Mudança Conceitual, Transformação Social, e a Filosofia

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Mudança Conceitual, Transformação Social, e a Filosofia
Política da Modernidade*
José Eisenberg (UFMG)
* Trabalho apresentado no XXII Encontro Anual da ANPOCS em
Caxambu, 27 a 31 de Outubro de 1998.
2
“A fé na cultura moderna era triste:
era saber que amanhã ia ser em todo
o essencial igual a hoje, que o
progresso consistia só em avançar
com todos os sempres sobre um
caminho idêntico ao que já estava
sob nossos pés. Um caminho assim é a
bem dizer uma prisão que, elástica,
se alarga sem nos libertar.”
(J. Ortega y Gasset, A Rebelião das
Massas)
3
1) Linguagem, Mudança Conceitual e Transformação Social
O objetivo deste trabalho é fazer uma análise sintética
da filosofia política da modernidade para mostrar como a
transformação social é um processo histórico propulsionado
não
somente
por
subjetividades
(sejam
elas
coletivas
ou
individuais), mas também por conceitos que periodicamente
renovam
as
formas
de
justificação
e
legitimação
das
instituições políticas. Mostrarei que, se vivemos uma crise
da
modernidade,
esta
crise
é
fundamentalmente
uma
crise
lingüística, isto é, uma crise originária no esgotamento das
linguagens
da
filosofia
política
moderna.
Presos
a
dicotomias conceituais tais como Público e Privado, Estado e
Sociedade Civil, e Estado e Mercado, tornamo-nos incapazes
de gerar discursos inovadores que produzam novas maneiras de
instaurar, legitimar e justificar as instituições políticas.
Nas últimas três décadas, uma nova metodologia para o
estudo da história da filosofia política desenvolveu-se ao
redor
da
expressão
Inaugurada
por
"as
Quentin
linguagens
da
Skinner
J.G.A.
e
teoria
política.”
Pocock,
esta
metodologia se tornou um modo difundido de analisar tratados
de teoria política no contexto histórico no qual eles foram
escritos, e em relação às práticas retóricas das quais eles
emergem.1
Os
tratados,
significados
argumentam
dos
argumentos
Skinner
e
apresentados
Pocock,
não
nestes
podem
ser
interpretados sem levar em conta o desempenho que estes
argumentos requerem. Por um lado, textos de teoria política
são escritos em um certo momento da vida do autor, e assim a
intenção do autor é parte necessária desta interpretação.
1
Cf. a extensa lista de publicações da série da Cambridge
University Press entitulada ‘Ideas in Context.’
4
Por outro lado, não se pode interpretar aqueles significados
sem referência à posição social que o autor ocupa em relação
a sua audiência, e sem referência às linguagens da teoria
política com as quais o autor e sua audiência interpretam os
eventos
históricos
metodologia
de
proposta
seu
por
tempo.
Este
Skinner
e
historicismo
Pocock
produz
da
um
contextualismo baseado na dimensão performativa de teorias e
conceitos políticos, conduzindo a uma valiosa ênfase nas
conexões entre as linguagens (ou idiomas) da política que
constituem o contexto do autor, e as mudanças conceituais
que ele realiza na sua obra.
Skinner
e
Pocock
fundamentam
sua
metodologia
na
filosofia da linguagem wittgensteiniana proposta por J.L.
Austin nos meados deste século. De acordo com Austin, a
validade de toda assertiva (speech-act) depende não somente
dos significados contidos na própria locução, resultado de
uma articulação entre a semântica e a sintaxe da proposição
proferida, mas também de significados implícitos que estão
para além da proposição proferida. Assim, por exemplo, a
validade (e, consequentemente, o significado) da sentença
“Eu ordeno que você não saia daqui”, depende não somente do
significado
da
oração
coordenada
“Eu
ordeno”
e
do
significado da oração subordinada “que você não saia daqui”,
mas também da posição social relativa dos interlocutores,
que
confere
(ou
não)
autoridade
àquele
que
ordena
para
proferir tal comando. Ou seja, quando um filho profere esta
assertiva
para
diferentes
de
seu
pai,
quando
ela
um
pai
tem
a
validade
profere
e
ao
significado
seu
filho.
Portanto, concluem Skinner e Pocock, entender a validade e
significado de filosofias políticas requer mais do que uma
simples
interpretação
hermenêutica
dos
textos;
tal
compreensão requer também uma análise do contexto social e
lingüístico no qual o texto foi produzido.
5
Autores
trabalhando
sob
este
novo
paradigma
têm
freqüentemente apontado para a importância de se analisar a
constituição
política
da
linguagem,
e
dado
uma
ênfase
historicista à importância da transformação social para a
consumação de mudanças conceituais na filosofia política. Ou
seja,
estes
autores
têm
buscado
uma
contextualização
da
filosofia política nos processos históricos das quais elas
emergem, inserindo a biografia de filósofos e o momento da
produção de seus tratados no palco dos conflitos políticos
de sua época.2 Como aponta James Farr (1989), o enfoque
metodológico
prescrito
por
Skinner
e
Pocock
exige,
no
entanto, que olhemos também para a constituição lingüística
da política, isto é, para como as linguagens da filosofia
política
e
as
mudanças
estruturaram
as
práticas
articuladas
às
conceituais
nelas
justificatórias
instituições
políticas.
impetradas
necessariamente
Em
suma,
se
a
linguagem é historicamente condicionada, a história também é
linguisticamente condicionada.3
Em particular, a compreensão de mudanças conceituais
requer
um
mapeamento
de
como
as
substituições
e/ou
transformações de conceitos contidas em textos de filosofia
política foram produzidas. Em geral, tais mudanças ocorrem
no seio de práticas discursivas que antecedem a sua aparição
em textos teóricos:
...Mudança conceitual [conceptual change] deve ser
entendida
como
um
dos
possíveis
resultados
criativos do processo pelo qual atores políticos
buscam solucionar os problemas que eles enfrentam
ao tentar entender e transformar o mundo ao seu
redor... Teorias, por outro lado, devem ser
entendidas
como
tentativas
intencionais
e
racionais
de
resolver
problemas
práticos
e
2
Ver Skinner 1969, Pocock 1971.
