Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 11 - Nº 34 / 2º Semestre 2011 A (re)construção de um império: os britânicos e sua expansão no século XIX Gabriel Passetti Ao eclodir a Primeira Guerra Mundial, em 1914, o Império Britânico controlava, aproximadamente, um quarto das terras e das populações do planeta. Diante de tamanha potência, estabeleceu-se uma interpretação que associa a preponderância global britânica naquele momento a um bem delineado e executado plano de dominação de mais de um século de duração. No entanto, a análise das experiências imperiais britânicas evidencia diferentes projetos e entendimentos de como deveria se dar a expansão, e mesmo se o Império deveria persistir. Até o século XVIII, o Império Britânico estava estruturado em torno de um sistema derivado daquele que era o bemsucedido na época – o mercantilista. Assim como os impérios português, espanhol e francês, os ingleses também estabeleciam mercados exclusivos nas colônias, impediam uma série de produções locais e impunham monopólios – exemplos bem estudados destes casos eram os das regiões produtoras de tabaco, cana de açúcar e algodão nas regiões tropicais caribenhas e norte-americanas. Um diferencial era a presença mais intensa de companhias privadas na exploração, com direitos ampliados, inclusive de governo. Dois fenômenos simultâneos e conectados alteraram esta estrutura. Em meados do século XVIII, a Inglaterra e outras regiões da Europa, como a Bélgica, passaram a vivenciar uma profunda transformação nas relações de produção e trabalho, a qual denominou-se Revolução Industrial. A sustentação teórica econômica que possibilitou a defesa destas novas formas de produzir e trabalhar teve múltiplas origens, mas ganhou força em uma região específica do arquipélago britânico – a Escócia. Lá, um grupo de pensadores, entre os quais destacamos a figura de Adam Smith, defendia o livre comércio, entre outras liberdades econômicas. A estes autores, o mercantilismo e as colônias eram um mal a ser combatido, pois freavam a iniciativa econômica, as trocas, a circulação de riqueza e a produção. Para eles, o Império significava gastos – financeiros, populacionais e morais – e não lucros. A riqueza acumulada com as atividades industriais, a dinamização das atividades coloniais e a insatisfação com a falta de liberdades econômicas levou a uma crise no Império Britânico na segunda metade do século XVIII. Insatisfeitos com a falta de representação política, com medidas restritivas econômicas e inspirados nas críticas dos teóricos do liberalismo, uma série de líderes regionais americanos iniciaram uma rebelião que culminou com a independência de parte das colônias inglesas na América do Norte, formando os EUA. Este fato marcou profundamente a atuação britânica no planeta no século seguinte. Enquanto assimilava esta perda, a GrãBretanha passava por uma intensa transformação social, pautada pelo 4 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 11 - Nº 34 / 2º Semestre 2011 surgimento do proletariado e das classes médias nas cidades em rápida expansão. Em busca de força política, estes grupos travaram uma longa e intensa disputa com aqueles que monopolizavam a estrutura formal de poder – a aristocracia e, em menor parte, a alta burguesia. Uma série de estratégias foram delineadas neste embate, mas uma de ampla repercussão à época, e com reflexos até os nossos dias, está relacionada a ideias e práticas religiosas. Uma parcela considerável das classes médias urbanas aderiu aos grupos protestantes britânicos conhecidos como nãoconformistas: batistas e metodistas. A revisão teológica proposta por estes pastores em oposição ao anglicanismo, reforçaram alguns princípios que se mostraram interessantes social e politicamente às classes médias, pois reforçou a concepção de que todos os homens eram iguais perante Deus. Este ideia se mostrou especialmente valiosa naquele momento, pois possibilitou a organização de toda uma rede de oposição à aristocracia e à burguesia comercial imperial que faziam oposição à ascensão política das classes médias. Na interpretação teológico-política dos grupos insatisfeitos, a homogeneidade diante da divindade