A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS DIREITOS AUTORAIS: PRIMEIRA PARTE Allan Rocha de Souza* RESUMO O presente artigo trata da construção social dos direitos autorais em sua fase inicial. A análise jurídica pretendida apoia-se numa perspectiva histórica, focando principalmente os acontecimentos relevantes à sua compreensão quando de seu surgimento e construção inicial. Incorporar-se-á aqui as reflexões sobre a fase inicial da proteção nos países estrangeiros relevantes e as teorias justificadoras da proteção concedida no período. PALAVRAS-CHAVE: DIREITO AUTORAL; HISTÓRIA DO DIREITO ABSTRACT The present article woks with the social construction of the Author Rights. The legal analysis intended herein is based on a historical perspective, focusing primarily on the relevant occurances to its comprehension when emerging and of its first period construction. There will be taken into account the reflexions on the initial phase of protection in the relevant foreign countries and the justifying theories for the protection conceded during such period. KEYWORDS: AUTHOR RIGHTS; LEGAL HISTORY Sumário: 1. Introdução. 2. A trajetória inicial. 3. A prensa e os privilégios. 4. O copyright na Inglaterra. 5. O droit d’auteur na França. 6. O copyright nos Estados Unidos. 7. O direito autoral no Brasil. 8. Conclusões. 9. Referência 1. Introdução O presente artigo trata da história da proteção jurídica dos direitos autorais. É a primeira parte de uma série de quatro artigos cobrindo as diversas etapas da história jurídica da proteção aos direitos autorais. A análise jurídica pretendida apoia-se numa perspectiva histórica, focando principalmente os acontecimentos relevantes à sua compreensão no Brasil. Incorporar-se-á aqui as reflexões sobre a fase inicial da proteção * (Doutorando em Direito Civil na UERJ, Mestre e Professor da Faculdade de Direito de Campos; Pesquisador da rede MINDS, no Projeto “Innovation, Intellectual Property and Development:”. e-mail: [email protected] ) 2 nos países estrangeiros relevantes e as teorias justificadoras da proteção concedida no período. Dividiu-se este artigo em sete partes principais, representando cada um dos enfoques. De início busca-se apresentar a trajetória inicial desses direitos, em geral apontado como tendo sido com o advento dos privilégios, mas que porém obtêm alguma forma de proteção anterior. A partir de então, e da invenção e difusão dos tipos móveis de Gutemberg, fala-se então dos privilégios concedidos pelos reinos. Os direitos autorais propriamente ditos vieram a ser concebidos da experiência dos privilégios e foram o resultado dos conflitos do modelo de gestão do material impresso expresso pelos privilégios Concentrando na Inglaterra, França, Estados Unidos e Brasil, apontar-se-á os acontecimentos relevantes que conduziram à afirmação destes direitos em lugares diversos, e a elaboração de duas formas principais de conceber a estrutura destes direitos, formando dois sistemas gerais sob os quais se enquadram os diversos sistemas nacionais. 2. A trajetória inicial A espiritualidade da criação, a própria autoria, já havia sido reconhecida e atribuída na Antigüidade assim como sua materialidade, que estariam ligadas à singularidade dos manuscritos.1 Escribas profissionais existiam desde a Mesopotâmia, indo além dos grupos religiosos.2 Os gregos já reconheciam a autoria de seus filósofos, que eram geralmente financiados por membros da elite econômica, valorizando a sua condição e status, o que resultaria em retorno econômico com as atividades remuneradas que exerceriam em razão de seus escritos.3 Pode-se afirmar também que em Roma havia uma produção organizada de múltiplas copias de textos, tendo emergido e expandido no século I. 4 Em Roma e sobre o sistema jurídico romano, os debates acerca da existência de uma proteção à criação têm uma maior densidade, em virtude da própria complexidade de seu sistema de normas. E quando se discute a proteção literária em Roma, três são as principais teses dos negadores da existência da proteção literária: o silêncio de sua legislação; a inexistência de viabilidade econômica; e razões de ordem jurídica5. 1 COLOMBET, Claude. Propriété Littéraire et Artistique. Paris: Dalloz, 1997, p. 1-3. AVRIN, Leila. Scribes, Script and Books: The Book Arts from Antiguity to the Renaissance. USA: American Library Association, 1991, p. 75-76. 3 MAY, Christopher & SELL, Susan K. Intellectual Property Rights: a Critical History. Lynne Rienner Publishers, 2005, p. 47-48. 4 Ibidem, p. 47. 5 DOCK, Marie Claude. Etude sur le Droit D’Auteur. Paris: Pichon et R. Durand-Auzias, 1963, p. 9-19. 