3
Ver Kosseleck 1989, p.649.
6
especulativos
gerados
pela
interação
convicções, ações e práticas políticas.4
entre
Assim, geralmente são atores políticos, e não teóricos, que
mudam
conceitos
quando
agem
em
determinados
contextos
institucionais. Estes atores precisam explicar por que eles
escolheram proceder de uma maneira ou de outra e, neste
processo, justificam por que escolheram se afastar de certas
teorias políticas, e as razões que os levaram a adaptar tais
teorias aos problemas práticos que enfrentam. Se queremos
interpretar
teorias
como
práticas
discursivas,
portanto,
temos que compreender a conexão entre elas e as práticas
discursivas onde mudanças conceituais geralmente acontecem,
isto é, práticas de justificação.5
Esta
político
diferenciação
sistemático,
entre
e
as
a
produção
práticas
de
de
pensamento
justificação
que
precedem esforços filosóficos de sistematização não implica
em
ignorar
freqüentemente
os
momentos
inovam
o
criativo
pensamento
de
teóricos,
político
em
que
seus
tratados. Ela exige, porém, que busquemos respostas para
perguntas sobre a gênese destas mudanças conceituais nas
práticas
de
justificação
que
permeiam
a
vida
das
instituições políticas.
As unidades de significado que compõem tanto o todo de
uma teoria quanto as práticas de justificação são motivos
4
Farr 1989, p.33. O termo “mudança conceitual” é mais
abrangente e adequado que o termo “transformação conceitual”
já que frequentemente mudanças conceituais resultam de
processos de substituição de um conceito por outro, sem que
incorra sobre estes nenhum tipo de transformação. Assim,
mudança conceitual abrange tanto transformações conceituais
(i.e., mudança interna na semântica de um conceito), quanto
substituições (i.e., a simples substituição de um conceito
por outro).
5
Para uma interpretação diferente mas convergente deste
conceito de justificação, veja Habermas 1993, cap.1.
7
atribuídos por atores para suas ações políticas. São raras
as
ocasiões
nas
quais
atores
políticos
podem
escolher
permanecer calados após agirem, e não apresentar os motivos
que os levaram a determinadas escolhas. Às vezes, estas
justificações assumem a forma de desculpas (escusas) para
interesses; outras vezes, elas assumem a forma de máximas
morais derivadas de visão de mundo. O que sempre separa ação
política de outras formas de ação social, no entanto‚ é o
imperativo
de
justificação.
Justificação
pode
então
ser
definida como a assertiva que todo ator político tem que
proferir para atribuir motivos para suas ações políticas
e/ou
decisões
institucionais,
especialmente
quando
estes
motivos representam um distanciamento ou uma modificação dos
modos de justificação estabelecidos pelas teorias políticas
vigentes num determinado contexto.
Esta necessidade da justificação é a razão central pela
qual
a
interpretação
da
transformação
social
exige
uma
compreensão de mudanças conceituais. A fundação, reprodução
e
transformação
práticas
de
de
instituições
justificação,
e
as
políticas
mudanças
sempre
exige
conceituais
que
permeiam estas práticas não são somente um resultado do
processo de transformação social, mas são freqüentemente sua
causa.
As
linguagens
da
filosofia
política
também
são
agentes da transformação social.
2) As Linguagens da Filosofia Política da Modernidade
De acordo com Anthony Pagden (1987), três linguagens
fundamentais
pontuam
modernidade.
A
a
primeira
filosofia
política
destas
linguagens
no
começo
surge
com
da
o
aristotelismo da escola tomista que ficou conhecida como a
seconda scholastica, e é a referência para o desenvolvimento
de boa parte do pensamento jurídico de Grotius a Pufendorf.
8
Partindo
da
linguagem
do
direito
natural
de
S.Tomás
de
Aquino, este aristotelismo foi o pilar da doutrina jurídica
do estado moderno, tornando-se o principal alvo teórico dos
humanistas do século XVI e dos contratualistas dos dois
séculos subsequentes.
A crítica a esta doutrina jurídica estava fundamentada
em uma segunda linguagem centrada em uma recuperação do
republicanismo
clássico.
Inspirados
pelas
obras
de
moralistas e historiadores romanos tais como Lívio, Sêneca,
e
Cícero,
Rousseau
filósofos
trocam
a
dos
mais
preocupação
diversos
dos
de
Maquiavel
jusnaturalistas
com
a
a
ordenação racional das leis por um enfoque no problema da
prática da política. Colocando os conceitos de virtude e
liberdade no centro da reflexão, estes autores escolhem como
eixos para a filosofia política o problema da ação política
dos governantes e o problema dos mecanismos de legitimação
daquela ação junto à sociedade.
A
terceira
linguagem
da
filosofia
política
da
modernidade é a linguagem da economia política. Fundamentada
na
justificação
da
sociedade
mercantil
emergente,
esta
linguagem produz uma interpretação funcionalista do estado,
na qual o seu principal objetivo é a reprodução e manutenção
do sistema de produção vigente através de um sistema de
administração racional da vida social. Para Mandeville e
Adam Smith, entre outros, a sociedade civil é a esfera da
articulação
de
interesses
privados,
não
das
virtudes
cívicas, e ao estado cabe garantir o funcionamento de sua
principal instituição: o mercado.
Por
fim,
Pagden
lista
uma
quarta
linguagem,
mais
epistemológica do que propriamente política, que permeia as
outras três.6
6
Uma das características fundamentais de boa
Pagden lista quatro linguagens, mas a última destas
linguagens – a da ciência da política – na verdade é um
9
parte do pensamento político moderno é a compreensão de a
filosofia
política
é
de
certa
forma
um
empreendimento
“científico”. Ora interpretada como um sistema dedutivo, ora
como
uma
ciência
moral
filosofia
política
(phronesis),
moderna
se
as
libertam
linguagens
da
correntes
da
das
justificação moralista de origem teológica-jurídica. Por um
lado, a linguagem do direito natural vai se positivizando, e
o
procedimento
substância
da
ganha
graça
prioridade
e
vontade
ontológica
divina.