deveria ser o modelo para a expansão da participação política. Diante da oposição a esta reforma, desdobramentos econômicos entraram em pauta e transformaram a atuação britânica no planeta. Uma das mais importantes áreas de atuação dos clérigos britânicos não-conformistas era a de evangelização dos povos não cristãos, especialmente aqueles chamados de selvagens – os nativos da América, África e Oceania. Seus missionários logo definiram seu principal inimigo: a escravidão. Tida como a pior deturpação da ordem divina, a exploração de um homem enquanto mercadoria, ia contra todos os preceitos que definiam esta classe média britânica em ascensão, entre eles a liberdade de produção e de circulação. Além da questão teológica, o combate à escravidão interessou também aos interesses políticos destes grupos. Eles elaboraram uma estratégia e estabeleceram como meta combater a escravidão para, com isso, também desestabilizar economicamente a seus adversários políticos: traficantes de escravos, comerciantes mercantilistas e aristocratas investidores. A campanha pela abolição do tráfico negreiro durou duas décadas e envolveu a crescente imprensa, os relatos de viajantes, os missionários e a produção de quadros com o objetivo de explicitar e potencializar os horrores da escravidão para pressionar a opinião pública. Em 1807, após intensos e acalorados debates nas Câmaras dos Comuns e dos Lordes, o governo britânico aboliu o tráfico negreiro. Esta ação significou uma estrondosa vitória dos grupos envolvidos com a defesa dos povos nativos, e também das classes médias. A aceitação, por parte do governo britânico, de uma nova legislação que proibia uma das atividades econômicas mais rentáveis de então só foi possível porque sua economia passava por uma profunda transformação que gerava um rápido enriquecimento por outras vias e tirava o tráfico negreiro da principal pauta do 5 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 11 - Nº 34 / 2º Semestre 2011 comércio internacional. A abolição do tráfico e, posteriormente da escravidão (em 1834) ocorreu, portanto, como decorrência da Revolução Industrial na Grã-Bretanha, e não foi parte desta – não ocorreu porque era preciso ampliar mercados para ex-escravos miseráveis, mas sim porque os mercados já estavam com a expansão sobre a Índia. Ademais, a campanha abolicionista também surgiu e se fortaleceu dentro das demandas específicas deste grupo que cresceu e ganhou força também como fruto da industrialização – a classe média. A partir do momento em que aboliu o tráfico negreiro em navios sob sua bandeira, o Império Britânico passou a efetuar uma pressão crescente sobre seus parceiros internacionais por medidas semelhantes. São bastante conhecidos os frutos destas ações na história do Brasil, por exemplo. As operações de vigilância, repressão e combate da Marinha Real sobre traficantes de escravos sob qualquer bandeira foram uma expressão da força política e militar do Império Britânico nas relações internacionais a partir da vitória sobre Napoleão, em 1815. A partir daquele momento, a Grã-Bretanha passou a regular e controlar os mares e atribuiu a si o direito de atacar e perseguir navios que exerciam atividades que, sob sua legislação nacional, eram ilegais. A vitória sobre os escravocratas explicitou a força dos grupos religiosos que, nas primeiras décadas do século XIX conquistaram importantes postos na administração imperial britânica e transformaram o que era a defesa de povos nativos, tidos como indefesos – o humanitarianism – em uma prática imperial: o imperial humanitarianism. Esta transformação significou a retomada das discussões em torno da expansão territorial britânica em outros continentes, tabu desde a independência dos EUA. Na década de 1830, sob o novo prisma da defesa de nativos, o Império conseguiu uma nova justificativa e voltou a se expandir – naquele momento ainda de forma tímida, sobre a Oceania. Entretanto, outros grupos passaram a se interessar por estes mesmos territórios. As péssimas condições de trabalho e vida e o caos urbano assustavam à aristocracia e à burguesia no início do século XIX e estas passaram a defender projetos que supunham a exportação