notas sobre a expressão do objeto indireto no português

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI.
NOTAS SOBRE A EXPRESSÃO DO OBJETO INDIRETO NO PORTUGUÊS
ANGOLANO
Ednalvo Apóstolo CAMPOS1
RESUMO: Neste artigo faz-se um breve estudo sobre a expressão do objeto indireto de
terceira pessoa no português angolano. Toma-se como base a descrição do objeto
indireto nas gramáticas de Bechara (2009) e Mateus et. alii (1983), além dos estudos
mais recentes sobre o objeto indireto no português brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: objeto indireto; português europeu; português brasileiro;
português angolano.
Introdução
Nos últimos anos tem sido publicado um número bastante expressivo de
trabalhos em diversas “frentes” sobre o português brasileiro (PB); muitos deles
baseiam-se em dados coletados pelo Projeto NURC2. Esses trabalhos propõem
diferenças na gramática do PB em relação ao português europeu (PE): no quadro de
pronomes; no emprego de preposições; na sintaxe do sujeito e do objeto, etc. Os
resultados atestados instigam a “olhar” também o português falado em outros países da
comunidade lusófona.

Agradeço à professora Maria Aparecida Torres Moraes pelos comentários sobre as sentenças do
português angolano e à professora Márcia S. D. de Oliveira pela leitura e sugestões de revisão deste
artigo. Os erros em relação à interpretação dos dados são de minha inteira responsabilidade.
1
Professor da Universidade do estado do Pará – UEPA; aluno do Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Sociais – FFLCH/USP.
[email protected]
2
Projeto de Estudo da Norma Urbana Culta – NURC, tem âmbito nacional, e realizou gravações em cinco
capitais brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife e Salvador.
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Neste artigo, lança-se um breve “olhar” para a expressão do objeto indireto
(OI) no português culto falado em Angola – português angolano (PA), verificando as
possíveis distinções em relação ao PE, em cuja língua a expressão do OI é
reconhecidamente a padrão (prescrição normativa). No PB, por exemplo, o OI ocorre de
modo distinto do PE. Essa distinção norteou a investigação feita neste trabalho: (i)
como se dá a expressão do objeto indireto no português angolano?; (ii) as constatações
feitas em relação ao português brasileiro também são válidas para o angolano? Os dados
para análise foram coletados em Chavagne (2005) – tese de doutorado disponível em
endereço eletrônico.
O estudo apontou semelhanças na expressão do OI no PA em relação ao PE e
grandes diferenças em relação ao PB, isto é, fora casos raros em que o objeto indireto é
introduzido pela preposição para, ele ocorre categoricamente conforme o PE:
introduzido pela preposição a e comutável pelo clítico lhe(s). Quanto ao uso do clítico
lhe, no entanto, há um grande número de ocorrências como objeto direto, aproximando
do que já ocorre com o uso do clítico no Brasil.
Considerações sobre o objeto indireto
No tocante ao objeto indireto, a classificação corrente nas gramáticas não é
unânime, pois algumas limitam ao OI a referência ao ser animado mediante uso da
preposição a e o traço semântico do complemento “meta” ou “fonte” (cf. Bechara
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(2009) e Mateus et alii (1983)); outras gramáticas já não fazem essa restrição em relação
ao uso da preposição, conforme exemplo abaixo.3
(1) Pedro depende do pai
em que o complemento preposicionado é considerado um OI. Se se comparar, no
entanto, o exemplo acima ao dado (2), abaixo,4
(2) O diretor escreveu cartas aos pais
se observará que os complementos não são de natureza similares; eles possuem
distinções a serem consideradas: Em (i) complemento do tipo oblíquo (ou relativo,
conforme Bechara (2009)) e não comutável por lhe; em (ii) complemento do tipo dativo,
passível de comutação por lhe (escreveu-lhes cartas). Para maiores esclarecimentos
sobre o funcionamento de sintagmas preposicionados, ver Oliveira (2009, p. 142);
Mioto et. alii (2005, p.177).
Considerações sobre o objeto indireto: investigando a literatura - I
Gramáticas conceituadas em língua portuguesa, entre elas, a de Cunha &
Cintra (1985), por exemplo, optam por uma classificação do objeto indireto “mais
ampla” e denominam objeto indireto a qualquer complemento preposicionado que se
liga a verbos transitivos indiretos por meio de substantivo, pronome (substantivo),
numeral, oração substantiva (transitiva indireta) e palavra ou expressão substantivada,
ou seja, consideram objeto indireto o complemento que se liga ao verbo por meio das
3
4
Exemplo retirado de Almeida (1999, p. 166 ) e numerado.
