Funções e relações gramaticais

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Prof. Sidney da S. Facundes, Ph.D. Teoria da Gramática, I100, Curso de Mestrado em Lingüística, UFPA................................. 12
Funções e relações gramaticais
PAPÉIS SEMÂNTICOS, PAPÉIS PRAGMÁTICOS E RELAÇÕES GRAMATICAIS
(Síntese dos principais pontos discutidos nos cap. 3 e 5 de Comrie 1989)
A discussão abaixo diz respeito ao número e tipo de SNs associados ao predicado.
Papéis semânticos
É sabido que as línguas variam quanto ao grau de correlação entre relações gramaticais (e.g. sujeito e
objeto) e papéis semânticos (e.g. agente, paciente, etc). Línguas como inglês e português, por exemplo,
apresentam pouca correlação entre relações gramaticais e papéis semânticos. Nos exemplos abaixo os
SN João/John, a chave/the key, a porta/the door, o vento/the wind são todos sujeitos do verbo
abriu/opened, mas cada um corresponde a um papel semântico distinto: agente (i.e. iniciador consciente
de uma ação) em (1/6), instrumento (i.e. o meio de executar a ação) em (2/7), paciente (i.e. o que está
em um estado ou sofre uma mudança de estado) em (3/8), e força em (4/9). De forma análoga,
João/John em (5/10) é sujeito do verbo viu/saw, mas se refere a um "experiencer" (i.e. aquele que é
capaz de sentir experiências sensoriais mas que não tem controle sobre essas experiências).
(1) João abriu a porta com a chave.
(6) John opened the door with the key.
(2) A chave abriu a porta.
(7) The key opened the door.
(3) A porta abriu.
(8) The door opened.
(4) O vento abriu a porta.
(9) The wind opened the door.
(5) João viu o menino..
(10) John saw the boy.
Papéis pragmáticos
Papéis pragmáticos podem ser compreendidos como as diferentes formas em que essencialmente a
mesma informação, ou o mesmo conteúdo semântico, pode ser estruturado de formas distintas para
refletir o fluxo de informações velhas e novas. A correlação entre relações gramaticais e papéis
pragmáticos também varia de acordo com a língua.
Em exemplos como (11a/12a) os interlocutores compartilham a informação de que alguém viu
Marcos, mas não de quem foi especificamente a pessoa que viu Marcos. Na pergunta em (11a/12a) é
exatamente a informação não compartilhada pelos interlocutores que é solicitada, sendo então fornecida
em (11b/12b) na forma do SN João/John.
(11) a. —Quem viu Marcos?
b. —[O João]FOC o viu.
(12) a. —Who saw Mark?
b. —[John]FOC saw him.
O nome dessa parte essencial da informação nova que é expressa por uma oração (João/John em
(11b/12b)) é geralmente chamada de foco (embora haja enorme variação quanto a essa terminologia).
Outra distinção importante pode ser ilustrada com os exemplos em (13/14). A pergunta em (13a/14a)
introduz o assunto sobre o que se conversará nos enunciados seguintes. Dessa forma, (13b/14b) seria
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uma resposta natural a (13a/14a), enquanto que (13b'/14b') seria uma resposta estranha, senão muito
pouco cooperativa.
(13) a. —... e que tal João?
(14) a. —... and what about John?
b. —[O João]TOP [continua viajando] COM.
??b'. —[O Sidi]TOP [continua viajando].
b. —[John]TOP [still is traveling]COM.
??b'. —[Sidi]TOP [still is traveling].
Exatamente esse assunto sobre do que trata a sentença é o que se convencionou chamar tópico
(sentencial), enquanto que o resto da sentença se convencionou chamar comentário.
Relações gramaticais
As descrições das línguas do mundo, em geral, atestam a existência de relações puramente sintáticas
contraídas entre o SN e o predicado de uma oração. Essas relações sintáticas são as relações
gramaticais (ou sintáticas). Embora as relações gramaticais apresentem alguma correlação com papéis
semânticos e pragmáticos (afinal, um sujeito típico tende a referir-se a um agente e a ser o tópico da
sentença), elas não podem ser identificadas ou reduzidas a estes. As relações gramaticais mais
comumente mencionadas nas descrições das línguas são subjeito, objeto direto e objeto indireto.
Relações gramaticais constituem uma das principais evidências de que a linguagem humana não se
restringe à semântica ou à pragmática (contrário ao que uma teoria lingüística ou outra ainda persiste em
pressupor). Isto é, não é possível explicar o fenômeno da linguagem humana sem mencionar a sintaxe,
embora seja verdade que parte da sintaxe somente possa ser compreendida a partir da semântica e
pragmática. Por exemplo, a natureza das relações gramaticais pode ser entendida em termos de sua
interação entre papéis semânticos e pragmáticos.
Contrário a teorias (como os diversos modelos gerativistas) que simplesmente pressupõem a
existência de relações gramaticais, a abordagem tipológica requer que cada relação gramatical sugerida
para uma língua seja motivada por evidências internas da língua que sejam logicamente independentes,
assim como por evidências translingüísticas. A seguir, a existência do sujeito é motivada para huichol.
