Mudança Conceitual, Transformação Social, e a Filosofia Política da Modernidade* José Eisenberg (UFMG) * Trabalho apresentado no XXII Encontro Anual da ANPOCS em Caxambu, 27 a 31 de Outubro de 1998. 2 “A fé na cultura moderna era triste: era saber que amanhã ia ser em todo o essencial igual a hoje, que o progresso consistia só em avançar com todos os sempres sobre um caminho idêntico ao que já estava sob nossos pés. Um caminho assim é a bem dizer uma prisão que, elástica, se alarga sem nos libertar.” (J. Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas) 3 1) Linguagem, Mudança Conceitual e Transformação Social O objetivo deste trabalho é fazer uma análise sintética da filosofia política da modernidade para mostrar como a transformação social é um processo histórico propulsionado não somente por subjetividades (sejam elas coletivas ou individuais), mas também por conceitos que periodicamente renovam as formas de justificação e legitimação das instituições políticas. Mostrarei que, se vivemos uma crise da modernidade, esta crise é fundamentalmente uma crise lingüística, isto é, uma crise originária no esgotamento das linguagens da filosofia política moderna. Presos a dicotomias conceituais tais como Público e Privado, Estado e Sociedade Civil, e Estado e Mercado, tornamo-nos incapazes de gerar discursos inovadores que produzam novas maneiras de instaurar, legitimar e justificar as instituições políticas. Nas últimas três décadas, uma nova metodologia para o estudo da história da filosofia política desenvolveu-se ao redor da expressão "as linguagens da teoria política.” Inaugurada por Quentin Skinner e J.G.A. Pocock, esta metodologia se tornou um modo difundido de analisar tratados de teoria política no contexto histórico no qual eles foram escritos, e em relação às práticas retóricas das quais eles emergem.1 Os significados dos argumentos apresentados nestes tratados, argumentam Skinner e Pocock, não podem ser interpretados sem levar em conta o desempenho que estes argumentos requerem. Por um lado, textos de teoria política são escritos em um certo momento da vida do autor, e assim a intenção do autor é parte necessária desta interpretação. Por outro lado, não se pode interpretar aqueles significados sem referência à posição social que o autor ocupa em relação a sua audiência, e sem referência às linguagens da teoria Cf. a extensa lista de publicações da série da Cambridge University Press entitulada ‘Ideas in Context.’ 1 4 política com as quais o autor e sua audiência interpretam os eventos históricos de seu tempo. Este historicismo da metodologia proposta por Skinner e Pocock produz um contextualismo baseado na dimensão performativa de teorias e conceitos políticos, conduzindo a uma valiosa ênfase nas conexões entre as linguagens (ou idiomas) da política que constituem o contexto do autor, e as mudanças conceituais que ele realiza na sua obra. Skinner e Pocock fundamentam sua metodologia na filosofia da linguagem wittgensteiniana proposta por J.L. Austin nos meados deste século. De acordo com Austin, a validade de toda assertiva (speech-act) depende não somente dos significados contidos na própria locução, resultado de uma articulação entre a semântica e a sintaxe da proposição proferida, mas também de significados implícitos que estão para além da proposição proferida. Assim, por exemplo, a validade (e, consequentemente, o significado) da sentença “Eu ordeno que você não saia daqui”, depende não somente do significado da oração coordenada “Eu ordeno” e do significado da oração subordinada “que você não saia daqui”, mas também da posição social relativa dos interlocutores, que confere (ou não) autoridade àquele que ordena para proferir tal comando. Ou seja, quando um filho profere esta assertiva para seu pai, ela tem validade e significado diferentes de quando um pai a profere ao seu filho. Portanto, concluem Skinner e Pocock, entender a validade e significado de filosofias políticas requer mais do que uma simples interpretação hermenêutica dos textos; tal compreensão requer também uma análise do contexto social e lingüístico no qual o texto foi produzido. Autores trabalhando sob este novo paradigma têm freqüentemente apontado para a importância de se analisar a constituição política da linguagem, e dado uma ênfase historicista à importância da transformação social para a consumação de mudanças conceituais na filosofia política. Ou seja, estes autores têm buscado uma contextualização da filosofia política nos processos históricos das quais elas emergem, inserindo a biografia de filósofos e o momento 5 da produção de seus tratados no palco dos conflitos políticos de sua época. 2 Como aponta James Farr (1989), o enfoque metodológico prescrito por Skinner e Pocock exige, no entanto, que olhemos também para a constituição lingüística da política, isto é, para como as linguagens da filosofia política e as mudanças conceituais nelas impetradas estruturaram as práticas justificatórias necessariamente articuladas às instituições políticas. Em suma, se a linguagem é historicamente condicionada, a história também é linguisticamente condicionada.3 Em particular, a compreensão de mudanças conceituais requer um mapeamento de como as substituições e/ou transformações de conceitos contidas em textos de filosofia política foram produzidas. Em geral, tais mudanças ocorrem no seio de práticas discursivas que antecedem a sua aparição em textos teóricos: ...Mudança conceitual [conceptual change] deve ser entendida como um dos possíveis resultados criativos do processo pelo qual atores políticos buscam solucionar os problemas que eles enfrentam ao tentar entender e transformar o mundo ao seu redor... Teorias, por outro lado, devem ser entendidas como tentativas intencionais e racionais de resolver problemas práticos e especulativos gerados pela interação entre convicções, ações e práticas políticas.4 Assim, geralmente são atores políticos, e não teóricos, que mudam conceitos quando agem em determinados contextos institucionais. Estes atores precisam explicar por que eles escolheram proceder de 2 Ver Skinner 1969, Pocock 1971. 