Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. NOTAS SOBRE A EXPRESSÃO DO OBJETO INDIRETO NO PORTUGUÊS ANGOLANO Ednalvo Apóstolo CAMPOS1 RESUMO: Neste artigo faz-se um breve estudo sobre a expressão do objeto indireto de terceira pessoa no português angolano. Toma-se como base a descrição do objeto indireto nas gramáticas de Bechara (2009) e Mateus et. alii (1983), além dos estudos mais recentes sobre o objeto indireto no português brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: objeto indireto; português europeu; português brasileiro; português angolano. Introdução Nos últimos anos tem sido publicado um número bastante expressivo de trabalhos em diversas “frentes” sobre o português brasileiro (PB); muitos deles baseiam-se em dados coletados pelo Projeto NURC2. Esses trabalhos propõem diferenças na gramática do PB em relação ao português europeu (PE): no quadro de pronomes; no emprego de preposições; na sintaxe do sujeito e do objeto, etc. Os resultados atestados instigam a “olhar” também o português falado em outros países da comunidade lusófona. Agradeço à professora Maria Aparecida Torres Moraes pelos comentários sobre as sentenças do português angolano e à professora Márcia S. D. de Oliveira pela leitura e sugestões de revisão deste artigo. Os erros em relação à interpretação dos dados são de minha inteira responsabilidade. 1 Professor da Universidade do estado do Pará – UEPA; aluno do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Sociais – FFLCH/USP. [email protected] 2 Projeto de Estudo da Norma Urbana Culta – NURC, tem âmbito nacional, e realizou gravações em cinco capitais brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife e Salvador. 34 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. Neste artigo, lança-se um breve “olhar” para a expressão do objeto indireto (OI) no português culto falado em Angola – português angolano (PA), verificando as possíveis distinções em relação ao PE, em cuja língua a expressão do OI é reconhecidamente a padrão (prescrição normativa). No PB, por exemplo, o OI ocorre de modo distinto do PE. Essa distinção norteou a investigação feita neste trabalho: (i) como se dá a expressão do objeto indireto no português angolano?; (ii) as constatações feitas em relação ao português brasileiro também são válidas para o angolano? Os dados para análise foram coletados em Chavagne (2005) – tese de doutorado disponível em endereço eletrônico. O estudo apontou semelhanças na expressão do OI no PA em relação ao PE e grandes diferenças em relação ao PB, isto é, fora casos raros em que o objeto indireto é introduzido pela preposição para, ele ocorre categoricamente conforme o PE: introduzido pela preposição a e comutável pelo clítico lhe(s). Quanto ao uso do clítico lhe, no entanto, há um grande número de ocorrências como objeto direto, aproximando do que já ocorre com o uso do clítico no Brasil. Considerações sobre o objeto indireto No tocante ao objeto indireto, a classificação corrente nas gramáticas não é unânime, pois algumas limitam ao OI a referência ao ser animado mediante uso da preposição a e o traço semântico do complemento “meta” ou “fonte” (cf. Bechara 35 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. (2009) e Mateus et alii (1983)); outras gramáticas já não fazem essa restrição em relação ao uso da preposição, conforme exemplo abaixo.3 (1) Pedro depende do pai em que o complemento preposicionado é considerado um OI. Se se comparar, no entanto, o exemplo acima ao dado (2), abaixo,4 (2) O diretor escreveu cartas aos pais se observará que os complementos não são de natureza similares; eles possuem distinções a serem consideradas: Em (i) complemento do tipo oblíquo (ou relativo, conforme Bechara (2009)) e não comutável por lhe; em (ii) complemento do tipo dativo, passível de comutação por lhe (escreveu-lhes cartas). Para maiores esclarecimentos sobre o funcionamento de sintagmas preposicionados, ver Oliveira (2009, p. 142); Mioto et. alii (2005, p.177). Considerações sobre o objeto indireto: investigando a literatura - I Gramáticas conceituadas em língua portuguesa, entre elas, a de Cunha & Cintra (1985), por exemplo, optam por uma classificação do objeto indireto “mais ampla” e denominam objeto indireto a qualquer complemento preposicionado que se liga a verbos transitivos indiretos por meio de substantivo, pronome (substantivo), numeral, oração substantiva (transitiva indireta) e palavra ou expressão substantivada, ou seja, consideram objeto indireto o complemento que se liga ao verbo por meio das 3 4 Exemplo retirado de Almeida (1999, p. 166 ) e numerado. Exemplo retirados de Bechara (2009, p. 421) e renumerado. 