A Música Popular Brasileira dos anos JK ao AI

Propaganda
Ricardo Monteiro
A Música Popular Brasileira dos anos JK ao AI-5
Périodo de 1958-1968
O período entre os anos de 1956 e 1961 ficou conhecido, na
História do Brasil, como “Os Anos JK”. Tal época teve por
particularidade bem mais do que a concomitância com o mandato
do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976).
(Ricardo Monteiro)
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
1
A nova bossa da música brasileira
mais repertório
Contextualização sócio-histórica e estética
O período entre os anos de 1956 e 1961 ficou conhecido,
na História do Brasil, como “Os Anos JK”. Tal época teve
por particularidade bem mais do que a concomitância com
o mandato do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira
(1902-1976). Foram, segundo o historiador Boris Fausto,
“anos de otimismo, embalados por altos índices de
crescimento econômico, pelo sonho realizado da
construção de Brasília” (Fausto, 2004, p.422). O projeto de
se crescer “50 anos em 5” do desenvolvimentismo de
Juscelino levou a indústria nacional a crescer à espantosa
taxa de 10% ao ano, embora o comprometimento da dívida
pública para que isso viesse a ocorrer também não fosse
desprezível. Seresteiro, dono de uma bela voz, pé-de-valsa,
galanteador, comprometido com um projeto democrático
nacional e com uma visão geopolítica avançada que
inspiraria Kennedy a idealizar sua “Aliança para o
Progresso”, Juscelino, de certa forma, representava a
chegada ao poder do que havia de melhor na boemia
intelectual e em seus mais dourados sonhos de
construção de um Brasil belo e feliz.
O presidente Juscelino
Kubitscheck (19021976), que chegou a ter
discos gravados como
cantor e seresteiro, foi a
figura de fundo de uma
breve fase áurea da
história cultural,
econômica e política do
país – fase essa na qual
floresceu a Bossa-Nova.
A expressão “bossa” designava um certo charme, uma
maneira pessoal e engenhosa de se fazer as coisas.
Juscelino, em sua época, foi apelidado de “Presidente Bossa-Nova”. Mas não só por sua
maneira incomum, no Brasil, de se conduzir a coisa pública: com democracia, com
competência, com visão administrativa, com um estofo cultural que lhe facultava livre trânsito
dentro da elite social, intelectual e artística do país, ao mesmo tempo em que a alma de
seresteiro lhe garantia a empatia com as classes populares. Também pelo fato de, durante
seu governo, ter surgido, no país, um dos movimentos musicais mais importantes em
âmbito mundial do século XX: a Bossa-Nova.
A Bossa-Nova representava a expressão de uma geração que não se identificava em
absoluto com a profunda tristeza da chamada música de fossa, o samba-canção. Uma
geração que, embora também boêmia, contrapunha-se à anterior como o ambiente sombrio
dos bares e night-clubs da alta madrugada se contrapunha à fulgurante luminosidade do
sol de Ipanema. Pensando, pois, em oposições, samba-canção e Bossa opõem-se como
as trevas à luz, como a cultura à natureza; a cultura de um existencialismo sombrio e sem
saída, contraposta a uma natureza benfazeja, tropical e praiana, de horizontes amplos,
onde o barquinho de Ronaldo Bôscoli (1928-1994) assiste tranqüilamente ao cair da tarde
enquanto os pássaros de Tom Jobim (1927-1994) anunciam uma noite que nunca chega
mas, se chegar, será estrelada e prenhe de amores. Ao invés da angústia diante de uma
vida vazia, uma alegria serena, com uma incansável disponibilidade para a paixão, confiante
de que a cada despedida se seguirá de um novo encontro, fazendo da vida uma infindável
mas prazerosa dança de dores e amores.
2
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
Características musicais
mais repertório
Musicalmente, a Bossa empreende aquela que foi a maior
transformação que um movimento estético imprimiu à
linguagem musical em toda a história da música popular
brasileira. Tal transformação operou-se de maneira radical
na instância harmônica, bastante sensível na instância
melódica (até por conseqüência da evolução harmônica) e
moderada na instância rítmica – justo nela em que,
curiosamente, uma parte considerável e influente da classe
intelectual e artística do país vê sua maior contribuição, com
a decantada “batida” da Bossa-Nova.
A evolução harmônica que teve lugar no tempo da Bossa, é
preciso frisar, já pairava nos anos finais da era da fossa.
Isso se torna especialmente visível nas introduções e codas
instrumentais de certas gravações de samba-canção,
notadamente aquelas protagonizadas por Dolores Duran.
Assim, a Bossa não representou uma ruptura com relação
à maneira anterior de se trabalhar a harmonia na música
popular, mas a radicalização de uma de suas tendências.
A linha de frente da
Bossa-Nova: reunidos na
casa de Vinícius, os
compositores Tom Jobim
(1927-1994), Vinícius de
Moraes (1913-1980),
Ronaldo Bôscoli (19281994), Roberto Menescal
(1937-) e Carlinhos Lyra
(1939-). Em poucos
movimentos da cultura
brasileira, as afinidades
intelectuais e
converteram-se tanto em
relações de duradoura
amizade como na BossaNova.
Tal constatação problematiza sobremaneira a tese de vários
críticos que insistem em afirmar que a complexificação
harmônica da Bossa teria sido influenciada pelo estilo
jazzístico conhecido como Bebop. Trata-se de uma afirmação
muito difícil de ser sustentada, provando-se no mínimo
inconsistente ante a uma análise estilística mais detalhada.
O Bebop marca o momento na história do jazz em que aquela
música deixou de ser dançada por um grande público para
ser cuidadosamente escutada por uma platéia seleta e
reverente. Capitaneado pelo virtuosismo do saxofonista
Charlie Parker (1920-1955) e pelo gênio de Dizzie Gillespie
(1917-1993), o Bebop caracterizava-se pelo virtuosismo
técnico de seus intérpretes, pelos andamentos rápidos e
por certos tipos de sofisticação harmônica, principalmente
no que tange ao uso de certos modos ou escalas (como o lídio com sétimo grau rebaixado,
ou o jônio com o acréscimo de um segundo quinto grau aumentado etc). Nenhuma dessas
características aparece no alvorecer da Bossa-Nova – embora várias delas venham a
aparecer a partir de um segundo momento do movimento, em que o mercado internacional
se firma e o nacional míngua, diante da ascensão do iê-iê-iê, da música de protesto e de
outros estilos majoritários.
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
3
Quanto à fase seguinte da história do jazz, o chamado
Cool Jazz, o questionamento da influência continua, mas
por caminhos bem diferentes. Isso porque, se o pianista
Bill Evans de fato influenciou sobremaneira a Bossa com
sua linguagem concisa e com sua maior ênfase nos
matizes de cinza que no contraste preto-branco, um outro
grande nome do movimento, o saxofonista Stan Getz (19271991), foi uma das grandes e inquestionáveis conexões
entre a Bossa e o Jazz – todavia, não como alguém que a
influencia, mas como alguém que é influenciado por ela e,
com seu talento e renome, torna-se uma figura primordial
de sua difusão em escala mundial. Assim, se o Cool Jazz
influenciou a Bossa, a Bossa também influenciou o Cool
Jazz. A relação foi de troca, de reciprocidade, e não de pura
assimilação.
No que tange à estrutura melódica, a Bossa da primeira
fase incorporou definitivamente à música brasileira os
acordes de sétima, nona, décima-primeira e décimaterceira, bem com suas alterações mais comuns. Com
isso, as possibilidades de uso de notas de repouso
melódico ampliaram-se enormemente, até que, em casos
como o da canção Luiza, (1981) de Tom Jobim,
encontramos a canção se iniciando na décima-primeira
de um acorde menor – algo impensável na década de 1940.
