Carácter da Arquitectura e do Lugar

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Carácter da Arquitectura e do Lugar *
Amílcar de Gil e Pires
Arquitecto, Professor Auxiliar da F.A.U.T.L.
[email protected]
A noção de “carácter” em Arquitectura tem tido várias interpretações, desde que o
termo começou a ser utilizado na segunda metade do Séc. XVIII, tendo sido objecto
de reflexão para alguns teóricos e arquitectos que, desde então, deram contributos
relevantes para a Teoria da Arquitectura.
No seu livro Form, Function and Design, em pleno apogeu do Movimento Moderno,
Paul Jacques Grillo refere-se ao carácter como sendo “uma rara qualidade”, quando
diz respeito ao Homem ou a um edifício. Qualidade que, ao longo da História da
Arquitectura, se manifestou quando um edifício, devido à sua forte “personalidade”,
se afirmou e evidenciou em determinado contexto construído.1 Para ele, o carácter
resulta da perfeita materialização arquitectónica dum programa funcional dum tipo
de edifício específico, a que chama “Group–character”, e diz respeito a edifícios
públicos (escola, hospital, igreja, por exemplo), estruturantes do Lugar urbano.
Existem edifícios que se evidenciam relativamente a uma arquitectura de
acompanhamento, que sobrepõem determinadas barreiras, pelo seu desenho,
que não podem ter uma abordagem tão objectiva como a simples expressão
duma eficaz materialização funcional. Estes não só cumprem rigorosamente o seu
programa, numa perfeita comunhão entre desenho, forma, materiais e função, mas
estão ligados a um sítio como se fossem animais vivos, dando a impressão que a
sua existência nesse lugar é intemporal.
* A partir da sua Tese de
Doutoramento em Arquitectura:
Vilegiatura e Lugar na Arquitectura
Portuguesa, defendiada na
Faculdade de Arquitectura da UTL
em Fevereiro de 2008.
1 Paul Jacques Grillo, Form, Function
and Design, Dover Publications,
Inc., New York, 1960, p.20.
2 Ibidem, p.20.
3 Werner Szambien, Symetrie,
Goût, Caractère – Théorie et
Terminologie de L’Architecture
À L’Âge Classique 1550-1800,
Ed. Picard, Paris, 1986, p.174.
A sua perfeita relação com o sítio e o programa é de tal forma indiscutível que se
torna impossível imaginar esse edifício em outro lugar diferente. A sua pertença ao
Lugar é tão natural que quase chegam a atingir o anonimato de qualquer obra
da Natureza.2 Como exemplos existem palácios, igrejas e lugares que o tempo
da História elegeu como obras de arte notáveis de excepção, onde a importância
dos elementos de detalhe ou o estilo arquitectónico passaram a ter menor relevo,
prevalecendo o todo edificado e a construção do Lugar.
A primeira leitura destes edifícios faz-se a partir da interpretação das suas fachadas,
o que é insuficiente, fazendo sentir a necessidade duma abordagem espacial
e temporal do espaço arquitectónico, do seu todo – interior e exterior – uma
abordagem de cariz fenomenológico.
Werner Szambien, no seu livro Simetria, Gosto, Carácter faz uma profunda reflexão
sobre a noção de carácter em Arquitectura, assumindo-o como um dos “objectivos
da concepção arquitectónica” 3, muito para além de um simples princípio estético.
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O termo carácter pode ser, de certa forma, equívoco, em Arquitectura.
Usualmente refere-se à fisionomia humana que, de igual modo, é transposta para
a caracterização do objecto de Arquitectura, assumindo-se o edifício construído
como justificação da interpretação analógica ou mimética da Natureza, ideia
recuperada de períodos importantes da História que, no Séc. XX, volta a ter um
papel relevante no pensamento artístico de então.
A disciplina de Arquitectura, ao ser questionada pelas novas tecnologias postas à
disposição da criação arquitectónica no Séc. XIX, procurou uma nova especificidade
ao desenvolver a doutrina da composição arquitectónica, aparecendo a Teoria do
carácter como um instrumento de interpretação, preferencialmente direccionada
para a arquitectura pública, onde se põe em evidência a especificidade de cada
género arquitectónico num contexto cultural determinado.
O objectivo da composição passava pela expressão de um uso inerente a uma
determinada tipologia arquitectónica, onde os edifícios, pela sua disposição, pela
sua estrutura e pela forma como são decorados, devem indicar, objectivamente, o
seu uso e destino. Ao não o fazerem contrariam a expressão que se pretende que
seja verdadeira e objectiva.