36 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. preposições (a, para, de, com, etc.), logo também não farão diferença entre objeto indireto e demais complementos oblíquos, conforme exemplos:5 (3) duvidava da riqueza da terraOI. (4) que ela afaste de tiOI aquelas dores. São consideradas diferenças somente em relação ao OI e aos adjuntos. Em nota, os autores (op. cit.) esclarecem o ‘valor significativo’ das preposições que encabeçam os adjuntos adverbiais em oposição às que encabeçam o objeto indireto, as quais apresentam acentuado esvaziamento de sentido. Cunha & Cintra (1985, p. 141) informam que, nas sentenças abaixo, as preposições que introduzem objetos indiretos (5 e 6) são simples elos sintáticos e as que introduzem adjuntos (7 e 8) servem para indicar o lugar “para onde e donde”6. (5) cantava para os amigos (6) não duvides de mim (7) viajou para São Paulo (8) não saias de casa No entanto, a distinção entre as preposições que encabeçam os objetos indiretos e demais complementos oblíquos é fundamental para a identificação do argumento oblíquo e do argumento tipicamente dativo. Uma classificação “ampla” do OI como a mencionada não facilita o seu reconhecimento. Na próxima seção apresentam-se gramáticas em língua portuguesa que abordam de forma ‘mais apurada’ a classificação do objeto indireto. 5 6 Exemplos retirados de Cunha & Cintra (1985, p. 139) e numerados. Exemplos retirados de Cunha & Cintra (1985, pg. 141) e numerados. 37 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. Considerações sobre o objeto indireto: investigando a literatura - II Bechara (2009) particulariza o OI em termos semânticos e morfológicos e classifica-o distintamente dos demais complementos oblíquos (compreendido pelo autor como complemento relativo): a) o OI é introduzido apenas pela preposição a (raramente para); b) o signo léxico denota um ser animado ou concebido como tal; c) expressa o significado gramatical “beneficiário”, “destinatário”; d) é comutável pelo pronome pessoal objetivo lhe/lhes (BECHARA, 2009, p. 421). Tais características irão distinguir, para o autor, o objeto indireto do complemento relativo, cuja preposição “constitui uma extensão do signo léxico verbal” e expressa relações semânticas variadas do tipo locativos, situacionais e direcionais. Bechara (op. cit.) reforça a argumentação em favor da preposição a como introdutora do objeto indireto ao considerar os seguintes exemplos:7 (9) Alguns alunos compraram flores para a professora (10) Alguns alunos compraram flores ao florista para a professora em (9), nas palavras de Bechara, o sintagma [para a professora] não introduz o termo que funcionaria como objeto indireto, e a prova disso está na possibilidade de aparecer um objeto indireto, conforme (10). A pronominalização (substituição por lhe) só pode co-ocorrer com o sintagma [ao florista], conforme (11) e (12) seria agramatical: (11) Alguns alunos compraram-lhe flores para a professora. (12) *Alguns alunos compraram-lhe ao florista. A argumentação de Bechara (op. cit.) é satisfatória uma vez que o verbo de ‘três lugares’ dar em (10) tem seus três argumentos preenchidos, sobrando para o sintagma [para a professora] somente a função de adjunto adverbial. No entanto, essa não é uma 7 Exemplos extraídos de Bechara (2009, p. 423) e numerados. 