496 Susana Matos ABREU Uma observação mais atenta das suas principais linhas compositivas revela que o desenho geral foi sujeito a uma regra modular estimada numa medida-padrão de seis braças e meia [Fig. 2]. Esta grelha realça um cuidado extremo na marcação dos edifícios no terreno. Além disso, mostra um entendimento perfeito da noção de módulo, sendo este notável para a época especialmente em contexto “urbanístico” como é o caso, um exercício de diálogo entre vários edifícios5. Mas não só; as medidas dos seus lados maior e menor estabelecem entre si a razão de 7:2, o que surpreendentemente revela que a concepção, no seu todo, obedece a uma das relações métricas de maior significado no Renascimento: a do alçado da figura humana, tal como certas pesquisas em torno do cânone humano aparecem em estudos antropométricos do Quattrocento. Este facto estabelece um paralelo claro entre a largura e o comprimento do rectângulo que define os edifícios monásticos no terreno e aquele virtual do alçado do corpo de homem canonicamente definido, que resulta de uma razão numérica precisa entre as suas principais dimensões. Conforme apurámos no mencionado trabalho anterior, esta razão de 7:2 corresponde àquela de um dos esquemas antropométricos do italiano Francesco di Giorgio Martini, tal como se vê desenhado no seu Architettura civile e militare, terminado c. 1492. Na sua legenda, o autor especifica que o mesmo servia como esquema de proporcionamento de um templo de planta longitudinal6. A sobreposição exacta deste desenho à traça geral de implantação do mosteiro revela que o mesmo terá ajudado a esboçar uma fórmula experimental de tipo monástico numa receita plena de simbolismo7. Implantada no terreno com as proporções de um corpo humano, esta construção evocaria a imagem do Corpo Místico de Cristo criada por S. Paulo na sua Epístola aos Romanos como se fosse uma curiosa glosa arquitectónica deste texto, aqui de ressonâncias agostinianas. A sua oportunidade aninhava-se na linha espiritual e governativa da reforma monástica dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, então em curso sob o dirigismo forte da reforma de Fr. Brás, de marcado cunho cristocêntrico. Nesta construção, a que o seu fundador chamou o “Rey dos moesteyros”8 por excelência das suas qualidades físicas, tal facto significaria a aplicação desta imagem segundo uma organização topológica das várias quadras monásticas em identidade com um corpo vivo: a Igreja (símbolo da Fé, que aqui se confunde com a Razão) representa-se pela implantação do edifício que lhe é concorde, em lugar eminente face às outras quadras e governando este corpo monástico à sua cabeça; nos dois longos braços do edifício estendidos a Norte e a Sul e onde funcionavam oficinas e dormitórios, marcam-se as dependências habitacionais dos verdadeiros membros vivos deste corpo místico; o claus- 5 Sobre a ideia de uma leitura urbanística da organização da cerca monástica, vd. ABREU, Susana Matos – Uma Civitas Dei em Quebrantões ou a Cerca do Mosteiro da Serra do Pilar. Monumentos. nº 9, (Setembro 1998) pp. 10-15. Para maiores desenvolvimentos sobre as apreciações feitas no presente trabalho sobre o desenho projectual, vd. ABREU – Op. Cit., pp. 52-53. 6 MARTINI, Francesco di Giorgio –Architettura civile e militare, fl. 42v., tav. 236 (Biblioteca Nazionale de Firenze, Codice Magliabechiano II.I.141), c. 1492. Vd. Tratatti di architettura ingegneria e arte militare, vol. II, fl. 42v., tav. 236. Milano: Edizioni Il Polifilo, 1967. Sobre este tratado vd. a “Introdução” da mesma obra, de Maltese Conrado, e ainda ARNAO AMO, Joaquin – La Teoria de la Arquitectura en los Tratados, vol. III. Madrid: Tebas Flores, 1988. 7 O assunto é desenvolvido em ABREU, S. – A Docta Pietas…, pp. 54-80. 8 Carta de Fr. Brás a D. João III (5 Nov. 1541) in VITERBO, Sousa – Diccionário Histórico e Documental dos Arquitectos, Engenheiros, e Construtores Portugueses, vol. I, p. 177. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988.