2 3 A inexistência de uma legislação direta ou especial não é argumento decisivo, pois o silêncio pode ao mesmo tempo servir de fundamentação a teorias adversas. E a verificação de sua existência, nestes casos, deve se dar indiretamente, após uma análise da complexidade do ordenamento sobre o qual incide a questão, buscando identificar a viabilidade dos caminhos possíveis para atingir o objetivo, que seria a própria proteção. E neste sentido, no Direito romano possivelmente podia-se pleitear reparação pelos danos aos direitos morais do autor, através da actio injuriarium, com aplicabilidade, por exemplo, em situações de plágio ou uso indevido do nome6, o que configuraria a proteção da personalidade do autor projetada sobre a obra. A questão da valoração material em Roma pode ser observada também através do instituto da Acessão, através do qual o autor da obra intelectual obtém a propriedade do objeto móvel físico sobre o qual é expressa, sendo considerado acessório frente à obra criativa.7. A existência deste instituto jurídico nos obriga a reconhecer em Roma a concepção da imaterialidade como objeto de proteção. E, neste sentido, se pronunciaram Gaius8 e Justiniano9, argumentando a acessoriedade do suporte material frente ao conteúdo intelectual da obra, reconhecendo assim a imaterialidade como bem jurídico protegido, contrapondo-se à material na qual se inscreve.10 Segundo Moreira Alves: “A pictura é a representação de figuras, mediante o emprego de tintas, sobre tela alheia. No direito clássico divergiam os juristas (Gaio, Inst. II, 77-78): uns entendiam que as tintas acediam à tela, e, assim, o proprietário dela se tornava proprietário do quadro; outros eram de opinião contrária – o quadro passava à propriedade do pintor. Justiniano (Inst., I, 33-34) seguiu a segunda opinião.”11 A inexistência de condições para inúmeras reproduções, que eram trabalhosas e dispendiosas, também não é impeditivo ao reconhecimento de utilidade econômica da obra resultante da criação, basta lembrar do papel dos bibliopola e librarius, o último responsável pelo equivalente às bibliotecas atuais, e aquele encarnando o papel dos editores e livreiros hodiernos.12 6 CASELLI, Piola. Codigue del Diritto di Auttore – Comentario. Torino: Unione Tipografico Editrice Torinese, 1943, p. 1. Apud Netto, José Carlos Costa. Direito Autoral no Brasil. São Paulo: FTP, 1998, p. 30. 7 MAYNZ, Charles. Cours de Droit Romain. Paris: A. Durard & Redone-Lauriel, 1886, p. 722. “Justinien a statué, pour la peinture considéreé comme art, que la main d’ouvre l’emporte sur la matière, tandis que la simple opération d’appliquer des couleurs sur une surface ne constitue q’une acession en faveur du propriétaire de la surface.” 8 GAIUS, Inst. II, 12. Apud DOCK, Marie Claude. Op. cit. p. 16. 9 JUSTINIANO, Inst. II, 2 pr. Apud DOCK, Marie Claude. Op. cit. p. 16. 10 DOCK, Marie Claude. Op. cit. p. 16-17. 11 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 299. 12 DOCK, Marie Claude. Op. cit. p. 12-13. 4 A identificação da autoria já detinha, neste período, amplo reconhecimento. A consciência dos autores dos direitos sobre a criação, porém, ainda que presente na Antigüidade, ampliou-se aos poucos no transcurso da história. Assim, apenas nos espaços onde houve viabilidade econômica para reprodução dos originais estabeleceu-se uma produção e circulação lucrativa de bens culturais sustentáveis – livros, no caso – e a demanda por uma proteção. É equivocado, portanto, falar da inexistência de uma proteção à propriedade literária na Antigüidade, especialmente em Roma. O que parece mais acertado é que as estruturas sociais e econômicas para o seu aparecimento e proteção estavam não só presentes, mas se apresentaram efetivamente, ainda que indiretamente e localizadas. Por volta do século IV o comércio livreiro começou a cair em declínio, bem como o Império, ao mesmo tempo que o Cristianismo crescia em poder e influência, os escritos antigos caíram em desuso e depois no esquecimento, tendo os escribas, acadêmicos e leitores dedicado-se cada vez mais aos textos cristãos, embora a Igreja tenha sido a maior responsável pela preservação da literatura mais antiga, especificamente dos autores cujos trabalhos haviam sido considerados clássicos.13 Durante toda a Idade Média então, a reprodução material se dava principalmente, embora não exclusivamente, nos monastérios, provavelmente sem fins lucrativos, objetivando principalmente a disseminação de temas religiosos. A identificação da autoria não era revelada, pois a elaboração e reprodução da obra era executada dentro do monastério, dificultando ou até impedindo a autoria individual.14 Pode-se considerar que havia, na organização da produção cultural da Idade Média nestes locais, a estrutura primária das futuras obras coletivas. Paralelamente, existiam os escritos de conteúdo político, cujo ganho essencial era o reconhecimento da autoria, e sua conseqüente divulgação. Além disso, neste período, têmse as apresentações públicas de caráter literário e representativo15, que podem ser descritos como antecessores dos direitos de representação, complemento dos direitos de reprodução na configuração dos direitos patrimoniais. Pode-se identificar, então, um intenso movimento de idéias, ainda que em círculos restritos. E também de uma proteção jurídica 13 YU, Peter K. Of Monks, Medieval Scribes and Middlemen. In Michigan State Law Review, vol 2006:1, p. 5-6. Disponível no endereço eletrônico www.ssrn.com. 14 STEWARD, Stephen M. international Copyright and Neighboring Rights. Londres: Butterworths, 1983. p. 13-14. Apud Netto, José Carlos Costa. Direito Autoral no Brasil. São Paulo: FTP, 1998, p. 30. 