38 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. construção produzida por falantes de português brasileiro, visto que no PB a preposição a está em franco desaparecimento, ‘pelo menos’ no dialeto paulista (cf. Figueiredo Silva, 2007).8 Em relação ao português europeu, Mateus et alii (1983) apresentam uma classificação da complementação verbal dativa e, assim como Bechara (2009), consideram noções sintáticas e semânticas do objeto indireto, caracterizando-o pela “função sintática do argumento interno de verbos de dois ou três lugares que têm, tipicamente, a função semântica de recipiente ou origem” (MATEUS et alii, 1983, p. 229) e apresentam as seguintes propriedades do OI: ser um argumento [+ animado]; ser regido por a; apresentar a forma dativa da flexão casual, quando pronome pessoal; ocorrer imediatamente à direita do objeto direto; ocorrer imediatamente à direita do verbo se for um clítico pronominal ou uma frase encaixada. (MATEUS et alii,1983, p. 229). Quanto à possibilidade de o OI ser um argumento [- animado], Mateus et alii (op. cit.) discorrem sobre os seguintes casos: com certos predicadores de dois lugares, como acontece com obedecer, sobreviver (obedecer ao regulamento, sobreviver ao massacre) e com dar ou fazer, seguido de um objeto direto cujo núcleo seja um nome deverbal:9 (13) a. A Maria deu [uma pintura]OD [às estantes]OI b. Eles fizeram [uma enorme limpeza]OD [à casa]OI Estas construções admitem igualmente que o objeto indireto passe a funcionar como complemento oblíquo: (14) a. A Maria deu [uma pintura]OD [nas estantes]OBL b. Eles fizeram [uma enorme limpeza]OD [na casa]OBL 8 Figueiredo e Silva (2007, p. 85) cita os seguintes exemplos: “A Maria deu o livro ao João - okPE/*?PB” e “A Maria deu o livro pro João – okPB/*?PE” ; “A Maria enviou o livro ao João – okPE/*?PB” e “A Maria enviou o livro pro João – okPB/*?PE”. 9 Exemplos extraídos de Mateus et. alii (2003, p. 289) e renumerados. 39 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. As sentenças (13 e 14) acima são comuns ao português europeu; no português brasileiro, no entanto, são mais produtivas as sentenças em (14). Elas têm em comum um tipo de construção que vem sendo descrita em estudos recentes sobre o PB – construções com verbos leves (CVLs). Esses estudos apontam novos rumos para a análise de construções de sentenças como (13 e 14). Nas CVLs a marcação temática não é feita da mesma forma que em verbos ditrantivos plenos, como dar. Nessas construções a noção de meta/alvo e fonte/origem não se aplicam. Para maiores esclarecimentos sobre CVLs, sugere-se Cyrino, Nunes e Pagotto (no prelo) e Scherr (2004). Considerações sobre o objeto indireto em PB: investigando a literatura - III Berlinck & Torres Morais (2006) em estudo sobre a caracterização do objeto indireto fazem um levantamento das propriedades dessa categoria gramatical no contexto dos verbos ditransitivos (semanticamente interpretados como verbos de movimento e transferência). As autoras tomam como base as descrições do OI encontradas nas gramáticas de Mateus et alii (1983) e Bechara (2000), mencionadas na seção anterior. A partir de resultados empíricos obtidos com a análise de dados dos séculos XIX e XX, em relação ao português brasileiro, as autoras apontam as reanálises que vêm ocorrendo nessa língua: (i) o OI apresenta-se, preferencialmente como um sintagma preposicionado, introduzido por para, e (ii) emprego da forma lhe/lhes como forma de 2ª pessoa formal e não mais como de 3ª, ao lado dos correspondentes a você/ a vocês, ficando restritos à função oblíqua. 40 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. Em relação ao uso da preposição a, Figueiredo Silva (2007) discute a quase inexistência da preposição no português brasileiro (dialeto de são Paulo) e explora contextos em que a preposição a desapareceu e não pôde ser substituída por para/pra, como nos contextos de estruturas com verbos psicológicos, conforme abaixo:10 (15) a música agrada o João Quanto à preposição para, em lugar de a, segundo Figueiredo e Silva (op. cit.), a adoção da preposição para no PB implica na opção pela estrutura de adjunto, o que justificaria a perda do clítico dativo lhe. No entanto, Figueiredo e Silva (op. cit.) não corrobora essa perda, e justifica a extensão do emprego do clítico lhe no PB para pronominalizar o objeto direto de 2a. pessoa, em substituição aos clíticos acusativos o/a, e defende a hipótese da recategorização do clítico lhe no PB e não seu simples apagamento. Bispo (2004) examina a sintaxe