Mas esse avanço ulterior não deve perder de vista que já
em Desafinado (1958), quando se ouve:
mais repertório
O genial Bill Evans
(1929-1980) foi um dos
músicos de jazz que, de
fato, influenciaram a
Bossa-Nova –
principalmente seus
pianistas.
Se você disser
Que eu desafino, amor
a palavra amor incide sobre a décima-primeira aumentada de um acorde, gerando o
estranhamento que sugere a pretensa “desafinação” do enunciador da canção. Em todo o
caso, o que há de mais importante a se aferir é que a Bossa representou, por meio da
expansão harmônica que protagonizou, uma ampliação definitiva de recursos melódicos
para a música popular brasileira em geral, e não só para a fase em que está inserida.
Assim, quando já na década de 1980, em plena era do Brock (ou simplesmente “rock
nacional”), canções como Índios (1986), de Renato Russo (1960-1996), ou Faz Parte do
Meu Show (1988), de Cazuza (1958-1990) e Ladeira, iniciam-se melodicamente na sétima
de um acorde menor, vemos ressoando aí os ecos distantes da velha Bossa-Nova.
4
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
Vale aqui ressaltar que nem a prática do “scat” – técnica de
improvisação melódica vocalizada com sílabas, e não com
mais
repertório
palavras
inteligíveis,
popularizada por Louis Armstrong
(1901-1971) – e nem o procedimento de variação da linha
melódica do tema, tão caro ao jazz de Sarah Vaughan (19241990), Ella Fitzgerald (1917-1996) ou Charlie Parker,
consolidaram-se na Bossa-Nova, e muito menos na
música popular brasileira, tendo sido seu uso sistemático
adotado por poucas cantoras, como Elis Regina (19451982) e Alcione (1947-) – e mesmo assim, com bastante
parcimônia se comparado a sua práxis na música norteamericana. Se, por um lado, há pouca ou nenhuma dúvida
a respeito da origem norte-americana do “scat” utilizado
por essas duas cantoras brasileiras, por outro lado não
cabe, de forma alguma, considerar esse procedimento
como essencialmente constitutivo da Bossa-Nova.
Quanto à instância rítmica, há uma discussão interessante
que se pode desenvolver. Ainda que seja engenhosa a
rítmica padrão da Bossa-Nova, seu desenho, até por ser
essencialmente derivado do ralentamento de uma figura
bastante comum na linha do tamborim de uma roda de
samba, não representa por si grande novidade:
mais repertório
Elis Regina (1945-1982),
uma das maiores
cantoras da história da
música brasileira, teve um
papel fundamental na
cena musical da segunda
metade da década de
1960, principalmente
depois de assumir o
comando do programa “O
Fino da Bossa”, na TV
Record (1965).
Tal desenho, em um país com a variedade rítmica como o
Brasil, não pode com justeza ser qualificado como inovador.
Transições como aquela que conduziu do maxixe ao
samba, da marchinha ao frevo, ou, mais recentemente, o
advento do olodum e do samba-reaggae representariam fatos tão ou mais espetaculares
do que a desaceleração de um desenho rítmico já conhecido. Um padrão rítmico como
esse pode, de fato, ser inovador se considerado dentro do contexto do jazz, ou seja: a partir
do olhar do norte-americano ou do europeu; mas decerto não dentro da música brasileira.
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
5
Por outro lado, uma genuína e fundamental inovação
rítmica, capitaneada, sobretudo, por João Gilberto (1931), foi o chamado “violão gago”. Por “violão gago” entendese o recurso ou de defasar as acentuações rítmicas do
violão e da voz, ao invés de seguir a tradição de fazê-las
coincidir, ou de deslocar ambas paralelamente com
relação ao tempo forte, criando-se o efeito de uma grande
síncope. Tais recursos enriqueceram sobremaneira o
gingado – ou o swing, para os jazzófilos – não só da BossaNova como de toda a música brasileira, podendo-se contar
entre os intérpretes seguidores da tradição iniciada por
João Gilberto nomes como João Bosco (1946-), Joyce
(1948-), Rosa Passos e Caetano Veloso (1942-), entre
muitos outros – valendo acrescentar à lista a cantora Ivete
Sangalo, que, sobretudo a partir de 2003, começou a utilizar
tal recurso, ainda que com bastante economia, na
interpretação de algumas baladas da axé music.
Assim, no balanço da Bossa – para brincar com a
expressão que inspirou o título do livro homônimo de
Augusto de Campos1 – observa-se que, ainda que a Bossa
tenha sofrido influências do jazz e mesmo da música
erudita, ela representa, sobretudo, a continuidade de um
processo de complexificação que tivera no samba-canção
uma importante etapa anterior. No que tange ao aporte da
música erudita, destaca-se a referência de Villa-Lobos,
merecendo menção especial também Chopin – cujo
Prelúdio em Mi menor, mais do que o Prelúdio da Bachiana
n.o 4 de Villa, parece ter inspirado o célebre Samba em
Prelúdio (1962) de Vinícius de Moraes (1913-1980) e
Baden Powell (1937-2000). No que tange ao jazz, se Bill
Evans (1929-1980) representa uma referência clara, a
presença do Bebop, conforme apresentado, é, no mínimo,
discutível. No que tange aos cancionistas norteamericanos, não há um autor a destacar. Não se pode, por
exemplo, declarar categoricamente que Cole Porter (18911964) ou George Gershwin (1898-1937) tenham deixado
um legado indiscutível na Bossa-Nova; contudo, o repertório
dos “standards” de jazz do século XX era conhecido e
profundamente apreciado pela maioria dos principais
personagens do movimento, principalmente aqueles que
atuavam como músicos na noite tinham aquele repertório
todo debaixo dos dedos. Assim, a influência pode ter se
dado, mas a partir de referências já “digeridas” pelos
músicos, resultando em um hibridismo bastante orgânico
e equilibrado, bastante dentro da tradição antropofágica
da cultura brasileira. Não se pode, pois, falar, nesse caso,
de uma súbita ruptura decorrente da invasão de um estilo
estrangeiro, reproduzido sem maiores alterações, algo
mimeticamente, por nossos músicos.
1
6
mais repertório
A brilhante cantora
Rosa Passos, uma das
muitas herdeiras do
“violão gago” de João
Gilberto.
João Gilberto (1931-) ao
violão, Tom Jobim (19271994) ao piano e Stan Getz
no sax, durante a gravação
do LP “Getz/Gilberto”
(1965). Considerado um
dos maiores saxofonistas
(tenor) de todos os
tempos, Stan Getz foi uma
figura fundamental para a
difusão da Bossa no
universo jazzístico. O disco
venceu dois prêmios
Grammy em 1965, tendo
tido vital importância na
divulgação mundial da
música brasileira.
Obra citada na bibliografia deste capítulo.
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
Mas, no caso da Jovem Guarda e seu iê-iê-iê, pode-se.
A Jovem Guarda
Origens
O termo “Jovem Guarda” nasceu do título de um programa da TV Record comandado por
Roberto Carlos (1941-), Erasmo Carlos (1941-) e Wanderléa (1946-). Mas o movimento não
nascera propriamente ali. Ou talvez “movimento” não seja o termo mais apropriado para
nos referirmos à Jovem Guarda.
É preciso discutir essa questão, que não é tão simples quanto talvez pareça.