Jacques-François Blondel (1705-1774), nos seus tratados dedicados à análise da
obra de arte, emprega o termo carácter de forma algo ambígua, hesitando entre
a “qualidade da própria obra” ou a sua “qualidade de expressão”. Para ele todas
as diferentes espécies de produções de que dependem a Arquitectura devem ter
impregnados os objectivos particulares a cumprir por cada edifício, todas devem
ter um carácter que determine a sua forma geral e que anuncie “o tipo que o
edifício quer ser”.4
O “carácter distintivo” definido por Blondel ultrapassa a disposição volumétrica
e a escolha das formas em harmonia espacial – atributos da escultura, das Belas
Artes – procurando a própria maneira de ser do edifício, cuja expressão pode até
incorporar vários simbolismos na sua composição ou ornamentação, mas que
emerge logo de inicio na própria concepção. O carácter expresso pelo exterior do
edifício deixará bem claro o seu uso particular e será, também, uma manifestação
de bom gosto.5
Claude-Nicolas Ledoux (1736-1806) e Étienne-Louis Boullée (1728-1799), com
quem frequentou o curso para “arquitecto artista” na “Ecole deux Arts” de Blondel
– professor e teórico de quem herdaram uma identidade cultural e filosófica que
associava o papel do arquitecto na sociedade à criação arquitectónica baseada em
dois factores indissociáveis: a “distribuição” e o “carácter”. O primeiro era associado
a um nível de novas exigências funcionais e o segundo estava relacionado com os
conceitos de “contraste” e “variedade”, que dão continuidade a uma tradição de
pensamento clássico que se enquadra na “estética sensualista” do Séc. XVIII.6
4 Ibidem, p.179.
5 Ibidem, p.180.
6 Anthony Vidler, Ledoux, Ediciones
Akal, S.A., Madrid, 1994, p.15.
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O conceito de carácter, considerado por Blondel um dos níveis ou mesmo o nível
mais importante para a criação da “boa arquitectura”, quer se tratasse de edifícios
públicos ou privados, condicionados mais pela sua expressão simbólica ou pela
sua função utilitária, acaba por ser expresso quer na prática profissional como no
discurso arquitectónico duma nova geração de arquitectos que integra Ledoux.
Estes subscrevem e desenvolvem a teoria de Blondel de que tudo o que decorre da
produção arquitectónica tem que ter em conta o destino particular de cada edifício,
e todos os edifícios devem ter o seu próprio carácter, determinante da sua forma
geral, devendo esta ser objectivamente indicativa da sua própria identidade.7
O termo carácter está directamente relacionado com a teoria geral da
caracterização, comum a disciplinas como a Literatura, a Linguística e a História
Natural, que se torna corrente no meio académico do ensino da Arquitectura da
segunda metade do Séc. XVIII com Blondel, com a designação de caracterização.
Esta acaba por ser a solução para contrariar a afirmação progressiva dos gostos
individuais ou colectivos que substituem gradualmente as normas que até ali
ainda poderiam ser consideradas inquestionáveis ou absolutas e que, no conjunto
de novas necessidades institucionais ou sociais, obrigavam à criação de novas
soluções funcionais, de novos tipos arquitectónicos.
“Tanto na arquitectura como no terreno da ciência, o sentido da caracterização
dividia-se entre o estudo de uma expressão adequada – os signos do
carácter – e uma análise da organização ou da distribuição – a constituição
do carácter. Entre ambos, para repetir os termos de Michel Foucault,
‘uma teoria da marca e uma teoria do organismo’. A maior ambição de
Ledoux foi sempre superar esta divisão pretendidamente irremediável entre
‘necessidade’ e ‘representação’, com o fim de que o edifício se converterá,
em suma, no signo perfeitamente transparente do seu próprio destino.” 8
A expressão do carácter próprio a cada edifício passou, então, a ser encarado como
um problema de coerência ou mesmo de verdade em Arquitectura. A discussão
dos critérios fundamentais da Arquitectura começa a ser feita a partir de factores
relevantes como a distribuição – relacionada com a correcta adaptação funcional
–, a integridade funcional – associada aos processos construtivos emergentes – e
a linguagem das formas – que actuam como expressão inequívocas de carácter,
dando origem à muito discutida linguagem dos caracteres criada por Ledoux como
a forma de alcançar e de revelar a nobreza da Arquitectura, independentemente
da sua função ou importância simbólica.
A teoria do carácter é também desenvolvida pelo arquitecto parisiense
contemporâneo de Ledoux, Le Camus de Mézierères (1721-1789), que faz
uma abordagem à obra arquitectónica como um todo. “O carácter não reside
7 Ibidem.
8 Anthony Vidler, Op. Cit., p.16.
9 Werner Szambien, Op. Cit., p181.
somente no exterior dos edifícios públicos e privados mas, em primeiro lugar, se
se considerar o espaço definido pelo autor, também o seu interior”.9 Entende este
teórico e autor de obras importantes em París (segunda metade do Séc. XVIII)
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que a vontade de caracterizar o espaço interior deverá ser sistematizada, que as
proporções e o seu jogo de relações devem ser abrangentes ao todo da obra
construída e que a percepção do seu espaço envolvente, da Natureza em que se
integra, não poderão ser tratados de modo independente ou indiferenciado.
A ordem inerente à organização racional do espaço interior revela uma lógica
imperturbável, onde o sistema de caracterização próprio a um determinado
programa, com origem numa concepção definida, faz revelar o carácter no
interior. Cada elemento independente e participante na organização do espaço
interior revela, também, o seu próprio carácter e faz associar a percepção e a
vivência do espaço ao prazer do seu domínio sensorial e intelectual. O jogo
de proporções criadas pela arquitectura interfere nas sensações inerentes à
apropriação dos diferentes espaços, num usufruto progressivo e por vezes
ritual, que resulta da utilização dos espaços – quase num domínio ideal –, onde
vestíbulos e antecâmaras se multiplicam, contribuindo para a satisfação dos
prazeres sociais: sala de comer, salão, bilhar, galeria, etc.10
O carácter está, no interior dos edifícios, tão omnipresente como nas sensações
inerentes à percepção espacial, e pode manifestar-se de modo muito relevante na
própria escolha e colocação do mobiliário e das obras de arte que compõem e
organizam o seu espaço.