Exemplo retirados de Bechara (2009, p. 421) e renumerado.
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preposições (a, para, de, com, etc.), logo também não farão diferença entre objeto
indireto e demais complementos oblíquos, conforme exemplos:5
(3) duvidava da riqueza da terraOI.
(4) que ela afaste de tiOI aquelas dores.
São consideradas diferenças somente em relação ao OI e aos adjuntos. Em nota, os
autores (op. cit.) esclarecem o ‘valor significativo’ das preposições que encabeçam os
adjuntos adverbiais em oposição às que encabeçam o objeto indireto, as quais
apresentam acentuado esvaziamento de sentido. Cunha & Cintra (1985, p. 141)
informam que, nas sentenças abaixo, as preposições que introduzem objetos indiretos (5
e 6) são simples elos sintáticos e as que introduzem adjuntos (7 e 8) servem para indicar
o lugar “para onde e donde”6.
(5) cantava para os amigos
(6) não duvides de mim
(7) viajou para São Paulo
(8) não saias de casa
No entanto, a distinção entre as preposições que encabeçam os objetos indiretos e
demais complementos oblíquos é fundamental para a identificação do argumento
oblíquo e do argumento tipicamente dativo.
Uma classificação “ampla” do OI como a mencionada não facilita o seu
reconhecimento. Na próxima seção apresentam-se gramáticas em língua portuguesa que
abordam de forma ‘mais apurada’ a classificação do objeto indireto.
5
6
Exemplos retirados de Cunha & Cintra (1985, p. 139) e numerados.
Exemplos retirados de Cunha & Cintra (1985, pg. 141) e numerados.
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Considerações sobre o objeto indireto: investigando a literatura - II
Bechara (2009) particulariza o OI em termos semânticos e morfológicos e
classifica-o distintamente dos demais complementos oblíquos (compreendido pelo autor
como complemento relativo):
a) o OI é introduzido apenas pela preposição a (raramente para); b) o
signo léxico denota um ser animado ou concebido como tal; c)
expressa o significado gramatical “beneficiário”, “destinatário”; d) é
comutável pelo pronome pessoal objetivo lhe/lhes (BECHARA, 2009,
p. 421).
Tais características irão distinguir, para o autor, o objeto indireto do complemento
relativo, cuja preposição “constitui uma extensão do signo léxico verbal” e expressa
relações semânticas variadas do tipo locativos, situacionais e direcionais.
Bechara (op. cit.) reforça a argumentação em favor da preposição a como
introdutora do objeto indireto ao considerar os seguintes exemplos:7
(9) Alguns alunos compraram flores para a professora
(10) Alguns alunos compraram flores ao florista para a professora
em (9), nas palavras de Bechara, o sintagma [para a professora] não introduz o termo
que funcionaria como objeto indireto, e a prova disso está na possibilidade de aparecer
um objeto indireto, conforme (10). A pronominalização (substituição por lhe) só pode
co-ocorrer com o sintagma [ao florista], conforme (11) e (12) seria agramatical:
(11) Alguns alunos compraram-lhe flores para a professora.
(12) *Alguns alunos compraram-lhe ao florista.
A argumentação de Bechara (op. cit.) é satisfatória uma vez que o verbo de ‘três
lugares’ dar em (10) tem seus três argumentos preenchidos, sobrando para o sintagma
[para a professora] somente a função de adjunto adverbial. No entanto, essa não é uma
7
Exemplos extraídos de Bechara (2009, p. 423) e numerados.
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construção produzida por falantes de português brasileiro, visto que no PB a preposição
a está em franco desaparecimento, ‘pelo menos’ no dialeto paulista (cf. Figueiredo
Silva, 2007).8
Em relação ao português europeu, Mateus et alii (1983) apresentam uma
classificação da complementação verbal dativa e, assim como Bechara (2009),
consideram noções sintáticas e semânticas do objeto indireto, caracterizando-o pela
“função sintática do argumento interno de verbos de dois ou três lugares que têm,
tipicamente, a função semântica de recipiente ou origem” (MATEUS et alii, 1983, p.
229) e apresentam as seguintes propriedades do OI:
ser um argumento [+ animado]; ser regido por a; apresentar a forma
dativa da flexão casual, quando pronome pessoal; ocorrer
imediatamente à direita do objeto direto; ocorrer imediatamente à
direita do verbo se for um clítico pronominal ou uma frase encaixada.