3 Ver Kosseleck 1989, p.649. Farr 1989, p.33. O termo “mudança conceitual” é mais abrangente e adequado que o termo “transformação conceitual” já que frequentemente mudanças conceituais resultam de processos de substituição de um conceito por outro, sem que incorra sobre estes nenhum tipo de transformação. Assim, mudança conceitual abrange tanto transformações conceituais (i.e., mudança interna na semântica de um conceito), quanto substituições (i.e., a simples substituição de um conceito por outro). 4 6 uma maneira ou de outra e, neste processo, justificam por que escolheram se afastar de certas teorias políticas, e as razões que os levaram a adaptar tais teorias aos problemas práticos que enfrentam. Se queremos interpretar teorias como práticas discursivas, portanto, temos que compreender a conexão entre elas e as práticas discursivas onde mudanças conceituais geralmente acontecem, isto é, práticas de justificação.5 Esta diferenciação entre a produção de pensamento político sistemático, e as práticas de justificação que precedem esforços filosóficos de sistematização não implica em ignorar os momentos criativo de teóricos, que freqüentemente inovam o pensamento político em seus tratados. Ela exige, porém, que busquemos respostas para perguntas sobre a gênese destas mudanças conceituais nas práticas de justificação que permeiam a vida das instituições políticas. As unidades de significado que compõem tanto o todo de uma teoria quanto as práticas de justificação são motivos atribuídos por atores para suas ações políticas. São raras as ocasiões nas quais atores políticos podem escolher permanecer calados após agirem, e não apresentar os motivos que os levaram a determinadas escolhas. Às vezes, estas justificações assumem a forma de desculpas (escusas) para interesses; outras vezes, elas assumem a forma de máximas morais derivadas de visão de mundo. O que sempre separa ação política de outras formas de ação social, no entanto‚ é o imperativo de justificação. Justificação pode então ser definida como a assertiva que todo ator político tem que proferir para atribuir motivos para suas ações políticas e/ou decisões institucionais, especialmente quando estes motivos representam um distanciamento ou uma modificação dos modos de justificação estabelecidos pelas teorias políticas vigentes num determinado contexto. Esta necessidade da justificação é a razão central pela qual a interpretação da transformação social exige uma compreensão de Para uma interpretação diferente mas convergente deste conceito de justificação, veja Habermas 1993, cap.1. 5 7 mudanças conceituais. A fundação, reprodução e transformação de instituições políticas sempre exige práticas de justificação, e as mudanças conceituais que permeiam estas práticas não são somente um resultado do processo de transformação social, mas são freqüentemente sua causa. As linguagens da filosofia política também são agentes da transformação social. 2) As Linguagens da Filosofia Política da Modernidade De acordo com Anthony Pagden (1987), três linguagens fundamentais pontuam a filosofia política no começo da modernidade. A primeira destas linguagens surge com o aristotelismo da escola tomista que ficou conhecida como a seconda scholastica, e é a referência para o desenvolvimento de boa parte do pensamento jurídico de Grotius a Pufendorf. Partindo da linguagem do direito natural de S.Tomás de Aquino, este aristotelismo foi o pilar da doutrina jurídica do estado moderno, tornando-se o principal alvo teórico dos humanistas do século XVI e dos contratualistas dos dois séculos subsequentes. A crítica a esta doutrina jurídica estava fundamentada em uma segunda linguagem centrada em uma recuperação do republicanismo clássico. Inspirados pelas obras de moralistas e historiadores romanos tais como Lívio, Sêneca, e Cícero, filósofos dos mais diversos de Maquiavel a Rousseau trocam a preocupação dos jusnaturalistas com a ordenação racional das leis por um enfoque no problema da prática da política. Colocando os conceitos de virtude e liberdade no centro da reflexão, estes autores escolhem como eixos para a filosofia política o problema da ação política dos governantes e o problema dos mecanismos de legitimação daquela ação junto à sociedade. A terceira linguagem da filosofia política da modernidade é a linguagem da economia política. Fundamentada na justificação da sociedade mercantil emergente, esta linguagem produz uma interpretação funcionalista do estado, na qual o seu principal 8 objetivo é a reprodução e manutenção do sistema de produção vigente através de um sistema de administração racional da vida social. Para Mandeville e Adam Smith, entre outros, a sociedade civil é a esfera da articulação de interesses privados, não das virtudes cívicas, e ao estado cabe garantir o funcionamento de sua principal instituição: o mercado. Por fim, Pagden lista uma quarta linguagem, mais epistemológica do que propriamente política, que permeia as outras três.6 Uma das características fundamentais de boa parte do pensamento político moderno é a compreensão de a filosofia política é de certa forma um empreendimento “científico”. Ora interpretada como um sistema dedutivo, ora como uma ciência moral (phronesis), as linguagens da filosofia política moderna se libertam das correntes da justificação moralista de origem teológica-jurídica. Por um lado, a linguagem do direito natural vai se positivizando, e o procedimento ganha prioridade ontológica sobre a substância da graça e vontade divina. Por outro, a linguagem do republicanismo clássico fundamenta as virtudes e a legitimidade do exercício da autoridade