Roberto (1941-) e Erasmo
Carlos (1941-) foram os dois
mais influentes
compositores da Jovem
Guarda, e formaram a mais
duradoura parceria da
história da música popular
brasileira.
Recuando um pouco mais no tempo, encontramos Roberto
Carlos, em 1957, freqüentando a “turma da Rua do
Matoso”, grupo de admiradores e praticantes do rock que
se encontrava na Tijuca, Zona Norte do Rio. A partir desse
grupo, Roberto, Sebastião Maia – que mais tarde entraria
na história da música brasileira simplesmente como Tim
Maia (1942-1998) – Erasmo e outros amigos formaram o
conjunto “The Sputnicks”. Esse grupo participou do
programa “Clube do Rock”, de Carlos Imperial (1936-1992).
Em maio de 1958, Roberto participava de um show do
Clube do Rock que abria a apresentação, no
Maracanãzinho, do show do grande astro da primeira
geração do rock norte-americano Bill Halley (1925-1981).
Em outubro do mesmo ano, o lançamento de “Chega de
Saudade” impressiona Roberto profundamente, que
passa a seguir os passos estilísticos de João Gilberto.
Apresentando-se como crooner de boate e fazendo alguns
shows dentro da linha da Bossa, Roberto, contudo, não
conseguiu resultados que viabilizassem sua carreira. Foi
de um desentendimento de Sérgio Murilo (1941-), o “Rei
do Rock”, com a Columbia, em 1962, que surgiu uma nova
oportunidade para Roberto voltar a cantar rock.
O rock de Sérgio Murilo e seus antecessores, como os
irmãos Tony (1936-) e Celly Campello (1942-2003), era
basicamente uma música produzida no final da década
de 1950 à base de versões e de covers de bandas originais
norte-americanas. Nora Ney, por exemplo, fez uma célebre
versão, em 1956, do Rock Around the Clock, de Bill Halley,
chamada Ronda das Horas. No ano seguinte, Cauby
Peixoto gravaria Rock and Roll em Copacabana, de Miguel Gustavo, considerada por muitos
o primeiro rock de fato brasileiro. Mas tratava-se ainda de uma exceção.
Tal situação só foi mudar, de fato, a partir da Jovem Guarda.
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
7
Embora ambos tenham partido, inicialmente, de versões, a dupla Roberto e Erasmo Carlos,
juntos desde 1963, na mais duradoura parceria da história da música popular brasileira,
rapidamente começou a gerar uma produção estável e consistente de rock brasileiro. Em
pouco tempo, estariam lançando grandes sucessos que se converteriam em clássicos,
como É Proibido Fumar (1964), Quero que Vá Tudo pro Inferno (1965), Festa de Arromba
(1965), Minha Fama de Mau (1965), Gatinha Manhosa (1966), Se Você Pensa (1968). Várias
dessas canções, permanentemente desdenhadas por boa parte da crítica especializada,
foram, todavia, capazes de voltar ao topo das paradas de sucesso quando relançadas vinte
ou mesmo quarenta anos mais tarde. Trata-se de uma formidável inconsistência, que
aponta para uma flagrante falta de adequação de critérios ou por parte do público, ou por
parte da crítica.
Levando-se em conta, portanto, a solidez da produção estética da Jovem Guarda, tenha ou
não tal estética méritos unicamente mercadológicos, sua grande longevidade e o mérito de
se tratar de uma geração que, pela primeira vez, consolidava-se compondo rock nacional,
e não reproduzindo ou traduzindo o repertório internacional, a única coisa que faltaria para
a Jovem Guarda merecer de fato figurar como um movimento da história da música nacional
seria uma proposta estética e estilística diferenciada. Como a adoção do rock já é por si
mesma uma proposta estilística, avaliemos por fim a questão estética.
Assumindo-se que toda grande corrente estética corresponde a um jogo de forças sociais
que a particulariza, antes de examinarmos os predicados artísticos do iê-iê-iê, consideremos
alguns aspectos sociais a ele relacionados.
Em linhas gerais, podemos afirmar que o rock, assim como o jazz, é um estilo cujas raízes
se encontram junto à comunidade afro-americana do Sul dos Estados Unidos. Assimilando
alguns elementos do folk e do country, convergindo a seguir para o Rhythm ‘n Blues, o rock
destacava-se, inicialmente, não só por ser mais uma corrente da música negra a alcançar
um sucesso estrondoso junto à população branca, mas também por serem suas letras
carregadas de duplo sentido ou de franco erotismo. Essa característica, também encontrável
em nossos lundus e marchinhas, mesmo diante do radicalismo dos setores mais
conservadores da sociedade norte-americana, não chegava por si só a representar uma
grande novidade.
As novidades eram outras.
A primeira delas era ser uma música jovem, ou melhor, para jovens. Note-se que a novidade
aí não estava, como pode parecer, em uma análise mais superficial, na música em si. A
novidade estava no “jovem”.
A invenção da juventude
Muitos jovens de hoje desconhecem por completo que nosso conceito de adolescência
seja uma construção cultural extremamente recente. A maioria das pessoas que nasceu
até cerca da metade da década de 1920, como em todas as gerações anteriores, saltava da
infância diretamente para as responsabilidades da vida adulta, assumidas plenamente
entre os 15 e os 20 anos para ambos os sexos – com a única e absolutamente minoritária
exceção do ínfimo segmento da elite masculina que podia se dar ao luxo de prolongar seus
estudos regulares, ingressando nas Universidades. Com o vertiginoso avanço científico e
tecnológico tornando patente a necessidade da instrução e com sua gradual viabilização
nas sociedades do pós-guerra, tal segmento minoritário tendeu a crescer exponencialmente.
8
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
Além disso, um contexto financeiro e social bastante favorável permitiu não só que a geração
do pós-guerra, incentivada pelos próprios pais, ambicionasse uma educação melhor do
que a da geração anterior como também propiciou as condições materiais para que tal
ocorresse, com a criação de fundos de assistência e ajudas de custo por parte de entidades
governamentais e particulares. Com isso, surgiu um novo segmento de consumo: em uma
faixa etária em que, na geração anterior, a maioria das pessoas já tinha encargos financeiros
próprios da vida adulta, via-se agora uma geração sustentada pelos pais ou amparada
pelos fundos de assistência, com tempo ocioso e poder de compra.
O extraordinário Little Richard
(1932-) foi um nome fundamental
na transição entre o
Rhythm&Blues e o rock. Excelente
compositor, pianista e performer,
assistiu, entretanto,ao discutível
processo pelo qual o rock deixou
de ser uma música
eminentemente afro-americana
para se tornar um estilo
internacional em que os negros
são uma pequena minoria.
Se esse fator já é de evidente relevância, há, todavia,
mais elementos a se considerar. O primeiro deles
é a aparição, no mercado, de um novo produto,
que aceleraria algumas radicais mudanças
comportamentais já em curso desde o início do
século XX: a pílula anticoncepcional. Surgindo no
início da década de 1950 e popularizando-se a
partir do início da década de 1960, a pílula
representou uma importantíssima conquista da
mulher em seu gradual processo de emancipação
e ruptura para com as estruturas patriarcais,
afetando radicalmente a viciada balança de
(des)equilíbrio entre os gêneros. Com o advento
desse método de contracepção, a sexualidade
pôde passar a ser vivenciada sem maiores
conseqüências nem para o homem – que antes
responderia unicamente nos planos moral e social
por uma eventual gravidez – nem para a mulher –
que até então respondia não só com um anátema
moral e social muito mais pesado que o de seu
parceiro como ainda arcava biologicamente com o
processo de gravidez, em uma situação, portanto,
de absoluta desigualdade entre os gêneros. O sexo
por prazer, desvinculado da função de reprodução
ou do ônus da gravidez, representou um passo
particularmente importante na reestruturação dos
papéis sociais do homem e da mulher que, havia
muito, estava em curso, acelerando de tal maneira
o processo a ponto de provocar uma inflexão social
e comportamental conhecida como “revolução
sexual”.