de excedentes populacionais e capitais, com o duplo objetivo de ampliar a rentabilidade financeira e diminuir as tensões sociais nas cidades. Um grupo de investidores e pensadores conservadores elaborou o que chamou de uma reforma do projeto colonial (Colonial Reformers)e também passou a defender a expansão britânica. Para eles, as áreas ideais de atuação eram aquelas em que havia clima temperado e baixa densidade demográfica nativa, onde era possível estabelecer famílias britânicas em um sistema de pequenas propriedades organizadas por companhias privadas, estabelecendo simulacros da metrópole. Iniciativas neste sentido ocorreram na região de Adelaide, na Austrália (South Australia Company, 1831), no Canadá (Canada Association, 1837) e na Nova Zelândia (New Zealand Company, 1839). 6 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 11 - Nº 34 / 2º Semestre 2011 Havia uma confluência de interesses de missionários e investidores sobre os mesmos locais. Isto possibilitou diferentes forças pressionando pela anexação formal destes territórios pelo Império – alvo de intensas resistências por parte dos políticos liberais – mas também explicitou projetos opostos para a atuação nestes mesmos locais. De um lado estavam os missionários, que idealizavam converter os nativos ao cristianismo e ao modo de vida britânico, almejando estabelecer novas estruturas sociais, no modelo britânico, mas com nativos. De outro lado estavam os investidores que pretendiam comprar e/ou expulsar estes mesmos povos e colocar em seu lugar colonos em sociedades exclusivamente brancas, estabelecendo “pequenas Inglaterras”. Do ponto de vista institucional, o objetivo era o mesmo: anexação territorial. Mas na prática significavam projetos opostos para aquelas terras. A década de 1840 marcou a crise de ambos projetos, e uma nova configuração para o Império Britânico. As companhias privadas, idealizadas pelos reformadores coloniais, faliram ao não conseguir associar a grande procura de investidores, com a baixa demanda de emigrantes e a aversão ao risco decorrente de sublevações nativas. E os humanitarians perderam força ao verem muitas de suas missões caírem em descrédito após nativos cristianizados oferecerem resistência à dominação, exploração e soberania britânica. Aos burocratas da administração imperial, a década de 1840 apresentava dois problemas centrais: a recente expansão territorial havia incorporado novas regiões, e era necessário estabelecer estratégias para evitar a repetição dos erros que levaram à independência dos EUA. Neste sentido, nas regiões em que haviam sido instalados – e continuavam sendo enviados – famílias britânicas, onde o clima era temperado e havia baixa densidade demográfica nativa, foi colocado em prática um sistema de compartilhamento de responsabilidades, denominado de autogoverno. Nesta nova forma de colonizar, disponível somente nos locais que preenchessem as características acima descritas, o governo britânico concedeu aos colonos o direito de legislar sobre os assuntos internos – impostos, investimentos em infra-estrutura, acesso à terra, relações com os nativos, etc – e manteve sob controle metropolitano somente o comércio exterior e a defesa. A ideia era manter os colonos fiéis à Coroa, mas satisfeitos ao gerir e financiar seu governo, e isto ocorreu no Canadá (1841), Austrália (1846), Nova Zelândia (1852) e na Colônia do Cabo (1854), dando força, armas, leis e recursos para estes britânicos dominarem, combaterem, explorarem e expulsarem os povos nativos. Estratégia distinta foi empregada nas áreas de expansão imperial denominadas de Colônias da Coroa (Crown Colonies). A prioridade, nestas regiões de clima tropical e alta densidade demográfica nativa era a anexação territorial, o estabelecimento de monopólios comerciais e a abertura de 7 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 11 - Nº 34 / 2º Semestre 2011 mercados. A principal área onde ocorreu esta forma de exploração foi na Índia, e depois o modelo foi transplantado à África. Viver no Império Britânico, a partir da metade do século XIX, significava entrar em contato com povos, costumes, produtos e ambientes muito diferentes. A circulação