupos variados. Grossi (1996, p. 61) classificará o momento
como de um vazio relativo:
La tipicidad del medioevo jurídico descansa ante todo en este vacio relativo, en lo que hemos
calificado en el título de este parágrafo de levedad del poder político medieval, entendiendo por
levedad la carência de toda vocación totalizante del poder político, su incapacidad para situarse
†
Giddens (1991, 1997), Young (2002), Bauman (1998).
2
como hecho global y absorbente de todas las manifestaciones sociales, su realización en las
vicisitudes históricas medievales, cubriendo solamente ciertas zonas de relaciones intersubjetivas y
permitiendo sobre otras – muchísimas – la possibilidad de injerencia de poderes concurrentes; un
processo que, amparándose originalmente en las primeras hendiduras del edifício estatal romano, se
despliega en una facela absolutamente típica del momento en el que las hendiduras causen un
derrubamiento efectivo y sobre las ruínas ya no se edificará una estructura política de la misma
cualidade e intensidad.
Todo esse período que passaremos a analisar é fruto da crise do Império Romano, de um
processo de perda de efetividade, que culminará com as conhecidas invasões bárbaras‡. Segundo
Grossi (1996, p. 63),
El medioevo político alcanza su inauguración histórica, cuando, en el siglo IV, se produce el
momento de arranque de una profunda crisis Del Estado imperial, diferida, retenida y controlada
hasta Dioclesiano pero que ahora desemboca en manifestaciones siempre más relevantes: crisis de
efectividad, de credibilidad, de autoridad. En el mundo posdioclecianeo permanece solamente en
Estado crisálida, incapaz de imponer la propia voluntad, pero aun más incapaz de expresar
aquella voluntad unitária, sustitutiva e intolerante con voliciones particulares concurrentes, que es
típica de toda estructura autenticamente estatal; o sea, queda un no-Estado. El Estado romano
muere, muere por inanición, por un agotamiento interno que es material y espiritual, por un vacío
de poder eficaz y de programación deliberada.
Os primórdios dos ordenamentos jurídicos europeus organizam-se sobre as bases das
sociedades romano-germânicas da alta Idade Média.
‡
Em região alguma se instalou uma ordem política absolutamente nova, impondo modos de vida completamente
diferentes. Essas migrações bárbaras são, principalmente, do ponto de vista humano, infiltrações de grupos étnicos
pouco numerosos entre populações já bem diversificadas (Heers, 1991, p. 25), Em terra, essas migrações atingem de
início as províncias orientais do Império: é a “primeira vaga” germânica, a dos godos que ocupam a Ilíria. Mal
estabelecidos no Império, encarregados de restabelecer a ordem, de perseguir e dizimar os bárbaros mais turbulentos, os
visigodos (godos do este) obtêm um foedus em 418 e um vasto reino que reúne a Aquitânia e a Espanha. Os ostrogodos
(godos do leste), de início estabelecido por um foedus (455) nas planícies do médio Danúbio, ameaçam constantemente
os Bálcãs, atingem mesmo Constantinopla e, deslocados finalmente para o oeste pelo imperador bizantino Zenão, tomam
a Itália, conduzidos por seu rei Teodorico (1489-493). Na mesma época, outros povos bárbaros haviam atacado
diretamente os limes ocidental. Os vândalos cruzam à força o Reno em 406, entram na Espanha três anos mais tarde e,
perseguidos e seriamente derrotados pelos visigodos, passam posteriormente à África (429), onde, apesar da assinatura de
um foedus (435), conquistam as melhores províncias romanas. Os borgúndios, que foram sempre auxiliares do Império,
estabelecem-se primeiramente no Reino (foedus de 413), fundando a seguir um poderoso reino, que tendo como eixo
suas duas capitais, Lyon e Genebra, reúne as regiões do Saona e do Ródano até o rio Durance. Nas fronteiras das
províncias mais ocidentais, já enfraquecidas, afirma-se, porém, a espantosa sorte política dos francos, povo por muito
tempo obscuro, antes uma confederação de populações mais ou menos autônomas, que jamais tentaram ataques frontais
contra o limes, infiltrando-se, entretanto, lentamente; eram soldados do exército imperial em toda a Gália, colonos
militares estabelecidos muito cedo na Bélgica e nas margens do Reno (o primeiro foedus data do fim do século III) e
depois nas terras abandonadas pelas defesas romanas. Mais tarde, outros povos francos, que haviam permanecido na
Germânia, aproveitaram-se da abertura oferecida pelos vândalos em 406 e se instalaram como conquistadores nos vales
do médio Reno e do Mosela, tomando as fortalezas e devastando as cidades ainda prósperas (Heers, 1991, p. 15).
3
Os primórdios dos ordenamentos jurídicos europeus encontram-se nas formas básicas de vida das
sociedades romano-germânicas da alta Idade Média e nos três grandes poderes ordenadores que a
antiguidade tardia tinha deixado: os restos da organização do império romano do ocidente, a igreja
romana e a tradição escolar da antiguidade tardia, restos que os novos povos e tribus assentes no
antigo corpo do império e no centro da Europa receberam e de que se acabaram por apropriar
(Wieacker, 1967, p. 15).
A Idade Média é constituída por dois grandes períodos: a alta idade média, que se estende dos
séculos V a IX§, é marcada pelos direito romano e germânico, bem como pela formação e
desenvolvimento do direito canônico; e a baixa, dos séculos IX a XV, pelo direito feudal e pelo
renascimento do direito romano nas universidades. Podemos, pois, vislumbrar esse momento
histórico embasado na vigência de quatro grandes ordenamentos jurídicos: um direito de povos
germânicos; o direito oriundo da organização eclesiástica, chamado de direito canônico; o direito
feudal; e um processo de sobrevivência e renascimento do direito romano.
Tendo em conta essa pequena introdução, organizaremos este texto em seis itens: a
organização jurídica dos povos germânicos; o direito canônico e as formações jurídicas eclesiásticas;
o direito feudal; o renascimento do direito romano e a formação das universidades e da cultura do
ensino jurídico; os significados do medievo para a construção da modernidade; e, por fim, as
conexões e genealogias da idade média na formação do direito penal moderno, a partir de uma
contribuição de Michel Foucault.
1. A organização jurídica dos povos germânicos
Fruto de um processo de descentralização política, a Europa medieval e a antiga organização
política romana tiveram seus territórios invadidos** por uma multiplicidade de povos, a quem os
romanos designaram bárbaros††. Tais povos, mais conhecidos e melhor designados por germânicos‡‡,
§
A descrição em séculos não segue uma regularidade. Encontramos autores que conceituam a alta idade média como
período transcorrido entre os séculos VI a XII, e a baixa como do XIII ao XVIII (Gilissen, 2003, p. 128)
** As migrações germânicas provocaram, nas províncias do Ocidente, encontros de civilizações originais, freqüentemente
bem complexas. Desses choques nasceu nossa civilização medieval, civilização de síntese, onde é difícil distinguir as
tradições romanas e as múltiplas contribuições bárbaras. Desde mais de um século, os historiadores, segundo as técnicas
de pesquisa, os progressos das ciências auxiliares ou mesmo as teses e correntes de opinião, deram maior ênfase a um ou
outro mundo (Heers, 1991, p. 25).