Essa “revolução” cuja arma era a pílula foi pautada
por drásticas mudanças de comportamento com
relação à geração anterior. A principal delas foi com
relação à liberalidade nas relações sexuais, passando-se a adotar, como naturais, padrões
anteriormente estigmatizados como promíscuos. Todavia, há que se considerar um outro
poderoso elemento da nova realidade cultural: a televisão.
Uma característica histórica importante da alvorada do rock é que ela coincide também com
a ascensão da TV à supremacia entre os meios de comunicação de massa. O resultado de
tal associação é que o rock, pela primeira vez, abre espaço, na indústria de massa, para um
estilo musical em que os elementos visuais tornam-se tão importantes quanto os sonoros.
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
9
Uma conseqüência desse
contrapeso visual para com as
questões puramente musicais foi
o gradual afastamento do rock
com relação a suas origens afroamericanas. Nascido no seio da
comunidade negra a partir de um
ramo do Rhythm&Blues e
encontrando nela boa parte de
seus geniais pioneiros, como
Fats Domino (1928-), Chuck Berry
(1926-) e Little Richard (1932-), o
preconceito e as coerções do
mercado redirecionaram o rock
Bill Halley (o terceiro da esquerda para a direita) foi o
de forma a torná-lo uma música
primeiro grande astro branco do rock, alcançando
aceitável para o mercado
sucesso mundial com seu Rock Around the Clock.
majoritariamente branco e
Embora tenha absorvido as influências do
conservador dos Estados
Rhythm&Blues, Halley trouxe para o rock também
Unidos. Devido a essa distorção,
muito de sua forte herança country, que adquiriu em
a história do rock foi, por certo
grupos como o “4 Aces of Western Swing” (foto
tempo, reescrita, enfatizando-se,
acima).
exageradamente, o papel de Bill
Halley (1925-1981) e daquele que
foi o primeiro ídolo do Rock a fazer
sucesso em escala mundial: o também branco Elvis Presley (1935-1977).
Entre as razões para o sucesso de Elvis,
uma das poucas, jamais questionada, é
justamente um elemento visual: sua
movimentação cênica, e, sobretudo, seu
legendário jogo de quadril – herdado, por
sinal, de uma movimentação já havia
muito consagrada junto às comunidades
afro-americanas em que o rock surgiu.
Tratava-se, pois, de um elemento
idiomático da linguagem corporal utilizada
pelo negro americano nos palcos do
Rhythm&Blues e do nascente Rock ‘n Roll
– executada, porém, por um jovem branco,
fiel aos padrões de beleza da elite anglosaxã e talentoso o suficiente para absorver
a linguagem musical e cênica de seus
antecessores.
Assim, parafraseando um dito popular
entre seus fãs, Elvis deve seu sucesso
tanto a sua voz quanto a sua pélvis. A
imagem, antes monopolizada pelo
cinema, podia agora invadir as dezenas
de milhões de lares norte-americanos que
possuíam televisão no princípio da década
de 1960.
10
Elvis Presley (1935-1977), com seu talento,
competência e carisma, transformou o rock
de música regional do baixo Mississipi para
a condição de arquétipo da música pop
internacional das últimas décadas do século
XX.
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
A jovem cultura do jovem floresceu trajando os signos de seu tempo que lhe davam
identidade. E uma parte razoável dessa identidade vinha de signos visuais, tal como a TV
deles se valia para ocupar o lugar que antes fora do rádio como veículo de comunicação de
massa voltado ao entretenimento familiar. Assim, uma identidade visual diferenciada
demarcou a fronteira entre o domínio simbólico do jovem e da geração que o antecedera.
Roupas coloridas contrastavam com a sisudez dos ternos cinza e dos vestidos de cores
neutras; os cabelos longos aproximavam a identidade dos sexos, como que metaforizando
uma nova situação de equilíbrio; os cabelos e roupas mal cuidados rejeitavam a ordem e a
hierarquia imbricados nos modos militares dos heróis da geração que viveu a II Grande
Guerra; o descaso com a higiene negava
a cultura por uma metafórica – ou não raro
literal – aproximação com a natureza; as
roupas industrializadas, principalmente o
jeans e a camiseta, simbolizavam a
modernidade e a negação dos códigos
de formalidade da geração predecessora.
Por trás do rock, a tecnologia de
amplificação
dos
instrumentos
produzindo um grito, um som alto – e
agressivo – demais para os ouvidos mais
velhos, acostumados a valorizar as
sutilezas. A sexualidade pós-pílula
instaurou-se como campo por excelência
em que se vivenciava a inadequação dos
códigos morais dos pais, forjados por
Um dos fatos mais marcantes da história
preocupações que já não faziam sentido
da contracultura foi o Festival de Woodstock
para os mais jovens. As drogas ofereciam
(1969). Além da apoteose do slogan “Sexo,
um olhar sobre o universo que não aquele
Drogas e Rock’n Roll”, a luta pelos direitos
forjado pela consciência e pelo
civis, pela igualdade entre os gêneros e as
doutrinamento de um mundo obsoleto que
raças, a rejeição ao materialismo e ao
insiste em querer se repetir. A apoteose
militarismo marcaram a visão de mundo do
dos sentidos inaugurou-se como remédio
rock do final dos anos 1960.
contra o crepúsculo do racionalismo.
O rock era, assim, a expressão genuína
de uma geração em um certo momento da história norte-americana.
Encontraria no Brasil tal forma de expressão condições históricas e sociais igualmente
propícias a seu florescimento?
Pelo que vimos, no início desse capítulo, certamente não – ao menos durante o período em
que floresceu a Bossa-Nova.
Ao mesmo tempo, a Bossa-Nova também era “Nova”, ou seja: também se opunha à geração
anterior, e também era composta predominantemente por jovens. Por sinal, jovens que
tinham basicamente a mesma idade dos precursores do rock. Eram contemporâneos,
portanto, na idade, no desconforto para com a visão de mundo que lhes foi apresentada
pela geração anterior, na ânsia por expressar os anseios de seu tempo e assim preencher
uma lacuna na arte de seu país. Entretanto, esses países, suas realidades sócio-históricas,
e, conseqüentemente, suas grandes questões, eram radicalmente diferentes.
Também o que tinham a dizer era muito diferente. À agressividade do rock, a Bossa-Nova
opõe a sedução; à rebeldia, o hedonismo; à simplicidade rústica, a sofisticação, formal e
intelectual; ao grito, o sussurro; à guitarra, o violão.
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
11
Porém, uma outra oposição, de importância chave para entendermos o que se passou a
seguir com a música brasileira, precisa ser aqui explicitado: ao rádio da Bossa-Nova, o rock
respondia com a TV.