A luz tem, também, um papel determinante na definição do carácter interior,
sendo para Mézierères essencialmente o meio que põe em evidência as massas e
volumetrias da Arquitectura.
“Um edifício muito iluminado, bem arranjado, é, acima de tudo o resto,
perfeitamente tratado, devidamente agradável e risonho. Menos aberto ele
oferece um carácter sério. A luz, quanto mais intersectada, fá-lo misterioso
ou triste.”11
Devido às utilizações diferenciadas do termo carácter e às várias interpretações
possíveis no final do Séc. XVIII, Quatremère de Quincy (1755-1849) fez a
distinção clara entre os “caracteres da arquitectura histórica” e os da “Arquitectura
contemporânea”, entre o “carácter da ideia expressa” e o “carácter do género do
edifício”, entre os “caracteres da arquitectura pública” e os da “Arte dos jardins”,
introduzindo, assim, uma hierarquia que permitia formular os objectivos da
Arquitectura do seu tempo.12
A noção de carácter aparece, então, classificada em diferentes categorias: “carácter
distintivo”; “carácter essencial” e “carácter relativo” (“ideal” e “imitativo”).13
O “carácter distintivo” (ou de originalidade) encontra-se na arquitectura que
expressa uma qualidade dominante, real e objectiva, de forma visível; que
denota afirmativamente uma fisionomia resultante de um hábito ou hábitos gerais
provenientes dum carácter cultural de um povo específico.
10 Ibidem, p.181.
11 Ibidem, p.183.
12 Ibidem, p.184.
13 Ibidem, p.185.
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O “carácter essencial” da arquitectura é menos comum e é sinónimo de força, de
grandeza e domínio. É o carácter por excelência e o mais directamente ligado à
História da Arquitectura e à distinção entre civilizações. A sua conotação com a
ordem dórica, devido à expressão de solidez, por vezes superior à solidez real, e
ao emprego de formas geométricas e regulares, que produzem uma impressão de
força e grandeza, permitem relevar a Arquitectura Grega Clássica como detentora
de “maior força” relativamente à arquitectura Romana e associar à Arquitectura
do Movimento Moderno uma perda ou mesmo falta de carácter.14
O “carácter relativo” está mais relacionado com a prática de concepção particular
e objectiva de um edifício. Poderá partir da imitação ou interpretação de um
modelo de inspiração e expressa-se na arte de caracterizar, de tornar sensível,
pelas formas geométricas, as qualidades intelectuais e as ideias que se podem
exprimir no edifício. Pode dar a conhecer as partes construtivas do edifício, a sua
natureza e o seu destino, e as suas propriedades espaciais associadas a um uso
particular. É fortemente expresso o talento ou génio de quem o concebe, como
obra artística que se oferece a uma leitura interpretativa como um todo completo,
em equilíbrio ideal.
O “carácter relativo” subdivide-se em dois géneros: o ideal e o imitativo. O
“carácter ideal” está mais direccionado para a poética da arquitectura, onde
as regras são subalternizadas relativamente à formação simbólica do objecto
criado. Como exemplo refira-se que, na Grécia Antiga, a arquitectura procurava
materializar a variedade dos caracteres particulares das suas divindades nos
templos construídos. O “carácter imitativo” está directamente relacionado com
regras provenientes de modelos predefinidos e com o rigoroso conhecimento da
natureza do edifício, do seu destino.
A expressão do carácter próprio dos edifícios parte, indiscutivelmente, do
conhecimento das qualidades particulares introduzidas no acto da sua criação,
e cujo resultado estético e arquitectónico só é totalmente entendido pelo uso e
fruição do seu espaço – interior e envolvente.
A “Teoria do Carácter” parte de três pressupostos de percepção: o objecto natural
que possui um determinado carácter e produz uma determinada sensação em
quem o apreende; o objecto arquitectónico que possui o seu próprio carácter e
produz no Homem uma sensação, e a inspiração do arquitecto nos caracteres da
Natureza, com o pressuposto de dotar as suas criações dum carácter análogo que
desperte as mesmas sensações interpretadas do meio natural.15
14 Werner Szambien,
Op. Cit., p.185.
15 Ibidem, p.193.
16 Ibidem, p.196.
Boullée foi um dos apologistas de que se deve evitar, de forma consciente, atribuir
o mesmo carácter a mais do que um tipo de edifício. Nesse sentido, a programas
diferentes seriam associados caracteres diferentes: um templo expressava
grandeza; um teatro, delicadeza; um palácio, magnificência; um palácio da
justiça, magestosidade; e um monumento funerário, tristeza.16
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Também para Boullée a “teoria do carácter” aplicava-se, essencialmente, à
arquitectura pública. A sua visão poética da Arquitectura posicionava o carácter no
seio de uma estética da percepção, quando esta assumia a tendência de aceitação
dos princípios de imitação analógica da Natureza e reconhecia a ligação objectiva
entre os determinados caracteres e os tipos de edifícios públicos específicos.