Por
sobre
a
outro,
a
linguagem do republicanismo clássico fundamenta as virtudes
e a legitimidade do exercício da autoridade na razão e na
vontade geral da comunidade, buscando assim um fundamento
moral
na
nova
antropologia
empírica
do
homem
natural
derivada dos encontros do novo mundo.
Por fim, a linguagem
da
a
economia
articulação
moralização
política,
de
da
ao
reduzir
interesses
política
ação
privados,
que
não
política
recusa
estivesse
à
qualquer
fundada
na
moralidade natural do mercado.
Acima de tudo, foi esta convergência epistemológica das
diversas
linguagens
da
permitiu
o
diálogo
intenso
filosofia
entre
política
elas
e
moderna
os
que
diversos
sincretismos teóricos que pontuaram aquele diálogo. Percebese, portanto, que apesar das diferentes apropriações que os
“primeiros
política
modernos”
medieval
fazem
e
das
antiga,
conceituais
introduzidas
modernidade
resultaram
de
linguagens
as
pela
um
secularização daquelas linguagens.
da
filosofia
principais
mudanças
filosofia
processo
política
da
convergente
de
7
traço epistemológico comum às outras três. O estatuto
epistemológico desta quarta linguagem nos induz a pensar que
a lista de Pagden deveria se reduzir às três linguagens
discutidas acima.
7
Os principais autores a traçarem este movimento conceitual
de secularização são Schmitt (1985) e Blumenberg (1983).
10
Mas a convergência entre estas linguagens não se reduz
a
esta
semelhança
epistemológica
e
à
dinâmica
de
secularização a ela associada. Uma análise das linguagens do
aristotelismo
tomista,
do
republicanismo
clássico
e
da
economia política mostra que elas também contém mecanismos
de justificação convergentes. Apesar de terem sido aplicadas
diferentemente nos contextos histórico-linguísticos em que
foram
utilizadas,
conceituais
–
estas
linguagens
público/privado,
têm
como
eixo
estado/sociedade
pares
civil,
estado/mercado – que expressam relações análogas.
Em
primeiro
lugar,
estes
pares
reproduzem
um
mesmo
“imperativo da representação”, em que a participação na vida
da comunidade depende da pessoa se re-presentar perante os
outros
membros
da
comunidade
como
persona
através
de
artifícios retórico-jurídicos formalizados por instituições.
Dessa maneira, este imperativo da representação impõe sobre
as pessoas que elas separem o ‘eu’ das práticas cotidianas
no
mundo
da
práticas
vida
(persona
naturalis),
institucionalizadas
que
do
indivíduo
integram
a
vida
das
da
comunidade política (persona moralis); isto é, o imperativo
da representação implica em uma separação radical entre as
práticas discursivas que constituem a vida cotidiana dos
homens e as práticas institucionalizadas que constituem a
sua vida ética.8
Em
aquele
esferas
segundo
lugar,
universo das
estes
pares
conceituais
dividem
práticas institucionalizadas em duas
complementares
que
esgotam
a
vida
da
comunidade
política. Na primeira esfera, as pessoas se representam como
indivíduos
8
(persona
moralis
simplex)
articulando
e
Cf. Castoriadis 1991, p.144ff. Veja também O. Gierke
(1958) para uma análise do desenvolvimento do conceito de
persona ficta na teoria da corporações da Idade Média.
11
adjudicando interesses e virtudes; na segunda, as pessoas
criam
uma
representação
coletiva
de
suas
concepções
do
problema da autoridade política, e produzem uma pessoa moral
coletiva (persona moralis composita), ou seja, um soberano.
Esta divisão da vida ética dos homens em duas esferas, que
já havia perturbado Rousseau, Hegel e Marx, manifesta-se de
diferentes formas nos pares conceituais mencionados acima.
Em todos eles, no entanto, a divisão entre a esfera da
representação
de
interesses
e
virtudes,
e
a
esfera
da
produção de uma representação coletiva esgota o universo das
práticas institucionalizadas que constituem a vida política
da comunidade e a vida ética de seus membros.9
A
primeira versão
destes
pares
conceituais
modernos
surge com a linguagem do aristotelismo tomista que serve de
base para boa parte do jusnaturalismo moderno. Inspirada na
dicotomia entre polis e oikos da doutrina aristotélica, esta
linguagem empresta do direito romano os conceitos de público
e privado (publicus/privatus). Todas as teorias modernas do
direito
natural
Montesquieu,
e
(seconda
scholastica
especialmente os
juristas
seiscentista,
protestantes
de
Grotius a Pufendorf) estão baseadas em uma separação radical
entre as coisas que fazem parte da vida privada das pessoas,
e aquelas que são comuns a elas (res publica). Para as
coisas
privadas,
há
o
direito
privado,
governando
as
relações entre os homens livres; para as coisas públicas, há
o
direito
relações
público,
entre
preocupado
governantes
e
fundamentalmente
súditos.
O
com
as
imperativo
da
representação, nesse contexto, implica na utilização de uma
categoria
9
fundamental
do
direito
privado
(o
conceito
de
Os termos persona moralis simplex e persona moralis
composita foram utilizados pela primeira vez por Pufendorf.
Quando Rousseau descreve o soberano como “corpo moral e
coletivo”, ele tinha em mente precisamente esta distinção
jusnaturalista.
12
dominium) como alicerce para a construção da persona do
súdito
(definido
como
proprietário
de
seus
direitos
individuais) e da persona da autoridade política (definida
como dominium politicum).