Como cremos ter deixado claro, a Bossa-Nova foi, na maior parte dos aspectos aqui
estudados, um movimento que, essencialmente, dá continuidade à tradição da música
brasileira difundida pelo rádio. A bossa é uma música para ser ouvida, e não, vista. As horas
infindáveis de Tom diante de seu piano à procura do acorde que melhor coubesse em uma
dada passagem refletia o profundo cuidado dos bossanovistas com uma arte e com uma
atitude que era expressa por meio de sons – e não de gestos, penteados ou roupas. Claro
que o rock nunca se resumiu a isso. Mas, ao mesmo tempo, isso fazia parte do rock, e uma
parte importante. Na bossa, isso não tinha, nem de longe, o mesmo peso. Os fãs mais
ardorosos dos Beatles sabem dizer exatamente quando eles abandonaram o terno – e
quando o fizeram, foi em caráter definitivo. Quanto à Bossa, provavelmente nem o próprio
João Gilberto – ou Tom, ou Vinícius – saberia dizer quando ele subiu pela primeira vez em
um palco sem o terno – e nem quando ele o retomou, ou deixou de retomar. Isso não tem
absolutamente importância alguma dentro do movimento.
No entanto, a televisão veio para tomar definitivamente o lugar do rádio na primazia dos
meios de comunicação de massa. A Bossa representou, técnica, estética e historicamente,
o apogeu da sofisticação e do aprimoramento de uma música feita para deleitar os ouvidos.
No entanto, os ouvidos passaram a não bastar mais. A relação com o público passou a ser
mediada também pelos olhos.
Era preciso criar uma música para se ouvir também com os olhos.
A Jovem Guarda, aproveitando-se da beleza e carisma de um Roberto Carlos e uma
Wanderléa no auge de sua juventude, soube atender a essa nova demanda.
No entanto, outras forças sociais e históricas fizeram-se sentir, exercendo uma poderosa
pressão, que provocou o surgimento de uma outra Bossa-Nova e um outro Iê-iê-iê. E, em
uma suprema inversão de papéis, enquanto a nova Bossa-Nova buscava formas de maior
simplicidade e se tornava rebelde, a nova Jovem-Guarda intelectualizava-se e pedia menos
radicalismo.
Procuremos analisar esse fenômeno.
12
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
Um grito parado no ar
mais repertório
O título desse tópico é uma alusão à peça homônima de
Gianfrancesco Guarnieri, de 1973.
Em 1959, o segundo ano da era da Bossa-Nova, um fato
internacional acabaria por inspirar uma radical mudança
estética na arte cancional de todo o continente americano:
a Revolução Cubana.
Após décadas no poder, o ditador cubano Fulgêncio Batista
já dera provas suficientes à comunidade internacional da
total corrupção de seu governo. Após ver novamente
frustradas as eleições prometidas para 1952, um grupo,
liderado pelo jovem Fidel Castro (1926-), resolveu desafiar
o regime. Preso, mas anistiado, meses depois, Fidel
terminou se refugiando com um grupo de revolucionários
em Sierra Maestra, à espera de uma revolta popular que
jamais houve. Após uma histórica entrevista, Fidel passou
a atrair a atenção e a simpatia da comunidade internacional,
enquanto a imagem de Fulgêncio se desgastava. Quando,
em 1958, os Estados Unidos resolveram promover um
embargo de forma a impedir a entrada de armas para o
exército do ditador, a situação se alterou drasticamente.
Antevendo a possibilidade de uma revolta de seu
desprestigiado e corrupto exército – o qual não se animava
a lutar por acreditar que o ditador poderia fugir no meio da
luta - , Fulgêncio, sem qualquer preocupação maior com a
situação de seu país, fugiu, fazendo com que o poder fosse
parar nas mãos de Fidel – o qual até o momento não
demonstrara nenhum perfil ideológico definido.
Barricada militar durante
o golpe militar de 1964.
Após a Revolução
Cubana, a Guerra Fria
acirrou os ânimos na
polarização entre direita
e esquerda na América
Latina, com a fragorosa
derrota desta última e a
conversão das
democracias latinoamericanas em
ditaduras militares de
direita. A opressão
política, a permanente
injustiça social e a perda
da liberdade de
expressão provocaram
uma forte reação da
classe artística em todo
o continente,
transformando,
radicalmente, todas as
formas de expressão até
ali vigentes – inclusive o
rock.
Diante da situação alarmante de seu país, Fidel, pouco
depois de tomado o poder, foi pedir ajuda ao governo dos
Estados Unidos. No calor da Guerra Fria, a suspeita de
infiltrações comunistas na revolução fez com que seu
pedido fosse negado. Ao voltar a Cuba, Fidel decretou uma
grande reforma agrária – a qual afetava diretamente os
enormes latifúndios de algumas grandes empresas norteamericanas. O gesto de Fidel alimentou as suspeitas
americanas de infiltração comunista. Os desentendimentos
começaram a se suceder e a se acentuar em gravidade.
Cuba pediu auxílio à União Soviética, que atendeu ao pedido, e Havana terminou passando
para a órbita de influência de Moscou.
Em 1960, Fidel acusa Eisenhower de estar planejando uma invasão a Cuba. Em resposta,
os Estados Unidos rompem relações. Em 1961, os Estados Unidos apoiaram a iniciativa
dos exilados cubanos de invadirem Cuba pela Baía dos Porcos. Os invasores foram
fragorosamente derrotados. Para triunfo de Fidel, sua acusação foi confirmada pelos fatos,
e as verdadeiras intenções norte-americanas foram desmascaradas. Assim, as trapalhadas
de Washington conseguiram transformar Fidel de um rebelde sem ideologia definida em
um dos maiores ícones mundiais de resistência ao imperialismo. E, no final de 1961, Fidel
aderia definitivamente ao marxismo.
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
13
A política agressiva de Washington na América Central das primeiras décadas do século
XX, promovendo invasões e golpes em países como Nicarágua, Guatemala, Panamá,
Cuba, Haiti e República Dominicana, entre outros, gerou um ressentimento no continente,
que foi, aos poucos, transformando-se em um sentimento de anti-americanismo. Esse
sentimento veio à tona, por exemplo, quando Richard Nixon, na qualidade de vice-presidente
americano, esteve em Caracas, em 1958, e recebeu uma histórica vaia do povo venezuelano,
devido ao apoio que Washington dera durante anos ao ditador recém deposto Pérez Jiménez.
Mas, como vimos, não eram só os latino-americanos que estavam descontentes com o
establishment. Os próprios jovens americanos, como vimos anteriormente, sentiam um
incômodo crescente diante das velhas formas de pensamento que imperavam na política
e economia. Eram os tempos da Guerra Fria, e alguns do governo americano geraram uma
imensa antipatia por parte da comunidade internacional. A 5 de maio de 1960, a poucos
dias de uma importante reunião de desarmamento com o líder soviético Nikita Krutschev, o
governo americano foi surpreendido com a notícia de que um avião americano fora abatido
em território soviético. Washington respondeu que se tratava
apenas de um aparelho de inspeção meteorológica que
havia se perdido. Moscou respondeu que o piloto, Gary
mais repertório
Powers, fora capturado e teria confessado tratar-se de uma
missão de espionagem. Washington acabou admitindo a
lele
verdade. Novamente, a máscara caíra, e a reação
internacional foi tão forte que, devido ao calor das
manifestações populares, o governo japonês teve de retirar
o convite que fizera a Eisenhower para visitar o país.
O sentimento anti-imperialista cristalizou-se de tal forma
na América Latina que, como seria de se esperar, ganhou
forma musical. Essa forma ganharia, no final dos anos 1960
e início dos 1970, o nome de Nueva Canción. Mas ela já
existia, firme e forte, na metade da década de 1960 – e não
só na América de língua espanhola, mas também no Brasil
e até mesmo nos Estados Unidos.