†† Os gregos, depois os romanos, designavam pelo nome de bárbaros todos os povos declaradamente estrangeiros,
rebeldes à sua civilização, seu modo de vida, suas estruturas econômicas e sociais, sua cultura, e mesmo à sua língua. De
fato, o bárbaro, ao longo de todo o Império, é o homem das estepes ou das florestas, nômade mesmo nas cidadelas de
agricultores, incapaz em todo caso de assimilar a civilização greco-romana, essencialmente urbana. Por volta do século V,
a palavra é, sobretudo, cômoda para dissimular uma ignorância quase total dos povos além dos Limes. Ainda hoje, a
história dos bárbaros, que, do século III ao XI, atacam o Ocidente, permanece mal conhecida. Os seus próprios nomes
são por vezes incertos: esses povos formam muitas vezes vastas confederações, instáveis, compostas por tribos de
4
caracterizavam-se por se encontrar em um período anterior de desenvolvimento sócio-econômicocultural§§. Eram povos ligados a terra, não tinham desenvolvido a escrita, não tinham organizações
territoriais ou políticas. Seu principal elemento de organização social eram as famílias, baseadas na
autoridade do pai*** (Castro, 203, p. 127, 128).
Quanto ao seu direito, devido à pequena centralização e uniformidade, tinham formações
jurídicas calcadas na oralidade e no costume, com cada tribo dispondo de uma tradição própria, tal é
a característica de direito consuetudinário. No entanto, tais povos dominantes nos primeiros
momentos do período medieval, mantiveram um princípio de pessoalidade das leis†††, não impondo
seu direito sobre os diferentes povos, que mantiveram o estatuto de suas tribos de origem, o que
também permitiu, como se verá mais adiante, uma sobrevivência do direito romano‡‡‡ (Castro, 2003,
p. 129).
Segundo Wieacker, houve, pelo contrário, uma absorção de valores e instituições romanas
por parte dos germânicos:
A atitude espiritual desses povos (germânicos) não conhecia qualquer repulsa intima pelas
respeitáveis e brilhantes tradições, que eles tinham encontrado; adotaram a escrita latina, a
civilização material, a língua romana, os restos da cultura tardo-clássica e, finalmente a crença
católica em vez da ariana.
Quanto ao direito, conservaram o seu durante mais tempo, na medida em que ele ainda era
determinado pelo modo de vida das comunidades pessoais e pelo seu próprio ethos e não pelo
resultado de novas relações econômicas ou de poder; para isto contribui também a concepção
germânica de que o direito não é um comando arbitrário, mas uma tradição de vida inatacável
(Wieacker, 1967, p. 27).
origens muito diversas, que se valem do povo vencedor, adotam seu nome, para depois trocá-lo assim que mude a sua
sorte (Heers, 1991, p. 13, 14).
‡‡ Vide nota 4.
§§ Tornou-se lugar comum relacionar a civilização germânica a uma vida mais ou menos nômade ou errante, estranha,
todavia, às tradições da vida urbana. As invasões bárbaras teriam então provocado uma desintegração das cidades, das
relações do comércio e do artesanato urbano, da própria economia monetária. Esta visão clássica, no todo, não é de todo
inexata; deve ser somente matizada, pois apresenta, em algumas regiões, várias exceções (Heers, 1991, p. 28).
*** O cerne da organização política é o clã, chamado sippe, isto é, a família em sentido lato. Vivendo da agricultura e da
pecuária, o clã agrupa, sob a autoridade do pai, os membros da família e outros auxiliares, talvez escravos; a família é
patrilinear; o pai mantém nela a ordem e a paz; o seu poder é em princípio ilimitado porque não tem superiores. As
relações entre os clãs eram a maior parte das vezes reguladas pela faida, a luta, a guerra privada (Gilissen, 2003, p. 162).
††† A aplicação do princípio da personalidade do direito implica a necessidade de determinar que direito é aplicável a cada
individuo e de resolver os conflitos que podem nascer entre pessoas pertencentes a dois sistemas jurídicos diferentes. As
regras que nascem nesta época estão na origem dos princípios que sobrevivem no direito internacional privado moderno
(Gilisssen, 2003, p. 168).
‡‡‡ Seria necessário, para medir mais exatamente a influência germânica, avaliar as migrações, os deslocamentos de
pequenos grupos. Já antes do século IV, vários aspectos da civilização, da vida política e do direito das províncias
romanas achavam-se profundamente marcados pelos contatos com os bárbaros estabelecidos no Ocidente (Heers, 1991,
p. 26).
5
Gilissen (2003, p. 167) aponta a diferença entre o nível de evolução do direito romano e dos
povos germânicos como fator para a não imposição destes sobre aquele. Além disso, segundo o
autor, os germânicos acabaram se beneficiando das concepções de direito público romanas, que
reforçavam sua autoridade.
Apesar de restritos documentos escritos, Gilissen analisa a existência de algumas leis bárbaras:
Conhece-se uma dezena de leges barbarorum no quadro geográfico do império carolíngio: lex salica,
lex rubuaria, lex burgundionum, lex alamanorum, ... A redação de algumas delas remonta aos
séculos V ou VI, outras datam somente do século IX. Desempenharam um papel capital na
conservação das tradições jurídicas dos povos germânicos... Estas leges não são verdadeiros códigos,
longe disso; não são sequer leis, no sentido atual do termo; são mais registros escritos de certas
regras jurídicas, com origem no costume, próprias deste ou daquele povo. São pois compilações
muito incompletas, espécie de manuais oficiais para uso dos agentes da autoridade e dos membros
dos tribunais... As leges não são pois actos legislativos, leis no sentido moderno – e romano - da
palavra. São, na realidade, costumes reduzidos a escrito com a ajuda de “dizedores do direito” e
por vezes aprovados pela autoridade. As leges encontram-se escritas em latim, salvo as de
Inglaterra (Gilissen, 2003, p. 172).
Tal é, pois a contribuição e a influência desses povos para o medievo e sua construção
jurídica.
2. O direito canônico e as formações jurídicas eclesiásticas
Podemos salientar a importância da Igreja ocidental na Idade Média, tendo assumido muitas
das tarefas públicas, sociais e morais do antigo império romano§§§. A Igreja era a força espiritual de longe
mais importante; era a mais coerente e mais extensa organização social da Idade Média; a sua ordem jurídica interna
era a mais poderosa da Idade Média (Wieacker, 1967, p. 67).