Huichol (Uto-Azteca, México)
(a) Sufixos distintos nos SN:
(15) Tɨɨri
yɨnauka-tɨ
me-wa-zeiya
uukaraawicizɨ
crianças quatro-SUJ 3PL-3PL-ver mulheres
yɨhuuta-me.
duas
'Quatro crianças viram duas mulheres.'
(b) O SN provoca concordância de um grupo distinto de prefixos no verbo:
(16) Eekɨ
tu
pe-nua
2SG-chegar
'Tu chegaste.'
(c) SN exige o prefixo reflexivo possessivo yu- :
(17) Mɨɨkɨ
eles
yu-kiye-kɨ
me-pe-i-kuuwaazɨ
REFL-vara-INSTR 3PL-3SG-bater
'Elesi bateram nele com a vara delesi.'
Emillyi vendeu a casa delai/j mesma.
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Emillyi vendeu a sua própria casa.
A corretorai vendeu a casa delaj.
(d) Quando o sujeito de uma oração temporal é co-referencial ao sujeito da oração matriz, um sufixo
especial é adicionado ao verbo da oração temporal:
(18) Nee
eu
ne-nua-ka,
paapaa
ne-p-ii-ɨitɨ.
1SG-vir
tortilla
1SG-dar
'Quando eu cheguei, eu dei uma tortilla para ele.'
As quatro propriedades acima são claramente independentes, no entanto elas identificam um único
sintagma.
O objeto em huichol, por outro lado, pode ser motivado a partir de duas propriedades:
(a) SN provoca grupo distinto de prefixos de concordância no verbo:
(19) Taame
nós
eekɨ
te-meci-zeiya.
tu
1PL-2SG-ver
'Nós te vemos.'
(b) SN pode aparecer como sujeito da passiva :
(20) Tɨɨri
me-puutiweiya
crianças 3PL-bater-PASSIVA
'As crianças foram batidas.'
O fato é que o SN não-sujeito ilustrado em (19-20), apresenta características logicamente
independentes, corresponde (em grande parte) à relação gramatical denominada objeto (direto) em outras
línguas. Esse SN pode então ser considerado como um objeto (direto) em huichol.
Embora em huichol haja convergência de propriedades associadas com o SN sujeito e SN objeto,
nem sempre esse é o caso nas línguas do mundo, como veremos mais adiante ao discutirmos a tipologia
do sujeito.
Casos morfológicos
As relações gramaticais nem sempre estão intimamente associadas aos casos morfológicos (i.e. às
marcas de caso que consistem de formas morfológicas que ocorrem nos SN sujeito, SN objeto direto, SN
objeto indireto etc.). A palavra para 'boné' em russo nos exemplos abaixo leva o caso acusativo -u no
ex. (21a), mas a mesma palavra leva o caso genitivo -i em (21b). Em ambos os casos, a palavra para
'boné' é o objeto direto do verbo; a única diferença é que no primeiro caso a sentença é afirmativa,
enquanto que no segundo caso ela é negativa.
(21) a. Masa
kupila
sapku
'Masha comprou um boné'
b. Masa ne kupila
sapki
'Masha não comprou um boné'
Portanto, a marca morfológica nem sempre indica que um SN nominal tem o mesmo comportamento
sintático, ou vice-versa (já que outros exemplos de russo indicariam que ambas as formas sapku e sapki
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têm o mesmo comportamento sintático). Ou, generalizando o ponto, há casos em que a morfologia é
simplesmente arbitrária em relação à sintaxe.
Sujeito
Um primeiro ponto que é importante esclarecer sobre sujeito é que, como já dito na discussão acima,
embora exista uma tendência do SN sujeito se correlacionar com o SN agente e com o SN tópico de uma
sentença, em línguas onde a relação gramatical sujeito é bem marcada, esta não pode ser identificada
com o agente ou paciente, como os exemplos a baixo indicam:
(22) a. The men were hit by the boy.
'Os homens foram atingidos/batidos pelo garoto.'
b. John I know.
'O João eu conheço.'
Uma questão importante sobre sujeito diz respeito a sua definição e, por conseguinte, à identificação
de um SN como sujeito em uma determinada língua. Em línguas como o inglês há claramente critérios
convergentes que caracterizam um SN como sujeito, nomeadamente (i) a concordância em terceira
pessoa singular no presente do modo indicativo, como em (23a), e (ii) construções envolvendo "subjectto-object raising", onde o sujeito, e somente o sujeito, da oração subordinada pode aparecer, depois de
certos verbos, em uma construção alternativa como (23b'):
(23) a. Max is an accountant.
'Max é um contador.'
b. I believe that Max is an accountant.
'Eu acredito que Max é um contador.'
b'. I believe Max to be an accountant.
'Eu acredito ser Max um contador.'