Jean-Nicolas-Louis Durand (1760-1834) opunha-se frontalmente a estes
princípios, tendo protagonizado uma Arquitectura utilitária onde o carácter
passa a ter um efeito secundário na observação dos verdadeiros princípios da
Arquitectura. Para Durand, a procura de produção de carácter em arquitectura é
um falso problema. Nesse sentido afirma: “se eu disponho um edifício de maneira
convincente ao uso a que este se destina, não se diferenciará ele de um outro
edifício destinado a outro uso? Não terá ele, naturalmente um carácter, o seu
próprio carácter?”17
Em Arquitectura é, ainda, utilizado o termo carácter na procura duma sistemática
de qualidades expressivas, objectivas a determinado tipo de edifícios, a uma
situação particular – Lugar – e a um destino atribuído – programa funcional.
Os arquitectos modernistas tinham muitas dúvidas quanto aos princípios de
composição propostos pelos académicos no início do Séc. XX. Estes princípios, ao
não estarem directamente relacionados com a estrutura e a função arquitectónica,
não poderiam ser aceites na concepção de uma arquitectura autêntica que
deveria, antes, ser fundada por objectivos de ordem racionalista.
A composição era conotada com o privilégio excessivo da aparência formal
dos edifícios, de evidente e perigosa subjectividade. Consideravam que havia
uma preocupação exagerada com os problemas formais da Arquitectura, que
teriam que ser substituídos, no contexto cultural em que se vivia, por uma maior
dedicação aos problemas de construção.
Os autores dos livros de composição que circulavam em Inglaterra e nos Estados
Unidos entre 1900 e 1930, apesar de reconhecerem a importância das disciplinas
funcionais e estruturais na Arquitectura, procuravam, em primeiro lugar, atribuir ao
edifício um verdadeiro significado que seria emergente duma estrutura organizada
segundo os princípios da composição arquitectónica, tendo um conteúdo
expressivo e simbólico que era descrito como carácter.18 Para eles, o êxito de
um edifício adviria de uma boa composição e de um carácter apropriado, mas
admitiam que a primeira poderia não dar origem, obrigatoriamente, ao segundo
e vice-versa. Poderão mesmo existir edifícios com uma muito boa composição
mas com uma expressão funcional desadequada – ex: fábrica com aparência de
biblioteca – o que poderia levar o seu observador ou usufruidor a um completo
engano de interpretação e reconhecimento. Para estes, só o esforço consciente do
arquitecto é que conseguiria atribuir em simultâneo o carácter apropriado e uma
boa concepção com base nos princípios de composição, o que daria, obviamente,
origem a uma obra arquitectónica de destaque.
17 Ibidem, p.198.
18 Colin Rowe, Manierismo y
Arquitectura Moderna y Otros
Ensayos, Ed. Gustavo Gili,
Barcelona, 1999, p.65.
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A expressão de carácter na Arquitectura não foi um dos atributos mais procurados
para a definição do objecto arquitectónico ao longo da História da Arquitectura.
O carácter foi definido muito raramente mas, em geral, referia-se em simultâneo
à impressão de individualidade artística e à expressão funcional ou simbólica da
finalidade a que o edifício estaria destinado.
No campo estrito da Arquitectura, sempre se admitiu que qualquer edifício tem
como origem uma composição, quer esta seja resultante de um procedimento
mais ou menos correcto, e é evidente que qualquer edifício tem carácter, quer
este seja intencional ou não. A expressão de carácter, apesar dos diferentes
sentidos dados à palavra composição, representou um interesse comum a todos
os arquitectos, nas diferentes épocas históricas.
“Tal como carácter, também o termo composição só se tornou frequente
a partir do final do Séc. XVIII. A atribuição de carácter à composição
arquitectónica não era um objectivo expresso dos tratadistas. Para eles,
o desenho de concepção abordava o todo arquitectónico, de acordo
com o sentido dado por Vitrúvio, um processo que incluía ‘invenção’,
‘compartimentação’, ‘distribuição’ e ‘ordenamento’. Nesta época, o que
era entendido por ‘artes da composição’ era o que os críticos anteriores
costumavam descrever – com um sentido talvez distinto – como ‘artes do
desenho’.” 19
Quando começou a aparecer o termo composição, no discurso sobre Arquitectura
em Inglaterra, estava já implícita a noção de carácter, como é o caso da definição
de Robert Morris (1734-1806) que definia a composição em Arquitectura como
arte útil e ampla, baseada na “beleza”, “proporção” e “harmonia”, que também
dividia a Arquitectura em três classes – “grave; jovial; encantadora”. No princípio
do Séc. XIX, Edmund Aikin (1780-1820) trata o “contraste” e a “variedade” como
“essência da beleza arquitectónica”, como qualidades que conferem carácter e
expressão a qualquer composição, libertando-a da “monotonia da arquitectura
comum”. 20
A concepção de carácter tem, também, que objectivar uma relação com a
paisagem e mostrar uma identidade intencional. A palavra carácter pode ter
várias conotações, ao ser empregue de um modo um tanto indiferente, quando
faz referência a uma classe tipológica ou um estilo arquitectónico – ex: edifício
de “carácter variado ou divertido”, ou edifício construído segundo o “carácter
gótico”.21
“Em Arquitectura, como em fisionomia, o carácter deve-se a certas
características distintivas – um edifício é destinguido imediatamente de
outros do mesmo tipo. Pode existir uma grande quantidade de edifícios,
19 Ibidem, p.66.
como existe uma grande quantidade de seres que não mostram nenhum
20 Ibidem.
carácter peculiar. Por outro lado, pode haver edifícios que mostram, graças
21 Ibidem.
à exaltação das suas proporções gerais e à justa distribuição de todas as
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partes, algo semelhante a nobreza de carácter. O que demonstra que o
carácter de um edifício deve ser evidente e notável, e deve ser expresso mais
numa só característica do que em várias.” 22
O carácter passou a ser associado ao belo em Arquitectura, evidenciando os
edifícios, de forma clara e indiscutível, o uso a que eram destinados. Os tipos
arquitectónicos mais comuns eram, correntemente, associados a estilos diferentes
que caracterizavam a sua aparência externa.