Foi ela a responsável, desde o início, pela fixação de um conceito de direito, calcado na ética
social e, sobretudo, na ética cristã. Tal importância fica clara citando-se Wieacker (1967, p. 17):
A cristandade fixou desde o início o conceito do direito. Na medida em que a fonte de todo o
direito não escrito – que arrancava da consciência vital espontânea – continuou a ser a ética social,
§§§ No século II,I o Cristianismo torna-se religião do Estado, com a proibição de todas as outras religiões. A sua
organização territorial é estabelecida de acordo com o modelo de administração do Império Romano. É graças à Igreja
que alguns vestígios desta administração subsistirão na Idade média. Em cada província romana havia um arcebispo, em
cada civitas um bispo, que tinha sob a sua dependência o clero das paróquias. A competência do bispo era extensa, ele
era auxiliado por padres e por laicos, arquidiáconos e diáconos (Gilissen, 2003, p. 136). Após o desmembramento do
Ocidente no século V, o poder temporal da Igreja enfraqueceu, deixando-se estar submetida ao Estado, mas continuando
como única autoridade comum aos fiéis de diferentes estados (Gilissen, 2003, p. 137).
6
e na medida em que toda a ética européia continuou a ser, até bem tarde na época moderna, a ética
cristã, a doutrina cristã influenciou o pensamento jurídico, mesmo quando legislador e juristas
estavam pouco conscientes dessa relação. Através do cristianismo, todo o direito positivo entrou
numa relação ancilar com os valores sobrenaturais, perante os quais ele tinha sempre que se
legitimar.
Nessa fundamentação ética não podemos nos esquecer da influência grega, principalmente
platônica, de grande influência à teologia, nesse momento histórico:
Esta metafísica, inteiramente estranha às origens da cristandade, bem como às do direito romano,
foi a descoberta de Platão, descoberta que os padres da Igreja receberam e a teologia da alta Idade
Média renovou. Ainda que ela seja considerada uma descoberta do espírito grego, o certo é que,
para o pensamento jurídico europeu até o início da época moderna, foi quase exclusivamente
mediada pela teologia (Wieacker, 1967, p. 17).
Sendo assim, vemos uma grande primazia do direito canônico**** na Europa, principalmente
por seu caráter unitário, sua predominância escrita, uma grande supremacia na regulação do direito
privado.
O direito canônico teve uma importância crucial na formação e manutenção das instituições e
da cultura jurídica ocidental. Toda a reorganização da vida jurídica européia, com o desenvolvimento
das cortes, dos tribunais, e das jurisdições tem influência do direito da Igreja.
Segundo Gilissen (2003, p. 134 e 135), vários fatores ressaltam a importância desse direito
para o medievo: o caráter ecumênico da Igreja, que se coloca como a única religião verdadeira para a
universalidade dos homens; a dominação sobre certos ramos do direito privado, que foram regidos
exclusivamente pelo direito canônico, durante vários séculos, mesmo para os laicos; o fato de ser o
único direito escrito, durante a maior parte da idade média, tendo sido objeto de trabalhos doutrinais,
muito mais cedo que o direito laico, constituindo-se numa ciência do direito canônico, exercendo
influência na formulação e desenvolvimento deste direito laico.
Segundo este autor, o direito canônico é um direito religioso, retirando suas regras de
princípios divinos, revelados nos livros sagrados, o Antigo e o Novo Testamento. É o direito de
todos os que adotam a religião cristã, onde quer que se encontrem (Gilissen, 2003, p. 135).
Além disso, a formação de uma classe de juristas, oriunda de dentro da organização
eclesiástica foi fundamental para o desenvolvimento de uma camada de profissionais, que disputará
mais tarde com os não clérigos, o poder de dizer o direito.
****
O direito canônico é o direito da comunidade religiosa dos cristãos, mais especialmente o direito da Igreja católica. O
termo cânon é empregado nos primeiros séculos da Igreja para designar as decisões dos concílios (Gilissen, 2003, p. 133).
7
Dentre os maiores estudiosos do direito dentro da organização da Igreja encontramos os
canonistas††††, juristas que trabalhavam em um processo de interpretação de textos do passado com
autoridade, identificando direito e teologia. Todas as antinomias são solucionadas a partir de quatro
critérios: a) ratione significationis; b) ratione temporis (lei posterior revoga lei anterior); c) ratione loci (lei local revoga
lei geral); d) rationi dispensationis (lei especial revoga lei geral). (influência na tradição jurídica ocidental) (Lopes,
2003, p. 95).
O Corpus Iuris Canonici, principal legislação do direito canônico, permaneceu em vigor até
1917, tendo sido composto de cinco partes, redigidas dos séculos XII ao XV: Decreto de Graciano,
Decretas de Gregório IX, Livro Sexto, as Clementinae, Extravagantes de João XXII, Extravagantes
Comuns (Gilissen, 203, p. 147).
Wieacker (1967, p. 69, 70, 72) explicita o funcionamento desse direito:
Ao contrário do que acontece com o direito profano, a ordem jurídica da Igreja baseava-se, já na
Alta Idade Média, numa tradição salvaguardada pelo uso da escrita, da redação documental e
pela escola. As bases desta tradição eram as fontes escritas e os atos de aplicação do direito da
Igreja desde o seu início: a Sagrada Escritura e os padres da Igreja; as decisões dos concílios e dos
sínodos; os cânones e as decretais dos papas; por fim as leis imperiais e os capitulares relativos à
igreja imperial franca.
Em consonância com a ciência jurídica profana do seu tempo também a canonistica não era, em
primeira linha, o resultado de atos de criação do direito por parte da Igreja, mas antes de um
trabalho científico de recolha, certificação e elaboração intelectual de uma tradição já encontrada. A
elaboração científica das fontes jurídicas da Igreja não se distinguia das outras disciplinas teológicas
(como a teologia moral e a dogmática) a ponto de, neste momento, se poder falar de uma ciência
jurídica canônica autônoma.
O canonista típico, que agora se formava a par do legista, encontra-se na sua atitude intelectual,
mais perto do jurista do que do teólogo; ele corporiza a segunda camada intelectual dos juristas da
alta idade Média.
Todo o direito baseado em cânones fez surgir, como mencionado, uma camada de juristas
que fez carreira por seu conhecimento e não mais pelas relações pessoais (Lopes, 2003, p. 98).
††††
O inicio do direito canônico estava inicialmente anexo ao ensino da teologia. O desenvolvimento do estudo do direito
romano em Bolonha e a importância da tomada pelo Decreto de Graciano levaram, assim, nos finais do século XII, a que
se formassem escolas de direito canônico, a par das escolas de direito romano. Em Bolonha, Montpellier, Toulouse,
Orleães, mais tarde as universidades ibéricas e alemãs e em Lovaina coexistiram dois ensinos: muitas vezes os estudantes
seguiam os cursos das duas faculdades e tornavam-se doctor utriusque júris (Doutor em ambos os direitos). Os dois
principais métodos de ensino ficavam a cargo dos Decretistas, que tomavam o decreto de Graciano como a base dos seus
trabalhos, a partir da realização de glosas e summae; e Decretalistas, consagrados ao comentário das Decretais de
Gregório IX (Gilissen, 2003, p. 149, 150).