na razão e na vontade geral da comunidade, buscando assim um fundamento moral na nova antropologia empírica do homem natural derivada dos encontros do novo mundo. Por fim, a linguagem da economia política, ao reduzir a ação política à articulação de interesses privados, recusa qualquer moralização da política que não estivesse fundada na moralidade natural do mercado. Acima de tudo, foi esta convergência epistemológica das diversas linguagens da filosofia política moderna que permitiu o intenso diálogo entre elas e os diversos sincretismos teóricos que pontuaram aquele diálogo. Percebe-se, portanto, que apesar das diferentes apropriações que os “primeiros modernos” fazem das linguagens da Pagden lista quatro linguagens, mas a última destas linguagens – a da ciência da política – na verdade é um traço epistemológico comum às outras três. O estatuto epistemológico desta quarta linguagem nos induz a pensar que a lista de Pagden deveria se reduzir às três linguagens discutidas acima. 6 9 filosofia política medieval e antiga, as principais mudanças conceituais introduzidas pela filosofia política da modernidade resultaram de um processo convergente de secularização daquelas linguagens.7 Mas a convergência entre estas linguagens não se reduz a esta semelhança epistemológica e à dinâmica de secularização a ela associada. Uma análise das linguagens do aristotelismo tomista, do republicanismo clássico e da economia política mostra que elas também contém mecanismos de justificação convergentes. Apesar de terem sido aplicadas diferentemente nos contextos histórico-linguísticos em que foram utilizadas, estas linguagens têm como eixo pares conceituais – público/privado, estado/sociedade civil, estado/mercado – que expressam relações análogas. Em primeiro lugar, estes pares reproduzem um mesmo “imperativo da representação”, em que a participação na vida da comunidade depende da pessoa se re-presentar perante os outros membros da comunidade como persona através de artifícios retórico-jurídicos formalizados por instituições. Dessa maneira, este imperativo da representação impõe sobre as pessoas que elas separem o ‘eu’ das práticas cotidianas no mundo da vida (persona naturalis), do indivíduo das práticas institucionalizadas que integram a vida da comunidade política (persona moralis); isto é, o imperativo da representação implica em uma separação radical entre as práticas discursivas que constituem a vida cotidiana dos homens e as práticas institucionalizadas que constituem a sua vida ética.8 Em segundo lugar, estes pares conceituais dividem aquele universo das práticas institucionalizadas em duas esferas Os principais autores a traçarem este movimento conceitual de secularização são Schmitt (1985) e Blumenberg (1983). 7 Cf. Castoriadis 1991, p.144ff. Veja também O. Gierke (1958) para uma análise do desenvolvimento do conceito de persona ficta na teoria da corporações da Idade Média. 8 10 complementares que esgotam a vida da comunidade política. Na primeira esfera, as pessoas se representam como indivíduos (persona moralis simplex) articulando e adjudicando interesses e virtudes; na segunda, as pessoas criam uma representação coletiva de suas concepções do problema da autoridade política, e produzem uma pessoa moral coletiva (persona moralis composita), ou seja, um soberano. Esta divisão da vida ética dos homens em duas esferas, que já havia perturbado Rousseau, Hegel e Marx, manifesta-se de diferentes formas nos pares conceituais mencionados acima. Em todos eles, no entanto, a divisão entre a esfera da representação de interesses e virtudes, e a esfera da produção de uma representação coletiva esgota o universo das práticas institucionalizadas que constituem a vida política da comunidade e a vida ética de seus membros.9 A primeira versão destes pares conceituais modernos surge com a linguagem do aristotelismo tomista que serve de base para boa parte do jusnaturalismo moderno. Inspirada na dicotomia entre polis e oikos da doutrina aristotélica, esta linguagem empresta do direito romano os conceitos de público e privado (publicus/privatus). Todas as teorias modernas do direito natural (seconda scholastica seiscentista, Montesquieu, e especialmente os juristas protestantes de Grotius a Pufendorf) estão baseadas em uma separação radical entre as coisas que fazem parte da vida privada das pessoas, e aquelas que são comuns a elas (res publica). Para as coisas privadas, há o direito privado, governando as relações entre os homens livres; para as coisas públicas, há o direito público, preocupado fundamentalmente com as relações entre governantes e súditos. O imperativo da representação, nesse contexto, implica na utilização de uma categoria fundamental do direito privado (o conceito de dominium) como alicerce para a construção da persona do súdito (definido como proprietário de seus Os termos persona moralis simplex e persona moralis composita foram utilizados pela primeira vez por Pufendorf. Quando Rousseau descreve o soberano como “corpo moral e coletivo”, ele tinha em mente precisamente esta distinção jusnaturalista. 