As variantes que resultaram da exploração formal de um único tipo arquitectónico,
comum a diferentes programas funcionais, metodologia corrente na tradição
académica, passou a considerar uma abordagem significativa e personalizada,
específica e localizada a um determinado contexto cultural.
A sobreposição do carácter, como valor arquitectónico dominante, à importância,
antes indiscutível, do estilo arquitectónico, permitia apropriar os diferentes estilos
consoante os propósitos predefinidos para o edifício a projectar. Mesmo os temas
vernáculos, até aqui sempre subvalorizados, adquiriam legitimidade arquitectónica
quando faziam parte de uma composição formalmente coerente.
Apesar da sua conotação com um certo empirismo metodológico, a obrigatoriedade de atribuir determinado carácter a um edifício garantia uma certa racionalidade
conceptual que se servia das heranças da História da Arquitectura e da Natureza
como materiais para a construção do objecto arquitectónico funcional e significativo.
O carácter afirma-se como expressão de uma cultura específica, de forma
intencional, em importantes intervenções arquitectónicas de meados do Séc. XIX.
Este era o produto de circunstancias particulares que surgia naturalmente, como
evidência de uma interacção genuína entre as condições naturais, um certo ambiente
cultural e o indivíduo, quer se tratasse de quem concebia arquitectura ou de quem
a usufruía. O carácter deveria ser revelado pela arquitectura e ser extraído através
da sua interpretação, mesmo que de modo implícito. Este perde a conotação de
valor objectivo e empírico e passa a afirmar-se como um conceito novo enquanto
forma de expressão e de revelação de valor da arquitectura, conceito teoricamente
consolidado que punha totalmente de parte a antiga ideia de característico.
O carácter, directamente ligado à técnica e à representação, passa a interagir com o
carácter como algo intrínseco também ao estilo. Enquanto, por um lado, era exigido
que se mostrassem as qualidades inerentes à substância da arquitectura do edifício,
por outro lado assumia uma tradição que se mantinha presente na sua expressão
formal e simbólica herdadas de uma cultura arquitectónica claramente afirmada.
Nos finais do Séc. XIX, o carácter é, assumidamente, um dos objectivos da composição arquitectónica que associa os atributos poéticos desta a uma objectividade
metodológica progressivamente mais racionalizada, expressando-se como signo
exterior do comportamento racional identificativo das finalidades funcionais e
espaciais da arquitectura.
22 Ibidem, p.70.
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O termo composição não teve tantas e tão variadas interpretações como as dadas
ao conceito de carácter. A tendência progressiva para uma arquitectura que
aspirasse à abstracção – Séc. XX –, que defendesse o anonimato, que procurasse
o que é típico, a norma, não o acidental mas sim a forma definida, deixa de
necessitar ter como premissa a “exibição de carácter”. A preferência de soluções
impessoais, neutras e estandardizadas do Movimento Moderno tornaram-se
totalmente incompatíveis com uma ideia de “expressão característica”.23
Quando recentemente se afirmava que a arquitectura do Movimento Moderno
tinha um problema de carácter, contrariamente ao que era evidente na Antiguidade
Clássica, deveria reconhecer-se que, nas questões iniciadas pela implementação
do conceito de carácter, questões praticamente irresolúveis para o Séc. XIX, se
encontram as origens de muitas reflexões e contributos teóricos importantes sobre
o modo de conceber e interpretar a arquitectura, sendo esta entendida como
“Lugar” do habitar.
O conceito de carácter está directamente relacionado com o conceito de Lugar
por Christian Norberg-Schulz (1926-2000) em Espaço, Existência e Arquitectura
e em Génius Loci.
Para Norberg-Schulz, a abordagem da Arquitectura, de certa forma analítica
e científica, do Movimento Moderno, leva à perda do carácter concreto da
envolvente do edifício e das qualidades de identificação do Homem com o
Lugar. Para o contrariar, ele cria o conceito de “Espaço Existencial”, um termo
que compreende as relações básicas entre o Homem e o seu meio envolvente
e que é composto por dois termos complementares – “Espaço e Carácter”,
directamente relacionados com as funções básicas psíquicas de “orientação” e
“identificação”.24
“Desde os tempos remotos tem-se reconhecido que diferentes lugares têm
diferente carácter. Tal diferença de carácter é muitas vezes tão forte que é
suficiente para determinar as propriedades básicas das imagens exteriores
da maioria das pessoas presentes, fazendo-as sentir o que experimentam
e que pertencem ao mesmo Lugar. [...] o espaço existencial não pode ser
compreendido somente por causa das necessidades do Homem, mas antes
unicamente como resultado da sua interacção e influência reciproca com um
ambiente que o rodeia, que tem de compreender e aceitar.“ 25
23 Ibidem, p.81.
24 Christian Norberg-Schulz,
Existencia, Espacio y Arquitectura,
Ed. Blume, Barcelona, 1975, p.33.