A linguagem do republicanismo clássico que permeia o
contratualismo moderno, por outro lado, funda um novo par
conceitual,
estado/sociedade
civil,
cujo
objetivo
fundamental é legitimar a autoridade política (isto é, o
estado) na articulação formal dos interesses daqueles que
compõem a sociedade civil. Enquanto que na linguagem do
aristotelismo tomista o imperativo da representação implica
em um transporte do conceito de dominium do direito privado
para o direito público, no contratualismo este imperativo
implica na conversão do conceito mercantil do contrato em um
instrumento de legitimação da sociedade civil e do estado.
Através de uma operação que simula o contrato comercial do
direito privado, os membros da sociedade civil são definidos
pelos direitos naturais que elas transferem
(ou não) a um
soberano em troca da garantia de paz e estabilidade, assim
como pelos direitos civis a eles concedidos pelo estado.
Assim,
na
linguagem
do
republicanismo
clássico,
a
persona moralis do cidadão substitue a persona moralis do
súdito
do
aristotelismo
tomista,
e
a
persona
moralis
composita da autoridade política se converte em um resultado
da negociação contratual entre os cidadãos. No aristotelismo
tomista,
a
persona
da
autoridade
política
também
é
legitimada pelo consentimento dos súditos, mas as obrigações
do rei e dos súditos não são limitadas por este fato; já na
formulação do republicanismo clássico, o consentimento dos
cidadãos é fator fundante e ao mesmo tempo limitante da
persona da autoridade política.
Por fim, a linguagem da economia política cria o par
conceitual estado/mercado, através do qual a persona moralis
13
do
cidadão
é
substituída
pela
persona
moralis
do
proprietário, e a esfera de suas interações é limitada à
articulação de interesses. Dessa maneira, a instituição do
mercado, originária na alta idade média, ascende no período
moderno à posição de organizador das virtudes públicas, e a
persona da autoridade política é reduzida às funções de
garantia
de
sua
reprodução.
Ao contrapor o
mercado
ao
estado, portanto, a economia política minimiza a importância
do
problema
da
fundação
e
da
limitação
da
autoridade
política pelo consentimento humano, e reduz a sua existência
às
funções
reguladoras
e
mantenedoras
que
garantem
a
reprodução do mercado.
Vale lembrar que a convergência entre estas linguagens
da filosofia política moderna ao redor do imperativo da
representação e de seus pares respectivos não nos permite
ignorar
as
importantes
diferenças
entre
seus
aparatos
conceituais. Afinal, os pares conceituais que definem estas
linguagens
ocupam
campos
semânticos
significativamente
distintos. A convergência entre as linguagens argumentada
acima não se estabelece nesse nível semântico; ela é uma
convergência
na
operação
sintática
dos
conceitos.
Como
demonstrado, eles têm funções semelhantes, definidas pelo
imperativo da representação, que implica na separação da
pessoa do mundo da vida (persona naturalis) do indivíduo
moral
que
se
representa
nas
interações
sociedade (persona moralis simplex).
da
legitimidade,
conseguem
se
é
o
consentimento
representar
como
políticas
da
Nas teorias modernas
daquelas
indíviduos
pessoas
morais
que
que
dá
origem à autoridade política (persona moralis composita).
Vale
lembrar
também
que
as
linguagens
da
filosofia
política moderna não atribuem a todas as pessoas a condição
de persona moralis, vide por exemplo a exclusão dos escravos
e
das mulheres
deste
universo.
Ao
lidar
somente
com
as
14
pessoas que se representam (i.e., aqueles que adquirem a
condição de persona moralis), estas linguagens negligenciam
a pessoa da vida cotidiana (persona naturalis) em prol de
suas
representações
institucionalizadas.
em
As
práticas
pessoas
de
discursivas
que
falam
estas
linguagens – o indivíduo moral – são possuidoras de direitos
naturais, de propriedade, e de direitos políticos; mas sua
condição de possuidoras de alguma coisa, na medida em que
depende da sanção da autoridade política para ser legítima e
reconhecida enquanto tal, permanece descolada da condição
humana propriamente dita, e do mundo da vida no qual esta
condição se converte em experiência.
É
esta
política
convergência
moderna
que
das
nos
linguagens
permite
falar
da
filosofia
da
“filosofia
política da modernidade” no singular. Como vimos, o que
caracteriza
a
filosofia
política
da
modernidade
é
uma
separação entre a vida cotidiana dos homens (o que Husserl
e,
depois
Habermas,
designaram
como
“mundo
da
vida”
-
lebenswelt), e a forma com que estes se representam nas
relações sociais mediadas por instituições. O problema que
se
coloca,
consequentemente,
em
vista
dos
objetivos
estabelecidos no começo deste artigo, é verificar se há
algum movimento de mudança conceitual a partir do século
dezenove
que
justifique
argumentos
sobre
o
fim
da
modernidade? Existe algum projeto da filosofia política da
modernidade que supere a unidade lingüística que a permeia?
Marx, em uma frase do Dezoito Brumário tornada célebre pelo
título de um livro de Marshall Berman, preconizou que “tudo
que é sólido desmancha no ar.” Como veremos nas duas sessões
a seguir, no entanto, o que é sólido nem sempre desmancha no
ar.
15
3) O Governo Representativo e a Síntese das Linguagens da
Filosofia Política no Século XIX
A
virada
para
o
século
dezenove
é
um
período
de
tentativas de síntese das linguagens da filosofia política
moderna. No idealismo alemão de Kant a Hegel, vemos uma
síntese do jusnaturalismo e do republicanismo clássico que
busca universalizar a representação dos homens em persona
moralis, fundando a moral na razão natural, e ao mesmo tempo
fundando
razão.
o
estado
Tanto
para
numa
moral
universal
Kant
quanto
para
resultante
Hegel, é
desta
somente
na
medida em que todos os homens representam-se na forma de
persona moralis que se torna possível deduzir um conjunto
mínimo de interesses e de virtudes universalizáveis. Desta
solução
deontológica para
o
imperativo da representação,
surge um liberalismo emancipado das categorias da economia
política, e que funda a legitimidade do estado (persona
moralis
composita)
procedimento
na
formal,
moralidade
no
caso
do
universalizante
imperativo
do
categórico
kantiano, ou numa razão de estado fundada na vida ética dos
cidadãos (Sittlichkeit), no caso da dialética hegeliana.