9 11 direitos individuais) e da persona da autoridade política (definida como dominium politicum). A linguagem do republicanismo clássico que permeia o contratualismo moderno, por outro lado, funda um novo par conceitual, estado/sociedade civil, cujo objetivo fundamental é legitimar a autoridade política (isto é, o estado) na articulação formal dos interesses daqueles que compõem a sociedade civil. Enquanto que na linguagem do aristotelismo tomista o imperativo da representação implica em um transporte do conceito de dominium do direito privado para o direito público, no contratualismo este imperativo implica na conversão do conceito mercantil do contrato em um instrumento de legitimação da sociedade civil e do estado. Através de uma operação que simula o contrato comercial do direito privado, os membros da sociedade civil são definidos pelos direitos naturais que elas transferem (ou não) a um soberano em troca da garantia de paz e estabilidade, assim como pelos direitos civis a eles concedidos pelo estado. Assim, na linguagem do republicanismo clássico, a persona moralis do cidadão substitue a persona moralis do súdito do aristotelismo tomista, e a persona moralis composita da autoridade política se converte em um resultado da negociação contratual entre os cidadãos. No aristotelismo tomista, a persona da autoridade política também é legitimada pelo consentimento dos súditos, mas as obrigações do rei e dos súditos não são limitadas por este fato; já na formulação do republicanismo clássico, o consentimento dos cidadãos é fator fundante e ao mesmo tempo limitante da persona da autoridade política. Por fim, a linguagem da economia política cria o par conceitual estado/mercado, através do qual a persona moralis do cidadão é substituída pela persona moralis do proprietário, e a esfera de suas interações é limitada à articulação de interesses. Dessa maneira, a instituição do mercado, originária na alta idade média, ascende no período moderno à posição de organizador das virtudes públicas, e a 12 persona da autoridade política é reduzida às funções de garantia de sua reprodução. Ao contrapor o mercado ao estado, portanto, a economia política minimiza a importância do problema da fundação e da limitação da autoridade política pelo consentimento humano, e reduz a sua existência às funções reguladoras e mantenedoras que garantem a reprodução do mercado. Vale lembrar que a convergência entre estas linguagens da filosofia política moderna ao redor do imperativo da representação e de seus pares respectivos não nos permite ignorar as importantes diferenças entre seus aparatos conceituais. Afinal, os pares conceituais que definem estas linguagens ocupam campos semânticos significativamente distintos. A convergência entre as linguagens argumentada acima não se estabelece nesse nível semântico; ela é uma convergência na operação sintática dos conceitos. Como demonstrado, eles têm funções semelhantes, definidas pelo imperativo da representação, que implica na separação da pessoa do mundo da vida (persona naturalis) do indivíduo moral que se representa nas interações políticas da sociedade (persona moralis simplex). Nas teorias modernas da legitimidade, é o consentimento daquelas pessoas que conseguem se representar como indíviduos morais que dá origem à autoridade política (persona moralis composita). Vale lembrar também que as linguagens da filosofia política moderna não atribuem a todas as pessoas a condição de persona moralis, vide por exemplo a exclusão dos escravos e das mulheres deste universo. Ao lidar somente com as pessoas que se representam (i.e., aqueles que adquirem a condição de persona moralis), estas linguagens negligenciam a pessoa da vida cotidiana (persona naturalis) em prol de suas representações em práticas discursivas institucionalizadas. As pessoas de que falam estas linguagens – o indivíduo moral – são possuidoras de direitos naturais, de propriedade, e de direitos políticos; mas sua condição de possuidoras de alguma coisa, na medida em que depende da sanção da autoridade política para ser legítima e reconhecida enquanto tal, permanece descolada da condição humana 13 propriamente dita, e do mundo da vida no qual esta condição se converte em experiência. É esta convergência das linguagens da filosofia política moderna que nos permite falar da “filosofia política da modernidade” no singular. Como vimos, o que caracteriza a filosofia política da modernidade é uma separação entre a vida cotidiana dos homens (o que Husserl e, depois Habermas, designaram como “mundo da vida” lebenswelt), e a forma com que estes se representam nas relações sociais mediadas por instituições. O problema que se coloca, consequentemente, em vista dos objetivos estabelecidos no começo deste artigo, é verificar se há algum movimento de mudança conceitual a partir do século dezenove que justifique argumentos sobre o fim da modernidade? Existe algum projeto da filosofia política da modernidade que supere a unidade lingüística que a permeia? Marx, em uma frase do Dezoito Brumário tornada célebre pelo título de um livro de Marshall Berman, preconizou que “tudo que é sólido desmancha no ar.” Como veremos nas duas sessões a seguir, no entanto, o que é sólido nem sempre desmancha no ar. 14 3) O Governo Representativo e a Síntese das Linguagens da Filosofia Política no Século XIX A virada para o século dezenove é um período de tentativas de síntese das linguagens da filosofia política moderna. No idealismo alemão de Kant a Hegel, vemos uma síntese do jusnaturalismo e do republicanismo clássico que busca universalizar a representação dos homens em persona moralis, fundando a moral na razão natural, e ao mesmo tempo fundando o estado numa moral universal resultante desta razão. Tanto para Kant quanto para Hegel, é somente na medida em que todos os homens representam-se na forma de persona moralis que se torna possível deduzir um conjunto mínimo de interesses e de virtudes universalizáveis. Desta solução deontológica para o imperativo da representação, surge um liberalismo emancipado das categorias da economia política, e que funda a legitimidade do estado (persona moralis composita) na moralidade universalizante do procedimento formal, no caso do imperativo categórico kantiano, ou numa razão de estado fundada na vida ética dos cidadãos (Sittlichkeit), no caso da dialética hegeliana. Marx, por outro lado, historiciza a interpretação do imperativo da representação na linguagem da economia política. Ele critica aquela linguagem por definir um produto específico e contingente da modernidade e do avanço da sociedade de mercado – o proprietário – como sendo o indivíduo moral