ouvidoafinado.

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OUVIDO AFINADO
TESTES REVELAM QUE AS PESSOAS SEM FORMAÇÃO MUSICAL
RECONHECEM UM ACORDE, UMA MELODIA INACABADA OU VARIAÇÕES
SOBRE UM TEMA TÃO BEM QUANTO UM MÚSICO PROFISSIONAL. A
MÚSICA SE INSTALARIA NO CÉREBRO SEM QUE NOS DÉSSEMOS CONTA.
Por Emmanuel Bigand
A importância das atividades musicais nas civilizações humanas testemunha um
paradoxo: a música é uma estrutura sonora complexa, sem função biológica precisa cujos
elementos de base não se referem a nenhum objeto ou acontecimento real. Segundo o
psicólogo Steven Pinker, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, a música não seria
nada além de “um cheesecake auditivo”, insignificante para a evolução da espécie e privada
de qualquer valor adaptável. Sendo assim, é provável que os recursos cerebrais ligados à
escuta da música sejam marginais em relação àqueles envolvidos nas funções “nobres” e
úteis, como a linguagem.
No entanto, é fato que essa maravilhosa “futilidade” tem efeitos consideráveis no
ser humano. Imagine-se o poder da música que consegue ao mesmo tempo acalmar bebês e
dar coragem aos soldados que partem para campos de batalha. Imagens cerebrais mostram
que certas zonas do cérebro são ativadas tanto pela música quanto por estímulos biológicos
fortes, como ingestão de alimento, consumo de drogas ou ainda relações sexuais. A música
pode também reduzir a ativação das áreas cerebrais implicadas em emoções negativas.
Como um estímulo artificial, que não desempenha papel biológico direto para a
sobrevivência, adaptação, nutrição, tampouco para a reprodução da espécie, é capaz de
produzir tamanho efeito no cérebro? Parece difícil dar conta do papel da música nas
sociedades humanas sem considerar que importantes redes neuronais lhe sejam concedidas.
Alguns neurobiólogos abordam essa questão recorrendo à análise anatômica do
cérebro de músicos – pessoas que tiveram formação profissional em música – e de não
músicos. Certamente, tais estudos revelam alterações anatômicas, mas devemos evitar a
armadilha de reduzir diferenças de aptidões musicais e simples diferenças anatômicas.
ANATOMIA E APTIDÕES MUSICAIS
Quais redes abrangem as capacidades musicais e como se formam? Diversos
pesquisadores invocam uma predisposição genética que promoveria especialização dos
circuitos de neurônios no processamento de sons e estruturas musicais. Segundo algumas
hipóteses, esses circuitos tomariam emprestadas vias neuronais que participam
especialmente do processamento da linguagem. Portanto, pode-se considerar que essas
redes se desenvolvem pelo efeito do aprendizado intensivo da música.
Com o auxílio de técnicas de mapeamento cerebral, várias equipes estudam as
consequências de uma longa formação musical, comparando as características anatômicas e
funcionais do cérebro de músicos e de não músicos. Aprender a tocar um instrumento
reorganiza diversas regiões cerebrais (as áreas motoras, corpo caloso e cerebelo), incluindo
aquelas diretamente envolvidas na percepção musical. Além disso, o cérebro do músico
também sofre ativações mais fortes no hemisfério esquerdo (o da linguagem). As
aparências parecem ainda mais significativas em pessoas que começaram a estudar música
na infância.
Esses trabalhos notáveis no plano metodológico esclarecem nossa compreensão da
plasticidade cerebral, pois demonstram que o cérebro se reorganiza em consequência de um
aprendizado intensivo. Contribuem também para compreendermos melhor os aspectos
benéficos do exercício musical em outras competências cognitivas (a memória, a resolução
de tarefas espaciais). Todavia, devemos evitar o desejo de associar a qualquer preço as
diferenças anatômicas à diferença de aptidão musical, para não correr o risco de ocultar o
essencial do que a música pode revelar sobre o funcionamento do cérebro humano.
A existência de diferenças anatômicas e funcionais é difícil de ser interpretada se
essas distinções não forem associadas a comportamentos relevantes para atividades
musicais. Além disso, a percepção da música não se reduz a identificar determinados
timbres instrumentais e apreciar pequenas variações de altura de um som. Ela implica
processamentos cognitivos de uma complexidade diferente se quisermos seguir o
desenvolvimento temático de uma sonata ou perceber ligações entre um tema e suas
variações. Esse processamento requer operações cognitivas abstratas que colocam em
atividade capacidades de atenção e memória, e operações de categorização e raciocínio.
Portanto, é bastante provável que uma prática instrumental intensa leve a reorganizações
neurológicas que diferenciem “cérebros músicos” e “cérebros não músicos” no plano
motor, sem com isso alterar os processos de percepção, com preensão e apreciação dos dois
grupos.