do dativo no português e considera a variação encontrada quanto ao uso do pronome no sintagma preposicionado (a ele; a ela) em oposição à forma cliticizada, contrastando o português brasileiro do Rio de Janeiro e da Paraíba com o português europeu. Revela resultados interessantes: no português da Paraíba, tal qual o europeu, não há ocorrência da preposição para introdutora de dativos, onde a preposição a é categórica (nas palavras da autora); constata queda na forma cliticizada e aumento do sintagma preposicionado no PB da Paraíba, conforme exemplos abaixo:11 (16) Ela não disse a mim que não acreditava (PB-Paraíba). (17) Eu não sei o que dizer a ela. (PB-Paraíba). 10 11 Exemplo (2b) retirado de Figueiredo e Silva (2007, p. 86) e renumerado. Exemplos (2b e 4) extraídos de Bispo (2004, p. 3) e renumerados. 41 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. já no dialeto do Rio de Janeiro, as amostras de Bispo, além de atestar diminuição acentuada no percentual de uso de clíticos, constataram também a inserção da preposição para em contraste ao dialeto paraibano:12 (18) Não vai ter mais quem pague o clube para mim (PB-Rio de Janeiro). Merece destaque, também, as observações de Bispo (2004) a respeito do ‘dativo com função benefactiva’ (em que o dativo preposicionado não é subcategorizado pelo predicador da oração e apresenta a preposição para + SN), pois constatou-se que no português brasileiro há variação quanto à preposição introdutora de dativo nas construções ditrasitivas, sendo que as preposições que introduzem dativo benefactivo no PB variam entre a e para, conforme abaixo:13 (19) a. Pediu dinheiro a ele para pagar o baile b. Pediu dinheiro para ele para pagar o baile Todavia, Bispo (op. cit.) observa que ocorrem contextos em há diferenças significativas nas propriedades das preposições a e para no PB, verificado em (19a e 19b).14 (20) a. Solicitei ao Fábio uma festa de despedida. b. Solicitei para o Fábio uma festa de despedida. onde o complemento dativo apresenta papel temático fonte (20a) e a sentença é interpretada como um pedido para Fábio fazer uma festa de despedida; em (20b) há uma frase ambígua de benefício ou fonte, em que a interpretação pode ser um pedido para Fábio fazer uma festa de despedida (fonte) ou a solicitação de uma festa de despedida para o Fábio (beneficiário). Bispo (op. cit.) discute o estatuto categorial das preposições em (20), sendo em a uma preposição funcional (marca morfologicamente o caso dativo) 12 Exemplo (6b) extraído de Bispo (2004, p. 3) e renumerado. Exemplos (11 a , b)extraídos de Bispo (2004, p. 4) e renumerados. 14 Exemplos (12 a, b) extraídos de Bispo (2004, p. 4) e renumerados. 13 42 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. e em b uma preposição com estatuto lexical (com dativo não selecionado pelo predicador verbal). O objeto indireto no português angolano Foram selecionados nos dados de Chavagne (2005) trinta e cinco sentenças, com ocorrências de objetos indiretos em terceira pessoa, contendo cada uma delas, uma ou mais ocorrências de objeto indireto. As ocorrências relativas à primeira pessoa não foram consideradas. Considerou-se alguns casos em que o clítico lhe ocorre como objeto direto, como já é amplamente atestado no PB. Priorizou-se os complementos de verbos ditransitivos de movimento e transferência com a função semântica de recipiente alvo/meta e fonte/ origem. O corpus selecionado por Chavagne (2005) foi coletado entre os anos 1992 e 1996; é totalmente voltado à modalidade falada do português angolano tanto culta quanto popular. Compõe-se de uma série de entrevistas aplicadas a estudantes universitários, artistas, profissionais liberais e de narrações e entrevistas da mídia do rádio e da televisão. As ocorrências do objeto indireto nos dados analisados permitem lançar a hipótese de que no português angolano o OI é realizado de modo semelhante à realização no português europeu, salvo algumas diferenças atestadas com o uso da preposição para introduzindo um complemento do tipo meta/alvo e do clítico lhe como complemento acusativo. 