universal. Para Marx, a linguagem do republicanismo clássico, da maneira como havia sido apropriada pelos contratualistas, apenas justifica a formação da autoridade segundo o modelo da economia política, dando a ela uma ilusória impressão de universalidade. Através desta síntese crítica das linguagens do republicanismo clássico e da economia política, Marx busca definir um projeto de emancipação humana baseado na superação do homem enquanto cidadão e na recuperação do homem enquanto homem, que na linguagem marxista ainda guarda semelhanças com o indivíduo moral da linguagem da economia política, já que também situa-se no horizonte de uma 15 moralidade do trabalho. Interessante notar, portanto, que enquanto que as sínteses das linguagens da filosofia política moderna em Kant e Hegel buscam converter o indivíduo moral do republicanismo clássico (o cidadão) na categoria central para uma reconstrução do jusnaturalismo, a síntese de Marx quer transformá-lo na categoria central de uma reconstrução crítica da economia política. Sob o ponto de vista do “imperativo da representação”, o evento mais significativo do século dezenove é a emergência do governo representativo como solução prática para a institucionalização efetiva da autoridade política enquanto persona moralis composita. Enquanto que a universalização do indivíduo moral na Europa foi um processo de transformação social gradual que só é concluído no começo deste século com a extensão do voto feminino, uma operacionalização formal do imperativo da representação para a constituição da autoridade política é formulada ainda no século dezenove. Stuart Mill, por exemplo, argumenta que o ideal é quando todos os indivíduos morais participam da administração, mas a impossibilidade prática desta solução para nações grandes implica que o governo representativo é a melhor maneira de organizar o poder. É importante lembrar que não é o avanço da democracia que caracteriza este movimento de mudança conceitual no século dezenove. Assim como a universalização do indivíduo moral, o avanço da democracia foi o resultado de transformações sociais que têm raízes em lutas sociais concretas de ampliação da esfera de representação dos indivíduos morais. Afinal, a democracia já era um regime conhecido desde o começo da modernidade; na tipologia clássica das formas de governo, o governo de muitos sempre foi considerado uma opção em contraste como o governo de poucos ou de um só. Na medida em que ao longo do período moderno apenas uma parcela das pessoas representa-se como persona moralis, a escolha da melhor forma de governo esteve sempre vinculada a critérios de eficácia administrativa, e não argumentos morais. A democracia representativa passa a ser um imperativo formal na formação da autoridade política (persona moralis 16 composita) somente depois da universalização do indivíduo moral no começo deste século, e das mudanças conceituais que levam a consolidação do governo representativo. Com o advento do governo representativo no século dezenove, surge a necessidade de redefinir o indivíduo moral do republicanismo clássico, já que a possibilidade do exercício da cidadania depende da pessoa do mundo da vida estar preparada para o exercício do voto. Como resposta a este problema, surge no final do século dezenove aquilo que ficou conhecido como o liberalismo social inglês, por um lado, e por outro, a social democracia. Inspirados por Stuart Mill, liberais ingleses tais como Hobhouse e T.H. Green já demonstram uma preocupação com a lógica interna do imperativo da representação: para que a pessoa do mundo da vida se represente como indivíduo moral, é necessário que ela tenha condições materiais mínimas para o exercício da liberdade qua cidadania. Concomitantemente, o advento do governo representativo tem um efeito semelhante sobre o marxismo, ainda que inverso. O avanço da social democracia no final do século dezenove está diretamente vinculada a uma crescente confiança nos círculos marxistas na possibilidade do proletariado chegar ao poder através dos mecanismos institucionais de representação política. Neste contexto, as teorias do welfare state do século vinte aparecem como uma grande síntese das linguagens do republicanismo clássico e da economia política que acomoda, ao mesmo tempo, tanto liberais quanto marxistas. As relações sociais ancoradas na estrutura de classe são juridificadas e a autoridade política, enquanto persona moralis composita, apesar de ainda interpretada como resultado da articulação dos indivíduos morais, passa a ter funções na administração do mundo da vida.10 Esta ampliação das obrigações da autoridade política para com a organização do mundo da vida e com as condições materiais para o exercício da cidadania é o objeto da crítica de Weber (1978) na Sociologia do Direito, segundo o qual esta ampliação levou a uma excessiva juridificação e invasão de reivindicações substantivas na esfera do direito público. Para ele, este processo implica em uma 10 17 4) A Reemergência da Sociedade Civil: As Linguagens da Filosofia Política Contemporânea e a Crise da Modernidade A conseqüência mais imediata da consolidação do governo representativo e do welfare state é o estabelecimento de uma hegemonia ao redor do par conceitual proveniente da economia política Estado/mercado. Sustentada por uma justificação schumpeteriana baseada na convergência teórica entre os mecanismos competitivos de formação da vontade geral no sistema partidário, e os mecanismos competitivos de alocação de recursos no mercado, a democracia representativa se torna o veículo de articulação dos interesses privados dos agentes do mercado, relegando para um segundo plano, portanto, a articulação e representação das virtudes que caracteriza o conceito de cidadania derivado do republicanismo clássico. Logo após a segunda guerra, as teorias da democracia encontram-se