25 Ibidem.
26 Christian Norberg-Schulz, Genius
Loci, Towards a Phenomenology of
Architecture, Ed. Rizzoli,
New York, 1984, p.6.
A necessidade de compreensão qualitativa e fenomenológica da Arquitectura,
depois de um período marcado pela teoria abstracta e científica, fazem-no
desenvolver este discurso entendido como “dimensão existencial”. Esta não é
determinada directamente pelas condições sócio-económicas do Lugar que,
no entanto, podem facilitar ou criar o suporte para a realização de certas
estruturas existenciais, ao oferecerem o espaço para a vida “ter lugar”, mas sem
determinarem, obrigatoriamente, os seus significados existenciais. Significados que
têm raízes profundas, determinadas por estruturas do nosso “estar-no-Mundo”.26
Carácter da Arquitectura e do Lugar
116
Norberg-Schulz recorre-se do conceito de habitar de Martin Heidegger (18891976), dando-lhe o sentido de apoio existencial como propósito fundamental da
Arquitectura.27
“O Homem habita quando se consegue orientar ‘em’ e ‘identificar-se’ a si
próprio com o meio envolvente ou, quando experimenta a envolvente como
significativa”. 28
O habitar é entendido muito para além da noção primitiva de abrigo e ocorre
em espaços com carácter distintivo (original), em lugares existencialmente
identificativos. A identidade do Homem depende directamente da sua pertença a
um Lugar e este é, por sua vez, a manifestação concreta do habitar do Homem.
“A palavra habitar indica uma relação total Homem-Lugar. Esta implica
a distinção entre espaço e carácter. Quando o Homem habita, ele é
simultaneamente localizado no espaço e exposto a um certo carácer
ambiental. As duas funções psicológicas envolvidas são a ‘orientação’ e a
‘identificação’. Para ganhar a sua identidade existencial este tem que ser
capaz de se orientar, tem que saber onde está, mas também tem que se
identificar com o ambiente, ou seja, tem que saber como está num certo
Lugar.” 29
Apesar da importância significativa da orientação, é a identificação com o
ambiente que dá origem ao habitar. Estes dois conceitos são, de certo modo,
independentes mas pressupõem uma relação de complementaridade inerente à
apropriação e, até, à criação do Lugar. Podemos orientarmo-nos num espaço
habitado sem termos que nos identificar com ele e identificarmo-nos com o Lugar
sem termos o completo conhecimento da sua estrutura. As duas vivências em
simultâneo permitem-nos o reconhecimento e interpretação do espaço e carácter
que fazem o Lugar habitado. Ao identificarmo-nos com o Lugar assumimos,
perante ele, um certo sentido de pertença e de identidade reforçados pela
compreensão que temos do espaço para além deste, que nos é dado pelo sentido
imprescindível da orientação.
Qualquer tipo de acontecimento refere-se a uma determinada localização, o que
faz do Lugar uma parte integral da existência humana. O Lugar, mais do que
uma localização abstracta, é entendido por Norberg-Schulz como uma totalidade
composta por coisas concretas, com substância natural, forma, textura e cor.
Juntas estas determinam o “carácter ambiental”, o carácter do meio envolvente
que é a essência do lugar.30
Um Lugar pressupõe sempre a afirmação de um determinado carácter ou atmosfera. Como fenómeno qualitativo e total, tem uma abrangência que vai muito
para além das suas relações espaciais. Estas, apesar de muito relevantes, não são
suficientes para a caracterização e interpretação da natureza concreta do Lugar.
27 Martin Heidegger, Construir,
Habitar, Pensar [Bauen, Wohnen,
Denken], In Martin Heidegger,
Vortrage und Aufsatze. Pfullingen:
Gunther Neske, 1954. (Tradução do
original alemão por Carlos Botelho)
28 Christian Norberg-Schulz,
Genius Loci, Towards a
Phenomenology of Architecture,
Op. Cit., p.5.
29 Ibidem, p.19.
30 Ibidem, p.6.
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O carácter é determinado pela identidade própria dos objectos que constituem
o Lugar, pelos fenómenos concretos que condicionam o habitar e a identificação
do Homem com um ambiente espacial determinado. A compreensão do Genius
Loci ou espírito do lugar, conceito herdado da Antiguidade, permite-nos
reconhecer a realidade concreta a enfrentar e, através da Arquitectura, cumprir
a sua principal tarefa de criar as condições ideais para habitar através da
fundação de lugares significativos.
“Genius Loci é um conceito romano. De acordo com as crenças romanas
qualquer ser ‘independente’ tem o seu ‘genius’, o seu espírito guardião. Este
espírito dá vida às pessoas e aos lugares, acompanha-os do nascimento até
à morte, e determina o seu carácter ou essência. Mesmo os deuses têm o seu
‘genius’, um facto que ilustra a natureza fundamental do conceito. O ‘genius’
denota o que um objecto é ou o que este quer ser - usando um termo de
Luis Kahn.” 31
Um Lugar estrutura-se a partir do meio envolvente, duma paisagem e duma
ocupação humanizada. Pode subdividir-se, segundo Norberg-Schulz, em duas
categorias – espaço e carácter. O espaço revela a estruturação tridimensional
dos elementos que constituem o Lugar e o carácter denota as suas propriedades
mais compreensíveis. Estas duas categorias associadas revelam-nos o espaço
vivenciado, o espaço habitado e identificado com um colectivo humano.