Marx, por outro lado, historiciza a interpretação do
imperativo
da
representação
política.
Ele
critica
na
aquela
linguagem
linguagem
da
por
economia
definir
um
produto específico e contingente da modernidade e do avanço
da sociedade de mercado – o proprietário – como sendo o
indivíduo
moral
republicanismo
apropriada
formação
política,
universal.
clássico,
pelos
da
da
Marx,
maneira
contratualistas,
autoridade
dando
Para
a
segundo
ela
uma
o
a
linguagem
como
havia
apenas
modelo
ilusória
do
sido
justifica
da
a
economia
impressão
de
linguagens
do
universalidade.
Através
desta
síntese
crítica
das
republicanismo clássico e da economia política, Marx busca
16
definir
um
projeto
de
emancipação
humana
baseado
na
superação do homem enquanto cidadão e na recuperação do
homem enquanto homem, que na linguagem marxista ainda guarda
semelhanças com o indivíduo moral da linguagem da economia
política,
já
que
também
situa-se
no
horizonte
de
uma
moralidade do trabalho. Interessante notar, portanto, que
enquanto
que
as
política
moderna
sínteses
das
em
e
Kant
linguagens
Hegel
da
buscam
filosofia
converter
o
indivíduo moral do republicanismo clássico (o cidadão) na
categoria central para uma reconstrução do jusnaturalismo, a
síntese de Marx quer transformá-lo na categoria central de
uma reconstrução crítica da economia política.
Sob o ponto de vista do “imperativo da representação”,
o
evento
mais
significativo
do
século
dezenove
é
a
emergência do governo representativo como solução prática
para a institucionalização efetiva da autoridade política
enquanto
persona
moralis
composita.
Enquanto
que
a
universalização do indivíduo moral na Europa foi um processo
de transformação social gradual que só é concluído no começo
deste
século
com
a
extensão
do
voto
feminino,
uma
operacionalização formal do imperativo da representação para
a constituição da autoridade política é formulada ainda no
século dezenove. Stuart Mill, por exemplo, argumenta que o
ideal é quando todos os indivíduos morais participam da
administração, mas a impossibilidade prática desta solução
para nações grandes implica que o governo representativo é a
melhor maneira de organizar o poder.
É importante lembrar que não é o avanço da democracia
que
caracteriza
este
movimento
de
mudança
conceitual
no
século dezenove. Assim como a universalização do indivíduo
moral,
o
avanço
transformações
concretas
de
da
sociais
ampliação
democracia
que
da
têm
foi
o
raízes
em
esfera
de
resultado
lutas
de
sociais
representação
dos
17
indivíduos morais. Afinal, a democracia já era um regime
conhecido
desde
o
começo
da
modernidade;
na
tipologia
clássica das formas de governo, o governo de muitos sempre
foi considerado uma opção em contraste como o governo de
poucos ou de um só. Na medida em que ao longo do período
moderno apenas uma parcela das pessoas representa-se como
persona moralis, a escolha da melhor forma de governo esteve
sempre vinculada a critérios de eficácia administrativa, e
não argumentos morais. A democracia representativa passa a
ser um imperativo formal na formação da autoridade política
(persona
moralis
composita)
somente
depois
da
universalização do indivíduo moral no começo deste século, e
das mudanças conceituais que levam a consolidação do governo
representativo.
Com
o
advento
do
governo
representativo
no
século
dezenove, surge a necessidade de redefinir o indivíduo moral
do
republicanismo
clássico,
já
que
a
possibilidade
do
exercício da cidadania depende da pessoa do mundo da vida
estar preparada para o exercício do voto. Como resposta a
este problema, surge no final do século dezenove aquilo que
ficou conhecido como o liberalismo social inglês, por um
lado, e por outro, a social democracia.
Inspirados por
Stuart Mill, liberais ingleses tais como Hobhouse e T.H.
Green já demonstram uma preocupação com a lógica interna do
imperativo da representação: para que a pessoa do mundo da
vida se represente como indivíduo moral, é necessário que
ela tenha condições materiais mínimas para o exercício da
liberdade
governo
qua cidadania.
representativo
Concomitantemente, o
tem
um
efeito
advento
semelhante
sobre
do
o
marxismo, ainda que inverso. O avanço da social democracia
no final do século dezenove está diretamente vinculada a uma
crescente confiança nos círculos marxistas na possibilidade
18
do
proletariado
chegar
ao
poder
através
dos
mecanismos
institucionais de representação política.
Neste contexto, as teorias do welfare state do século
vinte aparecem como uma grande síntese das linguagens do
republicanismo clássico e da economia política que acomoda,
ao mesmo tempo, tanto liberais quanto marxistas. As relações
sociais ancoradas na estrutura de classe são juridificadas e
a autoridade política, enquanto persona moralis composita,
apesar de ainda interpretada como resultado da articulação
dos indivíduos morais, passa a ter funções na administração
do mundo da vida.10
4) A Reemergência da Sociedade Civil: As Linguagens da
Filosofia Política Contemporânea e a Crise da Modernidade
A conseqüência mais imediata da consolidação do governo
representativo e do welfare state é o estabelecimento de uma
hegemonia ao redor do par conceitual proveniente da economia
política - Estado/mercado. Sustentada por uma justificação
schumpeteriana
mecanismos
baseada
competitivos
na
de
convergência
formação
da
teórica
entre
os
vontade
geral
no
sistema partidário, e os mecanismos competitivos de alocação
de recursos no mercado, a democracia representativa se torna
o veículo de articulação dos interesses privados dos agentes
do mercado, relegando para um segundo plano, portanto, a
10
Esta ampliação das obrigações da autoridade política para
com a organização do mundo da vida e com as condições
materiais para o exercício da cidadania é o objeto da
crítica de Weber (1978) na Sociologia do Direito, segundo o
qual esta ampliação levou a uma excessiva juridificação e
invasão de reivindicações substantivas na esfera do direito
público. Para ele, este processo implica em uma crescente
perda de legitimidade do procedimento formal.
