Filosofia na Arte

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ANAIS
III FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE
Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2005
A DIMENSÃO FILOSÓFICA DA ARTE:
UMA ANÁLISE DO ESPAÇO CONCEITUAL NA EXPERIÊNCIA
ESTÉTICA
André Luiz Visinoni*
RESUMO: O objetivo principal do presente trabalho é demonstrar como a experiência artística,
por não se limitar ao campo das puras percepções formais, pode se estender a um espaço
conceitual, em que a filosofia desempenha um papel determinante na apreciação dos objetos
de arte. Esse espaço conceitual parece ser intuído durante todo o percorrer histórico da
reflexão estética, para, contudo, alcançar, no século XX, sua maturidade como possibilidade de
criação artística: como nas palavras de Marcel Duchamp, para quem a arte deveria estar a
serviço da inteligência, é, na arte moderna e pós-moderna, que a experiência artística,
nitidamente, determina-se mais mediante a relação intelectual com o objeto e sua
compreensão e menos por meio da relação sensorial com o objeto e sua apreensão. Tomandose esse ponto de partida, surge a principal questão deste trabalho: a possibilidade de se
chamar de filosófica uma experiência artística que seja essencialmente determinada pelo
conceito do objeto. Abrindo-se tal discussão, este trabalho, portanto, se propõe a alargar as
possibilidades de diálogo e de intercâmbio entre arte e filosofia, ao colocar em evidência o
verdadeiro papel que desempenha o pensamento filosófico na criação e na apreciação dos
objetos de arte.
O problema exposto neste trabalho está sendo apresentado como projeto de iniciação
científica à Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), sob a
orientação do Professor Doutor José Oscar de Almeida Marques, professor do Departamento
de Filosofia da Unicamp. As questões que serão levantadas aqui são uma condensação
*
Graduando no Instituto de Artes na Universidade Estadual de Campinas. Em 2004, criou com os Professores Paulo
Justi, Tristan Torriani e José Oscar de Almeida Marques, o Núcleo de Estudos em Filosofia e Música, no
Departamento de Música da Unicamp.
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daquele projeto, que tem como um de seus objetivos principais contribuir para as discussões
interdisciplinares entre arte e filosofia.
A sensibilidade, entendida como capacidade receptiva de formas estéticas, foi sempre
considerada a grande responsável pela determinação da experiência com objetos de arte.
Marcel Duchamp denuncia essa tradição, a da arte como experiência puramente sensorial,
quando diz, por exemplo, que “cem anos de pintura retiniana já são suficientes”. 1 Para essa
tradição, a arte parecia circunscrever-se a uma questão meramente corporal, um descortinar
de timbres e cores, fruir de notas e imagens de responsabilidade dos nervos e, por essa razão,
sua influência (não sua função) era, quando muito, fisiológica. Immanuel Kant chega a ponto de
comparar a música com a piada, já que o movimento causado por ambas, depois do qual não
havia nada a ser pensado, era meramente físico, consistindo-se simplesmente na sensação de
saúde e bem-estar causada pelas agitações intestinais. Eduard Hanslick, mentor do formalismo
musical da segunda metade do século XIX, concorda, por sua vez, com Grillparzer, quando
este define “o efeito da música como estímulo sensível, um jogo de nervos, que quando muito,
atinge o espírito”.2 O próprio século XIX, contudo, iria principiar a dar respostas a essa
“sensorialista” abordagem dispensada às artes. Na metade do século, por exemplo, Richard
Wagner, ao apagar as luzes do teatro, inclinar a platéia, esconder a orquestra no fosso e
mergulhar a todos em seu Gesamtkunstwerk, parece não mais pensar em uma arte meramente
sensível. Wagner baseava sua obra em uma profunda reflexão teórica e seria, entre os
compositores, um pioneiro no uso ostensivo de meios que exigem do espectador ir muito além
da escuta. Assim, mesmo sendo Tristan und Isolde música “fisiológica”, feita para se sentir, há,
por detrás, uma imensa estrutura conceitual que lhe dá sustentação e sua apreciação auditiva
depende muito de uma compreensão essencialmente intelectual de proposta.
A totalidade do problema surge exatamente neste ponto: em um certo momento, a
experiência com objetos de arte desloca-se da sensação para a compreensão. O espectador
não se utiliza somente de seu aparato sensorial para sua experiência com a arte, mas é, antes,
requisitado a fazer uso de capacidades intelectuais para apreender o objeto em questão.