15 Ibidem, p. 30. 5 que consiste na concentração de direitos sobre o original e a sua reprodução nas mãos dos Abades, situação esta constante através da Idade Média.16 No final da Idade Média, as cidades cresciam em tamanho e a concentração populacional aumentava, ocorreu também a criação das universidades e sua independência da Igreja, este conjunto de fatores levou ao aumento do alfabetismo e conseqüente demanda por livros, levando à ampliação do campo de trabalho dos escribas e apontando para o surgimento de uma indústria da escrita, com ateliês de produção de livros se tornando conhecidos pelo nome de seu artista principal ao final do século 13 em cidades como Paris.17 3. A prensa e os privilégios Já no início da Era Moderna, a invenção da impressora, por Gutenberg em 1436, e do papel, em 1440, possibilitaram a reprodução dos livros em uma escala infinitamente superior ao conhecido então. A facilidade de reprodução, a alfabetização de um maior número de pessoas e uma produção literária mais intensa e diversificada dá origem a um período de eclosão cultural – a Renascença – e, concomitantemente, de uma indústria cultural, destacando-se os impressores e vendedores de livros.18 É de fundamental importância a existência destes intermediários (impressores e livreiros) entre o autor e o público, pois aqueles não possuíam meios de divulgação e distribuição, tão-pouco recursos para a impressão. Os privilégios consistiam em direitos de exclusividade na reprodução e distribuição de material impresso, por tempo determinado, porém renovável. Inicialmente de cinco anos, algumas décadas depois estendidos para 10 anos, e posteriormente em perpetuidade19. A revolução trazida pela prensa pode ser comparada às mudanças ocorridas em função da substituição da tecnologia analógica pela digital no meio da década de 1980. Ainda assim, naquele período, as funções dos escribas não se extinguiu imediatamente, durou tempo suficiente para que estes profissionais aprendessem sobre a estrutura do novo comércio, alguns se tornando impressores outros design de tipos móveis.20 Os primeiros privilégios concedidos na República Veneziana foram unicamente para os editores. O primeiro precedente atribuindo algum reconhecimento aos autores foi de 1486, para Marc’Antonio Sabellico, permitindo-lhe a escolha do editor, e penalizando 16 DOCK, Marie Claude. Op. cit. p. 60-61. YU, Peter K. Op. cit. p. 9-10. 18 DOCK, Marie Claude. Op. cit. p. 65. 19 DOCK, Marie Claude. Op. cit. p. 65. 20 YU, Peter K. Op. cit. p. 11-12. 17 6 com multa quem o fizesse sem autorização. Mais tarde, em 1493, um outro precedente autorizou o irmão de um autor, em razão desta condição, a publicação exclusiva de sua obra por 10 anos.21 Na França os primeiros privilégios de impressão parecem ter sido concedidos em 1507, embora saiba-se de casos anteriores de disputas entre autores e editores sobre a necessidade de aquisição de novo material para publicação22, mas nos anos seguintes foram concedidos diversos outros privilégios23, inicialmente temporários e não necessariamente exclusivos, mas que posteriormente, em meio a disputa de poder, foram estendidos continuamente, tornaram-se posteriormente perpétuos por vontade da realeza.24 Na Inglaterra, um alvará concedido pelos monarcas permitiu a criação do Stationer’s Company em Londres, dando-lhes amplo poderes, inclusive para queimar livros e destruir gráficas ilegais.25 O sistema era simples e determinava que o direito de cópia (copyright) era adquirido através do registro no livro da Companhia, e significava que apenas o titular do registro podia proceder a impressão e comercialização do livro. Estes direitos eram alienáveis, transferíveis e passíveis de sucessão hereditária, eram, enfim, direitos de propriedade perpétua.26 Então, a primeira configuração jurídica específica para a proteção dos direitos de criação foram os privilégios concedidos pela Coroa aos livreiros, em razão dos seus investimentos no instrumental de impressão, protegendo-os assim da concorrência alheia,27 garantindo-lhes o monopólio e também assegurando a possibilidade do desenvolvimento e sustento de editores locais, gerando desenvolvimento no Reino concedente. Um segundo fator de grande relevância é a sua função política, cujo objetivo principal era o de controlar o que era publicado e lido, estabelecendo a censura.28 Objetivava-se outrossim, neste início, com os privilégios, a divulgação das obras clássicas e a disseminação da erudição.29 Em 1578 foram suspensos na França os privilégios sobre obras antigas, que foram consideradas de domínio público, introduzindo, pela primeira vez, este conceito no âmbito 21 Ibidem, p. 15. ROSE, Mark. Authors and Owners: The Invention of Copyright. Londres: Belknap Press, 1995. P. 18-19. 23 DOCK, Marie Claude. Op. cit. p. 64 24 Ibidem, p. 70-71. 