19
articulação e representação das virtudes que caracteriza o
conceito de cidadania derivado do republicanismo clássico.
Logo após a segunda guerra, as teorias da democracia
encontram-se imersas em um paradigma pluralista que advoga o
valor normativo da democracia como processo institucional de
formação da persona moralis composita, mas que reduz este
processo à articulação dos interesses de persona moralis
simplex definidos nos termos estabelecidos pela linguagem da
economia
política.
De
acordo
com
aquele
paradigma,
uma
sociedade mercantil, complexa e plural, em que a dinâmica
fundamental da política está voltada para a acomodação de
interesses
divergentes,
requer
os
mecanismos
formais
da
democracia representativa para a produção de consensos.
Verifica-se, portanto, uma importante rearticulação da
filosofia política da modernidade neste século. Alterados
pelos movimentos de síntese do século dezenove, os pares
conceituais
público/privado,
estado/sociedade
civil
e
estado/mercado ganham novas conotações. Em primeiro lugar,
ocorre um desmantelamento das fronteiras entre público e
privado que definiam a linguagem do aristotelismo tomista. O
conceito
jurídico
de
público
perde
o
seu
sentido
mais
imediato na medida em que inúmeras demandas tradicionalmente
vinculadas
ao
direito
privado
passam
a
ser
objeto
da
gerência da autoridade política sob o welfare state.11 Em
segundo lugar, na medida em que se universaliza o imperativo
da representação e toda pessoa passa a ter um indivíduo
moral
correspondente,
republicanismo
o
conceito
clássico,
definido
de
sociedade
como
a
civil
esfera
do
da
articulação das virtudes e dos interesses do cidadão, tornase efetivamente a esfera da articulação dos interesses das
pessoas
que
conceituais
11
habitam
associadas
Habermas 1989.
o
mundo
aos
da
vida.
Estas
termos “público” e
mudanças
“sociedade
20
civil”
são,
sem
importantes
dúvida,
nas
as
linguagens
mudanças
da
conceituais
filosofia
política
mais
deste
século.
Partindo de uma crítica da razão funcionalista, e tendo
como
referência
intelectuais
sociedade
os
vem
civil
trabalhos
buscando
e
de
de
Habermas,
reconstruir
esfera
pública
um
grupo
de
estes conceitos
de
com
de
o
objetivo
substituir o par conceitual estado/mercado, por uma tríade –
estado/sociedade civil/mercado – que permita compreender a
proliferação contemporânea de persona moralis composita para
além do estado. De acordo com estes autores, entre os quais
destacam-se
Andrew
Arato
e
Jean
Cohen,
estas
novas
instituições políticas recuperam uma dimensão da vida social
relacionada
ao
exercício
da
cidadania,
cujas
funções
de
integração social e racionalização do mundo da vida não
podem ser exercidas plenamente nem pelas instituições do
estado nem pelo mercado. Dessa maneira, argumentam Arato e
Cohen
(1989),
o
conceito
de
sociedade
civil
deve
ser
reconstruído para designar o nível institucional do mundo da
vida:
este
conceito
incluiria
todas
as
formas
institucionais
e
associativas
que
requerem
interação comunicativa para a sua reprodução e que
se
apoiam
primordialmente
em
processos
de
integração social para coordenar ações dentro de
seus limites.12
Ou, como define Habermas (1996), a sociedade civil é um
complexo
institucional
composto
de
“conexões
não-
governamentais e não-econômicas e associações voluntárias
que
ancoram
pública.”
as
estruturas
13
12
Arato e Cohen 1989, p.429.
13
Habermas 1996, p.366.
comunicativas
da
esfera
21
Na
construção
de
uma
crítica
ao
par
conceitual
estado/mercado que emerge como hegemônico nas linguagens da
filosofia política deste século, Habermas e seus seguidores
propõem
que
substituamos
estado/mercado/sociedade
aquele
civil
par
pela
para
tríade
abarcarmos
analiticamente aquelas instituições sociais que não estão
vinculadas
ao
estado
e/ou
ao
mercado,
isto
é,
outras
personae moralis compositae que não o estado. A inspiração
tocquevilleana deste conceito de sociedade civil é evidente.
Assim
como
Tocqueville,
aqueles
que
hoje
defendem
a
importância de se valorizar as instituições e associações
voluntárias da esfera pública têm em mente a produção de
mecanismos que permitam proteger comunidades dos perigos do
despotismo. É precisamente por este motivo que as transições
democráticas da história recente de países da América Latina
e da Europa Oriental e Austral são utilizadas para por estes
autores como evidência empírica para a necessidade normativa
de se valorizar este novo conceito de sociedade civil. A
reemergência da sociedade civil é um fator determinante na
democratização daqueles países.14
Este projeto habermasiano está associado, portanto, a
um esforço de complementar as instituições da democracia
representativa
com
mecanismos
institucionalizados
de
participação política. Ao mesmo tempo em que o welfare state
juridifica conflitos sociais provenientes do mercado, ele
sepulta os espaços de articulação da virtudes em nome de um
império dos interesses privados representados através dos
mecanismos institucionais da democracia representativa. A
intersubjetividade e as funções de racionalização do mundo
da vida associados ao conceito de sociedade civil buscam,
14
Para uma discussão das transições democráticas na América
Latina sob o ponto de vista da teoria habermasiana da
reemergência da sociedade civil, veja Avritzer (1996).
22
nesse
contexto,
recriar
uma
esfera
de
articulação
das
virtudes nos termos do republicanismo clássico, sendo que,
nesta teoria habermasiana, o bem comum é fragmentado em
múltiplos
bens
parciais.