43 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. Nos parágrafos seguintes, apresentam-se as semelhanças e diferenças do PA em relação ao PE e ao PB. A preposição que encabeça o objeto indireto é preferencialmente a com traço meta/alvo ou fonte/origem, seguida de SN: (1) Estamos a desejar bom fim de semana a todos (anexo 1 p. 173, linha 2) (2) Quem fornece o material ? Bem, os trabalhador= dali dentro com certas coisas que conseguem, e elas compram aos trabalhador=. (anexo 1, p. 180, linhas 28 e 29). (3) atrás dele, reagiu só em cimas dumas telha de casa assim que reagiu demos banana comprei banana de quinhento dei ao macaco. (Anexo 1, p. 196, linhas 15 e 16). (4) e eles estavam a brigar com certo jovem lá no autocarro, e estavam a dizer aos jovens que o MPLA quem já não vai mandar nada (5) eles subiram ao autocarro, eu também subi, íamos caminhando e eles estavam a brigar com certo jovem lá no autocarro, e estavam a dizer aos jovens que o MPLA quem já não vai mandar nada, o MPLA quem já perdeu, houve muito povo que apareceu no Kikolo, para o Savimbe, essa coisa toda. (Anexo 1, p. 207, linhas 26 a 30). (6) eu me levantei eu disse, eu disse ao camarada, eu respondi ao camarada que mas quem foi que disse ao Doutor Jonas Malheiro Savimbi que no basquete existe defesa central ? (Anex 1, p. 208, linhas 6 a 8). (7) se deram bué de kumbu ao Beto Barbosa é porque a maka não é dinheiro. (Anexo 1, p. 213, linhas 22 e 23). (8) Olha, se o senhor encontrar uma pessoa aflita e uma menina bonita na rua bem vestida, a quem é que o senhor dá boleia ?(Anexo 1, p. 231, linhas 15 e 16). (9) Aos homens não dou boleia. E a mulheres ? (anexo 1, p. 232, linhas 5 e 6) (10) Esperemos é que haja combustível, mas mesmo assim podem pedir boleia aos homens da Sonangol porque aos homens da Sonangol nunca falta gasolina, aliás o momento é tão grave que eles deveriam ir mesmo que fosse a pé. (Anexo 1 p. 213, linhas 11 a 14 ). 44 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. Em todos os exemplos acima, as ocorrências de objeto indireto são introduzidas pela preposição a (com traço meta/alvo ou fonte/origem) e ocorrem conforme o uso no português europeu. No português brasileiro esse uso está reservado ao registro de língua escrita mais formal. O emprego da preposição a no PA para encabeçar complementos dativos parece ser categórico, no entanto, uma única ocorrência, mas que não deve ser descartada, diz respeito ao emprego da preposição para, introduzindo um complemento dativo do tipo meta/alvo. (11) nós utilizamos filtro de areia, a camada de areia então é filtrada [...] depois de apanhar o cloro é que vai para a cisterna, e aí é que se vai distribuir para a população (Anexo 1, p. 211, linhas 18 a 21). Um aspecto interessante no português angolano é quanto ao emprego do clítico lhe, pois constatou-se, em muitas sentenças, ocorrências de lhe ora como objeto indireto, ora como objeto direto em complementos de verbos transitivos diretos, como alvejar, esperar, enterrar, mostrar, etc. Esses casos atestam o emprego do lhe conforme o que vem ocorrendo com o PB (cf. apontado por Torres Moraes & Berlinck (2006) e Figueiredo e Silva (2007)). (12) Disseram que ele era ladrão, que tinha roubado, e que um polícia alvejoulhe com dois tiros (anexo 1, p. 182, linha 30). (13) Ao sair de lá, ele estava em casa, nos metemos lá nós dois, encontramo= a namorada do meu irmão, ele foi lhe acompanhar, e saiu para lá, ainda nos encontramos, levei de mota, lhe meti em casa, ele dali tava pa [...], eu falei vou a Sonefe, quando saí da Sonefe, lhe esperei, das desassete e dezoito hora, não apareceu, nem no jantar. (Anexo 1, p. 188, linhas 23 a 27). (14) Enterro por engano, sim senhor. A partir de que (...) começamo= escutar que ola, há aqui uma família que veio a recorrer. Tiraram dele e foram-lhe enterrar, mas onde foram-lhe enterrar então, quer dizer ressuscitou, lhe enterraram ontem dezanove, [...]. Começamos a esperar que eles iriam lhe mostrar para nós (Anexo 1, p. 189, linhas 7 a 14). 