“A categoria de ‘espaço’ e ‘carácter´, baseadas na função psicológica
fundamental de ‘orientaçao’ e ‘identificação’, introduzida por C. Norberg-Schulz para descrever a ‘estrutura do Lugar’, pode gerar maus entendimentos,
justificando o ‘característico’ e o fácil ‘ambientamento’. De facto, quando se
fala de carácter referimo-nos ao ‘saber local’ mais do que às funções do
edifício”. 32
31 Ibidem, p.18.
32 Domizia Mandolasi, lL Luogo e la
Cultura del Luogo Nell’Arquitectura
Contemporánea, IL Luogo Come
Principio di Ligittimazione del
Progetto, Gangemi Editore,
Roma, 1988, p.24.
33 Christian Norberg-Schulz,
Genius Loci, Towards a
Phenomenology of Architecture,
Op. Cit., p.11.
34 Ibidem, p.13.
Podem existir organizações espaciais semelhantes mas que possuem caracteres
muito diferentes, revelados pelo particular tratamento dos elementos definidores
do espaço criado pelo Homem, do seu limite, e do seu ambiente natural
envolvente. A própria organização espacial do Lugar põe certos limites à sua
caracterização, o que torna os dois conceitos interdependentes. O espaço, para
além da sua conotação com uma geometria tridimensional é, aqui, também,
entendido como campo perceptivo, os dois são definidores daquele que podemos
chamar, segundo Norberg-Schulz, “espaço concreto”33.
Carácter é, ao mesmo tempo, um conceito mais geral e mais concreto do que
espaço. Ele denota uma compreensiva atmosfera geral, a forma concreta e a
substância dos elementos de definição espacial.34 Qualquer tipo de presença
humana está ligada a um carácter particular que resulta, também, das exigências
específicas das diferentes acções inerentes ao acto de apropriação no Lugar.
Carácter da Arquitectura e do Lugar
118
Como exemplos de caracteres particulares associados directamente a tipologias
arquitectónicas podemos referir os seguintes:
1. Habitação – protectora;
2. Espaço desportivo – festivo;
3. Igreja – solene;
4. Escritório – funcional.
Num espaço interior o carácter está implícito no sentido de protecção e conforto
dado pela luz e ambiente controlados, em contraste com o exterior agressivo e
desconfortável. Ao interior é associada a existência de condições para a vida ter
lugar.
O ambiente urbano característico e particular a uma qualquer cidade histórica
revela o seu próprio carácter, com o qual se identificam os seus habitantes.
Qualquer paisagem também possui o seu carácter, de tipo particularmente
original, o que é relevante na afirmação do carácter de qualquer Lugar.
“O Genuis Loci demonstrou, em muitos casos, ser bastante forte para
predominar acima dos ciclos das mudanças políticas, sociais e culturais. Tal
resulta, por exemplo, para cidades como Roma, Estambul, París, Praga e
Moscovo. Certamente, a ‘verdadeira grande cidade’ caracteriza-se por um
Genius Loci especialmente pronunciado.” 35
O carácter do Lugar está, também, directamente relacionado com o tempo e
expressa-se de forma diferente com a mudança das estações, com o passar do dia,
com o clima e, associada a estes factores, com as condições diferentes da luz.
A luz não é só o mais genérico fenómeno natural mas, também, o menos
constante. As condições de luz mudam com o decorrer do dia – à noite o escuro
preenche a totalidade do espaço e o mesmo é feito pela luz de dia. Esta está
intimamente ligada aos ritmos temporais da Natureza.
As estações mudam a aparência dos lugares, mais nuns sítios do que noutros, de
forma diferenciada com as várias regiões onde se inserem. Os ritmos temporais
não mudam os elementos básicos que constituem um Lugar natural mas, em
muitos casos, contribuem decisivamente para a definição do seu carácter.
A própria constituição morfológica do Lugar e os seus materiais aparentes são
determinantes para a afirmação do seu carácter. Dos seus limites, onde estão
também incluídos o Céu e a superfície que pisamos, depende a sua articulação
formal e o modo como o Lugar é construído.
A forma como um edifício se encontra no terreno, a sua relação com o Céu, os
seus limites físicos, as suas fachadas, contribuem decisivamente para determinar
o carácter da paisagem urbana. Quando nos referimos ao carácter de um
conjunto ou família de edifícios que constituem um Lugar são, também, tidos em
35 Christian Norberg-Schulz,
Existencia, Espacio y Arquitectura,
Op. Cit., p.33.
ARTiTEXTOS06. JULHO 08
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consideração os motivos característicos que os compõem, como, por exemplo,
tipos particulares de telhados, portas e janelas. Estes motivos podem funcionar
como elementos convencionais que possibilitam o deslocar do carácter de um
Lugar para o outro.
O carácter depende, também, de como são construídos os elementos constituintes
do Lugar, os seus edifícios, e é determinado pela própria realização tecnológica
do construído, onde a tradição e a cultura do Lugar não são, de todo, alheias.
Um Lugar criado pelo Homem pode ser entendido como um edifício que assenta
no chão e se eleva para o Céu. O carácter desse Lugar é determinado pela forma
como o assentar e o elevar-se é concretizado.