8
Este ensino apresenta um largo espectro, correspondente à organização muito variada do ensino da
Igreja, mas está sobretudo ligado às escolas conventuais e às escolas reais dirigidas por um clérigo, e
mais tarde, também, às escolas catedrais. Aquilo a que nós chamamos ensino do direito era,
portanto, também a formação geral dos clérigos, destinada às suas tarefas pastorais, eclesiásticas e
mundanas, ainda que o aluno da escola conventual acabasse por não ingressar no estado
eclesiástico (Wieacker, 1967, p. 30).
Em termos de características, percebemos uma uniformização, centralização de poder, e o
reconhecimento de um sistema de recursos. No que se refere às regras processuais, podemos
perceber um processo de formalização e racionalização, fases processuais organizadas com clareza,
investigações e provas devendo conduzir a um convencimento do juiz, abolição das provas
irracionais (que serão mantidas e incentivadas no Tribunal da Inquisição), mas também um processo
de perda de celeridade, instaurando-se as práticas dilatórias e a formalização de atos e prazos (Lopes,
2003, p. 105).
Além disso, o direito canônico estabelece regras de competência baseadas na pessoa e na
matéria, especialmente na época de seu apogeu, dos séculos X a XIV (Gilissen, 203, p. 141): em
razão da pessoa (ratione personae), temos:
eclesiásticos, tanto clérigos regulares como seculares
(privilegium fori absoluto – os clérigos não podiam renunciar a ele); cruzados (aqueles que tomaram a
cruz, que partem em cruzada: privilegium crucis); membros das universidades (professores e
estudantes); e os miserabiles personae (viúvas e órfãos) quando pediam a proteção da Igreja. Já em
razão da matéria (ratione materiae), em questões penais: infrações contra a religião (heresia, apostasia,
simonia, sacrilégio, feitiçaria, etc); e infrações que atentassem contra regras canônicas (adultério,
usura), com competência concorrente da jurisdição laica. Quanto à matéria civil: benefícios
eclesiásticos; casamento e as matérias conexas: esponsais, divórcio, separação, legitimidade dos filhos;
testamentos; execução de promessa feita sob juramento.
Quanto às limitações hermenêuticas do direito e de sua aplicação,
Era um mecanismo propriamente político de controle pelo alto dos poderes absolutos de um
monarca, mesmo que fosse o papa. Conjugava-se com um controle de costumes, que limitava por
baixo os mesmos poderes absolutos (Lopes, 2003, p. 99).
Dentre as discussões sobre o direito medieval de origem eclesiástica, temos ainda que
salientar a Reforma Gregoriana e o significado político do Tribunal do Santo Ofício.
9
A Reforma Gregoriana, levada a cabo pelo Papa Gregório VII‡‡‡‡, teve como objetivo um
processo de autonomização e centralização da Igreja, a partir de um movimento conhecido como
Querela das Investiduras§§§§, que cerceou nas mãos do pontífice o processo de nomeação de
bispos*****, o que culminará com a organização de um poder político, que será a origem do Estado
Moderno: dominação burocrática, racional, legal e formal (Weber, 1999). A partir da reforma,
inaugura-se o modelo que irá vigorar na Europa até o período das reformas, no século XVI, da Igreja
constituindo-se em poder paralelo ao Estado.
Segundo Gilissen (2003, p. 137),
O poder pontifical atinge o seu apogeu nos séculos XII e XIII. De acordo com a concepção dos
grandes papas da época (Gregório VII, Inocêncio III, Bonifácio VIII), os reis detêm o seu poder
da Igreja que os sagra e os pode excomungar, no entanto, não se trata de uma teocracia, pois o
papa não pode exercer o poder temporal, salvo nos seus próprios Estados.
Enfim, a finalidade de Gregório VII com a Reforma era o estabelecimento de um poder disciplinar
em suas mãos, um controle central de uma população dispersa, o estabelecimento de uma identidade corporativa do clero
com um certo corpo de leis disciplinares, dando em uma consciência de classe. Afirmação da superioridade da lei sobre
os costumes (Lopes, 2003, p. 90).
Por fim, faz-se necessário compreender o significado da Inquisição e das Cruzadas como dois
grandes movimentos interligados e oriundos da organização eclesiástica romana.
‡‡‡‡ Por muito tempo qualificou-se de Reforma gregoriana, do nome do papa Gregório VII, o grande movimento que
introduz no Ocidente uma outra espiritualidade e afirma a independência temporal da Igreja diante dos poderes laicos.
De fato, é evidente que a personalidade de Gregório VII é apenas um símbolo e sua ação um só aspecto de um
vastíssimo e complexíssimo reflorescimento (Heers, 1991, p. 95).
§§§§ Os dois aspectos da reforma religiosa, reflorescimento espiritual e libertação dos leigos, são indissociáveis. Esse clima
religioso novo fornece ao papado um poder espiritual mais forte, capaz de desafiar o poder político dos soberanos. A luta
entre o papado e o Império, que se resume de uma maneira bastante arbitrária, mas cômoda, ao se falar de “questão das
investiduras” acende-se de maneira decisiva nos pontificados de Nicolau II (1059-1061) e de Gregório VII (1073-1085).
Nicolau II faz promulgar os célebres decretos que confiam doravante a escolha do soberano pontífice aos cardeais da
Igreja (bispos da Cura romana, conselheiros do papa); essa escolha é aclamada pelo povo de Roma e o imperador
mantém somente o direito de confirmação. Gregório VII, monge (Hildebrando), místico, inteiramente devotado à
reforma espiritual do clero, já sustentáculo de vários papas, afirma prontamente após sua eleição a independência da
Igreja. No espaço de dois anos faz proclamar a queda de todos os prelados que haviam obtido seus cargos em troca de
dinheiro e condena formalmente as investiduras episcopais ou abaciais concedidas pelos leigos. Nos Dictatus Papae,
proclama pessoalmente o primado absoluto de Roma sobre a Igreja e o conjunto da cristandade. Esta atitude provoca
vivas reações no Imperador Henrique IV e anuncia o início da questão das investiduras, na realidade a luta pela
dominação do mundo ocidental (Heers, 1991, p. 98).
***** Nos primeiros tempos bárbaros, o bispo permanece como o único senhor da cidade, encarna a única força espiritual
do momento e, muitas vezes, identifica-se mesmo com a “nação” romana. Nessa época conturbada, a escolha dos
cristãos será freqüentemente sobre um leigo, pio e poderoso, já acostumado ao andamento dos assuntos públicos.
Membro da grande aristocracia, rico proprietário, administrador experiente, o bispo protege a cidade contra pilhagens e
desordens; assegura o abastecimento e controla o mercado, constrói hospitais e escolas. Perto da catedral faz trabalhar
um grupo de pequenos artesãos e logistas (Heers, 1991, p. 32).