(MATEUS et alii,1983, p. 229).
Quanto à possibilidade de o OI ser um argumento [- animado], Mateus et alii (op. cit.)
discorrem sobre os seguintes casos: com certos predicadores de dois lugares, como
acontece com obedecer, sobreviver (obedecer ao regulamento, sobreviver ao massacre)
e com dar ou fazer, seguido de um objeto direto cujo núcleo seja um nome deverbal:9
(13) a. A Maria deu [uma pintura]OD [às estantes]OI
b. Eles fizeram [uma enorme limpeza]OD [à casa]OI
Estas construções admitem igualmente que o objeto indireto passe a funcionar como
complemento oblíquo:
(14) a. A Maria deu [uma pintura]OD [nas estantes]OBL
b. Eles fizeram [uma enorme limpeza]OD [na casa]OBL
8
Figueiredo e Silva (2007, p. 85) cita os seguintes exemplos: “A Maria deu o livro ao João - okPE/*?PB”
e “A Maria deu o livro pro João – okPB/*?PE” ; “A Maria enviou o livro ao João – okPE/*?PB” e “A
Maria enviou o livro pro João – okPB/*?PE”.
9
Exemplos extraídos de Mateus et. alii (2003, p. 289) e renumerados.
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As sentenças (13 e 14) acima são comuns ao português europeu; no português
brasileiro, no entanto, são mais produtivas as sentenças em (14). Elas têm em comum
um tipo de construção que vem sendo descrita em estudos recentes sobre o PB –
construções com verbos leves (CVLs). Esses estudos apontam novos rumos para a
análise de construções de sentenças como (13 e 14). Nas CVLs a marcação temática não
é feita da mesma forma que em verbos ditrantivos plenos, como dar. Nessas
construções a noção de meta/alvo e fonte/origem não se aplicam. Para maiores
esclarecimentos sobre CVLs, sugere-se Cyrino, Nunes e Pagotto (no prelo) e Scherr
(2004).
Considerações sobre o objeto indireto em PB: investigando a literatura - III
Berlinck & Torres Morais (2006) em estudo sobre a caracterização do objeto
indireto fazem um levantamento das propriedades dessa categoria gramatical no
contexto dos verbos ditransitivos (semanticamente interpretados como verbos de
movimento e transferência). As autoras tomam como base as descrições do OI
encontradas nas gramáticas de Mateus et alii (1983) e Bechara (2000), mencionadas na
seção anterior.
A partir de resultados empíricos obtidos com a análise de dados dos séculos
XIX e XX, em relação ao português brasileiro, as autoras apontam as reanálises que
vêm ocorrendo nessa língua: (i) o OI apresenta-se, preferencialmente como um
sintagma preposicionado, introduzido por para, e (ii) emprego da forma lhe/lhes como
forma de 2ª pessoa formal e não mais como de 3ª, ao lado dos correspondentes a você/ a
vocês, ficando restritos à função oblíqua.
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Em relação ao uso da preposição a, Figueiredo Silva (2007) discute a quase
inexistência da preposição no português brasileiro (dialeto de são Paulo) e explora
contextos em que a preposição a desapareceu e não pôde ser substituída por para/pra,
como nos contextos de estruturas com verbos psicológicos, conforme abaixo:10
(15) a música agrada o João
Quanto à preposição para, em lugar de a, segundo Figueiredo e Silva (op. cit.), a
adoção da preposição para no PB implica na opção pela estrutura de adjunto, o que
justificaria a perda do clítico dativo lhe. No entanto, Figueiredo e Silva (op. cit.) não
corrobora essa perda, e justifica a extensão do emprego do clítico lhe no PB para
pronominalizar o objeto direto de 2a. pessoa, em substituição aos clíticos acusativos o/a,
e defende a hipótese da recategorização do clítico lhe no PB e não seu simples
apagamento.
Bispo (2004) examina a sintaxe do dativo no português e considera a variação
encontrada quanto ao uso do pronome no sintagma preposicionado (a ele; a ela) em
oposição à forma cliticizada, contrastando o português brasileiro do Rio de Janeiro e da
Paraíba com o português europeu. Revela resultados interessantes: no português da
Paraíba, tal qual o europeu, não há ocorrência da preposição para introdutora de
dativos, onde a preposição a é categórica (nas palavras da autora); constata queda na
forma cliticizada e aumento do sintagma preposicionado no PB da Paraíba, conforme
exemplos abaixo:11
(16) Ela não disse a mim que não acreditava (PB-Paraíba).