Nessa nova relação que se cria, desaparece a contemplação e a prática artística se aproxima
sensivelmente do pensar filosófico.
As primeiras vanguardas artísticas do século XX caminharam muito em direção a essa
arte de fundamentação reflexiva. O próprio cubismo encerrava dentro de si uma pretensão
científica,
mediante
suas
especulações
com
geometrias
não-euclidianas
e
com
a
cronofotografia. O dadá e o surrealismo, por sua vez, respondem também à mesma questão. O
1
2
VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcel Duchamp: A Beleza da Indiferença. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 50.
HANSLICK, Eduard. Do belo musical. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992. p. 167, nota 1.
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fato é, porém, que a tela não estava mais unicamente destinada a uma experiência retiniana,
limitada à sensibilização dos sentidos, mas se estendia a um espaço conceitual, no qual as
imagens se tornavam veículo para um gigantesco universo a ser apreendido por meio da
compreensão; ou seja, a arte deixava seu tradicional posto de fim para se tornar um meio. A
obra de Marcel Duchamp, por exemplo, não procura, simplesmente, explorar novos
procedimentos materiais ou formais para novas experiências visuais, mas é, na verdade, um
comentário plástico sobre a própria arte. Obviamente, a obra em si, considerada em sua
materialidade, fornece novas experiências visuais, pois esse comentário plástico exige novos
procedimentos materiais e formais. O conteúdo dos objetos de Duchamp é, porém, outro. Seus
objetos passam de veículo para a experiência sensível a veículo para a experiência intelectual.
Ninguém chamará um de seus ready-mades de belo, pelo menos não no sentido que se
aplicaria a um quadro de Monet. Há um conceito por trás de cada um de seus ready-mades e a
idéia que lhe deu gênese parece ser antes inteligente, perspicaz ou jocosa, mas nunca bela.
De qualquer maneira, o julgamento é sempre realizado em cima da concepção e nunca do
objeto, tanto que o próprio Duchamp tentou, dentro do possível, afastar-se de seu gosto
pessoal na escolha dos objetos. Essa atitude demonstra a importância de não os experimentar
somente em sua materialidade, mas sim no espaço conceitual em que eles habitam, já que é
nesse espaço que residem a concepção da obra e a reflexão que ela instiga.
Torna-se, portanto, clara a existência de um aproximar de campos entre arte e filosofia,
visto que o objeto de arte parece dirigir-se cada vez mais ao intelecto e ao mundo conceitual do
pensamento filosófico. Se a apreciação de um objeto de arte se dá através da compreensão do
conceito de arte que o transforma em objeto de arte, até que ponto não é possível dizer que
esta apreciação depende diretamente de uma filosofia da arte? Investigar esta relação e
demonstrar a sua possibilidade objetiva resultaria em uma amplificação das relações entre arte
e filosofia, pois, se pode, então, estabelecer novos modelos para a prática e a teoria artísticas,
já que, criar e apreciar um objeto de arte passa a ser, acima de tudo, um exercício de filosofia.
DA MIMESE AO CONCEITO
A relação que se estabelece entre arte e filosofia está presente nas discussões sobre
estética desde os primórdios da teoria da arte: ao se analisar a história do pensamento artístico
a partir da teoria mimética dos gregos até o contemporâneo espaço intelectual como
experiência do objeto, observa-se a constante necessidade de fundamentar a prática criativa
sobre um conceito filosófico que a torne legítima.