Nascia a chamada Canção de Protesto.
A Canção de Protesto
A cantora, folclorista,
artista plástica e
compositora chilena
Violeta Parra (19171967), considerada a
primeira artista a
assumir sua música
como uma arma contra
a opressão política e a
injustiça social da
década de 1960.
No início da década de 1960, os meios de comunicação de
massa tendiam a oferecer uma forma cada vez mais
culturalmente homogeneizadora de entretenimento, tão
alienado quanto possível com relação aos problemas e às
grandes questões que “aborreciam” o dia-a-dia do grande
público, e apoiado pelos melhores recursos que a
aceleração do desenvolvimento tecnológico pudesse
oferecer à plasticidade dos produtos da indústria cultural.
Naquela época, os grandes empresários da mídia
(excetuando a jornalística) acreditavam que mexer em
questões delicadas como injustiça social e política, fome,
miséria, desrespeito aos direitos humanos, tudo isso fosse, na expressão herdada dos
remotos tempos em que o teatro era o centro da vida cultural das grandes cidades, um
verdadeiro “veneno de bilheteria”.
14
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
No entanto, logo nos primeiros anos, alguns artistas como
que leram a cartilha acima e resolveram, de pirraça, fazer
tudo ao contrário. Nada de homogeneidade: vamos resgatar,
a partir do folclore, o que houver de mais autenticamente
local na expressão artística de cada povo. Afinal, quem sabe
o grande dramaturgo russo Checkov não estaria certo ao
dar seu célebre conselho: “se um autor quiser ser universal,
então que fale de sua aldeia”. Distanciar-se de questões
espinhosas? Nada disso. A ordem passa a ser: mexer nas
feridas da sociedade – de preferência, dando a elas um
cunho tão pessoal quanto possível, para dar-lhes carne,
substância e garantir-lhes a empatia que uma discussão
intelectual ou ideológica jamais provocaria. Tecnologia?
Apenas para registrar e transmitir ao grande público uma
estética quase primitivista, por sua busca de fidelidade às
raízes da cultura popular, com a utilização de instrumentos
tão rústicos quanto possível.
Do explosivo casamento entre a canção folclórica atemporal,
a atualidade da canção urbana e a expressão das mais
candentes questões políticas e sociais que uma sociedade
estivesse apresentando no momento nasce a Canção de
Protesto, uma das mais importantes formas de expressão
musical das décadas de 1960 e 1970.
mais repertório
le
A cantora argentina
Mercedes Sosa (1935-),
uma das mais
importantes e
conhecidas intérpretes
da Canção de Protesto,
influenciou a música de
todo o continente
americano, gravando
com um leque de
artistas que passa
desde o brasileiro
Milton Nascimento
(1942-) até a americana
Joan Baez (1941).
O ponto de partida da Canção de Protesto é atribuída à canção
La Carta, da maravilhosa compositora chilena Violeta Parra
(1917-1967). O marco é discutível na obra de Violeta, que já
havia composto canções como Hace falta um guerrillero e
Porque los pobres no tienen. Talvez a causa de adotar essa
canção tenha sido o fato de ela responder não a um problema
crônico ao qual as pessoas já estavam conformadas, mas a uma situação específica e
urgente, criada e difundida no calor da hora. Violeta Parra, apresentando-se em Paris, em
1962, recebe uma carta que lhe comunica que seu irmão havia sido preso. Violeta pega a
caneta e escreve:
Me mandaron uma carta
Por el correo temprano
En esa carta me dicen
Que cayó preso mi hermano
Y sin compasión, con grillos
Por las calles lo arrastraron, sí
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
15
No Brasil, a problemática social já havia chegado ao cinema
em 1955, com “Rio 40 Graus”, de Nelson Pereira dos Santos
(1928-), e no teatro em 1958, com a montagem de “Eles
Não Usam Black-Tie”, de Gianfrancesco Guarnieri (1934-),
pelo Teatro de Arena em 1958. A criação dos Centros
Populares de Cultura (CPCs), em 1960, abriu um espaço
que cativou jovens compositores também envolvidos com a
Bossa Nova, como Carlinhos Lyra (1939-) e Geraldo Vandré
(1931-). Do CPC, Carlinhos Lyra entrou em contato com o
Teatro de Arena, núcleo cultural que, durante alguns anos,
conseguiu restaurar a posição do teatro como centro
nevrálgico da vida cultural nacional, reunindo, em sua
proposta de conscientização social e política, jovens que se
tornariam alguns dos maiores expoentes da cultura
nacional, como o próprio Lyra, Guarnieri, os diretores e
dramaturgos Augusto Boal, Chico de Assis, Isaías Almada
(que mais tarde se envolveria com a guerrilha) e José Renato
Peccora, os atores Lima Duarte, Dina Sfat e Antônio
Fagundes, os músicos Edu Lobo, Marília Medalha, Chico
Buarque, Caetano Veloso, Tom Zé, Maria Betânia e outros
tantos que a falta de espaço, jamais de importância, não
permite aqui mencionar.
Em 1961, Lyra musicou a peça Um Americano em Brasília,
de Chico de Assis (1933-) e Nelson Lins e Barros. Entre as
canções que escreveu, destaca-se a hilariante Canção do
Subdesenvolvido (em parceria com Chico de Assis), em
que os autores, com muito bom humor,fazem uma crítica
ferina ao atraso social do país e à submissão da elite
brasileira à dominação cultural e econômica das grandes
potências. Tal canção poderia ficar marcada como a primeira
Canção de Protesto no país, não fosse uma questão
estilística de vital importância: a ausência do elemento
folclórico.
mais repertório
le
O compositor
Carlinhos Lyra (1939-),
além de grande
expoente da BossaNova, atuou também
junto aos Centros
Populares de Cultura
(CPCs), produzindo
uma música que,
muitas vezes lançando
mão até do humor e da
paródia, visava à
conscientização pelas
massas das grandes
questões políticas e
sociais de seu tempo.
De fato, um traço fundamental da Canção de Protesto como gênero é sua adesão a
parâmetros estilísticos da cultura popular, até como signo do estrato social cujos interesses
procurava representar. Tal compromisso foi bem explícito entre os cantores da América
hispânica, entre os quais se destaca aquela cujo trabalho alcançou maior projeção em
escala mundial: a extraordinária artista argentina Mercedes Sosa (1935-). Mercedes, de
etnia indígena, sempre fez questão de se apresentar usando as vestes e os instrumentos
característicos de seu povo.
16
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
Seguindo essa lógica, ou seja, a composição engajada
produzida no calor da hora e o compromisso estético e social
com a música da tradição da cultura popular, apontaremos,
pois, na posição de grande pioneiro da Canção de Protesto
no Brasil, o sambista carioca Zé Kéti (1921-). Zé Kéti, digase de passagem, é um dos nomes chave de um importante
movimento dos anos 1960 que não está discutido neste
capítulo: aquilo que poderíamos chamar de “Renascença
do Samba”. Trata-se do ressurgimento, inicialmente em volta
do restaurante Zicartola (de propriedade de Dona Zica,
esposa de Cartola), de uma constelação de extraordinários
sambistas, pertencentes a uma primeira geração de
grandes compositores injustamente esquecidos, como
Cartola (1908-1980) e Nelson Cavaquinho (1910-1986), e a
uma nova geração que incluía nomes como Paulinho da
Viola (1942-) e Elton Medeiros (1930-). A essa gloriosa
retomada do samba juntou-se a musa da Bossa-Nova, Nara
Leão (1942-1989), ao participa,r ao lado de Zé Kéti e João
do Vale (1934-1996), do antológico espetáculo Opinião,
dirigido por Augusto Boal (1931-) – na época atuando
intensamente tanto no Teatro de Arena quanto nos CPCs.