10
O Tribunal do Santo Ofício ou Tribunal da Inquisição surgiu como um tribunal especial para
julgar e condenar os hereges†††††.
No Tribunal do Santo Ofício o direito de acusar pertencia somente à parte lesada, com uma
diferenciação na aplicação das penas entre nobres e plebeus. A origem do processo baseava-se em
acusações secretas, os atos e provas eram mantidos em segredo e a prova testemunhal era a mais
utilizada. Além disso, a prova de confissão era a mais importante, sendo na maioria das vezes
alcançada mediante tortura. Os juízes eram livres para interpretar as leis, além de poderem utilizar
penas variadas (Castro, 2003, p. 138).
O processo era instaurado de ofício, a mando do inquisidor, perdendo o caráter de
contraditório, com a utilização da tortura como ato formal, sempre que houvesse indícios.
O processo inquisitorial instituindo o inquérito como modelo judicial e jurídico, faz com que
esse instrumento baseie-se nesse novo personagem: o inquisidor, um acusador oficial que irá
representar o Estado de forma ordenada e racional, e que será objeto de estudos por Michel Foucault
(1996, 1999, 2002, 2003), constituindo num aparte desse texto, como se verá mais adiante (Lopes,
2003, p. 196).
Apesar de o Tribunal do Santo Ofício ser de exceção, voltado especificamente aos delitos de
heresia, acabou tornando-se
em um instrumento de centralização monárquica da Igreja e,
posteriormente, dos Estados Nacionais.
Segundo Le Goff (1994, p. 18), a produção cultural e literária da época sobre o que se
chamava “sociedade do Diabo‡‡‡‡‡” acaba por fazer surgir uma série de manuais, instaurando uma
sociedade de estados:
A coroação deste reconhecimento dos “estados” é a sua entronização na confissão e na penitencia.
Os manuais de confissão que no século XIII definem os penados e os casos de consciência acabam
por catalogar os pecados por classes sociais. A cada estado seus vícios e seus pecados. A vida moral
e espiritual socializou-se segundo a sociedade dos estados.
†††††
Convém insistir na oposição decisiva entre a heresia oriental, de caráter dogmático, filosófico, e que se desenvolve de
início em alguns círculos estreitos de doutores, de eruditos, e a heresia ocidental, essencialmente popular, que conquista
elementos pouco instruídos ou iletrados (Heers, 1991, p. 148).
‡‡‡‡‡ Esta nova sociedade é a sociedade do Diabo. Daí a considerável voga que teve a partir do século XII na literatura
clerical o tema das “filhas do Diabo”, casadas com os vários estados da sociedade. Por exemplo, numa filha de guarda de
um manuscrito florentino do século XIII podemos ler o seguinte: O diabo tem IX filhas, que casou: a simonia com os
clérigos seculares; a hipocrisia com os monges; a rapina com os cavaleiros; a profanação com os camponeses; a simulação
com os guardas; a fraude com os mercadores; a usura com os burgueses; a pompa mundana com as matronas; e a luxúria,
que ele não quis casar e que a todos oferece como amante comum (Le Goff, 1984, p. 18)
11
Também as Cruzadas§§§§§ tiveram uma atuação fundamental para uma expansão do Ocidente,
mas não somente uma conquista econômica, haja vista que a resistência e a luta armadas contra os infiéis
pesaram profundamente sobre a vida dos cristãos do Ocidente, desde o século IX e por vezes mesmo mais cedo (Heers,
1991, p. 161).
O direito canônico e a supremacia do poder da Igreja perdem força a partir do século XVI,
com o surgimento das Reformas e de um processo de laicização do Estado e do direito que vai
ocorrer em praticamente toda a Europa (Gilissen, 2003, p. 141).
3. O direito feudal
Por volta do século X, a Europa passa por um processo de transformação da organização
política e social que culminará com o surgimento do feudalismo******.
O feudalismo é caracterizado por um conjunto de instituições das quais as principais são a
vassalagem e o feudo. Nas relações feudo-vassálicas, a vassalagem é o elemento pessoal: o vassalo é
um homem livre comprometido para com o seu senhor por um contrato solene pelo qual se submete
ao seu poder e se obriga a ser-lhe fiel e a dar-lhe ajuda e conselho, enquanto o senhor lhe deve
proteção e manutenção. A ajuda é geralmente militar, isto é, o serviço a cavalo, porque a principal
razão de ser do contrato vassálico para o senhor é poder duma força armada composta por
cavaleiros (Gilissen, 2003, p. 189).
Toda a organização jurídica fica restrita às relações feudo-vassálicas, uma vez que toda a
organização estatal e legislativa desapareceu. O costume é a única fonte do direito laico, tendo
desaparecido o direito romano (exceto na Itália) e o canônico reger apenas as relações eclesiásticas e
alguns ramos civis (supra).
Tendo em vista o também desaparecimento do princípio da pessoalidade das leis, este direito
consuetudinário terá base territorial, ou seja, cada coletividade vive segundo suas tradições jurídicas
próprias.
§§§§§ As Cruzadas são apenas um aspecto particular, sem dúvida o mais espetacular, da expansão do Ocidente, de um forte
aumento demográfico, cujas conseqüências no plano econômico já foram medidas. Trata-se aqui de uma verdadeira
conquista de terras novas, conquista política e agrária. Que esta expansão se insira num vasto movimento religioso, ou
seja, marcada por um espírito bastante particular, apoiada por um ímpeto coletivo espontâneo, não muda em nada o
aspecto humano do problema. A Europa ocidental, que era, ainda no século IX, um pólo de atração para os povos
invasores do Leste e do Norte, ressente-se dois séculos mais tarde de uma superpopulação manifesta e, por sua vez, lança
seus homens à procura de outras terras... Ver, entretanto, nas origens das cruzadas na Terra Santa, na Espanha e mesmo
no Leste alemão, somente motivos econômicos é evidentemente uma simplificação abusiva. Não se pode omitir o papel,
essencial, da idéia de Cruzada, nem negligenciar o estudo das mentalidades coletivas que sozinhas explicam a amplitude
dos empreendimentos, a persistência do entusiasmo em alguns meios (Heers, 1991, p. 161).
****** O desenvolvimento do feudalismo não segue a mesma evolução cronológica em todos os países (Gilissen, 2003, p.
188).
12
Os séculos X e XI foram séculos sem escritos jurídicos: nem leis, nem livros de direito, nem sequer
actos reduzidos a escrito. Os contratos tão numerosos que estão na base dos laços de dependência de
homem para homem (vassalagem, servidão) e dos direitos sobre a terra (feudos, foros, etc.)
raramente eram reduzidos a escrito; quando muito, algumas instituições eclesiásticas (sobretudo
capítulos e abadias) mandaram redigir os actos (sobretudo doações) que lhe interessavam... à parte
alguns clérigos, ninguém sabe ler nem escrever, há poucas escolas; os juízes (por exemplo, os
vassalos reunidos num tribunal feudal) são incapazes de ler textos jurídicos. A justiça é feita, a
maior parte das vezes, apelando para Deus, com a ajuda de ordálios ou de duelos judiciários.