imersas em um paradigma pluralista que advoga o valor normativo da democracia como processo institucional de formação da persona moralis composita, mas que reduz este processo à articulação dos interesses de persona moralis simplex definidos nos termos estabelecidos pela linguagem da economia política. De acordo com aquele paradigma, uma sociedade mercantil, complexa e plural, em que a dinâmica fundamental da política está voltada para a acomodação de interesses divergentes, requer os mecanismos formais da democracia representativa para a produção de consensos. Verifica-se, portanto, uma importante rearticulação da filosofia política da modernidade neste século. Alterados pelos movimentos de síntese do século dezenove, os pares conceituais público/privado, estado/sociedade civil e estado/mercado ganham novas conotações. Em primeiro lugar, ocorre um desmantelamento das fronteiras entre público e privado que definiam a linguagem do crescente perda de legitimidade do procedimento formal. 18 aristotelismo tomista. O conceito jurídico de público perde o seu sentido mais imediato na medida em que inúmeras demandas tradicionalmente vinculadas ao direito privado passam a ser objeto da gerência da autoridade política sob o welfare state.11 Em segundo lugar, na medida em que se universaliza o imperativo da representação e toda pessoa passa a ter um indivíduo moral correspondente, o conceito de sociedade civil do republicanismo clássico, definido como a esfera da articulação das virtudes e dos interesses do cidadão, torna-se efetivamente a esfera da articulação dos interesses das pessoas que habitam o mundo da vida. Estas mudanças conceituais associadas aos termos “público” e “sociedade civil” são, sem dúvida, as mudanças conceituais mais importantes nas linguagens da filosofia política deste século. Partindo de uma crítica da razão funcionalista, e tendo como referência os trabalhos de Habermas, um grupo de intelectuais vem buscando reconstruir estes conceitos de sociedade civil e de esfera pública com o objetivo de substituir o par conceitual estado/mercado, por uma tríade – estado/sociedade civil/mercado – que permita compreender a proliferação contemporânea de persona moralis composita para além do estado. De acordo com estes autores, entre os quais destacam-se Andrew Arato e Jean Cohen, estas novas instituições políticas recuperam uma dimensão da vida social relacionada ao exercício da cidadania, cujas funções de integração social e racionalização do mundo da vida não podem ser exercidas plenamente nem pelas instituições do estado nem pelo mercado. Dessa maneira, argumentam Arato e Cohen (1989), o conceito de sociedade civil deve ser reconstruído para designar o nível institucional do mundo da vida: este conceito incluiria todas as formas institucionais e associativas que requerem interação comunicativa para a sua reprodução e que se apoiam primordialmente em processos de integração social para coordenar ações dentro de seus limites.12 11 Habermas 1989. 12 Arato e Cohen 1989, p.429. 19 Ou, como define Habermas (1996), a sociedade civil é um complexo institucional composto de “conexões não-governamentais e não-econômicas e associações voluntárias que ancoram as estruturas comunicativas da esfera pública.”13 Na construção de uma crítica ao par conceitual estado/mercado que emerge como hegemônico nas linguagens da filosofia política deste século, Habermas e seus seguidores propõem que substituamos aquele par pela tríade estado/mercado/sociedade civil para abarcarmos analiticamente aquelas instituições sociais que não estão vinculadas ao estado e/ou ao mercado, isto é, outras personae moralis compositae que não o estado. A inspiração tocquevilleana deste conceito de sociedade civil é evidente. Assim como Tocqueville, aqueles que hoje defendem a importância de se valorizar as instituições e associações voluntárias da esfera pública têm em mente a produção de mecanismos que permitam proteger comunidades dos perigos do despotismo. É precisamente por este motivo que as transições democráticas da história recente de países da América Latina e da Europa Oriental e Austral são utilizadas para por estes autores como evidência empírica para a necessidade normativa de se valorizar este novo conceito de sociedade civil. A reemergência da sociedade civil é um fator determinante na democratização daqueles países.14 Este projeto habermasiano está associado, portanto, a um esforço de complementar as instituições da democracia representativa com mecanismos institucionalizados de participação política. Ao mesmo tempo em que o welfare state juridifica conflitos sociais provenientes do mercado, ele sepulta os espaços de articulação da virtudes em nome de um império dos interesses privados representados através dos mecanismos institucionais da democracia representativa. 13 Habermas 1996, p.366. Para uma discussão das transições democráticas na América Latina sob o ponto de vista da teoria habermasiana da reemergência da 14 20 A intersubjetividade e as funções de racionalização do mundo da vida associados ao conceito de sociedade civil buscam, nesse contexto, recriar uma esfera de articulação das virtudes nos termos do republicanismo clássico, sendo que, nesta teoria habermasiana, o bem comum é fragmentado em múltiplos bens parciais. Daí deriva o caráter dual das instituições da sociedade civil. Por um lado, elas visam produzir novas demandas nas instituições do mercado e do estado, funcionando como um instrumento para influenciar a dinâmica da representação dos interesses destas instituições. Por outro lado, ela são auto-referenciadas na constituição de intersubjetividades, buscando recuperar um conceito de cidadania centrado na participação política.15 Como apontam Arato e Cohen, a consumação do primeiro objetivo requer uma estrutura básica e mínima de direitos fundamentais que garantam e estabilizem