(17) Eu não sei o que dizer a ela. (PB-Paraíba).
10
11
Exemplo (2b) retirado de Figueiredo e Silva (2007, p. 86) e renumerado.
Exemplos (2b e 4) extraídos de Bispo (2004, p. 3) e renumerados.
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já no dialeto do Rio de Janeiro, as amostras de Bispo, além de atestar diminuição
acentuada no percentual de uso de clíticos, constataram também a inserção da
preposição para em contraste ao dialeto paraibano:12
(18) Não vai ter mais quem pague o clube para mim (PB-Rio de Janeiro).
Merece destaque, também, as observações de Bispo (2004) a respeito do ‘dativo
com função benefactiva’ (em que o dativo preposicionado não é subcategorizado pelo
predicador da oração e apresenta a preposição para + SN), pois constatou-se que no
português brasileiro há variação quanto à preposição introdutora de dativo nas
construções ditrasitivas, sendo que as preposições que introduzem dativo benefactivo no
PB variam entre a e para, conforme abaixo:13
(19) a. Pediu dinheiro a ele para pagar o baile
b. Pediu dinheiro para ele para pagar o baile
Todavia, Bispo (op. cit.) observa que ocorrem contextos em há diferenças
significativas nas propriedades das preposições a e para no PB, verificado em (19a e
19b).14
(20) a. Solicitei ao Fábio uma festa de despedida.
b. Solicitei para o Fábio uma festa de despedida.
onde o complemento dativo apresenta papel temático fonte (20a) e a sentença é
interpretada como um pedido para Fábio fazer uma festa de despedida; em (20b) há uma
frase ambígua de benefício ou fonte, em que a interpretação pode ser um pedido para
Fábio fazer uma festa de despedida (fonte) ou a solicitação de uma festa de despedida
para o Fábio (beneficiário). Bispo (op. cit.) discute o estatuto categorial das preposições
em (20), sendo em a uma preposição funcional (marca morfologicamente o caso dativo)
12
Exemplo (6b) extraído de Bispo (2004, p. 3) e renumerado.
Exemplos (11 a , b)extraídos de Bispo (2004, p. 4) e renumerados.
14
Exemplos (12 a, b) extraídos de Bispo (2004, p. 4) e renumerados.
13
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e em b uma preposição com estatuto lexical (com dativo não selecionado pelo
predicador verbal).
O objeto indireto no português angolano
Foram selecionados nos dados de Chavagne (2005) trinta e cinco sentenças,
com ocorrências de objetos indiretos em terceira pessoa, contendo cada uma delas, uma
ou mais ocorrências de objeto indireto. As ocorrências relativas à primeira pessoa não
foram consideradas. Considerou-se alguns casos em que o clítico lhe ocorre como
objeto direto, como já é amplamente atestado no PB. Priorizou-se os complementos de
verbos ditransitivos de movimento e transferência com a função semântica de recipiente
alvo/meta e fonte/ origem.
O corpus selecionado por Chavagne (2005) foi coletado entre os anos 1992 e
1996; é totalmente voltado à modalidade falada do português angolano tanto culta
quanto popular. Compõe-se de uma série de entrevistas aplicadas a estudantes
universitários, artistas, profissionais liberais e de narrações e entrevistas da mídia do
rádio e da televisão.
As ocorrências do objeto indireto nos dados analisados permitem lançar a
hipótese de que no português angolano o OI é realizado de modo semelhante à
realização no português europeu, salvo algumas diferenças atestadas com o uso da
preposição para introduzindo um complemento do tipo meta/alvo e do clítico lhe como
complemento acusativo.
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Nos parágrafos seguintes, apresentam-se as semelhanças e diferenças do PA
em relação ao PE e ao PB.
A preposição que encabeça o objeto indireto é preferencialmente a com traço
meta/alvo ou fonte/origem, seguida de SN:
(1) Estamos a desejar bom fim de semana a todos (anexo 1 p. 173, linha 2)
(2) Quem fornece o material ? Bem, os trabalhador= dali dentro com certas
coisas que conseguem, e elas compram aos trabalhador=. (anexo 1, p. 180,
linhas 28 e 29).