Enfim, a maior parte das relações entre os homens, que nascem das convenções próprias das
instituições feudo-vassálicas, são regidas pelo costume que fixa as obrigações duns e doutros
(Gilissen, 2003, p. 191).
4. O renascimento do direito romano e a formação das universidades e da cultura do
ensino jurídico
Apesar de as concepções jurídicas medievais terem insistido na separação entre as ordens
canônica e temporal, distinguindo canonistas e legistas, a quem analisaremos mais adiante, houve um
processo de aproximação entre elas, que acabou por fortalecer o renascimento do direito romano.
O jus civile e o jus canonicum, a legistica e a canonística andavam em princípio separadas nas
concepções jurídicas da época... No entanto, estes sintomas mostram como, ao mesmo tempo, as
duas culturas jurídicas da Idade Média se aproximavam uma da outra e se começavam a se
penetrar mutuamente. Um intercâmbio dos princípios favoreceu, sobretudo, um mútuo princípio de
subsidiariedade: os juízos eclesiásticos aplicavam, de forma subsidiária, o direito romano; a
jurisdição profana aplicava do mesmo modo, os princípios gerais do direito canônico (Wieacker,
1967, p. 76).
O direito romano, apesar de ter continuado a ser aplicado aos povos de origem romana,
acabou por suplantar o direito germânico, nas penínsulas ibérica e itálica, tendo um renascimento
com a formação das universidades medievais e o desenvolvimento dos Estados Nacionais.
Esses povos depararam, neste ponto, com as duas formas do conceito romano de direito: a lei
imperial que impunha a sua pretensão absoluta de vigência em relação a todos os membros da
comunidade submetida, tornando assim, pela primeira vez possíveis formas alargadas de domínio,
o direito como criação intelectual de uma ciência especializada altamente diferenciada.
Não obstante esse processo de manutenção da tradição jurídica romana, que não se dá por
completo, houve, concomitantemente, um processo de perda civilizacional que, segundo Wieacker
(1967, p. 23), será responsável por uma estabilização dos fundamentos da consciência jurídica
européia.
13
Como muitas das grandes culturas do mundo, a cultura ocidental desenvolveu-se sobre o corpo de
uma pré-cultura, quando grupos de povos guerreiros invasores dominaram uma velha civilização
urbana com uma organização débil ou em desagregação e, ao fazê-lo, foram remodelados por ela.
A assimilação civilizacional significa simultaneamente uma educação espiritual que desperta uma
nova força criadora; à educação externa acaba por se seguir um renascimento da pré-cultura a
partir do novo sentido da vida...
Esta matriz fundamental domina também o ritmo da evolução jurídica européia, que constitui
uma progressiva apropriação do patrimônio romanístico em desenvolvimento até os nossos dias.
Primeiramente foram recebidos os elementos materiais e técnicos do direito vulgar. A transição
para o século XII assiste ao encontro sempre aberto e provisório, com a grande jurisprudência
romana na versão do classicismo justinianeu, encontro acompanhado pela recepção da teoria
jurídica e política de Aristóteles que produziu, na Suma de S. Tomás, o primeiro sistema europeu
de direito natural. Só com o humanismo se iniciam as tentativas de arrancar ao Corpus Iuris
justinianeu o autêntico direito romano clássico, tentativas que, mais tarde, a Escola Histórica de
novo retomou e que a moderna romanística concluiu de forma metódica (Wieacker, 1967, p.
24).
Como um processo dialético de incorporação e perda, a cultura jurídica romana atingiu os
germânicos da mesma forma que foi enterrada pelos romanos, podendo ser redescoberta apenas
quando houvesse maturidade para tanto (Wieacker, 1967, p. 28).
Sendo assim, podemos, com relação à história do ensino jurídico e sua metodologia,
distinguir dois tipos de tradições jurídicas: a primeira, sita no universo eclesiástico, de clérigos com
formação jurídica, já, de certa forma descrita anteriormente; e, por outro lado, o desenvolvimento de
universidades laicas, com preponderância para Bolonha, e o desenvolvimento das principais escolas
jurídicas de interpretação do direito no medievo, com o surgimento dos glosadores, consiliadores e
humanistas.
O contexto dos juristas na Idade Média, de estudo ao texto romano, dava-se a partir do
trivium, aplicando-se a dialética, a tópica e a retórica ao texto de Justiniano, o Corpus Iuris Civilis.
Consideravam, pois, o direito romano como uma totalidade, uma razão objetiva e universal (Lopes,
2003, p. 118).
As universidades têm início na Idade Média, a partir da formação das artes liberais e das artes
mecânicas. As primeiras formavam em direito, teologia e medicina, ficando sob a guarda da Igreja até
por volta do século XI.
O estudo do direito era dividido em cânones e civil. O direito romano era visto como um
direito comum a todos, sendo o estudo baseado na busca de objetividade e a ciência considerada um
saber aberto.
14
Por volta do século XII começa a haver, principalmente na Itália, um ressurgimento do
direito romano, que irá, nos séculos seguintes, estar relacionado ao nascimento de todo um
movimento de renascimento do pensamento filosófico, da literatura e do desenvolvimento comercial
de certas cidades do norte.
Dentre as principais universidades, Bolonha se destaca, também compartilhando do
referencial filosófico-teórico grego. Bolonha tem seu desenvolvimento a partir do século XI, ligada a
um progresso comercial que impulsiona o desenvolvimento de uma cultura literária profana. Nesse
processo, o direito romano dá sua contribuição:
Essa refracção da idéia de Roma mostra precisamente que os partidos vêem agora no direito
romano pura e simplesmente o direito da comunidade jurídica humana. Para todos ele constitui o
direito natural por força de sua dignidade histórica e autoridade metafísica; e assumiu, no projeto
conjunto do pensamento jurídico medieval, a categoria de uma moral validade em geral: tudo isto,
no entanto, sem exigir, nem sequer na Itália, uma aplicação direta através dos corpos de
magistrados. Assim, recorriam ao direito romano não só os juristas, como ainda os canonisas e
mesmo os cultores da teologia moral, a partir do momento em que os decretistas tinham extraído
precisamente das Instituições e do Digesto a idéia de jus naturale. Por outro lado, mesmo a própria
imagem do direito dos glosadores não era uma imagem técnico-jurídica. Ela radicava também na
idéia mais genérica de direito natural da alta Idade Média, na qual as concepções e tópicos
aristotélicos, estóicos, ciceronianos e patrísticos se tinham introduzido como elementos mais firmes
(Wieacker, 1967, p. 28).