45 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. (15) Claro mais ou meno= posso lhe reconhecer mas o outro tava com os outros no escuro não, não consigo [...] mais claro, se eu lhe encontrar, eu lhe reconheço. Eu sei que eles foram mandados para vir me intimidar na minha própria casa. (Anexo 1, p. 212, linhas 12 a 15). (16) Como é que se sente por ter morto três homens ? Sinto muito mau. Porque é a primeira vez que eu faço e de para além disso não fui eu lhe matei também quem matou não se encontram aqui. (Anexo 1, p. 177, linhas 25 a 27) Em todas as ocorrências acima o clítico lhe é complemento acusativo de verbos transitivos diretos como: alvejar, acompanhar, esperar, enterrar, mostrar e reconhecer, matar. Esses exemplos atestam o “caso do lhe no uso acusativo”, conforme mencionado é comum ao PB, mas não ao PE. Nos exemplos abaixo, co-ocorrem usos de lhe acusativo e dativo: (17) o macaco pegou na moça, a gente gritou de longe para a moça não se assustar nem correr que o macaco poderia lhe =saltar, então o macaco preparou-lhe a chapada e tava a despir a moça, tá, tava a pôr a mão na saia da moça, queria a despir, (...) ia lhe dar uma chapada então a gente surgiu, (...) (Anexo 1, p. 196. linhas 21 a 27). (18) [...] eu peguei no camarada, comecei a lhe espancar, lhe dei uns socos, dei uns socos, (Anexo 1, p. 208, linhas 25 e 26). (19) [...] lhe agarrei, lhe dei uma chapada e este aqui, agarrou-me de trás, arrebentou-me com o sapato dele, como descalçou o sapato ou quê, com o sapato nessa zona, e eu tornei a lhe agarrar, encostei-lhe no gradeamentro da Anangola, bati-lhe com a cabeça duas vezes no gradeamento. (Anexo 1, p. 208, linhas 29 a 31). O clítico lhe nos exemplos acima, ora é empregado como dativo – complemento dos verbos ditransitivos preparar e dar, em (17, 18 e 19), ora como acusativo – complemento dos verbos espancar, agarrar, encostar, nos exemplos (18 e 19). 46 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. Em (19) o emprego do clítico possibilita duas leituras: (i) pode ser entendido como possessivo: “bati-lhe a cabeça” “bati na sua cabeça/ cabeça dele”, emprego incomum no PB e (ii) “bati nele com a cabeça”, em que o falante, com a sua cabeça, bateu no outro duas vezes: “bati-lhe COM a cabeça”. Nesse caso, em vez de posse, um complemento oblíquo [+animado], o que permitiria hipotetizar a substituição por lhe. O exemplo (20), abaixo, atesta outro emprego incomum ao PB e comum ao PE “lhe dei pancada”. Em PB, a construção mais comum seria por meio de um ‘complemento relativo’ introduzido pela preposição em “dei pancada nele”: (20) Pode confirmar, ou ele ou o cobrador pode confirmar, ou ele também vem aqui, vem ali à frente ele vai ficar envergonhado porque eu a quem lhe dei pancada. (Anexo 1, p. 209, linhas 19 a 21). Outro aspecto referente ao clítico lhe no PA é quanto à sua colocação, ora enclítica, ora proclítica, aproximando tanto do uso enclítico do PE, quanto da próclise, de uso preferencial, no PB, conforme exemplos abaixo: (21) eu digo-lhe isto (22) que vou-lhe dizer (23) Eu vou-lhe explicar porquê (30) comecei a lhe espancar, lhe dei uns socos. (32) pretendem que lhes façam aumento (33) tá a lhe dar mais trabalho aqui (35) lhe dei pancada. Considerações finais Os resultados do estudo sobre a expressão do objeto indireto no português angolano, mesmo a partir de um corpus bem pequeno, mostraram usos interessantes: (i) tal qual o PE, o PA mantém a preposição a como introdutora do argumento dativo; (ii) está mais próximo do PE do que do PB; (iii) o clítico lhe está sendo usado como 47 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. referência tanto à segunda pessoa quanto à terceira e (iv) o objeto indireto em PA, no que diz respeito à utilização do clítico lhe, aproxima-se do PB, o que parece significar que lhe está perdendo o status de complemento unicamente dativo e incorporando o uso acusativo, conforme ocorreu com o PB, mas por razões que ainda precisam ser investigadas. Não se confirmam para o PA, nos dados analisados, as variantes preposicionadas na expressão do dativo anafórico de 3ª pessoa, ou seja, a realização de objeto indireto introduzido por preposição + pronome (a/para ele/eles), como ocorre no PB (conf. Torres Moraes & Berlinck (2006)). Referências bibliográficas ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 44ª ed. 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