as instituições da sociedade civil. Estes direitos caem em três campos: reprodução cultural (liberdades de pensamento, expressão, imprensa, e comunicação em geral), integração social (liberdade de associação e assembléia), e socialização (proteção da privacidade, intimidade, e inviolabilidade da pessoa). A consumação do segundo objetivo, por sua vez, pressupõe um pluralismo de formas de vida que tem a capacidade e a vitalidade para constantemente renovar as identidades instituídas na sociedade civil, e reproduzir por conseguinte, sua autonomia perante o estado e o mercado.16 Mas, como reconhecem até mesmo aqueles que propõem esta expansão da vida política para além do mercado e do estado, a capacidade das instituições da sociedade civil de assegurar estes dois objetivos é limitada. Do ponto de vista da intervenção nas outras esferas da vida social, as instituições da sociedade sociedade civil, veja Avritzer (1996). 15 Habermas 1996, p.369ff. 16 Arato e Cohen 1989, p.441. civil podem no máximo 21 influenciar, nunca de fato de apoderar, dos processos decisórios dos agentes do estado ou do mercado. Como estas instituições nunca adquirem poder político ou poder econômico propriamente ditos, sua ação social é mais efetiva no que tange a transformação das próprias identidade que as constituem. É precisamente este caráter autoreferencial do poder das instituições da sociedade civil que levou Arato e Cohen a definirem os projetos delas como utopias auto-limitadas.17 O horizonte normativo sobre o qual Habermas e seus seguidores sobrepõem a teoria da reemergência da sociedade civil consiste de uma reconstrução wittgensteiniana dos conceitos kantianos do “reino dos fins” e do “imperativo categórico.” Para Kant, o reino dos fins é aquela situação ideal na qual o imperativo categórico é aceito universalmente. A construção habermasiana da situação ideal do discurso simula o reino dos fins kantiano na medida em que também propõe esta situação como uma transcendentalização dos requisitos necessários para um consenso racional. Existe, evidentemente, uma diferença crucial entre estes dois modelos, que consiste no fato de que, no imperativo categórico de Kant, as condições para a validade de leis morais e sua conversão em máximas éticas dependem de um esforço de universalização de um indivíduo que se reduz a examinar isoladamente se outros indivíduos racionalmente desejariam as mesmas leis. Já no modelo habermasiano, as condições para a universalização da validade de leis morais depende de um diálogo efetivo entre os indivíduos, isto é, da experiência intersubjetiva concreta. Para Kant, máximas éticas são produzidas em um esforço especulativo da razão prática movida por intenções; para Habermas, estas máximas são produzidas em um esforço pragmático da razão prática engajada em ação comunicativa. Logo, Habermas opera uma separação da vida ética do “eu” moral e da vida moral do “eu” espontâneo que é análoga à separação entre legalidade e moralidade 17 idem. 22 em Kant. O horizonte da situação ideal de discurso, que garante que as pessoas ajam comunicativamente, e não estrategicamente, performa o mesmo papel que o horizonte do reinos dos fins exerce no sentido de garantir a universalidade e generalidade formais das leis do estado.18 Mas quem são os indivíduos da ação comunicativa? Quem são os indivíduos morais (persona moralis simplex) da teoria habermasiana? Habermas busca uma definição dos agentes sociais de sua teoria da ação comunicativa na psicologia social de G.H. Mead.19 De acordo com Mead, este indivíduo moral é constituído intersubjetivamente; a individuação ocorre através da socialização. Nas interações sociais, o “eu” espontâneo (I) funda o “eu” moral (me) quando ele percebe em contextos comunicativos o significado que os outros atribuem às suas ações. Como aponta Bernstein (1995), esta distinção é reminescente da clivagem entre amour-de-soi e amour-propre em Rousseau. O primeiro termo designa a auto-estima natural da pessoa, e antecede assim qualquer interação social; já o segundo termo equivale ao “eu” moral de Mead, mediado pela sociabilidade e contendo, portanto, os significados moralizados atribuídos à individualidade pelo coletivo. A concepção habermasiana das instituições da sociedade civil como racionalizações do mundo da vida requer, consequentemente, um duplo movimento na construção de intersubjetividades. Por um lado, quando o “eu” espontâneo se projeta comunicativamente no coletivo em formação, ele forma o seu “eu” moral; por outro lado, o “eu” moral constituído dessa maneira identifica as normas do coletivo instituído como sendo normas autoimpostas, já que aquele “eu” moral resultou do próprio processo de instituição do coletivo. Eis como surge o princípio de identidade coletiva que opera nas instituições da sociedade civil. 18 Cf. Thomas McCarthy 1992. 19 Habermas 1992. 23 Podemos identificar três problemas quando analisamos as mudanças conceituais perpetradas pelos teóricos da reemergência da sociedade civil. republicanismo Primeiro, clássico a recuperação através da da tríade linguagem do conceitual estado/mercado/sociedade civil engendra somente uma proliferação de personae moralis compositae para além do estado. Neste modelo tripartite, na medida em que as instituições da sociedade civil buscam influenciar a dinâmica do poder na esfera do estado ou do mercado, elas precisam se representar como articulações de interesses, e não das virtudes que definem sua identidade intersubjetiva. Por conseguinte, ao abdicar de uma concepção unificada do bem comum em favor de utopias auto-limitadas e, portanto, fragmentadas, estas instituições em última instância reproduzem o modelo implícito na linguagem da economia política, na qual a articulação dos interesses é o fator constitutivo das personae moralis compositae. Elas não superam, consequentemente, o modelo pluralista