Segundo Gilissen (2003, p. 205), podem-se elencar algumas transformações nos sistemas
jurídicos dos séculos XII a XIII, que irão ser importantes para a formação de nossos sistemas
jurídicos na atualidade, principalmente os chamados direitos de família romano-germânica: passa-se
de um sistema irracional para um racional, estabelecendo-se a verdade por meios racionais de prova,
com o arbítrio dando lugar à justiça; desaparece a multiplicidade do regime feudal, formando-se os
embriões dos Estados modernos; o desenvolvimento econômico faz surgir um direito urbano,
caracterizado pela igualdade jurídica; além de um processo de emergência da lei frente ao costume.
Dentre os vários métodos de estudo do direito romano neste período, destacam-se algumas
escolas como a dos glosadores, a Escola de Orleães, os pós-glosadores ou comentadores, e os
humanistas.
A Escola de glosadores teve origem em Bolonha, vigorando entre os séculos XII e XIII. Os
glosadores, juristas que trabalham a partir da interpretação de textos romanos, consideram-nos como
instrumento de razão, verdade e autoridade (Lopes, 2003, p. 128, 129).
Segundo Wieacker (1967, p. 48):
15
Quando os glosadores interpretam os seus textos e procuram ordená-los num edifício harmônico,
partilham na verdade, com as modernas teologia e jurisprudência, as intenções de uma dogmática,
de um processo cognitivo, cujas condições e princípios fundamentais estão predeterminados através
de uma autoridade... Não queriam nem provar a justeza da afirmação do texto perante o fórum
da razão não pré-condicionada, nem fundamentá-lo ou compreendê-lo do ponto de vista histórico,
nem, tampouco, torná-lo útil para a vida prática. O que eles queriam era antes comprovar com o
instrumento da razão, que para eles era constituído pela lógica escolástica – a verdade irrefutável
da autoridade. Esta relação entre autoridade e razão com que os intelectuais medievais se
ocuparam tão incansavelmente remonta ao idealismo grego, notadamente ao platônico, e à
esperança provinda da filosofia eleática, de que a todo o objeto pensado deveria corresponder um
ente metafísico.
Apesar de uma técnica de interpretação de textos, os glosadores passaram a interpretá-los em
conjunto, compreendendo o sentido global do texto e resolvendo as possíveis contradições entre
eles.
Só através da exploração ininterrupta e comparativa do material das fontes os glosadores se
apropriaram completamente da problemática jurídica global do Corpus Iuris (Wieacker, 1967,
p. 53).
Segundo Wieacker, a importância dos glosadores para a resolução dos conflitos e para a
formação da jurisprudência européia culminou com a formação de uma cultura legalista.
Os glosadores deram forma, com este modelo de ensino, ao método que fundamentalmente ainda
hoje se mantém como técnica dos juristas. O resultado destes processos, moldados por incontáveis
gerações de juristas e gravado na sua memória, foi um domínio do texto romano de que o jurista
moderno já dificilmente pode fazer uma pequena idéia, mas também um treino na exploração
lógica dos problemas jurídicos que ainda hoje permanece quase inalterado no estilo específico da
discussão das hipóteses jurídicas na argumentação e na interpretação. A aplicação de conclusões
lógicas duma forma casuística e analítica se tornou na essência do próprio pensamento jurídico. Os
seus defeitos residem, sobretudo, na repressão da razão prática e da justiça pelo culto da autoridade
e do formalismo lógico (Wieacker, 1967, p. 65).
Os glosadores, pela primeira vez na Europa, apreenderam dos grandes juristas romanos a arte de
resolver os conflitos de interesses da vida em sociedade, não mais com recurso à força ou a costumes
espontâneos irracionais, mas através da discussão intelectual dos problemas jurídicos autônomos e
de acordo com uma regra geral baseada nesta problemática jurídica material. Esta nova exigência
dos juristas racionalizou e jurisdicionalizou para sempre a vida pública na Europa. Em virtude
da sua influencia, dentre todas as culturas do mundo é a européia a única que se tornou legalista.
Na medida em que encontrou um princípio racional que substitui a decisão pela força dos conflitos
humanos, a jurisprudência criou uma condição especial para o progresso da civilização material –
em especial da técnica da administração -, da organização racional da sociedade econômica e
mesmo do moderno domínio técnico da natureza (Wieacker, 1967, p. 65).
16
A partir do século XIII, Bolonha tem sua influência diminuída, surgindo na França uma
renovação de estudo dos romanistas, a partir de uma crítica às glosas. Tal método, oriundo da Escola
de Orleães, influenciará todo aquele século, com uma aplicação do método dialético aos textos,
realizando uma argumentação mais fina e mais liberta da análise puramente textual. Essa
universidade eclesiástica era uma escola de formação superior para o clero (Gilissen, 2003, p. 3444,
345).
Por fim, cabe referir a importância dos consiliadores e humanistas. Aqueles, também
conhecidos como pós-glosadores ou comentadores, assim como os glosadores, prosseguiram o
trabalho de interpretação sobre o Corpus Iuris Civilis, no entanto a partir do uso de figuras lógicas
mais complicadas.
A Escola dos pós-glosadores surgiu na Itália, também como uma reação aos glosadores,
implicando em uma evolução ao seu método, vigorando nos séculos XIV e XV.
Os comentadores caminharam cada vez mais para uma atividade de consulta, de cuja experiência
resultou em geral uma impregnação e aperfeiçoamento científicos dos direitos estatutários, e mesmo
das ordens jurídicas italiana e européia (Wieacker, 1967, p. 80).
Os comentadores converteram o direito justinianeu num direito comum de toda a Europa; ao
mesmo tempo em que reduziram a multidão dos direitos não romanos da Europa à forma mental
da sua ciência (Wieacker, 1967, p. 80).
Pela primeira vez uma jurisprudência adulta e consciente das tarefas cotidianas começa a tornar as
fontes romanas diretamente úteis para a satisfação das necessidades da vida (Wieacker, 1967, p.
84).
Segundo Wieacker, essas duas grandes escolas, a dos glosadores e a dos comentadores,
constituíram a segunda camada de juristas ao lado dos clérigos. Para ele, o jurista, aparentemente tão
afastado da vida, teve uma participação decisiva na vitória do Estado racionalizado e da idéia de direito depois do fim
da Idade Média (Wieacker, 1967, p. 95).
Por fim, os humanistas (séculos XVI e XVII) realizaram um segundo ressurgimento do
direito romano, a partir de um estudo puramente científico dos textos, com um método visando ao
estabelecimento do sentido original e verdadeiro das regras jurídicas romanas (Gilissen, 2003, p. 349).
17
5. Os significados do medievo para a construção da modernidade
Esse tópico final, assim como todo o texto, não tem por intuito encerrar a questão, apenas
tenta tratar das bases medievais para o surgimento da modernidade, principalmente do Estado
moderno.
Segundo Kritsch (2004, p. 1), as bases para a constituição do Estado moderno,
principalmente a noção de soberania, foram construídas a partir dos conflitos políticos e jurídicos,
que deram origem aos alicerces legais e ideológicos do poder do Estado.
