II - A Evolução do Conceito de Esporte Os impactos da evolução social britânica do século XVIII e da estruturação pedagógico-esportiva inglesa do século XIX, segundo Cagigal (1979 ), contribuíram decisivamente para a conformação do chamado esporte moderno, com suas características, de organização por unidades sociais específicas denominadas clubes, de regulamentações e codificações que facilitaram a internacionalização das mo- 23 dalidades esportivas, e, ainda, a exaltação da conduta esportiva sintetizada na expressão "fair play", a qual compreende o cavalheirismo, o respeito ao adversário, a aceitação da derrota, a colaboração em equipe e muitas outras virtudes. Observa-se desse modo que o conceito de esporte na sociedade moderna recebeu dilatações notáveis, que vieram permitir o entendimento desse fenômeno em toda a sua renovada amplitude. O esporte, como entidade multifuncional que compreende tantas riquezas e aspectos da vida humana e da sociedade, também tem evoluído conceitualmente no sentido de uma maior abrangência, para o cumprimento do seu papel de bem cultural, pois, como patrimônio herdado, a sociedade deve dele servir-se e depois transmiti-lo acrescido das experiências desenvolvidas. Neste sentido, é importante iniciar a trajetória dessa evolução iniciando com Thomas Arnold (1928), quando propiciou meios para sua institucionalização. Este educador histórico criou uma utilização educativa do esporte, na qual apresentava uma primeira divisão em elementos ou características, como ele chamou: a) o jogo; b) a competição; c) a formação. Por outro lado, o utilitarismo, de inspiração darwinista, e a busca prioritária da modalidade, constituíram-se em outras características fundamentais da concepção de esporte de Arnold. O sucesso da experiência de Arnold 24 levou a sua concepção para outras nações, e até a inspirações importantes, como para Coubertin, que restaurou o ideal olímpico com a certeza de que o esporte serviria para as finalidades da paz que defendia. Para Coubertin, segundo Gillet (1975), o esporte era entendido como o culto voluntário e habitual do esforço muscular intensivo apoiado sobre o desejo de progresso e podendo chegar até o risco. Com o Barão Pierre de Coubertin, o esporte criou o seu organismo internacional mais importante, o Comitê Olímpico Internacional (COI), que ficou encarregado de desenvolver o olimpismo como movimento filosófico do esporte, e a promover as Olimpíadas de quatro em quatro aaos, sem dúvida a celebração máxima do esporte mundial, e consolidação do fenômeno esportivo na sua manifestação de maior nível técnico. Entre os conceitos de esporte elaborados por diferentes tendências, existem aqueles que se vinculam principalmente ao conceito de jogo. Para esses, de um modo geral, o esporte, além de ser exercício físico, ter caráter competitivo, e cumprir funções relevantes como a higiênica, a educativa, a hedonística, a biológica, a de promoção social, constitui-se numa conduta lúdica de alcance psicossomático. A referência principal desse grupo é Caillois (1958), que caracterizou os jogos em: a) agon (jogos de competição); b) álea (jogos de azar); c) mimicry (jogos de mímica); d) ilintix (jogos de vertigem). 25 Para Caillois, o esporte é a forma socializada do agora. Nesta mesma tendência ainda se encontra outro conceito importante do esporte, que é o de Diem (1966). Para ele o esporte pertence ao domínio do jogo, e, como o jogo, é de uma índole especial, livremente adotado, pleno de valor, levado a sério, regulado com exatidão e, antes de tudo, buscando rendimento. Por outro lado, Bouet (1968), numa tendência contrária a Caillois e Diem, ao reconhecer o esporte como intensivo e transcendente, em oposição ao jogo que é extensivo e iminente, considerando ainda que o tempo esportivo condiciona a preparação do esportista, o qual visa entre outros a máxima rentabilidade no tempo regulamentar de uma competição, campeonato, época esportiva ou sucessão de épocas esportivas, onde seus .praticantes nele penetram por intermédio da arbitragem e do espetáculo, afirma: "O esporte é efetivação, aplicação de princípios, normas, superação, consciência do indivíduo, busca de objetivos, especialização". Outra percepção das mais interessantes do fenômeno esportivo é a de Eppensteiner (1973), que compreende o esporte como um atributo originário da natureza humana, devendo sua origem a instintos profundamente ligados ao prazer, entre os quais o movimento, e a uma clara intenção de conjugar, com repercussões positivas biológicas e culturais, o instinto lúdico e o instinto de luta no instinto esportivo. 