Daí
deriva
o
caráter
dual
das
instituições da sociedade civil. Por um lado, elas visam
produzir novas demandas nas instituições do mercado e do
estado, funcionando como um instrumento para influenciar a
dinâmica
da
representação
dos
interesses
destas
instituições. Por outro lado, ela são auto-referenciadas na
constituição de intersubjetividades, buscando recuperar um
conceito de cidadania centrado na participação política.15
Como apontam Arato e Cohen, a consumação do primeiro
objetivo requer uma estrutura básica e mínima de direitos
fundamentais que garantam e estabilizem as instituições da
sociedade
civil.
Estes
direitos
caem
em
três
campos:
reprodução cultural (liberdades de pensamento, expressão,
imprensa,
(liberdade
e
comunicação
de
associação
em
e
geral),
integração
assembléia),
e
social
socialização
(proteção da privacidade, intimidade, e inviolabilidade da
pessoa). A consumação do segundo objetivo, por sua vez,
pressupõe
um
pluralismo
de
formas
de
vida
que
tem
a
capacidade e a vitalidade para constantemente renovar as
identidades instituídas na sociedade civil, e reproduzir por
conseguinte, sua autonomia perante o estado e o mercado.16
Mas, como reconhecem até mesmo aqueles que propõem esta
expansão da vida política para além do mercado e do estado,
a
capacidade
das
instituições
da
sociedade
civil
de
assegurar estes dois objetivos é limitada. Do ponto de vista
da
intervenção
nas
outras
esferas
da
vida
social,
as
instituições da sociedade civil podem no máximo influenciar,
15
Habermas 1996, p.369ff.
16
Arato e Cohen 1989, p.441.
23
nunca de fato de apoderar, dos processos decisórios dos
agentes do estado ou do mercado. Como estas instituições
nunca
adquirem
poder
político
ou
poder
econômico
propriamente ditos, sua ação social é mais efetiva no que
tange
a
transformação
das
próprias
identidade
que
as
constituem. É precisamente este caráter autoreferencial do
poder das instituições da sociedade civil que levou Arato e
Cohen
a
definirem
os
projetos
delas
como
utopias
auto-
limitadas.17
O horizonte normativo sobre o qual Habermas e seus
seguidores sobrepõem a teoria da reemergência da sociedade
civil
consiste
de
uma
reconstrução
wittgensteiniana
dos
conceitos kantianos do “reino dos fins” e do “imperativo
categórico.” Para Kant, o reino dos fins é aquela situação
ideal
na
qual
o
imperativo
categórico
é
aceito
universalmente. A construção habermasiana da situação ideal
do discurso simula o reino dos fins kantiano na medida em
que
também
propõe
transcendentalização
dos
esta
situação
requisitos
como
necessários
uma
para
um
consenso racional.
Existe,
estes
dois
evidentemente,
modelos,
que
uma
diferença
consiste
no
crucial
fato
de
entre
que,
no
imperativo categórico de Kant, as condições para a validade
de leis morais e sua conversão em máximas éticas dependem de
um esforço de universalização de um indivíduo que se reduz a
examinar
isoladamente
se
outros
indivíduos
racionalmente
desejariam as mesmas leis. Já no modelo habermasiano, as
condições para a universalização da validade de leis morais
depende de um diálogo efetivo entre os indivíduos, isto é,
da experiência intersubjetiva concreta. Para Kant, máximas
éticas são produzidas em um esforço especulativo da razão
17
idem.
24
prática movida por intenções; para Habermas, estas máximas
são produzidas em um esforço pragmático da razão prática
engajada
em
ação
comunicativa.
Logo,
Habermas
opera
uma
separação da vida ética do “eu” moral e da vida moral do
“eu” espontâneo que é análoga à separação entre legalidade e
moralidade
em
Kant.
O
horizonte
da
situação
ideal
de
discurso, que garante que as pessoas ajam comunicativamente,
e
não
estrategicamente,
performa
o
mesmo
papel
que
o
horizonte do reinos dos fins exerce no sentido de garantir a
universalidade e generalidade formais das leis do estado.18
Mas quem são os indivíduos da ação comunicativa? Quem
são os indivíduos morais (persona moralis simplex) da teoria
habermasiana?
Habermas
busca
uma
definição
dos
agentes
sociais de sua teoria da ação comunicativa na psicologia
social de G.H. Mead.19 De acordo com Mead, este indivíduo
moral
é
constituído
intersubjetivamente;
a
individuação
ocorre através da socialização. Nas interações sociais, o
“eu”
espontâneo (I)
percebe
em
contextos
funda
o
“eu”
comunicativos
moral
o
(me)
quando
significado
que
ele
os
outros atribuem às suas ações. Como aponta Bernstein (1995),
esta distinção é reminescente da clivagem entre amour-de-soi
e amour-propre em Rousseau. O primeiro termo designa a autoestima
natural
da
pessoa,
e
antecede
assim
qualquer
interação social; já o segundo termo equivale ao “eu” moral
de Mead, mediado pela sociabilidade e contendo, portanto, os
significados moralizados atribuídos à individualidade pelo
coletivo.
A concepção habermasiana das instituições da sociedade
civil
como
racionalizações
consequentemente,
um
duplo
18
Cf. Thomas McCarthy 1992.
19
Habermas 1992.
do
mundo
movimento
da
na
vida
requer,
construção
de
25
intersubjetividades. Por um lado, quando o “eu” espontâneo
se projeta comunicativamente no coletivo em formação, ele
forma
o
seu
“eu”
moral;
por
outro
lado,
o
“eu”
moral
constituído dessa maneira identifica as normas do coletivo
instituído como sendo normas autoimpostas, já que aquele
“eu” moral resultou do próprio processo de instituição do
coletivo.
Eis como surge o princípio de identidade coletiva
que opera nas instituições da sociedade civil.
Podemos identificar três problemas quando analisamos as
mudanças
conceituais
perpetradas
pelos
teóricos
da
reemergência da sociedade civil. Primeiro, a recuperação da
linguagem
do
republicanismo
clássico
através
da
tríade
conceitual estado/mercado/sociedade civil engendra somente
uma proliferação de personae moralis compositae para além do
estado.