25 JOYCE, Craig P. & PATTERSON, L. Ray. Copyright in 1791. In Emory Law Journal, vol. 52, 2004, p. 913. 26 Ibidem, p. 913-914. 27 ASCENSÃO, José Oliveira. Direito de Autor e Direitos Conexos. Lisboa: Coimbra Editora, 1992, p. 13 28 JOYCE, Craig P. & PATTERSON, L. Ray. Op. cit. p. 914. DOCK, Marie Claude. Op. cit. p. 66-67. YU, Peter K. Op. cit. p. 16-17. 29 DARRAS, Alcide. Du Droit des Auteurs & des Artistes dans le Rapport Internationeaux. Paris: Arthur Russeau, 1887, p. 168-170. 22 7 dos direitos sobre os bens resultantes da criação literária, autorizando apenas aqueles sobre obras novas, por período limitado.30 A concessão dos privilégios apenas às novas obras, além de instituir o domínio público de obras da criação, instigou a consciência dos autores da época, uma vez que os livreiros necessitavam de material original para exercer a sua atividade. Esta situação teve reveses nas décadas vindouras, com os decretos de 1618 e 1649, instigando um embate entre os defensores do uso livre da obra e os que, com o apoio da realeza, pregavam a perpetuidade dos privilégios, obtida em 1723, o que causou a concentração dos privilégios nas mãos dos livreiros parisienses31, que apoiavam a realeza, em oposição aos livreiros de outras regiões e defensores da liberdade comercial, inspirados pelo emergente paradigma liberal. Em 1662, na Inglaterra, foi aprovado o Licensing Act, que ampliou os poderes da Stationer’s Company, tornando uma ofensa a impressão sem o registro, tanto quanto já o era se o material fosse impresso sem o imprimatur.32 Esta regulamentação foi fortemente baseada no Star Chamber Decree de 1637, que mais uma vez era um decreto promovido pelos membros do Stationer’s em seu próprio benefício. O Licensing Act era para ser renovado a cada dois anos e, com interrupções, o foi até o ano de 1694, quando deixou de ter qualquer função além da proteção do monopólio dos editores, deixando de ser renovado em 1694, após a Revolução Gloriosa.33 O debate sobre os direitos dos editores atravessou o século, tanto que, ao fim do século XVII, por ocasião da discussão do Licensing Act, Locke apresentou um Memorandum, em razão da rediscussão sobre os privilégios, “unindo os argumentos anti-monopolistas com o preocupação iluminista da circulação do conhecimento.”34 Os privilégios não podem, contudo, ser confundidos com os direitos autorais propriamente ditos, pois as suas funções e justificativas são diversas destes últimos, contra os quais serão opostos por ocasião dos embates nos séculos XVII e XVIII, visando a implantação destes últimos. Suas justificativas econômicas consistem no risco que implicam o investimento de formação de uma gráfica associada a uma estrutura de divulgação e difusão, compondo-se de uma interdição a todos os demais, que não o 30 DOCK, Marie Claude. Op. cit. p. 65-75. Ibidem, p. 65-75. 32 JOYCE, Craig P. & PATTERSON, L. Ray. Op. cit. p. 914 33 Ibidem, p. 916. 34 ROSE, Mark. Nine-tenths of the Law: the English Copyright Debates and the Rhetoric of the Public Domain. In Law & Contemporary Problems, vol. 66, winter/spring 2003, p. 78. 31 8 privilegiado, de imprimir ou vender a obra privilegiada35, sendo não mais que monopólios econômicos. Os privilégios eram uma instituição de salvaguarda industrial destinados a indenizar os editores dos custos gerais de publicação e dos riscos comerciais da empreitada.36 Suas justificativas políticas, como vimos acima, remete à censura e o controle do que pode ser impresso, lido e discutido. Argumenta-se que os privilégios, em um segundo momento, explicavam-se por serem uma constatação oficial de uma situação preexistente, passando, no terceiro momento, a serem pretendidos, pelos editores, como sendo uma graça fundada na justiça.37 Estabelecidos os privilégios, que podem ser considerados como direitos editoriais, passam-se às questões da necessidade ou não de sua cessão específica pelo autor-criador. Questionava-se se bastaria a aquisição do original pelos editores para que houvesse a cessão dos direitos de reprodução ou seriam estes últimos independentes do exemplar.38 Emergia assim a consciência da diferença entre a propriedade real sobre o original e o direito de reprodução do original. Durante o século XVII e início do século XVIII, surgia um outro elemento, ligado ao emergir da sociedade civil, relacionado ao sentimento antimonopolista e ao emergir da construção dos direitos da coletividade sobre os escritos literários.39 Apresenta-se então uma segunda questão, onde debate-se sobre a perpetuidade ou não destes direitos. A intensidade deste debate ultrapassa as elites políticas e jurídicas e abrange a sociedade mais ampla, inclusive os próprios autores e críticos que, na falta de meios eficientes de se fazerem ouvidos pelos círculos do poder, expressavam as suas posições em seus trabalhos e criticismo literário.40 Enfim, os conflitos neste período envolvem, em um primeiro plano, os editores e os autores sobre a existência e titularidade dos direitos de reprodução e o modo de sua transmissão, e, em um segundo patamar, os conflitos entre as pretensões destes na perpetuidade destes direitos e os pleitos da emergente sociedade civil em uma limitação a estes direitos.41 Estes conflitos viriam posteriormente extinguir a existência dos privilégios 35 DOCK, Marie Claude. Op. cit. p. 65-75. Ibidem. 