(3) atrás dele, reagiu só em cimas dumas telha de casa assim que reagiu demos
banana comprei banana de quinhento dei ao macaco. (Anexo 1, p. 196, linhas
15 e 16).
(4) e eles estavam a brigar com certo jovem lá no autocarro, e estavam a dizer
aos jovens que o MPLA quem já não vai mandar nada
(5) eles subiram ao autocarro, eu também subi, íamos caminhando e eles
estavam a brigar com certo jovem lá no autocarro, e estavam a dizer aos jovens
que o MPLA quem já não vai mandar nada, o MPLA quem já perdeu, houve
muito povo que apareceu no Kikolo, para o Savimbe, essa coisa toda. (Anexo
1, p. 207, linhas 26 a 30).
(6) eu me levantei eu disse, eu disse ao camarada, eu respondi ao camarada
que mas quem foi que disse ao Doutor Jonas Malheiro Savimbi que no
basquete existe defesa central ? (Anex 1, p. 208, linhas 6 a 8).
(7) se deram bué de kumbu ao Beto Barbosa é porque a maka não é dinheiro.
(Anexo 1, p. 213, linhas 22 e 23).
(8) Olha, se o senhor encontrar uma pessoa aflita e uma menina bonita na rua
bem vestida, a quem é que o senhor dá boleia ?(Anexo 1, p. 231, linhas 15 e
16).
(9) Aos homens não dou boleia. E a mulheres ? (anexo 1, p. 232, linhas 5 e 6)
(10) Esperemos é que haja combustível, mas mesmo assim podem pedir boleia
aos homens da Sonangol porque aos homens da Sonangol nunca falta gasolina,
aliás o momento é tão grave que eles deveriam ir mesmo que fosse a pé.
(Anexo 1 p. 213, linhas 11 a 14 ).
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Em todos os exemplos acima, as ocorrências de objeto indireto são
introduzidas pela preposição a (com traço meta/alvo ou fonte/origem) e ocorrem
conforme o uso no português europeu. No português brasileiro esse uso está reservado
ao registro de língua escrita mais formal.
O emprego da preposição a no PA para encabeçar complementos dativos
parece ser categórico, no entanto, uma única ocorrência, mas que não deve ser
descartada, diz respeito ao emprego da preposição para, introduzindo um complemento
dativo do tipo meta/alvo.
(11) nós utilizamos filtro de areia, a camada de areia então é filtrada [...] depois
de apanhar o cloro é que vai para a cisterna, e aí é que se vai distribuir para a
população (Anexo 1, p. 211, linhas 18 a 21).
Um aspecto interessante no português angolano é quanto ao emprego do clítico
lhe, pois constatou-se, em muitas sentenças, ocorrências de lhe ora como objeto
indireto, ora como objeto direto em complementos de verbos transitivos diretos, como
alvejar, esperar, enterrar, mostrar, etc. Esses casos atestam o emprego do lhe conforme
o que vem ocorrendo com o PB (cf. apontado por Torres Moraes & Berlinck (2006) e
Figueiredo e Silva (2007)).
(12) Disseram que ele era ladrão, que tinha roubado, e que um polícia alvejoulhe com dois tiros (anexo 1, p. 182, linha 30).
(13) Ao sair de lá, ele estava em casa, nos metemos lá nós dois, encontramo= a
namorada do meu irmão, ele foi lhe acompanhar, e saiu para lá, ainda nos
encontramos, levei de mota, lhe meti em casa, ele dali tava pa [...], eu falei vou
a Sonefe, quando saí da Sonefe, lhe esperei, das desassete e dezoito hora, não
apareceu, nem no jantar. (Anexo 1, p. 188, linhas 23 a 27).
(14) Enterro por engano, sim senhor. A partir de que (...) começamo= escutar
que ola, há aqui uma família que veio a recorrer. Tiraram dele e foram-lhe
enterrar, mas onde foram-lhe enterrar então, quer dizer ressuscitou, lhe
enterraram ontem dezanove, [...]. Começamos a esperar que eles iriam lhe
mostrar para nós (Anexo 1, p. 189, linhas 7 a 14).
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(15) Claro mais ou meno= posso lhe reconhecer mas o outro tava com os
outros no escuro não, não consigo [...] mais claro, se eu lhe encontrar, eu lhe
reconheço. Eu sei que eles foram mandados para vir me intimidar na minha
própria casa. (Anexo 1, p. 212, linhas 12 a 15).
(16) Como é que se sente por ter morto três homens ?
