As bases culturais da modernidade indiana

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As bases culturais da modernidade indiana
Daniel Mendes Mendonça
Nos últimos dois séculos os Estados Unidos da América e o ocidente europeu
apresentaram ao mundo um desenvolvimento sem precedente. Ciência, economia e
compreensão de mundo alcançaram patamares nunca antes vistos na história da
humanidade. Denominou-se de modernidade1 este estágio das coisas, e, a partir daí,
todas as sociedades do planeta teriam, mais cedo ou mais tarde, o objetivo indelével
de alcançar esta tão afamada época dourada. Como todo precursor, o ocidente foi
visto como o modelo a ser seguido. Ainda hoje se discute quais são os fundamentos
imprescindíveis para se chegar à modernidade; Seria preciso um governo democrático
aos moldes Europeu e Estado-Unidense? Protecionismo para criar e proteger a
nascente indústria ou liberalismo para deixá-la dinâmica e competitiva? Afinal, uma
economia sem amarras onde as empresas competem entre si gerando tecnologia e
inovação ou o Estado como promotor do desenvolvimento? O fato é que, passado a
surpresa e o embasbacamento inicial, a história tem demonstrado que existe mais de
um caminho para à modernidade. Este artigo procura analisar o caso indiano,
demonstrando como esta sociedade, muito específica e com uma história milenar,
trilha seu próprio caminho rumo à modernidade.
Quando pensamos nas origens da modernidade ocidental o Renascimento é
frequentemente compreendido como o momento decisivo neste processo. É nesta
época em que há um desprendimento dos dogmas religiosos cristãos que
caracterizaram o desenvolvimento e o estilo de vida ao longo de toda a idade média.
Em verdade podemos traçar uma linha contínua que iria do renascimento, passando
pelo iluminismo e ilustração, pelas revoluções burguesas, pelas revoluções industriais,
até os séculos XIX e XX, quando o poderio europeu é inconteste. A consequência deste
processo histórico é que a modernidade é vista como um produto refratário à religião
e aos dogmas religiosos. Isto, é claro, foi verdadeiro no caso europeu, onde o
surgimento do cristianismo rejeitou toda a cultura prévia greco-romana. Foi somente
1
A periodização usual considera a época moderna o período compreendido entre os séculos XV – XVIII.
Não seguimos esta orientação neste artigo. Modernidade aqui é uma nomenclatura que designa um
grau de desenvolvimento apresentado pelas sociedades ocidentais ao longo dos séculos XIX e XX.
quando o discurso hegemônico cristão foi contestado e ou relativizado, movimento
justamente iniciado com o renascimento, que o subcontinente europeu pode se
desenvolver em diversas instâncias. Max Weber, em seu livro A Ética protestante e o
espírito do capitalismo2, demonstra com muita acuidade a relação entre o cristianismo
protestante e a ascensão do capitalismo. O problema é que este desencantamento do
mundo, fundamental para a modernidade na Europa, não tem paralelos no caso
indiano. Na Índia nunca houve corte e rejeição pela cultura de períodos anteriores,
logo nunca houve a necessidade de renascimentos; seu desenvolvimento sempre
caminhou junto com os saberes e crenças metafísicas (foi inclusive tributário destas
em alguns momentos). O “x” da questão é que algumas bases fundamentais para a
modernidade ocidental são consideradas fundamentais também para qualquer
modernidade. Creio que isto não é verdadeiro. Uma breve passagem pela história
deste subcontinente asiático bastará para demonstrar como que conhecimentos ditos
seculares, em especial a matemática e a medicina, caminharam ao lado das crenças
metafísicas e religiosas.
2
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Cia Das Letras, 2004.
Durante a idade do bronze (3200 – 1200 a.C.) destaca-se no subcontinente
indiano
uma
cultura
que
se
desenvolveu ao longo do vale do rio
Indo. Esta cultura, chamada de
Harappeana,
era
precocemente
letrada e, a julgar pelo padrão de sua
cultura material, era extremamente
uniforme, o que sugere um regime
centralizado
que
pode
ter
contribuído para alguns elementos
da vida hindu posterior. Alguns dos
Um exemplar antigo do Rigveda escrito em Sânscrito
famosos
“selos
harappeanos”
representam posições corporais mais
tarde utilizadas na ioga. O auge desta civilização foi entre 2500 e 2000 a.C., sendo seu
fim computado por volta do ano 1750 a.C. Após a civilização Harappeana, uma nova
cultura surge, mais desta vez no vale do rio Ganges, conhecida como cultura Védica.