Neste
instituições
modelo
da
tripartite,
sociedade
civil
na
medida
buscam
em
que
influenciar
as
a
dinâmica do poder na esfera do estado ou do mercado, elas
precisam se representar como articulações de interesses, e
não das virtudes que definem sua identidade intersubjetiva.
Por conseguinte, ao abdicar de uma concepção unificada do
bem comum em favor de utopias auto-limitadas e, portanto,
fragmentadas,
reproduzem
o
estas
modelo
instituições
implícito
na
em
última
linguagem
da
instância
economia
política, na qual a articulação dos interesses é o fator
constitutivo
das
personae
moralis
compositae.
Elas
não
superam, consequentemente, o modelo pluralista de democracia
que resultou do império daquela linguagem.
Segundo, como apontou Sousa Santos (1995), na versão do
discurso
dominante,
a
reemergência
da
sociedade
civil
resulta apenas em um “reajustamento estrutural” das funções
do welfare state, no qual a juridificação das questões do
mundo da vida e a intervenção do estado em sua gerência é
parcialmente substituída por um intervencionismo bicéfalo,
26
mais autoritário face aos subalternos, e mais diligente no
atendimento
das
exigências
dos
dominantes.
Mesmo
que
o
núcleo genuíno desta reemergência da sociedade civil tenha
em
mente
a
reafirmação
de
valores
de
autogoverno
e
de
utopias auto-limitadas, esse núcleo tende a ser omitido no
discurso dominante.20
Finalmente, da mesma maneira com que as pessoas se
representam como indivíduos morais para formar o estado na
linguagens da filosofia política moderna, na linguagem da
teoria da ação comunicativa, as pessoas se representam como
indivíduos morais para formar as instituições da sociedade
civil. Esta persistência do imperativo da representação na
teoria habermasiana fica evidente quando posta a luz do
referencial
kantiano
que
a
orienta.
O
fato
de
que
os
indivíduos morais são constituídos intersubjetivamente não
contorna o imperativo da representação porque participação,
definida
desta
maneira,
não
constitui
nada
mais
do
que
representação, não no sentido de governo representativo, ao
qual o termo evidentemente se opõe, mas no sentido dado ao
termo no “imperativo da representação”: participar é somente
se representar. A teoria habermasiana ainda depende de um
momento
artificial
no
qual
o
“eu”
espontâneo
(persona
naturalis) converte-se em um “eu” moral (persona moralis
simplex), e é somente este último quem participa da formação
e reprodução das instituições da sociedade civil.
5) Conclusão
O imperativo da representação opera de diversas formas
nos
momentos
da
história
das
linguagens
da
filosofia
política moderna discutidos até aqui: funda uma nova teoria
20
Sousa Santos 1995, p.124.
27
da
legitimação
pelo
consentimento
na
linguagem
do
aristotelismo tomista do começo da era moderna, causa uma
expansão
do
universo
daqueles
que
se
representam
como
indivíduos morais na linguagem do republicanismo clássico
que
permeia
o
contratualismo,
restringe
a
esfera
representada à um mercado de articulação dos interesses na
linguagem
da
economia
política
e,
por
fim,
permite
a
universalização do indivíduo moral nas grandes sínteses do
século dezenove.
O principal desafio da filosofia política contemporânea
consiste
em
encontrar
uma
alternativa
ao
império
da
articulação de interesses sob os instrumentos da democracia
representativa,
tal
qual
definida
na
reinterpretação
schumpeteriana da linguagem da economia política. A solução
lingüística
para
esta
crise
proposta
pelos
teóricos
da
reemergência da sociedade civil – a transformação do par
conceitual
estado/mercado
civil/mercado
–
defende
em
uma
uma
tríade
estado/sociedade
ampliação
dos
institucionais de participação política.
mecanismos
No entanto, na
medida em que a relação das instituições da sociedade civil
para
com
o
Estado
permanecem
definidas
em
termos
de
articulação de interesses, permanecemos sob o império da
linguagem da economia política e da síntese schumpeteriana
que a sustenta hoje em dia. As instituições da sociedade
civil não resolvem o problema da reconstrução de uma esfera
de
articulacão
das
virtudes.
Ou
seja,
o
imperativo
da
representação sobrevive até mesmo na teoria habermasiana.
A contribuição que espero que este trabalho tenha feito
é ilustrar a importância de voltarmos nossa atenção para as
linguagens da filosofia política que justificam as práticas
políticas
de
agentes
sociais
se
processos de transformação social.
modernidade,
esta
crise
é
desejamos
Se
compreender
vivemos uma crise da
fundamentalmente
uma
crise
28
lingüística, resultado de um esgotamento das linguagens da
filosofia
política
moderna.
Em
particular,
esta
crise
é
resultado da perenidade daquilo que chamei de “o imperativo
da representação”, um elemento comum à sintaxe de todas
aquelas linguagens e aos pares conceituais que as sustentam.
Como notou Ortega y Gasset, o caminho da modernidade é
como uma prisão elástica, que se alarga sem nos libertar.
Por
mais
que
modernidade
muitos
está
tentem
próxima
de
nos
seu
persuadir
fim,
na
de
medida
que
em
a
que
continuamos presos às linguagens de sua filosofia política,
e ao imperativo da representação que as permeia, continuamos
vivendo a modernidade. Ainda não aprendemos nenhuma nova
maneira de fazer política que não seja nos representando
como persona moralis simplex, isto é, como indivíduos, e
construindo persona moralis composita, isto é, corpos morais
e coletivos que nos representem e que nos permitam exercer
nossa autonomia. Nesse sentido, a crise da modernidade é uma
crise lingüística que cristaliza o quão elástica é esta
prisão em que nos acostumamos a viver. Seremos modernos
enquanto
falarmos
as
linguagens
da
filosofia
política
moderna. E só aprenderemos a falar novas linguagens quando
entendermos
que
a
transformação
social
é
um
processo
histórico propulsionado não somente por subjetividades, mas
também por conceitos que periodicamente renovam as formas de
justificação e legitimação das instituições políticas.
29
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