A SIMPLES ESCUTA DE COMPOSIÇÕES TONAIS TORNA MUSICALMENTE
EXPERIENTE UM OUVINTE SEM FORMAÇÃO EM MÚSICA
Com base na constatação de que existem muito mais similaridades que diferenças
entre os cérebros de músicos e de não músicos, postulamos que as redes neuronais postas
em jogo nas atividades musicais se desenvolvem mesmo na ausência de um aprendizado
intensivo. Em outras palavras, a simples escuta (e não a prática) basta para tornar o cérebro
“músico”.
A ideia de que um cérebro “não músico” possa ser expert no processamento das estruturas
musicais surpreende. Trata-se, no entanto, de uma conclusão apoiada em numerosos
estudos feitos sobre a aprendizagem implícita, isto é, aquela de que não temos consciência
(contrariamente à explícita, consciente).
Essas pesquisas demonstraram a extraordinária capacidade do cérebro de
interiorizar as estruturas complexas do ambiente, mesmo quando só estamos expostos a elas
de maneira passiva. Tal aprendizado implícito e inconsciente é fundamental para adaptação
e sobrevivência da espécie. Além disso, é observado em todos os domínios e foi adquirido
desde cedo no curso da evolução.
Os recém-nascidos passam por aprendizados de grande complexidade, tanto para a
linguagem quanto para a música: quando bebês de alguns meses ouvem uma melodia, eles
manifestam forte reação de surpresa no momento em que uma nota é substituída por uma
outra que infrinja as regras musicais. Os bebês denunciam a própria surpresa sugando o
seio mais rápido ou virando a cabeça para o lado de onde vem o som. Deduzimos que os
circuitos neuronais envolvidos nas atividades musicais se organizam bem antes e
independentemente de qualquer aprendizagem explícita da música.
É possível constatar também que uma rede de neurônios artificiais pode aprender de
maneira passiva as principais regras de harmonia tonal se expostas a sequências musicais
que obedecem às regras dessa harmonia. Em tal rede, um conjunto de neurônios ditos “de
entrada” recebe informações sobre as notas em forma de uma sequência de 0 e 1. A rede
“aprende” a identificar as configurações de notas que aparecem frequentemente juntas.
Assim acontece, por exemplo, com dó-mi-sol, que formam o acorde dó maior, muito
comum na música ocidental. A rede se habilita a ligar todas as notas às configurações
harmônicas possíveis no estilo da música apresentada. No caso da música ocidental tonal,
ela aprende as relações musicais possíveis entre as notas e os acordes, depois entre as notas,
os acordes e as tonalidades. Com isso, poderá simular as organizações musicais percebidas
pelos ouvintes familiarizados com esses sistemas musicais. Se uma rede artificial realiza
em algumas horas essa aprendizagem, por que uma rede natural de neurônios, mais
elaborada, não o faria também sendo exposta no cotidiano à música tonal? Por conseguinte,
a simples escuta da música ocidental tonal torna musicalmente experiente um ouvinte sem
formação em música.
O problema é saber se as aptidões musicais que se desenvolvem naturalmente
podem ser tão elaboradas quanto as dos músicos que seguiram um longo processo de
formação. Quando se conhece a potência dos mecanismos de aprendizagem implícita,
antecipa-se uma resposta positiva a essa questão. Para confirmá-la, comparamos as
competências dos ouvintes músicos, isto é, estudantes no final de cursos de conservatórios
nacionais e de estudantes da mesma idade sem formação musical.
PERFORMANCES EQUIVALENTES
Testamos diferentes aspectos da percepção musical: avaliamos se percebiam
relações entre um tema e variações sobre esse tema; se notavam diferenças entre as funções
tonais e harmônicas, se compreendiam substituições harmônicas (um acorde é substituído
por outro sem mudar a música); se observavam quando um trecho desenvolve um tema ou
não; se trechos musicais suscitavam as mesmas reações emocionais (os participantes
deveriam dizer se os consideravam tristes, alegres, elevados, intensos). Estudamos também
como percebiam estruturas musicais contemporâneas.
Para comparar esses ouvintes especializados àqueles sem formação, tomamos o
cuidado de afastar todo método que se apoiasse na utilização de termos específicos da
técnica musical ou sobre exercícios de escuta aos quais os músicos foram acostumados
durante seus estudos. Utilizamos métodos de psicologia experimental que avaliam as
aptidões musicais implícitas dos ouvintes.
Um deles é um método de incitação: explicamos aos participantes que iriam ouvir
um trecho musical cantado em fonemas (sílabas) artificiais desprovidos de sentido (para
que isso não influenciasse a resposta). Pedimos que indicassem o mais rapidamente
possível se o acorde que terminava a sequência musical era cantado no fonema /di/ ou /du/.