37 DARRAS, Alcide. Op. cit. p. 172 38 RECHT, Pierre. Le Droit D’Auteur: Une Novelle Forme de Propriete – Historie et Theorie. Paris: Librarie Generale de Droit et de Jurisprudence, 1969, p. 20-21. 39 ROSE, Mark. Nine-tenths of the Law: the English Copyright Debates and the Rhetoric of the Public Domain. In Law & Contemporary Problems, vol. 66, winter/spring 2003, p. 77-78. 40 ENGLERT, Hilary Jane. The Work and the Book: Locating Literary Value and Property in Eighteenthcentury Britain. Tese de Doutorado. The Johns Hopkins University, 2002, p. 3-5. 41 ROSE, Mark. Op. cit, p. 77. 36 9 substituindo-os, e, com uma natureza diversa destes, surgia como conceito e, neste momento, ainda apenas pretensão, o direito de autor. Este embate será explorado neste trabalho em dois contextos distintos: na Inglaterra e França, e seus reflexos nos EUA e no Brasil. 4. O copyright na Inglaterra Estes debates tiveram influência no Copyright Act, da Rainha Ana, promulgado em 10 de abril 1710, que é considerado o primeiro estatuto de proteção ao autor pelos direitos de reprodução sobre as obras criativas, e o marco inicial do sistema anglo-americano de copyright. É estruturado a partir do Licencing Act, que por sua vez foi elaborado com base no Alvará de 1556. Este novo estatuto porém altera o conteúdo da proteção, transformando uma legislação de censura desenhada para a supressão do conhecimento em um instrumento de copyright cujo objetivo central é o incentivo ao conhecimento, transformando ainda um direito privado editorial em uma concessão pública.42 O preâmbulo do Copyright Act de 1710 aponta suas justificativas: “An Act for the Encouragement of Learning, By Vesting the Copies of Printed Books in the Authors or Purchasers of such Copies, during the Times therein mentioned.” O estatuto, ao mesmo tempo que removeu um instrumento de monopólio causou desordem no comércio livreiro, argumentava-se porém que a censura impede o acesso ao conhecimento por razões políticas tanto quanto o mercado o impede por razões de lucro, sendo este agora causado pela desordem no comércio livreiro.43 O Copyright Act rejeitou duas figuras centrais do Licencing Act: a limitação aos membros da associação (Stationer’s Company) e a sua perpetuidade, mas essa mudança porém foi conseqüência dos esforços dos editores em manter o seu monopólio44, alterando a sua retórica e fundamentos, em razão da recusa do Parlamento em prorrogar o Licencing Act, mas sem alterar os seus objetivos, até porque uma prática comum deste período era a cessão de todos os direitos pelo autor ao editor ou produtor.45 Este ato reconhecia os autores como titulares dos direitos e estabelecia limites temporários à proteção, impondo prazos de 21 anos para os livros já impressos e 14 anos para novos livros, com a possibilidade de uma renovação se o autor ainda estivesse vivo ao fim do primeiro termo. Seu conteúdo principal determinava que estes direitos eram sobre a 42 JOYCE, Craig P. & PATTERSON, L. Ray. Op. cit. p. 916 JOYCE, Craig P. & PATTERSON, L. Ray. Op. cit. p. 917. 44 PATTERSON, L. Ray. Copyright in Historical Perspective. USA: Venderbilt University Press, 1968, p. 223. 45 JOYCE, Craig P. & PATTERSON, L. Ray. Op. cit. p. 917, nota 22. 43 10 impressão e comercialização do produto, originalmente eram concedidos aos autores e deveriam durar por tempo limitado.46 Além disso prescrevia a obrigação de registro da obra para fins de proteção. Uma das políticas introduzidas no copyright com este estatuto é o domínio público, tanto para obras novas como paras as antigas, sendo talvez a sua característica mais revolucionária e congruente com seus objetivos. Após a promulgação do Ato de 1710, e a partir de 1731, quando expiravam os copyrights mais antigos, os editores voltaram diversas vezes ao Parlamento para tentar obter uma extensão, e não obtendo sucesso, foram aos tribunais para atingir os seus objetivos (de monopólio perpétuo), e como resultado dos argumentos o copyright como direito natural ou common law tornou-se parte da história da matéria, inclusive jurisprudencial.47 A estratégia utilizada não era a de repelir o estatuto, inviável então, mas o de provocar o seu desfazimento assegurando o reconhecimento legal de um direito natural de propriedade intelectual, o que iria negar a proteção estatutária concebida pelo Parlamento em 1710. A questão central a ser decidida nos tribunais foi se o copyright era um direito natural ou estatutário, se advinha da lei positiva apenas, ou se seu fundamento ultrapassar os limites da legislação positiva.48 Dois casos foram marcantes para a efetiva implementação da legislação. O primeiro, Millar v. Taylor, em 1769, declarou os direitos de common-law dos autores e a sua perpetuidade. Em 1774, Hinton v. Donaldson, reverteu a decisão, declarando os direitos autorais como