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As teorias sobre arte desenvolvidas por Platão e Aristóteles estavam principalmente
baseadas em se pensar a arte como imitação. Platão, por considerar os objetos comuns meras
cópias do mundo das Formas, questiona o valor do objeto de arte, insistindo nos aspectos
negativos da imitação, pois o objeto, ao se limitar à representação da natureza sensível, é
somente a cópia da cópia. Qual é o valor do retrato de uma cama, independentemente do
estímulo sensível que a escolha das cores ou dos traços proporcione, se nela nem se pode
deitar? Além disso, a poesia, ao retratar falsamente os deuses, ou a música, com suas
harmonias torpes ou indolentes, perdem seu poder pedagógico e político. Sob um ou outro
aspecto, já se vê, em Platão, a concepção de que a experiência artística não deve ser limitada
à pura experiência sensível, sob pena de ser relegada ao plano do simples agradável, pois,
para o filósofo, a arte, na verdade, se estende ao campo da pedagogia, da política, da moral e
da filosofia e, exatamente por essa razão, deve ser cuidadosamente considerada pelo Estado
ideal. Como bem ressalta Marc Jimenez, “ao expulsar os artistas da pólis, Platão demonstra a
importância da arte e como ela está longe de ser uma questão menor”.3
Aristóteles, por sua vez, assinala os aspectos positivos da imitação. Ao vivenciar os
conflitos das personagens durante uma tragédia, por exemplo, o espectador sai do espetáculo,
purificado por aquelas emoções que, por serem ficção sobre o palco, ele pode vivenciar sem o
receio que o impediriam de fazê-lo na realidade. É exatamente nessa purgação das paixões
que estaria o prazer com o objeto de arte: como uma terapia, a arte, proporcionando um
retorno a um estado de equilíbrio, permite que o espectador, agora curado, volte da experiência
artística às suas atividades de cidadão na pólis. Aristóteles, assim como Platão, também
dedica uma atenção particular às relações que extrapolam a natureza sensível da arte, pois,
para ele, o mérito de uma obra não está na simples competência técnica do artista, mas, na
verdade, na capacidade que a obra possui de expugnar as emoções. Novamente, o valor da
experiência se estende a relações além da simples recepção sensorial, como a educação, a
terapia e a política.
O platonismo influencia a Idade Média através de sua vestimenta cristã e vai alimentar,
principalmente sob a figura de Santo Agostinho, grande parte das discussões sobre arte,
contemporâneas ao nascimento da nova religião. Nas suas Confissões, Santo Agostinho
demonstra como a música pode ser nociva quando a experiência estética se limita a um
simples fruir da percepção: “Para que essas melodias se possam intrometer no meu interior,
em companhia dos pensamentos que lhes dão vida, procuram no meu coração um lugar de
certa dignidade. [...] Os sentidos, não querendo colocar-se humildemente atrás da razão,
negam-se a acompanhá-la. [...] Quando, às vezes, a música me sensibiliza mais do que as
letras que se cantam, confesso com dor que pequei. Neste caso, por castigo, preferiria não
3
JIMENEZ, Marc. O que é estética? São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999. p. 209.
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ouvir cantar”.4 Santo Agostinho mostra a influência do platonismo na sua visão sobre arte, pois,
para ele, o sensível desempenha um papel menor na experiência artística. A obra possui um
compromisso com o intelectual e o moral e, por isso, a mais profunda experiência estética se
dá, portanto, exatamente onde se extrapola o mero captar das formas.
É somente a partir do final da Idade Média, porém, que a arte adquire autonomia como
atividade essencialmente intelectual, pois, nesse momento, a concepção de arte se desliga da
concepção de artesanato. Enquanto o artesanato passa a ser identificado como uma técnica,
que por mais complexa que seja, não possui, necessariamente, um arcabouço reflexivo que a
sustente, os artistas do início da Renascença se esforçam para demonstrar que a arte está
muito mais próxima das ciências humanas do que a tradição medieval considerava. A criação
de um objeto de arte não é apenas uma confecção; ela exige muito mais do que perícia, exige
uma compreensão das técnicas e dos meios e, principalmente, uma absorção crítica e
racionalizada da realidade. Assim, os artistas do Cinquecento italiano são também grandes
humanistas, já concebendo a arte como uma atividade de reflexão, que envolve matemática e
geometria, digna, portanto, dos mesmos méritos dos quais desfrutavam a teologia e a filosofia.