Opinião reunia Zé Kéti, um negro representante do
proletariado urbano, João do Vale, caboclo representando a
miséria rural nordestina, e Nara Leão, uma branca
representando a elite intelectual urbana inconformada com
as injustiças sociais do país. Opinião é também o nome da
canção de Zé Kéti que, já desde o final de 1964, figura como
o marco inicial da Canção de Protesto no Brasil:
mais repertório
le
O grande sambista Zé
Kéti foi o pioneiro da
Canção de Protesto no
Brasil, com o clássico
Opinião, que se tornou
o título de um musical
homônimo de Augusto
Boal (1931-).
Podem me prender,
Podem me bater,
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
17
A ousadia de Zé Kéti abre espaço para outros compositores
que, em pouco tempo, engrossam e enriquecem as colunas
da Canção de Protesto no país. Dentre eles, destaca-se
absoluta a figura de um dos mais reverenciados
compositores brasileiros de todos os tempos: Chico Buarque
de Holanda (1944-). Em verdade, a obra de Chico é tão vasta
e abrangente que rotulá-lo como sambista ou como
compositor de canções de protesto – dois qualificativos
válidos para sua obra – parecerá a muitos uma categorização
por demais reducionista. Em todo o caso, um marco para a
entrada de Chico no universo da Canção de Protesto é seu
disco de estréia em 1965, contendo o clássico Pedro pedreiro
mais repertório
lele
Pedro pedreiro fica assim pensando
Assim pensando o tempo passa
E a gente vai ficando pra trás
Esperando, esperando, esperando,
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento
Desde o ano passado
Para o mês que vem
Apesar da engenhosidade de Chico, seu grande prestígio e
a engenhosidade de suas célebres letras de duplo sentido,
seria a simplicidade, clareza e univocidade de sentido dos
clássicos de Geraldo Vandré que, no calor da hora,
mobilizariam multidões e se transformariam em verdadeiros
hinos que, como no episódio bíblico das muralhas de Jericó,
seriam cantados com garra e obstinação até o dia em que,
finalmente, veriam ruir a lúgubre fortaleza da ditadura militar.
Vandré já escrevera seu nome na história da Canção de
Protesto com sua Disparada (1966), em parceria com Théo
de Barros, que contava a história de um boiadeiro, o qual se
conscientizara da opressão a que estava submetida a gente
do campo, e de seu próprio papel naquela cruel engrenagem:
Então não pude seguir
O compositor Edu
Lobo (1943-), a atriz
Ítala Nandi (1942-) e o
compositor Chico
Buarque (1944-), na
célebre “Passeata dos
Cem Mil”, meses
antes que o AI-5
radicalizasse
definitivamente a
ditadura militar no
Brasil. Embora
qualificar Chico
Buarque como
compositor de
Canções de Protesto
seja uma intolerável
redução de sua vasta
obra como compositor,
não há, todavia, como
questionar que se
devem a ele algumas
das mais belas e
engenhosas Canções
de Protesto da história
da música popular
brasileira.
Valente lugar tenente
E o dono de gado e gente
Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente
18
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
O ano de 1968 foi marcado, em todo o planeta, pelo signo
da radicalização. A Primavera de Praga desafiando a União
Soviética, as revoltas estudantis em Paris desafiando De
Gaulle, o ataque vietnamita à embaixada americana em
Saigon, as manifestações anti-racistas na Carolina do Sul,
do Norte e no Winsconsin, o assassinato de Martin Luther
King, o início das atividades do grupo terrorista alemão
Baader-Meinhoff, a estréia na Broadway do musical Hair,
que enaltecia os valores da contracultura e condenava a
Guerra do Vietnã, o assassinato de Robert Kennedy, a
saudação do Black Power proferida do alto do pódio pelo
atleta negro Tommie Smith ao receber sua medalha de ouro
nas Olimpíadas – e, na sexta-feira 13 do mês de dezembro,
a ditadura militar no Brasil institui o AI-5, marco do
embrutecimento definitivo do regime militar brasileiro. Nesse
ano turbulento, Vandré mostraria ao público do III Festival
Internacional da Canção a singela obra-prima da Canção
de Protesto no Brasil: Pra Não Dizer que Não Falei de Flores:
Há soldados armados
Amados ou não
mais repertório
le
O compositor Geraldo
Vandré (1931-), autor
do maior clássico da
Canção de Protesto na
história da música
brasileira, Pra Não
Dizer que Não Falei de
Flores (Caminhando).
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Antigas lições
De morrer pela pátria
E viver sem razões
Mas, quando o AI-5 mostrou a cara do terror de Estado, não foram apenas os engajados
compositores da Canção de Protesto que foram perseguidos. A 27 de dezembro daquele
ano, a prisão de Caetano Veloso (1942-) e Gilberto Gil (1942-) era o marco do fim do
aparentemente efêmero movimento conhecido como Tropicália – movimento esse que, em
sua ilusória brevidade, teve desdobramentos que o mantiveram extremamente presentes
nas quatro décadas que se seguiriam a seu “fim”.
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
19
O Crepúsculo dos Deuses: A Tropicália
mais repertório
saiba mais
lele
A alusão ao título da última parte da obra-prima
O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner,
remete ao calvário pelo qual a elite da cultura
brasileira estava prestes a passar durante os
anos de chumbo da ditadura militar.
Tudo é “Divino, maravilhoso”, anunciavam os deuses
tropicalistas da MPB na canção homônima em 1968.
Se houver uma palavra única que possa definir Tropicália,
tal palavra deverá ser “sínteses” – assim mesmo, no plural.
Plural pela diversidade de formas de expressão presentes
no movimento, como decorrência natural de seus
pressupostos estéticos. E “síntese” na acepção do termo
dentro da dialética, ou seja, o resultado do diálogo entre
uma tese e sua antítese. Trata-se, pois, de uma estética
dinâmica, extremamente arredia a tentativas de definição,
tal qual tão bem expressariam mais tarde os versos da
canção de Caetano O Quereres, de 1984:
Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco,
E onde queres eunuco, garanhão
E onde queres o sim e o não, talvez
Onde vês eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo eu sou o irmão,
E onde queres cowboy, eu sou chinês
20
Foto da capa do LP
“Tropicália ou Panis et
Circensis” (1968). Nela,
vê-se a linha de frente
do movimento
tropicalista. No alto, da
esquerda para a direita:
Arnaldo Baptista
(baixista e compositor
dos Mutantes), o
compositor e mentor
intelectual da Tropicália
Caetano Veloso
(segurando a foto da
cantora Nara Leão), a
cantora e compositora
Rita Lee (vocalista dos
Mutantes), Sérgio Dias
(guitarrista dos
Mutantes) e o
compositor Tom Zé.
Sentados no banco: o
arranjador Rogério
Duprat, a cantora Gal
Costa e o compositor
Torquato Neto. Sentado
no chão, o compositor
Gilberto Gil.