de pessoas, produtos e ideias foi intensa, da metrópole para as colônias, das colônias para a metrópole e entre colônias, sem passar pela Grã-Bretanha. Marinheiros, mercadores, administradores coloniais, missionários, exploradores, aventureiros, investidores, cientistas, caçadores, fugitivos, foragidos e degredados, entre outros, circularam por regiões tão diferentes quanto Hong Kong, a Austrália e a Jamaica. Levaram de um canto a outro suas impressões, produtos, ideias e estratégias de conquista e exploração. Homens como Francis Bond Head (explorador a serviço da River Plate Mining Co., na Argentina, e depois governador do Canadá), Thomas Cochrane (comandante nas Guerras Napoleônicas, mercenário no Chile e no Brasil, e almirante em Hong Kong e na Índia), Edward Eyre (explorador na Austrália, administrador colonial na Nova Zelândia e governador da Jamaica) e George Grey (explorador na Austrália, governador da colônia do Cabo e da Nova Zelândia) não eram a exceção, mas a regra. A muito daqueles que permaneceram na Grã-Bretanha, o Império significou a chegada de novos produtos e pessoas, mas o envolvimento e o interesse pelas formas de atuar e explorar geralmente foi baixo, exceto nos momentos de comoção decorrentes de novas anexações ou de massacres e derrotas retumbantes. Uma das formas para engajar a população metropolitana e criar uma mentalidade imperial foi a exposição dos produtos e povos conquistados, iniciada com a primeira Exposição Universal, em Londres, em 1851. Naquela oportunidade, foram apresentados, lado a lado, os mais recentes inventos da Revolução Industrial, como as modernas locomotivas, o rifle e o telégrafo, e também lanças, arpões, escudos, animais empalhados e até crânios humanos. Conscientes e confiantes em sua superioridade global, os britânicos anexaram formalmente a Índia ao Império, em 1858, e passaram, a partir de então, a organizar sua atuação em torno da defesa do acesso a este aparentemente infinito mercado. Neste sentido, contribuíram na abertura do Canal de Suez (1869) – com o qual reduziram pela metade a viagem a Calcutá – e construíram uma rede telegráfica global, conectando Londres a Hong Kong, em 1872. A África, até então alvo de missionários, cientistas e exploradores, mas submetida a políticas não intervencionistas pautadas na defesa do livre-comércio, entrou na pauta quando os franceses deram início a amplas anexações territoriais, na década de 1870, após a derrota na Guerra FrancoPrussiana. A história da partilha daquele continente é bastante conhecida, e a atuação britânica foi marcada pela tentativa frustrada (até 1914) de estabelecer uma sequencia ininterrupta de colônias, conectando o Cairo ao Cabo. Quando os missionários não conseguiram convencer os Chefes locais, e 8 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 11 - Nº 34 / 2º Semestre 2011 não foi possível impor-lhes tratados geralmente falsos, utilizou-se o Exército para impor a soberania britânica. Em duas décadas, praticamente metade do continente estava sob seu controle. Em 1914, aproximadamente um quarto das terras e das populações do planeta estavam sob controle britânico. Esta expansão ocorreu pautada por conhecimentos prévios – geográficos construídos por expedicionários, e etnográficos, levantados por missionários, entre outros – e conciliou atividades de companhias privadas à atuação direta do Exército. Sua dominação foi extensa, intensa e violenta, pautada por projetos, interesses e objetivos conflitantes e por vezes opostos, transformados durante um século de atuação, mas que em constante revisão, culminaram no mais extenso império já estabelecido sobre o planeta. Gabriel Passetti é Doutor em História Social pela USP, professor de História das Relações Internacionais na FASM e na USP. Referências bibliográficas: GEBARA, Alexsander. A África de Richard Francis Burton. Antropologia, política e livre- comércio, 1861-1865. São Paulo: Alameda, 2010. HALL, Catherine; ROSE, Sonya O. (Ed). At home with the Empire. Metropolitan culture and the Imperial World. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. LAMBERT, David; LESTER, Ana (Ed). 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