A partir do Maneirismo, contudo, esse processo se acelera e a arte, finalmente, passa a
ser considerada como a representação da visão subjetiva que o artista tem da realidade. A arte
transporta-se, desta maneira, do campo da imitação para o campo da expressão. Como bem
assinala Arnold Hauser, é no século XVI que o artista, deliberadamente, se afasta da retratação
fidedigna da natureza. Esse afastamento parece exigir uma certa tomada de consciência de
que a experiência artística não se limita à apreensão do material, que pode ser dominado pela
perícia do ofício de artesão, mas que ela é, antes de tudo, a experiência da concepção do
artista. Mesmo que se argumente que na Idade Média também a estilização da forma era uma
maneira
de
representar
um
conteúdo
expressivo,
os
artistas
medievais
estavam,
provavelmente, menos cônscios de sua responsabilidade para com esse conteúdo. “No
maneirismo, defrontamo-nos pela primeira vez com um desvio consciente e deliberado em
relação à natureza, ou seja, com um abandono da fidelidade a ela, que não é baseado nem na
falta ou na limitação de habilidade artística, nem nas considerações puramente ideológicas e
não-históricas ou da filosofia de vida prevalecente. Ele nasceu, ao invés disso, de um anseio
de expressão que, a fim de ser valorizado, renunciou deliberadamente ao quadro familiar e
conhecido das coisas. Em épocas anteriores, mesmo quando a arte não era naturalista, os
artistas sempre acreditavam estar apresentando o que realmente viam com seus olhos físicos
ou espirituais e, muitas vezes, a despeito da mais ousada estilização, não tinham dúvidas de
que perseguiam a realidade objetiva”.
5
Um exemplo claro de que, para os artistas a partir da
4
SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 292-293.
5
HAUSER, Arnold. Maneirismo. São Paulo: Perspectiva, 1993. p. 32.
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Renascença, vai se tornando mais nítida a diferença da experiência artística considerada
apenas como sensação e como experiência transcendente à forma e ao material é dado por
André Félibien, teórico do Classicismo francês da corte de Luís XIV: “A beleza nasce das
proporções e da simetria que se encontra entre as partes corporais e materiais. A graça é
engendrada pela uniformidade dos movimentos interiores causados pelos afetos e pelos
sentimentos da alma.”6 Félibien chama de beleza a materialidade do objeto de arte e o que os
sentidos captam sobre ele. É, porém, a graça, enquanto relação subjetiva, dada aos
sentimentos e ao intelecto, que determina a experiência estética.
É significativo, por exemplo, observar o surgimento da ópera nessa mesma época. O
nascimento da música dramática deve muito ao vislumbre de que o compositor pode associar
um evento sonoro a uma palavra para enfatizar uma ação literária. Aí está uma postura estética
em relação à música completamente nova: a música polifônica dos compositores da
Renascença criava uma massa sonora, dentro da qual não era possível a compreensão das
palavras cantadas, correndo os eventos musicais de maneira independente das articulações do
texto – era música feita, essencialmente, para se ouvir. A partir da homofonia, que surge no
início do período Barroco, porém, a música se entrelaça com a poesia de tal forma que, não
apenas a melodia em si, considerada sob o ponto de vista puramente sensorial, determina a
relação com o objeto, mas também o texto teatral cantado. Toda a música do século XVII e do
início do século XVIII, desde Monteverdi até Bach, baseia-se nessa compreensão do evento
musical, a que os italianos chamam stilo rappresentativo. Escutar Il Combatimento di Tancredo
e Clorinda, de Monteverdi, e não se ater ao conteúdo literário que os eventos musicais evocam
e, assim, permanecer somente na superfície da combinação dos sons e das harmonias, no
puro estímulo sensível do interesse sonoro, é perder, em grande parte, o maior interesse da
obra, que é a representação musical das ações das personagens. Nessa obra, assim como em
obras do estilo de Vivaldi, Bach ou Händel, o aspecto sonoro em si, como dimensão imediata
dos sentidos tem, para a experiência estética, o mesmo valor do seu aspecto literário. E se as
palavras estão mais próximas do conceito e do entendimento do que o estímulo sonoro puro, a
experiência estética, assim, vai se aproximando da experiência do conceito e do entendimento.
Em sua Crítica da Faculdade do Juízo, Immanuel Kant propõe uma teoria estética na
qual o entendimento desempenha uma importância fundamental. Em arte, para o filósofo, a
idéia de beleza tem de ser ocasionada por um conceito do objeto e, portanto, depende
diretamente do entendimento. Com isso, torna-se possível, para Kant, afirmar a superioridade
da poesia sobre as outras formas de arte, pois ela é a que mais imediatamente se dirige ao
intelecto. De outro lado, a importância da música é tornada relativa, já que ela pode se
confundir, muitas vezes, com um simples fruir de sensações, que pouco, ou nada, falam ao
entendimento. A importância dada por Kant ao papel do entendimento na experiência com
6
JIMENEZ, Marc. O que é estética? São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999. p. 62.