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
Uma das mais instigantes sínteses propostas pela Tropicália
foi aquela entre a modernidade descompromissada do pop
– tanto o nacional, da Jovem Guarda aos Mutantes, quanto o
internacional, dos Beatles aos Beat Boys argentinos – com
algumas correntes de vanguarda, quer da música, quer das
artes visuais e audiovisuais. O próprio nome Tropicália advém
da obra homônima do artista plástico Hélio Oiticica (19371980). Assim, a Tropicália cativaria os poetas neoconcretos
Augusto (1931-) e Haroldo de Campos (1929-1999), bem
como músicos da área erudita como Gilberto Mendes (1922), Júlio Medalha (1938) e Rogério Duprat. Discípulo de Hans
Joachim Koellreutter (1915-) e de Walter Smetak (1913-1984),
Tom Zé (1936-) seria, de todos os tropicalistas, aquele que
mais manteria a solidez de suas raízes – as populares de
sua Irará natal e as vanguardistas de sua formação -, mas
sua obra só ganharia o espaço merecido no início da década
de 2000.
Por detrás de algumas ousadias e experimentações da
Tropicália, ouvem-se, ainda, os ecos do histórico e legendário
LP Sgt. Pepper‘s Lonely Hearts Club Band, lançado pelos
Beatles, em 1967. Há, também, a admiração profunda de
Caetano pelo mestre da Nouvelle Vague, o cineasta francês
Jean-Luc Godard, admiração essa que o levará, em 1986, a
se aventurar como autor de cinema, com seu filme Cinema
Falado. A afinidade de Caetano com a vanguarda resultou no
LP Araçá Azul, de 1973, cujo experimentalismo não foi bem
recebido pelo público – ao menos em termos de vendagem.
Pode-se tomar, como marco inicial da Tropicália, a canção
Alegria, Alegria, com que Caetano conquistou o quarto lugar
no II Festival de MPB da TV Record, em 1967:
Eu tomo uma coca-cola
E ela pensa em casamento
mais repertório
lele
Hans Joachim
Koellreutter (1915-),
compositor e professor
alemão radicado no
Brasil desde 1937,
deixou uma profunda
marca na música
brasileira, quer por ter
introduzido o
dodecafonismo em
nossa música erudita,
quer por ter enriquecido
nossa música popular
ao transmitir o melhor
de seu conhecimento
musical a alunos como
Tom Jobim (1927-1994)
e Tom Zé (1936-).
Uma canção me consola
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone
No coração do Brasil
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
21
Em meio a uma época em que a gradual brutalização
do regime militar foi levando a sociedade a se mobilizar
em passeatas, manifestações e na era da Canção de
Protesto, propor-se a “tomar uma coca-cola” parecia, a
alguns, render-se metaforicamente à dominação
imperialista das multinacionais. A adoção das guitarras
elétricas – as quais viriam para ficar na música popular
brasileira – também soava da mesma forma como uma
capitulação ao imperialismo cultural do rock. O gesto de
andar “sem livros e sem fuzil” podia também ser
interpretado como uma crítica à juventude politizada que
abraçava a inglória luta contra a ditadura. Assim,
enquanto a bela canção de Caetano despertava paixão
em uma parte do público, na outra despertava absoluta
indignação.
Da mesma maneira, Domingo no Parque, de Gilberto
Gil, que alcançou o segundo lugar no mesmo festival,
apresentava, ainda que de maneira muito mais sutil que
Caetano, uma possível crítica à politização de sua
geração, por meio da história do feirante José e do
pedreiro João:
O sorvete é morango
- é vermelho
oi, girando, e a rosa
- é vermelha
oi, girando, girando
- é vermelha
oi, girando, girando
- olha a faca!
Olha o sangue na mão
- ê, José
Juliana no chão
- ê, José
outro corpo caído
- ê, José
seu amigo João
mais repertório
le
Policiais recorrem à
cavalaria para reprimir
estudantes paulistas em
1968. A ditadura não
conseguiria calar, senão
temporariamente, a elite
intelectual e artística
brasileira. No que tange à
sociedade, contudo, a
castração, infelizmente,
seria mais eficaz. Os anos
de chumbo fizeram com
que as grandes
manifestações populares
urbanas de caráter político
praticamente
desaparecessem da vida
nacional após 1968,
excetuando-se apenas as
gigantescas mobilizações
relacionadas à campanha
das “Diretas Já” em 1984 e
ao Impeachment de
Fernando Collor em 1992.
Ao engajamento da década
de 1960, seguiu-se uma
era de crescente alienação,
na música como na
sociedade, em um
processo que ainda
persiste na década de
2000.
- ê, José
22
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
Ao final do giro vertiginoso da roda-gigante da história, o “rei da confusão”, o proletário João,
estava morto, coberto de sangue - vermelho como a cor da bandeira que, com a foice e o
martelo, simbolizava o comunismo a que aderia a juventude mais engajada. Também
Juliana, por quem ambos os adversários se defrontavam, termina prostrada ao chão, coberta
de sangue – como o Brasil, que seria arrasado pela brutalidade e incompetência dos
governos militares. Vivo, apenas o pequeno comerciante José, sobrevivente de uma
paisagem em ruínas – como os próprios tropicalistas sobreviveriam a uma paisagem
cultural dilacerada. Domingo no Parque, lida através dessas metáforas, prenuncia, de
maneira apocalíptica, o seu próprio fim – o fim da Tropicália –, bem como o fim ainda mais
radical das bandeiras hasteadas por aqueles que impediriam Caetano de cantar É Proibido
Proibir no ano seguinte,1968. Assim, prematuramente, aos dez anos do alvorecer da BossaNova, terminaria a década de 1960 – provavelmente, a década mais rica da história da
música popular.
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
23
bibliografia
ALBIN, Ricardo Cravo. O livro de ouro da mpb. São Paulo: Ediouro, 2003.
ALMADA, Izaías. Teatro de Arena. São Paulo: Boitempo, 2004.
ARAÚJO, Mozart de et al. Enciclopédia da música brasileira. São Paulo: Arte
Editora, 1977.
BETHELL, Leslie. .A cultural history of Latin América. New York: Cambridge
University Press, 1998.
CALADO, Carlos. Tropicália – a história de uma revolução musical. São Paulo:
Editora 34, 2004.
CAMPOS, Augusto de. No balanço da bossa. São Paulo: Perspectiva, 1993.
CARRETERO, Andrés. Tango – testigo social. Buenos Aires: Ediciones Continente,
1999.
DABÈNE, Olivier. América Latina no século XX. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
CASTRO, Ruy. Chega de saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2004.
FERNANDES, Hélio de Almeida. Tango – uma possibilidade infinita. Rio de Janeiro:
Bom Texto, 2000.
FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll – uma história social. Rio de Janeiro: Record,
2004.
GOBELLO, José. Todo tango. Buenos Aires: Ediciones Libertador, 2004.
24
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
bibliografia
HOBSBAWM, Eric. História social do jazz. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
JOBIM, Helena. Antônio Carlos Jobim – um homem iluminado. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1996.
MELANDRI, Pierre. História dos Estados Unidos desde 1865. Lisboa: Edições
70, 2000.
MOTTA, Nelson. Noites tropicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro. São Paulo:
EDUSP, 1999.
. O melhor teatro de Gianfrancesco Guarnieri. São Paulo: Global, 1986.
SANTOS, Alcino et al. Discografia brasileira em 78 rpm: 1902 – 1964. 5 vols. Rio
de Janeiro: Funarte, 1982.
SEVERIANO, Jairo ; HOMEM DE MELLO, Zuza. A canção no tempo. São Paulo:
Editora 34, 2002.
TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São
Paulo:
Editora 34, 2004.
. Música popular: teatro e cinema. Petrópolis: Vozes, 1972.
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
WERNECK, Humberto. Chico Buarque – letra e música.São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
25
Anotações:
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
26
A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956
Download