Segundo a autora (2004, p. 2), tais conflitos são políticos porque resultaram de uma
redistribuição de poder que acabou culminando com a entrada de novos atores na cena política, bem
como jurídico, porque tais problemas sempre foram explicitados no período como questões de
jurisdição e legitimidade††††††.
Nesse sentido, podemos ver na Igreja a instituição preliminar de centralização de poder:
A partir do final do século XI, porém, novas condições começaram a marcar a vida política e
social. Strayer apontou em primeiro lugar a difusão do cristianismo: "a Europa ocidental só
passou a ser realmente cristã nos finais do século X", escreve. A Igreja não só tinha alguns dos
atributos do Estado, como instituições duradouras e uma teoria do "poder supremo" papal4, mas,
além disso, influenciava diretamente a política secular, pelo envolvimento do clero nos negócios
públicos e pela atribuição, aos governantes, da obrigação de garantir a paz e a justiça entre os
súditos. Exigências desse tipo impunham o desenvolvimento de instituições judiciais e
administrativas.
Além disso, a estabilização européia, depois do período das invasões, também é apontada
como uma das matrizes para o surgimento da modernidade:
O segundo fator indicado por Strayer é a estabilização da Europa, depois de longo período de
migrações, invasões e conquistas. "Essa crescente estabilidade política veio dar lugar ao
aparecimento de uma das condições essenciais para a constituição do Estado, a continuidade no
tempo e no espaço. Pelo simples fato de manterem-se de pé, alguns reinos e principados começaram
a adquirir solidez. Certos povos, ocupando determinadas áreas, permaneceram, durante séculos,
integrados em um mesmo conjunto político. [...] E os governantes de reinos e principados que se
mantinham no espaço e no tempo tinham oportunidades e incentivos para desenvolver instituições
permanentes" (idem, p. 21-22).
No entanto, o principal elemento ideológico que culminará com a formação do Estado
moderno é o conceito de soberania, que, de acordo com Kritsch (2004, p. 5) começou a desenvolver-se a
††††††
Vide a nota 16 sobre a Querela das Investiduras.
18
partir dos intermináveis conflitos de jurisdição entre papas, reis e imperadores que dominaram os séculos finais do
medievo.
Sobre o desenvolvimento da soberania, a autora (2004, p. 4) sustenta ter também origem na
recuperação dos textos jurídicos romanos, que acaba por limitar o poder sobre dado território:
Essa noção nascente de soberania, por sua vez, é constituída de elementos formadores não menos
relevantes, que terminariam por fazer parte dos alicerces legais e ideológicos do moderno Estado.
Um desses elementos formadores é a recuperação, pelos juristas tanto canonistas quanto civilistas,
dos antigos códigos do Direito Romano. Entre os inúmeros princípios retomados, há um de especial
importância, que logo seria adaptado aos novos tempos, como observou Calasso: "Enquanto a
Europa, particularmente entre os séculos XII e XIII, era trabalhada pelo incessante movimento
dos povos que emergiam em busca de seu lugar, dentro e fora da jurisdição direta do Império
Romano-germânico, no campo da ciência jurídica abria caminho um novo princípio, destinado a
interpretar por séculos o mundo novo que estava por surgir. Esse princípio veio logo encerrado em
uma fórmula que assim soou: rex superiorem non recognoscens in regno suo est imperator, e que
significava o seguinte: 'o rei, que não reconhece nenhum outro poder acima de si, tem, no âmbito do
próprio reino, os mesmos poderes que tem o imperador sobre todo o Império”.
Sendo assim, vemos que determinadas construções, tão características da modernidade,
acabam tendo seu cerne no medievo, sendo, portanto, necessário o conhecimento desse período
histórico para tal compreensão.
Aliás, gostaria de terminar salientando que não se pode fazer um estudo histórico do direito
sem conectá-lo com as demais compreensões sociológicas, políticas e filosóficas que embasam cada
momento histórico.
Sendo assim, não se pode deixar de mencionar, em finais da idade média, o movimento
teórico-intelectual que implicará numa ruptura com tal período, fruto de uma série de teorias que
terão uma importância crucial para o surgimento da modernidade. São, pois, dessa época, com as
devidas diferenciações de datas, as produções de ciência política de Maquiavel (século XV); o
contratualismo de Hobbes, Locke e Rousseau (séculos XVII e XVIII); a escola de direito natural, que
desde São Tomás tem fundamentado todo o direito eclesiástico e que com Grotius (século XVII) irá
ter um embasamento racional; bem como as teorias dos reformadores penais, como Beccaria,
Bentham, Brissot (século XVIII).
Especificamente no que se refere ao direito penal moderno, é importante ter em conta o
quanto a história medieval é importante para a compreensão da sociedade disciplinar e do
surgimento da prisão. Michel Foucault (1996, 1999, 2002, 2003), a partir de análises históricas de
metodologia genealógica, demonstrará como se deu o surgimento da prisão como instrumento
19
primordial de controle social da modernidade, descrevendo suas origens históricas e suas implicações
na modernidade e na atualidade. Fruto de uma prática social não oficial, a prisão acaba tornando-se
numa grande bandeira para o tratamento de criminosos, a partir de uma atuação dos chamados
saberes modernos – formações discursivas que compõem aquilo que Foucault entende como ciências
humanas – que acabam por justificar o uso e a manutenção da prisão, calcada no tripé disciplina,
vigilância e correção.
A contribuição de Michel Foucault para estudantes de história do direito é um tanto oblíqua,
mas seguramente imprescindível para uma visão ampla e crítica de nossas instituições e práticas
jurídicas, contribuindo para desmistificar determinadas crenças e valores e desnaturalizar o uso e a
permanência de determinadas instituições. Como teórico crítico da modernidade, Foucault buscará
nas idades Antiga e Medieval origens e explicações para nossas construções absolutizadas, sempre no
sentido de uma desnaturalização, e em nossa opinião, é aí que reside a necessidade de um
conhecimento histórico que transcenda a mera descrição e aponte para uma melhor compreensão
crítica de nossa época.
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
CASTRO, Flávia Lages de. História do Direito: geral e Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro: Nau, 1999.
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos IV. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2003.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões, 14ª ed.. Petrópolis:
Vozes, 1996.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva. São Paulo: Unesp, 1997.
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
GROSSI, Paolo. El orden jurídico medieval. Madrid: Marcial Pons, 1996.
HEERS, Jaques. História medieval. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1991.
KRITSCH, Raquel. Rumo ao Estado moderno: as raízes medievais de alguns de seus elementos
formadores. In: Revista de Sociologia e Política, n. 23. Curitiba: UFPR, nov., 2004. Disponível em
www.periodicoscapes.gov.br
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984.
LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história. Lições Introdutórias. São Paulo: Max Limonad,
2002.
WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UNB, 1999, 2 v.
WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967.
YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
20
Download