26 Uma das contribuições mais efetivas para o entendimento sobre o esporte foi a do italiano Antonelli (1963), que ao conceituar esse fenômeno identificou seus três elementos básicos: a) o jogo; b) o movimento; c) o agonismo (competição). Ainda distinguiu quatro aspectos característicos do esporte: a) o ético-social; b) o psicopedagógico; c) o psicoprofilático; d) o psicoterapêutico. Observa-se que os elementos distinguidos por Antonelli correspondem às aracterísticas percebidas por Arnold com a substituição da formação pela competição. Uma outra posição e entendimento sobre o esporte muito considerada na literatura esportiva especializada é a de Magnane (1969), que ao examinar o esporte desde o ângulo individual, desprezando a sua perspectiva social, o qualifica como atividade de prazer, podendo deixar de exercer este papel com relativa facilidade, quando converte a prática esportiva em profissão. Para esse sociólogo francês o esporte é uma atividade de prazer em que o dominante é o esforço físico, que participa em vez do jogo e do trabalho, praticado de maneira esportiva, com portando regulamentos e instituições específicas, e é suscetível de transformar-se em atividade profissional. Entretanto, o grande marco numa revisão no conceito do esporte foi o Manifesto do Esporte, editado pelo "Conseil Internationale d'Educatíon Physique et Sport", órgão ligado à UNESCO, no qual o fenômeno esportivo foi tratado na perspectiva do tempo livre e da escola, além da referência ao esporte de alta competição, que já estava exaustivamente abordado nas concepções anteriores do fato esportivo. Logo a seguir, a Carta Européia de Esporte. Para Todos, publicada em 1966 sob a responsabilidade do Conselho da Europa, referendou toda a nova responsabilidade do esporte diante do fenômeno da participação. A partir desses documentos, as conceituações de esporte passaram a referenciar-se nessa nova abrangência, com as interseções necessárias nas práticas esportivas institucionalizadas e populares, e às vezes com abordagens específicasdas responsabilidades esportivas no meio escolar. Nesse sentido, são importantes as concepções de Noronha Feio (1978), Cazorla Prieto (1979), Cagigal (1979) e Clayes (1984). Para Noronha Feio (1978), o esporte é o lugar onde se desenvolve o comportamento do homem, o homem só, o homem em pequenos grupos ou em multidão, numa situação agonístico-recreativa. Esse autor, para uma melhor compreensão do fenômeno esportivo na atualidade, também mostrou a necessidade de isolar-se um dos seus componentes fundamentais: o jogo. Ao entender que o esporte é jogo e algo mais, justifica esta posição ao salientar que o homem dele participa na sua totalidade, pois o mesmo é um fenômeno complexo universal, uno e indivisível, que mantém as características essenciais do jogo e acrescenta outros conteúdos. Como jogo, Feio entende o esporte através da definição de jogo de Huizinga (1951): "O jogo é uma ação livre, sentida como fictícia e situada fora da vida corrente, capaz de absorver totalmente o jogador, que se realiza num espaço e num tempo expressamente circunscrito e se desenvolve ordenadamente segundo determinadas regras, suscitando na vida relações de grupos, os quais voluntariamente se envolvem de mistério ou acentuam por disfarce a sua estranheza face ao mundo habitual..." Nesta definição de jogo de Huizinga, Noronha Feio ainda acrescentou os dois elementos da atividade lúdica: a tensão e a alegria. Entretanto, o próprio Feio reconhece que o esporte não se identifica totalmente com o jogo, existindo diferenças, e até antagonismos, onde a Psicologia, a Sociologia e a Política tornam-se ciências indispensáveis para estudar o homem e/ou agrupamentos humanos em situação esportiva. Cazorla Prieto (1979) por sua vez, ao conceituar o esporte, coloca-o inicialmente como problemática com duas hipóteses: se o esporte é por sua natureza uma atividade finalística, isto é, com um fim em si mesmo, ou, pelo contrário, se é instrumental, ou seja, somente um meio para alcançar outras metas. A seguir, este autor listou vários pontos de' vista, pelos quais o fato esportivo pode ser examinado: o esporte, meio de aperfeiçoamento pessoal e existencial; o esporte, acumulação de força e raiz criadora; o esporte como jogo; o esporte como fenômeno estético; o esporte como treinamento ético; o esporte, modelo de sociedade competitiva; o esporte, reação de compensação e adaptação frente às condições de vida e do trabalho industrial; o esporte, mundo dos signos; o esporte, válvula de escape da agressividade, reação de instinto de conservação da espécie; o esporte, meio para aumentar a produção, a serviço da luta de classes e para acabar com a alienação; o esporte, simbolização do conflito e compensação narcisista. Pelas relações apresentadas, que provocam um grande número de expectativas para a análise do fato esportivo, Prieto reconheceu as contradições. Ao continuar na busca de um conceito para o esporte, este autor formulou três pressupostos básicos: a) o esporte deve ser entendido como expressão individual e como fato social; b) o esporte tem um ingrediente de esforço físico notável; c) a natureza do esporte pode ser instrumental ou finalística, segundo a predisposição psicológica daquele que o pratica e da manifestação esportiva de que se trata. Assim, para Cazorla Prieto, o esporte é entendido: a) do ponto de vista individual, como uma atividade