Sinto muito mau. Porque é a primeira vez que eu faço e de para além disso não
fui eu lhe matei também quem matou não se encontram aqui. (Anexo 1, p. 177,
linhas 25 a 27)
Em todas as ocorrências acima o clítico lhe é complemento acusativo de verbos
transitivos diretos como: alvejar, acompanhar, esperar, enterrar, mostrar e reconhecer,
matar. Esses exemplos atestam o “caso do lhe no uso acusativo”, conforme mencionado
é comum ao PB, mas não ao PE.
Nos exemplos abaixo, co-ocorrem usos de lhe acusativo e dativo:
(17) o macaco pegou na moça, a gente gritou de longe para a moça não se
assustar nem correr que o macaco poderia lhe =saltar, então o macaco
preparou-lhe a chapada e tava a despir a moça, tá, tava a pôr a mão na saia da
moça, queria a despir, (...) ia lhe dar uma chapada então a gente surgiu, (...)
(Anexo 1, p. 196. linhas 21 a 27).
(18) [...] eu peguei no camarada, comecei a lhe espancar, lhe dei uns socos, dei
uns socos, (Anexo 1, p. 208, linhas 25 e 26).
(19) [...] lhe agarrei, lhe dei uma chapada e este aqui, agarrou-me de trás,
arrebentou-me com o sapato dele, como descalçou o sapato ou quê, com o
sapato nessa zona, e eu tornei a lhe agarrar, encostei-lhe no gradeamentro da
Anangola, bati-lhe com a cabeça duas vezes no gradeamento. (Anexo 1, p. 208,
linhas 29 a 31).
O clítico lhe nos exemplos acima, ora é empregado como dativo –
complemento dos verbos ditransitivos preparar e dar, em (17, 18 e 19), ora como
acusativo – complemento dos verbos espancar, agarrar, encostar, nos exemplos (18 e
19).
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Em (19) o emprego do clítico possibilita duas leituras: (i) pode ser entendido
como possessivo: “bati-lhe a cabeça” “bati na sua cabeça/ cabeça dele”, emprego
incomum no PB e (ii) “bati nele com a cabeça”, em que o falante, com a sua cabeça,
bateu no outro duas vezes: “bati-lhe COM a cabeça”. Nesse caso, em vez de posse, um
complemento oblíquo [+animado], o que permitiria hipotetizar a substituição por lhe.
O exemplo (20), abaixo, atesta outro emprego incomum ao PB e comum ao PE
“lhe dei pancada”. Em PB, a construção mais comum seria por meio de um
‘complemento relativo’ introduzido pela preposição em “dei pancada nele”:
(20) Pode confirmar, ou ele ou o cobrador pode confirmar, ou ele também vem
aqui, vem ali à frente ele vai ficar envergonhado porque eu a quem lhe dei
pancada. (Anexo 1, p. 209, linhas 19 a 21).
Outro aspecto referente ao clítico lhe no PA é quanto à sua colocação, ora
enclítica, ora proclítica, aproximando tanto do uso enclítico do PE, quanto da próclise,
de uso preferencial, no PB, conforme exemplos abaixo:
(21) eu digo-lhe isto
(22) que vou-lhe dizer
(23) Eu vou-lhe explicar porquê
(30) comecei a lhe espancar, lhe dei uns socos.
(32) pretendem que lhes façam aumento
(33) tá a lhe dar mais trabalho aqui
(35) lhe dei pancada.
Considerações finais
Os resultados do estudo sobre a expressão do objeto indireto no português
angolano, mesmo a partir de um corpus bem pequeno, mostraram usos interessantes: (i)
tal qual o PE, o PA mantém a preposição a como introdutora do argumento dativo; (ii)
está mais próximo do PE do que do PB; (iii) o clítico lhe está sendo usado como
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referência tanto à segunda pessoa quanto à terceira e (iv) o objeto indireto em PA, no
que diz respeito à utilização do clítico lhe, aproxima-se do PB, o que parece significar
que lhe está perdendo o status de complemento unicamente dativo e incorporando o uso
acusativo, conforme ocorreu com o PB, mas por razões que ainda precisam ser
investigadas.
Não se confirmam para o PA, nos dados analisados, as variantes
preposicionadas na expressão do dativo anafórico de 3ª pessoa, ou seja, a realização de
objeto indireto introduzido por preposição + pronome (a/para ele/eles), como ocorre no
PB (conf. Torres Moraes & Berlinck (2006)).
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