propriedade natural, mas limitando-a aos termos estabelecidos no Ato de 1710.49 No mesmo ano, um outro caso, Donaldson v. Beckett, determinou decisivamente e, na Inglaterra, definitivamente, em favor dos direitos estatutários, ou seja, considerou estes direitos como sendo atribuídos pela legislação, negando a sua categorização como direito natural.50 Caso a decisão tivesse sido ao contrário, segundo o Lord Camdem, “our learning would be locked up in the hands of the (booksellers) os the age, who will set what price upon it their avarice chuses to demand, till the public become...their slaves...”51 É de grande interesse notar que os contentores eram todos editores, e nunca os autores, o que reforça ainda mais a concepção de que os argumentos usados tanto na 46 Ibidem, p. 918. Ibidem, p. 923-924. 48 Ibidem, p. 926. 49 ROSE, Mark. Op. cit, p. 87. 50 JOYCE, Craig P. & PATTERSON, L. Ray. Op. cit. p. 925 47 11 construção do Copyright Act como do copyright como direito natural são originados e constituídos por e em favor dos editores, inclusive, deve-se notar, Thomas Beckett era o sucessor de Millar, uma vez que após a morte do último o primeiro adquiriu os direitos em sua posse.52 Os direitos de cópia ficam então delineados na Inglaterra, em fins do século XVIII, como sendo de titularidade dos autores, classificado como monopólio para fins de regulamentação do comércio, cujo conteúdo era tópico nevrálgico das discussões e decisões, e limitados no tempo, em razão do interesse da coletividade. Os argumentos usados para limitar a propriedade neste período provavelmente ecoavam o jurista escocês Lord Kames, que argumentava que o monopólio perpétuo dos livros seria destrutivo ao saber, à literatura e até ao comércio no médio prazo. Porém, além do ilustrado por Lord Kames, os argumentos apresentados por Lord Camdem atacavam a profissionalização e remuneração dos autores, que deveriam contentar-se com glórias futuras, e os livreiros, a quem se referia como “dirty booksellers”53. Estes argumentos não foram plenamente assimilados no contexto da expansão do liberalismo econômico e intensificação do capitalismo, fomentando reações que pautaram os próximos debates, antecedendo o Copyright Act de 1842, que estendeu o termo para 42 anos ou sete anos após a morte do autor. Nas discussões do Copyright Act de 1842, as propostas e justificativas de Talfourd e Wordswoth, que acreditavam em um direito natural do autor e propunham a sua perpetuidade, foram rebatidas por Thomas Babington Macaulay, que resgatou os argumentos anti-monopolistas, combinando-o com o utilitarismo, concluindo que copyright é monopólio e que produz os mesmos efeitos deste, sendo um mal em si mesmo, porém necessário como garantia do provimento dos autores, mas que, portanto, “o mal não deve durar um dia a mais que o necessário para assegurar o bem.”54 Pode-se identificar então a superação dos debates em torno do conteúdo da proteção jurídica a ser atribuída ao copyright. Os debates sobre estes direitos deslocaram-se definitivamente para a questão do monopólio, característica que lhes foi então atribuída, e, considerando as justificativas anti-monopolistas, buscava-se estabelecer a extensão da proteção que os mesmos deveriam possuir, de maneira a equilibrar os interesses das empresas que representam os autores e da coletividade. 51 Ibidem, p. 928. JOYCE, Craig P. & PATTERSON, L. Ray. Op. cit. p. 927. 53 ROSE, Mark. Op. cit, p. 81. 52 12 5. O droit d’auteur na França A disputa na França sobre os privilégios tornou-se intensa ao longo do século XVIII, tornando-se particularmente forte entre os livreiros de Paris e os demais, por conta da extensão dos privilégios daqueles, a acabou por fortalecer o pleito dos autores, desejosos por estabelecer como originariamente seus os direitos sobre suas obras, como seus contemporâneos ingleses haviam conseguido. A grande questão que antecedeu o debate sobre a titularidade original das obras criativas foi sobre a extensão dos privilégios. Debatiam em juízo a questão por iniciativa dos livreiros das provincias e alguns de Paris, todos não privilegiados, em contraposição aos livreiros parisienses, detentores dos privilégios e desejosos por sua perpeteuidade. O advogado dos livreiros de Paris argumentou que seria injusta a pemissão de reprodução de obras que foram adquiridas diretamente do criador, que seria o proprietário original da obra.55 Observa-se na França o mesmo padrão de desenvolvimento ocorrido na Inglaterra, quando os livreiros privilegiados passam a apontar o autor como fonte originária destes direitos, e que adquiriram estes direitos dos próprios autores não sendo possível limitar ou anular tais direitos por decretos, por serem estes naturais, mas que agora estão transferidos aos livreiros pelos próprios autores. Foi uma construção retórica bem elaborada e sucedida, ao ponto de ainda hoje utilizarmos o termo direito autoral, quando os verdadeiros detentores destes direitos continuam sendo, de fato, os intermediários. Bem antes porém pode-se notar a existência de conceitos