de democracia que resultou do império daquela linguagem. Segundo, como apontou Sousa Santos (1995), na versão do discurso dominante, a reemergência da sociedade civil resulta apenas em um “reajustamento estrutural” das funções do welfare state, no qual a juridificação das questões do mundo da vida e a intervenção do estado em sua gerência é parcialmente substituída por um intervencionismo bicéfalo, mais autoritário face aos subalternos, e mais diligente no atendimento das exigências dos dominantes. Mesmo que o núcleo genuíno desta reemergência da sociedade civil tenha em mente a reafirmação de valores de autogoverno e de utopias auto-limitadas, esse núcleo tende a ser omitido no discurso dominante.20 Finalmente, da mesma maneira com que as pessoas se representam como indivíduos morais para formar o estado na linguagens da filosofia política moderna, na linguagem da teoria da ação comunicativa, as pessoas se representam como indivíduos morais para formar as 20 Sousa Santos 1995, p.124. 24 instituições da sociedade civil. Esta persistência do imperativo da representação na teoria habermasiana fica evidente quando posta a luz do referencial kantiano que a orienta. O fato de que os indivíduos morais são constituídos intersubjetivamente não contorna o imperativo da representação porque participação, definida desta maneira, não constitui nada mais do que representação, não no sentido de governo representativo, ao qual o termo evidentemente se opõe, mas no sentido dado ao termo no “imperativo da representação”: participar é somente se representar. A teoria habermasiana ainda depende de um momento artificial no qual o “eu” espontâneo (persona naturalis) converte-se em um “eu” moral (persona moralis simplex), e é somente este último quem participa da formação e reprodução das instituições da sociedade civil. 5) Conclusão O imperativo da representação opera de diversas formas nos momentos da história das linguagens da filosofia política moderna discutidos até aqui: funda uma nova teoria da legitimação pelo consentimento na linguagem do aristotelismo tomista do começo da era moderna, causa uma expansão do universo daqueles que se representam como indivíduos morais na linguagem do republicanismo clássico que permeia o contratualismo, restringe a esfera representada à um mercado de articulação dos interesses na linguagem da economia política e, por fim, permite a universalização do indivíduo moral nas grandes sínteses do século dezenove. O principal desafio da filosofia política contemporânea consiste em encontrar uma alternativa ao império da articulação de interesses sob os instrumentos da democracia representativa, tal qual definida na reinterpretação schumpeteriana da linguagem da economia política. A solução lingüística para esta crise proposta pelos teóricos da reemergência da sociedade civil – a transformação do par conceitual estado/mercado em uma tríade estado/sociedade 25 civil/mercado – defende uma ampliação dos mecanismos institucionais de participação política. No entanto, na medida em que a relação das instituições da sociedade civil para com o Estado permanecem definidas em termos de articulação de interesses, permanecemos sob o império da linguagem da economia política e da síntese schumpeteriana que a sustenta hoje em dia. As instituições da sociedade civil não resolvem o problema da reconstrução de uma esfera de articulacão das virtudes. Ou seja, o imperativo da representação sobrevive até mesmo na teoria habermasiana. A contribuição que espero que este trabalho tenha feito é ilustrar a importância de voltarmos nossa atenção para as linguagens da filosofia política que justificam as práticas políticas de agentes sociais se desejamos compreender processos de transformação social. Se vivemos uma crise da modernidade, esta crise é fundamentalmente uma crise lingüística, resultado de um esgotamento das linguagens da filosofia política moderna. Em particular, esta crise é resultado da perenidade daquilo que chamei de “o imperativo da representação”, um elemento comum à sintaxe de todas aquelas linguagens e aos pares conceituais que as sustentam. Como notou Ortega y Gasset, o caminho da modernidade é como uma prisão elástica, que se alarga sem nos libertar. Por mais que muitos tentem nos persuadir de que a modernidade está próxima de seu fim, na medida em que continuamos presos às linguagens de sua filosofia política, e ao imperativo da representação que as permeia, continuamos vivendo a modernidade. Ainda não aprendemos nenhuma nova maneira de fazer política que não seja nos representando como persona moralis simplex, isto é, como indivíduos, e construindo persona moralis composita, isto é, corpos morais e coletivos que nos representem e que nos permitam exercer nossa autonomia. Nesse sentido, a crise da modernidade é uma crise lingüística que cristaliza o quão elástica é esta prisão em que nos acostumamos a viver. Seremos modernos enquanto falarmos as linguagens da filosofia política moderna. E só aprenderemos a falar novas linguagens quando 26 entendermos que a transformação social é um processo histórico propulsionado não somente por subjetividades, mas também por conceitos que periodicamente renovam as formas de justificação e legitimação das instituições políticas. 27 Referências: Arato, Andrew e Jean Cohen (1992), Civil Society and Political Theory, Cambridge, MIT Press. Avritzer, Leonardo (1996), Moralidade e Democracia, São Paulo e Belo Horizonte, Eds. Perspectiva e UFMG. Bernstein, J.M. (1995), Recovering Ethical Life: Jürgen Habermas and the future of Critical Theory, London and New York, Routledge. Blumenberg, Hans (1983), The Legitimacy of the Modern Age, Cambridge, MIT Press. Castoriadis, Cornelius (1991), Philosophy, Politics, Autonomy: Essays in Political Philosophy, Oxford, Oxford University Press. 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