Focalizamos assim sua atenção nessa ordem e estudamos como a realização dessa tarefa era
perturbada pelo tipo de acorde apresentado no fim da sequência. A diferença de função
musical entre esses dois acordes é muito tênue e pensamos que apenas os músicos seriam
sensíveis a ela.
A ÁREA DE BROCA, NO LADO ESQUERDO DO CEREBRO, É RESPONSÁVEL
PELA LINGUAGEM VERBAL E POR PROCESSAR A SINTAXE DA MÚSICA
Embora a tarefa experimental não requeira absolutamente que se preste atenção à
música, mostramos que a rapidez da identificação do fonema dependia da função musical
do acorde: os tempos de identificação dos fonemas /di/ e /du/ mais curtos foram observados
para os acordes de tônica. Em outras palavras, embora os ouvintes estivessem atentos ao
fonema, reagiam com rapidez quando o acorde que o acompanhava era tônico, mais comum
na música ocidental. Ao contrário, quando o fonema correspondia a um acorde que não
havia sido antecipado inconscientemente, era porque o cérebro antecipara um acorde
correspondendo às regras musicais usuais.
EXPERT SEM SABER
O mesmo tipo de teste pode ser feito pedindo que os participantes decidam com a
maior rapidez possível se um acorde contém ou não uma nota dissonante, se as notas que o
constituem são tocadas juntas ou, ainda, se o acorde é tocado com um timbre de piano
elétrico ou de piano acústico. Vários estudos que realizamos mostraram que os ouvintes
adultos ocidentais são implicitamente sensíveis a tênues diferenças de funções musicais.
Além disso, o processamento cognitivo se efetua de forma bastante rápida, e as respostas
continuam idênticas mesmo quando a música é tocada em andamento acelerado.
As aptidões musicais dos ouvintes sem formação explícita se revelaram
surpreendentes em numerosos outros estudos, quaisquer que fossem os aspectos da
percepção que abordamos, e isso mesmo quando foram elaboradas situações experimentais
complexas concebidas para enganar seu ouvido musical.
Assim, num outro tipo de experimento, apresentamos peças musicais (melodias ou
sequências de acordes) que interrompíamos ao acaso; os participantes deviam avaliar numa
escala de 1º a 7º grau de acabamento da melodia no momento da parada. Esse método
permite avaliar a precisão com a qual o ouvinte segue o desenrolar de um trecho cuja
complexidade fizemos variar. Pensávamos encontrar diferenças evidentes entre ouvintes
profissionais e iniciantes. Mas os resultados dos dois grupos foram igualmente bons,
inclusive quando as peças testadas eram complexas (como um prelúdio em mi maior de
Chopin).
Nossos resultados estão de acordo com as conclusões de vários estudos
neuropsicológicos recentes, em que a gravação dos potenciais evocados (mede-se a corrente
elétrica na superfície do crânio dos pacientes) revela a presença de picos anormais quando
músicos e não músicos ouvem acordes impróprios no contexto musical. Estudos realizados
com técnicas de mapeamento cerebral sugerem também que a área de Broca, conhecida por
seu papel no processamento da linguagem verbal, é muito ativa no processamento das
estruturas sintáticas musicais, inclusive em ouvintes não músicos. Isso mostra que os
músicos não são os únicos a usar as áreas da linguagem do hemisfério esquerdo para
processar a música.
Ao que tudo indica, a simples escuta da música torna o cérebro “músico”, e as
aptidões musicais surpreendentes dos não músicos demonstram a grande plasticidade do
cérebro humano no domínio musical. Graças a essa plasticidade, qualquer um pode se
tornar especialista num campo que lhe é familiar, mesmo que permaneça incapaz de
verbalizar as estruturas musicais percebidas.
A MÚSICA TONAL
A música ocidental tonal se baseia num alfabeto de 12 notas organizadas em 24
acordes e em 24 tonalidades principais. Um acorde corresponde à execução de três notas
simultâneas (dó-mi-sol para o acorde dó maior, por exemplo). Uma tonalidade corresponde
a um subconjunto de sete notas (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si para a escala de dó maior). Existem
organizações hierárquicas no interior dessas tonalidades entre os acordes e entre as notas.
Algumas notas e alguns acordes atraem mais a atenção que outros: funcionam como
“pontos de partida” para a percepção. O acorde de “tônica” (construído sobre a primeira
nota da tonalidade) é o mais atraente, superando o acorde de subdominante (construído
sobre a quarta nota da escala). Assim, na tonalidade de dó maior, o acorde dó maior é um
ponto de partida mais importante para a percepção do que o acorde fá maior. Essas
diferenças correspondem às funções musicais dos acordes. Para compreender a música
ocidental é necessário diferenciar essas funções musicais.
O AUTOR
Emmanuel Bigand, professor de Psicologia Cognitiva, dirige o Laboratório de Estudos de
Aprendizagem e do Desenvolvimento, UMR 50222, da Universidade de Bourgogne, em
Dijon, França.
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