Quando uma cidade nos agrada pelo seu carácter distinto, este é dado pela
forma como a maioria dos seus edifícios se relacionam com a Terra e com o Céu.
Eles expressam uma comum forma de vida, uma comum forma de estar na Terra,
constituindo um “Genius Loci” que contribui para a identificação humana.36
O próprio carácter do Lugar natural é transportado pelos edifícios cujas propriedades individuais o manifestam de forma espontânea ou mesmo intencional.
Os potenciais significados presentes no ambiente original são relevados na
transformação de um sítio num Lugar como um propósito existencial de construir
com a arquitectura.
O tipo de construção usado na Arquitectura é, também, determinante para o seu
carácter. Esta pode ser leve, aberta e transparente ou massiva e fechada, o que
origina, também, diferentes significados e diferentes articulações formais. Estas
são determinadas pelo modo como o edifício assenta na Terra e como se ergue
para o Céu, como recebe a luz. A sua dominante horizontal agarra o edifício ao
chão, se for vertical torna-o potencialmente leve, acentua a sua relação activa
com o Céu e com o desejo de receber luz. Refira-se que a religião esteve, desde
sempre, associada à verticalidade afirmativamente expressa na sua arquitectura.
36 Christian Norberg-Schulz, Genius
Loci, Towards a Phenomenology of
Architecture, Op. Cit., p.63.
37 MUGA, Henrique Muga,
Psicologia da Arquitectura, Colecção
Ensaios, Ed. Gailivro, Vila Nova de
Gaia, 2005, p.199.
Como elementos determinantes da composição formal da arquitectura para a
afirmação do seu carácter temos:
1. as aberturas que recebem e transmitem luz;
2. os materiais – elementos decisivos para a caracterização (ex: a madeira e
a pedra têm diferentes presenças que expressam o modo como os edifícios
interagem com o Lugar;
3. a cor – “a cor dum edifício pode ser clara e alegre; indicando festividade
e recreação, outro edifício pode ter uma cor escura e austera, sugerindo
trabalho e concentração”.37
O uso da cor pode ser assumido como uma vontade de independência no acto de
fazer arquitectura. Esta pode ser significativa quando as paredes construídas estão
pintadas com cores que têm uma mera função caracterizante. Uma liberdade
Carácter da Arquitectura e do Lugar
120
deste tipo é mais comum em espaços interiores e fechados, onde o contacto
directo com o ambiente é mais fraco e onde o carácter implica uma reunião de
significados distantes.38
Nos edifícios de Arquitectura de expressão Clássica, as suas partes constituintes
têm a sua própria identidade individual e, ao mesmo tempo, diferenciam-se do
carácter geral do todo. Cada carácter faz parte duma família de caracteres que
pode, em muitos casos, estar directamente relacionado com uma qualidade
humana. Na Arquitectura Clássica, as forças originais são, também, humanizadas
e apresentam-se, a si próprias, como participantes individuais no mundo
compreensivo e significante.39
Para Norberg-Schulz, o carácter no ambiente urbano produzido pelo Movimento
Moderno distinguia-se por monotonia. Quando era encontrada alguma
variedade, devia-se geralmente a elementos oriundos do passado. Os edifícios
não afirmavam a sua presença de carácter, de modo intencional, e recorria-se
às novas tecnologias de construção, como é o caso da fachada cortina, para
afirmar um carácter abstracto e insubstancial, ou mesmo uma falta de carácter.
Ao Movimento Moderno, que oferecia poucas surpresas e descobertas, ele
contrapõe com a experiência das cidades antigas e com História como património
indispensável na afirmação do carácter e consolidação do Lugar.
Bibliografia
GRILLO, Paul Jacques, Form, Function and Design, Dover Publications, Inc., New
York, 1960.
HEIDEGGER, Martin, Construir, Habitar, Pensar [Bauen, Wohnen, Denken], In
Martin Heidegger, Vortrage und Aufsatze. Pfullingen: Gunther Neske, 1954.
(Tradução do original alemão por Carlos Botelho)
MUGA, Henrique, Psicologia da Arquitectura, Colecção Ensaios, Ed. Gailivro, Vila
Nova de Gaia, 2005.
NORBERG-SCHULZ, Christian, Existencia, Espacio y Arquitectura, Ed. Blume,
Barcelona, 1975.
NORBERG-SCHULZ, Christian, Genius Loci, Towards a Phenomenology of
Architecture, Ed. Rizzoli, New York, 1984.
NORBERG-SCHULZ, Christian, Intensiones en Arquitectura, Ed. Gustavo Gili,
Barcelona, 1998.
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Contemporánea, IL Luogo Come Principio di Ligittimazione del Progetto, Gangemi
Editore, Roma, 1988.
SZAMBIEN, Werner, Symetrie, Goût, Caractère – Théorie et Terminologie de
L’Architecture À L’Âge Classique 1550-1800, Ed. Picard, Paris, 1986.
VIDLER, Antony, Ledoux, Ediciones Akal, S.A., Madrid, 1994.
ROWE, Colin, Manierismo y Arquitectura Moderna y Otros Ensayos, Ed. Gustavo
Gili, Barcelona, 1999.
38 Christian Norberg-Schulz,
Genius Loci, Towards a
Phenomenology of Architecture,
Op. Cit., p.67.
39 Ibidem, p.74.
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