Mesmo em inglês, contudo, há casos onde a identificação do sujeito, a partir de critérios que
funcionam em quase todos os tipos de sentenças, é problemática. Por exemplo, no caso de construções
introduzidas por there be, como aquelas ilustradas abaixo, a concordância indicaria que o SN unicorn(s)
seria o sujeito nas sentenças em (24a-b); entretanto, a sentença em (24c), envolvendo uma construção
com "subject-to-object raising", indicaria ser there o sujeito:
(24) a. There are unicorns in the garden.
'Há unicórnios no jardim.'
b. There is a unicorn in the garden
'Há um unicórnio no jardim.'
c. I believe there to be a unicorn/unicorns in the garden.
'Eu acredito haver um unicórnio/unicórnios no jardim.'
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Um exemplo particular onde lingüistas divergem quanto à identificação e definição do sujeito são
línguas ergativas, isto é, aquelas onde o "sujeito" de verbos transitivos é marcado com o caso ergativo,
enquanto que o "sujeito" de verbos intransitivos e o "objeto" de verbos transitivos são marcados com o
caso absolutivo. A questão é: se o SN "sujeito" do verbo intransitivo é marcado da mesma forma que o
SN "objeto" do verbo intransitivo, seriam eles sujeito ou objeto? A seguir, esse problema é ilustrado em
Chukchi:
(25) a. m
t-ɛr-ek.
eu-ABS veio-1SG
'Eu vim.'
b. m-nam t
'eu-ERG
vós-ABS
t-lu-t
vi-1SG-2SG
'Eu vi vós.'
Definição prototípica do sujeito: O protótipo do sujeito representa a intersecção entre o agente e o
tópico, i.e. os casos mais típicos de sujeito representados nas línguas do mundo são aqueles que são
agentes e também tópicos. Já que agente e tópico são noções que são logicamente independentes uma da
outra, é possível dizer que um SN é um sujeito até um certo grau.
Algumas evidências sintáticas do sujeito
(a) Coordenação de orações que compartilham um mesmo, onde um SN é omitido:
A V
P
(26) a. The man hit the woman
S
V
b. The man came here.
S
V
c.The woman came here.
A V P
V
(27) The man hit the woman and came here.
P
A
V
(27) a. Balan d ugumbil
bagul yarangu
balgan.
mulher-ABS
homem-ERG bateu
'O homem bateu na mulher.'
S
V
b. Bayi yara
baniyu.
homem-ABS veio-aqui
'O homem veio aqui.'
S
V
c. Balan dyugumbil
baniyu.
mulher-ABS veio-aqui
'O homem veio aqui.'
P
A
V
V
y
(28). Balan d ugumbil
bangul yaragu balgan, baninyu..
mulher-ABS
homem-ERG
veio-aqui
'O homem bateu na mulher, e a mulher veio aqui.'
y
(b) Passiva: Em um sentença com argumentos A e P é parafraseada de tal forma que P é realizado
como S e A como um oblíquo:
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(29) The woman was hit by the man.
(30) The woman was hit by the man and came here.
(c) Antipassive: Uma sentença como (27) é parafraseada de tal forma que 'o homem' aparece como
um argumento S, e 'a mulher' como um objeto oblíquo:
(31) Bayi yara
bagun
homem-ABS
dyugumbilgu balgalanyu.
mulher-DAT bateu-ANTIPASSIVA
'O homem bateu na mulher.'
(32) Bayi yara
baninyu, bagun dyugumbilgu balgalanyu.
homem-ABS veio-aqui
mulher-DAT bateu-ANTIPASSIVA
'O homem veio aqui e (ele) bateu na mulher.'
Tanto a voz passiva como a voz antipassiva acima ilustradas têm como função sintática redistribuir as
propriedades do sujeito: em inglês, possibilitando um SN que era P em uma sentença ter propriedades de
S em outra; em Dyirbal, possibilitando com que um SN que era A em um sentença ter propriedades de S
em outra.
Embora seja fácil, em geral, identificar o sujeito de verbos intransitivos, em verbos transitivos
podemos encontrar propriedades de sujeitos tanto no SN A, nesse caso tendo sintaxe nominativoacusativa, como no SN P, nesse caso tendo sintaxe ergativo-absolutiva. Algumas línguas mostram forte
preferência por construções nominativo-acusativas, como em inglês ou português, outras mostram forte
preferência por construções ergativo-absolutivas, como em Dyirbal, e há ainda aquelas que misturam os
dois tipos de construções, como em Chukchi.
Em Chukchi, as construções infinitivas funcionam com o padrão nominativo-acusativo, onde há a
omissão de S ou A do infinitivo, com o sufixo -()k:
(33) a. mnam t
tite
mvinrett
ermetvi-k..
eu-ABS tu-ABS algum.momento deixa-eu-ajuda-tu INFIN-crescer-forte
Deixa eu te ajudar a crescer forte.'
b. Mornam t
nós-ERG
tu-ABS
mtrevinrett
rivl-k
ml?o eceyot.
nós-will-help-tu INFIN-mover todos
'Nós te ajudaremos a mover todas a coisas ajuntadas.'
gathered-things-ABS
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