humana predominantemente física, que se pratica isolada ou coletivamente e em cuja realização pode se encontrar a auto-satisfação ou um meio de alcançar outras aspirações; b) do prisma social, como um fenômeno de primeira magnitude na sociedade, mas também com conseqüências econômicas e políticas. Cagigal (1979) compreendeu o esporte como uma conduta humana típica e específica e um sucesso antropológico, onde o protagonista, centro desse sucesso, é o esportista, que é um ser humano com uma característica especificada por um certo tipo de "praxis", .entendida como um exercício liberador da evidência lúdica, além de uma confrontação de capacidades pessoais, evolucionadas até uma competitividade. Na verdade, o conceito de esporte de Cagigal reconheceu a sua veracidade multifuncional diante da atualidade, mostrando que esta diversidade de realidades humanas e sociais pode ser resumida em duas grandes direções: a) o esporte-espetáculo; b) o esporte-práxis. O primeiro caracterizado pela sua condição de espetacularidade e organização progressiva, enquanto o segundo, em outra direção, com características mais higiênicas, educativas, ociosas, lúdicas, è de espontânea relação social. Outro autor que tem acompanhado o avanço conceituai do esporte é Clayes (1984), quando considera que a ampliação desse conceito ocorreu justamente pela sua relação com o movimento "Esporte Para Todos", iniciada há alguns anos, mas que em 1966 pela "Carta Européia de Esporte Para Todos" do Conselho da Europa recebeu sua efetiva formulação e passou a apresentar um novo referencial teórico básico. Ao colocar-se diante desse fenômeno social, porque desconhece que previamente o esporte é uma atitude pessoal, ele defende que o esporte precisa ser teorizado a partir do esportista que o pratica. Guima, ao defender que o esporte se define por uma prática, justifica que deve ser estudado pelas atividades e interesses, concluindo que o esporte é uma prática e uma atitude. Ao fixar-se de que a prática do esporte afeta o esportista, sem caracterizar suas relações sociais, ele situa que a natureza da atividade esportiva pode ser entendida pela liberdade pessoal, respeito e compreensão. O esportista, para melhorar seus movimentos, necessita conhecerse e dominar-se, e assimilando seus defeitos e capacidades, comparando-os com os outros, aceitando-se como é e aceitando os demais como são. Na perspectiva de valores transmitidos à sociedade, independentemente se o esporte seja um espetáculo, uma ocupação do ócio, uma prevenção sanitária, uma tentativa de melhorar a raça e espécie humana, ou propaganda de um regime político, ele também admite que o esporte, por sua generalização, chega a formar parte da cultura. Finalmente, Guima (1984) conclui como conceito de esporte: "Trata-se de uma atitude pessoal, uma forma de admitir a vida, que se consegue pela reiteração de exercícios físicos, que se concretiza em conhecer-se e aceitar-se e aos demais sem que se produza outro benefício para a sociedade". Depois desta passagem por diferentes interpretações do fato esportivo nas suas relações com a sociedade, chega-se à certeza de que a maior amplitude do conceito de esporte, proposta pelo "Manifesto do Esporte", depois validada pela "Carta Européia de Esporte Para Todos" e por inúmeros pensadores da questão esportiva, passa a considerar praticamente todas as formas de movimento físico que se vinculam à recreação e condição física, como as corridas e outras atividades casuais, localizando-as nas manifestações do chamado esporte popular. Verifica-se que a abrangência do conceito de esporte absorveu também o sentido da participação, enriquecendo o entendimento do fenômeno esportivo. Na verdade, o conceito, no sentido estrito do esporte, que supunha um número limitado de atividades humanas realizadas sob o caráter competitivo, deu lugar a um conceito mais amplo, em que todas as formas possíveis de movimento físico podem ser interpretadas como atividades esportivas. Nesta nova perspectiva do esporte, até os processos de aprendizagem esportiva passaram também por uma revisão, pois agora terão que ser compreendidos na estrutura social em que estão inseridos. Desse modo, as estruturas sociais nas quais as pessoas estão situadas são decisivas para os seus comportamentos esportivos, e a cultura será determinante nesta participação. Enfim, o esporte nesta renovada interpretação, com o acréscimo do sentido participativo, deverá constituir-se muito mais em fator de favorecimento ao bem-estar do que em atividade de utilidade econômica, recriando a própria percepção do fenômeno esportivo, ao estabelecer as linhas para um novo estatuto, no qual a participação3 conquista um papel predominante e passa a representar a nova característica do esporte contemporâneo, e o esporte de alta competição torna-se mais trabalho do que jogo. Referências Bibliográficas 1. ANTONELLI, F. — Psicologia e Psicopatologia dello Sport. Roma: Leonardo, 1963. 2. 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