preliminares indicando uma proteção aos autores. Essa indicação implícita abrange os direitos morais quando garante e obriga a reprodução integral de obras pelo privilegiado,56 e os direitos patrimoniais quando considera-se relevante e passíveis de proteção as anotações feitas sobre obras antigas, levando a anulação de privilégio por descumprimento do contrato entre o autor e o editor.57 A autora aponta três razões para a inexistência de um direito do autor neste período: a) razões econômicas, pois a atenção da regulamentação era voltada exclusivamente ao seu aspecto econômico, e os detentores do capital eram os que monopolizavam as editoras e também a atenção do Poder constituído; b) razões políticas, uma vez que os autores eram os condutores da opinião pública, recebendo retorno por isso, devendo submeter seus 54 Ibidem, p. 83-84. DOCK, Claude-Marie. Op. cit. p. 115-118. 56 DOCK, Claude-Marie. Op. cit. p. 78. 55 13 desígnos aos interesses do Estado; c) razões psicológicas, que justificam-se pela inexistência de um direito pré-existente sobre o qual fundamentar as suas razões, principalmente o silêncio do direito romano.58 A construção do conceito de que a autoria era atributiva de direitos, ainda que inicialmente tivesse a forma de privilégio encontrou eco nos tribunais e no Conselho do Rei. O caso Crébillion, decidido pelo Conselho em 1749, apontava que o autor tinha direito de retirar proveito econômico da utilização de suas criações e que estas emanavam de sua personalidade, devendo os livreiros com isso pagar uma quantia continua sobre o seu uso,59 que pode-se dizer equivalente aos royalties atuais. Outras decisões foram produzidas em favor dos autores e seus herdeiros, em 1761, 1770 e 1777,60 sem que seus resultados contudo sejam equivalentes ao real direito autoral a ser perfeccionado no século vindouro, embora pudessemos dizer que de fato este direito já existia então.61 A discussão aqui também foi sobre a inserção destes direitos como sendo ou não de propriedade, como sendo ou não direitos naturais. Em seis de setembro de 1776, o Rei Luís XVI, reconhecia a precedência do autor sobre o livreiro, mas o mantinha como privilégio. No dia 30 de agosto de 1777, o Conselho do Rei determina a precedência do autor, reiterando a perpetuidade destes direitos. O preâmbulo da determinação, fortemente influenciado pela carta de Luís XVI reconhecendo os autores como proprietários, afirma que “os privilégios de impressão são uma graça fundada na justiça”, com o objetivo de remunerar os autores pelos seus trabalhos.62 É interessante notar que embora a precedência em matéria de direitos autorais, na Europa Continental, seja atribuída à França, Carlos III, da Espanha havia, em 1763 (14 anos antes da França) consagrado a titularidade exclusiva do autor ou seus herdeiros, em perpetuidade.63 Os embates também se davam entre artistas de diversas categorias e, por exemplo, entre os autores do texto e os atores que encenavam suas peças. Esta disputa foi resolvida em favor dos primeiros, e reafirmada na legislação francesa posterior à Revolução.64 57 Ibidem, p. 79. Ibidem, p. 83-84. 59 Ibidem, p. 118-119. 60 Ibidem, p. 120-122. 61 Ibidem, p. 121. 62 Ibidem, p. 127-128. 63 JESSEN, Henry Francis. Direitos Intelectuais. Rio de Janeiro: Edições Itaipu, 1967, p. 17. Apud NETTO, José Carlos Costa. Op. cit. p. 34. 64 SURWILLO, Lisa. Copyright and context: the intellectual property of nineteenth-sentury Spanish theater. Tese de Doutorado. Universidade da Califórnia, Berkeley, 2002. 58 14 A Revolução Francesa veio a abolir todos os privilégios,. tanto os dos autores quanto o dos livreiros. No entanto, após passadas as emoções e transcorrido o período de exaltação foram estabelecidos os direitos autorais, sob o nome de direito de autor, “que dependem não mais de uma concessão arbitrária dos poderes públicos, mas da ordem natural e procedente do fato da criação intelectual.65 Em 19 de janeiro de 1791 foram assegurados os direitos de representação e em 24 de julho de 1793 são consagrados os direitos de reprodução; ambos pilares dos direitos patrimoniais. Nas palavras de Le Chapelier, ao relatar o projeto que veio a se tornar o decreto de 1791: “a mais sagrada, a mais pessoal de todas as propriedades é a obra fruto do pensar do escritor”.66 Os direitos de representação foram garantidos aos autores, por toda a sua vida e aos herdeiros por 5 anos após a sua morte. Os direitos de reprodução, que não mais estavam limitados aos livros, mas a todas as criações artísticas, duravam toda a vida dos autores e por 10 anos após a sua morte. O século que se iniciou trouxe a extensão desta proteção e a regulamentação de novas situações, como sobre as obras póstumas, em 22 de março de 1806, e sobre as obras publicadas no exterior, de 30 de março de 1852. Estes desenvolvimentos, na França e na Inglaterra, deram origem, respectivamente, aos sistemas jurídicos do “Droit d’Auteur” e “Copyright”. Neste período superaram-se o conceito de privilégio concedido pelos monarcas para uma situação em que os direitos