172
objetos de arte é crucial por dois principais motivos. Primeiramente porque se torna claro, em
Kant, que o julgamento artístico não se dá, somente, na sensibilidade, mas por uma
intervenção do intelecto sobre as puras sensações. Em segundo lugar, porque, levando-se em
conta a valorização da teoria e do conceito na arte do século XX, parece haver uma relação
entre alguns conceitos kantianos com algumas práticas de vanguarda: “A poesia é a arte de
executar um jogo livre da faculdade da imaginação como um ofício do entendimento. [...] O
poeta simplesmente anuncia um jogo que entretém com idéias e do qual, contudo, se
manifesta tanta coisa para o entendimento, como se ele tivesse simplesmente tido a intenção
de estimular seu ofício”.7 Esse pensamento pode se articular com inúmeras tendências da arte
moderna e contemporânea e sua presença na atualidade pode ser atestada por catálogos de
exposições: “Concluindo que os diversos estilos já existentes em Arte ofereciam apenas
valores visuais e materiais limitados, Marcel Duchamp estava decidido a recolocar a pintura ao
serviço da mente”. Ou ainda: “Por trás da aparência popular, até mesmo kitsch de seus
trabalhos, de uma lógica fundada na apropriação de trabalhos tão anônimos quanto vulgares,
insinua-se a mordacidade de Nelson Leirner, sua estratégia de colocar a arte a serviço da
inteligência.” Esse é, portanto, o grande momento de contato entre arte e filosofia. Em uma
época como a nossa, na qual a forma artística é tão conceitualmente determinada, já que, por
detrás dela, se abre um imenso espaço para a experiência do intelecto, é indispensável instigar
discussão sobre a natureza filosófica das obras de arte.
Dessa maneira, a experiência artística contemporânea se desloca do criar para o
refletir, determinando-se pelos seus aspectos teóricos e intelectuais, transcendendo à própria
dimensão da filosofia. Um exemplo é a transcrição, que faz Tom Wolfe em sua A palavra
pintada, de uma crítica de Hilton Kramer sobre uma exposição de “Sete Realistas”. Kramer
aponta a importância da teoria e da fundamentação intelectual da obra, que, ao superarem
seus aspectos sensoriais, se estabelecem como critério para o julgamento de valor: “O
realismo não carece de adeptos, mas carece, visivelmente, de uma teoria convincente. E dada
à natureza do nosso intercâmbio intelectual com as obras de arte, carecer de uma teoria
convincente é carecer de algo crucial”.8 Nessa afirmação, torna-se evidente uma nova relação
entre os critérios avaliativos de uma obra de arte: experimentar uma obra de arte não é mais
uma questão de sensação, mas uma questão intelectual, já que, fundamentalmente
experimentar uma obra de arte é compreendê-la. “Na contemporaneidade, para Kramer, é
impossível ver uma pintura ou ouvir uma música sem a apreensão intelectual do conteúdo
teórico representado, pois criar uma obra de arte passa a ser representar materialmente uma
teoria”9, completa Tom Wolfe.
7
KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. § 51.
WOLFE, Tom. A palavra pintada. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 6.
9
WOLFE. Op. cit., p. 8.
8
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Parece evidente, portanto, que, no transcorrer da história da reflexão sobre arte, o
conceito do objeto torna-se o mais importante elemento de criação e de apreciação das obras e
que estabelecer critérios interpretativos e avaliativos somente mediante a descrição material e
formal, ignorando a imensa dimensão filosófica da arte, é limitar toda a potencialidade de
transformação que sempre lhe foi inerente.
Referências
HANSLICK, Eduard. Do belo musical. Trad.: Nicolino S. Neto. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992.
HAUSER, Arnold. Maneirismo. Trad.: J. Guinsburg; Magda França. São Paulo: Perspectiva, 1993.
JIMENEZ, Marc. O que é estética? Trad.: Fulvia Moretto. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999.
KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Trad.: Valério Rohden; Antônio Marques. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995.
SANTO AGOSTINHO. Confissões. Trad.: J. Oliveira Santos; A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova
Cultural, 1999.
VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcel Duchamp: a beleza da indiferença. São Paulo: Brasiliense, 1986.
WOLFE, Tom. A palavra pintada. Trad.: Lia Alverga-Wyler. Porto Alegre: L&PM, 1987.
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