Tomando corpo no fim do segundo milênio antes de Cristo, esta civilização durou até o
início do império Máuria, em 322 a.C. Se a contribuição da civilização de Harappa para
a Índia moderna é diminuta e controversa, o período Védico é indubitavelmente
importantíssimo como substrato cultural para as sociedades que vão se desenvolver
no subcontinente indiano. É nesta época em que são compostos os Vedas, um
conjunto de quatro textos (Rigveda, Yajurveda, Samaveda e Atarvaveda ) que será a
base de toda religião e educação hindu posterior. Uma forma primeira de Sânscrito
também será formulada neste período, assim como o budismo e o jainismo.
São essas as bases de todo o desenvolvimento cultural posterior indiano. A
índia é caracterizada por uma continuidade cultural. Não uma continuidade
gradativamente linear, houve, como em qualquer sociedade, momentos de
florescência maior em oposição a outros de estagnação e regressão. O importante é
perceber que jamais houve uma rejeição violenta da cultura anterior como no caso
europeu por ocasião da hegemonia do cristianismo. A religião hindu sempre permitiu
maior liberdade de opiniões, sempre esteve mais aberta. Um bom exemplo de como
saberes ditos científicos caminharam ao lado dos saberes transcendentais são as
diversas universidades indianas. Ao longo de vários séculos instituições de ensino
superior proliferaram na Índia. Uma das mais famosas vem a ser o centro de educação
superior de Nalanda. Criada ao que tudo indica ao longo da dinastia Gupta (320-546
d.C.) esta universidade estava, como todas as outras na Índia, ligada a alguma
instituição religiosa. Mas isto não significava imposição de credo e impossibilidades de
conhecimentos extra-religiosos. Segundo relatos do viajante chinês Xuang Zang,
tratava-se de uma “escola de discussão”, em que pessoas de diferentes credos e seitas
podiam debater em público, e possuía uma administração “democrática”, com um
ensino marcado pela tolerância e pela liberdade; os estudantes podiam realizar
estudos brâmanicos ou budistas, tanto nas artes como nas ciências.
Um outro aspecto que permitiu o continuo desenvolvimento do saber cultural
indiano sem grandes rupturas
foi a língua Sânscrita. A língua
deu origem a diversos idiomas
(lembremos que a Índia atual
conta em 27 o número de
línguas oficiais), mas sempre
foi preservada. Mais uma vez,
houve períodos de regressão,
com menos conhecedores do
idioma e outras de expansão.
O fato, contudo, é que a língua nunca passou ao status de língua morta, permitindo
sempre que necessário uma volta aos textos escritos passados, criando um elo forte
entre o presente e as épocas idas.
Nos séculos XIX e XX a Índia estava sob domínio britânico. O movimento
independentista teve como semente o Congresso Nacional Indiano, reunido pela
primeira vez em 1885. É importantíssimo ressaltar que ao longo do movimento para
independência, o revigoramento do hinduísmo e do sânscrito como bens culturais
nacionais teve papel importantíssimo. Foi este o período em que o subcontinente teve
contato com a modernidade europeia; a mecanização, máquinas e navios a vapor,
telégrafos e rodovias. Mesmo assim, sempre houve um diálogo com a cultura clássica
do subcontinente, o olhar retrospectivo para a cultura escrita não impediu o progresso
do movimento independentista e modernizador,
Mahatma Gandhi, um dos principais expoentes
do Congresso Nacional Indiano
pelo contrário, ele era parte intrínseca deste
processo como ao longo de toda história indiana. Desta forma, a modernidade indiana
se caracteriza, não com um afastamento dos saberes religiosos, com um
desencantamento do mundo, como é o caso europeu. Além disso, como não houve
descontinuidade
profunda,
também
não
houve
renascimentos.
Bibliografia
ARBIX, Glauco. Brasil, México, África do Sul,
Índia e China: diálogo entre os que chegaram depois. São Paulo: Edusp, 2002.
BARROS, João de. O descobrimento da Índia. Lisboa: Gráfica Lisbonense, 1943.
CORRÊA, Gaspar. Lendas da India. Boston: Harvard University Press, 1976.
LEITE, Edgard. Religiões antigas da Índia. Rio de Janeiro: Nea, 2001
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Cia
Das Letras, 2004.
SANCEAU, Elaine. O caminho da India. Porto: Livraria Civilização Editora, 1948.
Filmografia de Apoio
O MAHABHARATA
Diretor: Peter Brook
Ano: 1989
País: Reino Unido/ França
SANGUE SOBRE A ÍNDIA
Diretor: J. Lee Thompson
Ano: 1959
País: Inglaterra
LAGAAN - A CORAGEM DE UM POVO
Diretor: Ashutosh Gowariker
Ano: 2001
País: Índia
UM CASAMENTO À INDIANA
Diretor: Mira Nair
Ano: 2001
País: Índia/ EUA/ Itália/ França
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