autorais foram enquadrados como propriedade natural, cujo conteúdo são os direitos de representação e reprodução, onde o titular é o criador de qualquer obra artística. O limitação temporal do exclusivo sobre estes direitos representa a proteção dos interesses da sociedade civil, com preocupações com o engrandecimento cultural e justificativas anti-monopolistas, isso em um ambiente sócio-cultural de consideração dos direitos de propriedade como absolutos e ilimitados. Entretanto, a lei francesa de 14 de julho de 1866 estendeu o prazo de proteção de 5 ou 10 anos para 50 anos após a morte do autor, prazo que figurou na Convenção de Berna, duas décadas depois, passando a influenciar a legislação dos demais países, estabelecendo também a categoria de limites atemporais, já determinados no sistema anglo-saxão, através do fair use. 65 DESBOIS, Henry. Cours de proprieté litteraire, artistique et industrielle. p. 35. Apud DOCK, ClaudeMarie. Op. cit. p. 150. 66 DOCK, Claude-Marie. Op. cit. p. 151-152. 15 6. O copyright norte-americano O primeiro ato de formação do copyright americano foi uma resolução do Congresso Continental, que congregava os estados até então independentes uns dos outros. Antes dele estatutos estaduais foram instituídos. Isso ocorreu nos anos que antecederam a Constituição Americana, de 1787. As quatro condições para o monopólio sobre os direitos no Estatuto da Rainha Ana foram mantidas, sendo então a proteção limitada a: a) trabalhos publicados; b) os autores de novas obras; c) direito de imprimir e vender cópias do trabalho; d) por tempo limitado.67 A Resolução do Congresso Continental, de 1783, sugerindo a todos os estados que adotassem uma medida de proteção, continha todos os elementos do Estatuto inglês, com exceção da necessidade de cidadania americana para obter a proteção, o que demonstra cabalmente sua inspiração.68 O interesse na Resolução indica não só a profundidade do interesse dos membros pelo aprendizado como também a convicção de que copyright promoveria o aprendizado.69 Havia treze Estados então, e, na época da Resolução, três (Connecticut, Massachussets e Maryland) adotaram legislação própria anterior, os demais (com exceção de Delaware, que não o fez) a adotaram até 1786, com Nova York sendo o último. Todos os Estados incorporaram os mesmos princípios do estatuto Inglês de 1710 e da Resolução.70 Todos os Estados que implementaram estatutos próprios, com exceção de três (Massachussets, New Hampshire and Rhode Island) concederam ao autor a “propriedade” sobre o seu trabalho, os demais nove concederam apenas o direito de reprodução e comercialização. Todos, sem exceção, condicionaram a proteção à publicação (atualmente comunicação ao público). O significado disso é a rejeição da teoria do direito natural e a aceitação do copyright como regulamentação do mercado, com um benefício temporário aos autores para o benefício a médio e longo prazo da sociedade como um todo.71 A Convenção Constitucional decidiu com clareza a necessidade de uma legislação nacional de copyright, e assim, unanimemente e sem debates, a partir de duas propostas 67 JOYCE, Craig P. & PATTERSON, L. Ray. Op. cit. p. 931. Ibidem, p. 932. A Resolução: “Resolved. That it be recommended to the several States, to secure to the author’s or publishers of any new books not hitherto printed, being citizens of the United States, and to their executors, administrators and assigns, the copy rights of such books for a certain time not less than fourteen years from the first publication; and to secure to the said authors, if they shall survive the term first mentioned, and to their executors, administrators and assigns, the copy rights of certain books for another term of time not less than fourteen years, such copy or exclusive right of printing, publishing and vending the same to be secured to the original authors, or publishers, their executors, administrators and assigns, by such laws and under such restrictions as to the several States may seem proper.” 69 Ibidem. 70 Ibidem, p. 933. 71 Ibidem, p. 934-936. 68 16 convergentes, foi aprovada a cláusula constitucional que permite ao Congresso Nacional a aprovar uma legislação nacional sobre o assunto: “To promote the Progress of Science and the Useful Arts, by securing for limited Times, to Authors and Inventors, the exclusive Right to their respective Writings and Discoveries”.72 As condições que devem ser obedecidas pelo Congresso ao elaborar uma legislação nacional são similares o suficiente – quase idênticas – ao Estatuto inglês de 1710 que impede uma conclusão de elaboração independente. Em 1790, o primeiro Copyright Act americano, foi aprovado pelo primeiro congresso da nova nação, em sua segunda sessão, e foi intitulado “An Act for the encouragement of learning by securing the copies of maps, charts, and books, to the author and proprietors of such copies, during the times therein mentioned.” O objetivo da lei era claro: direito limitado reconhecido por um período limitado, sujeito à condições específicas e à necessidade de cidadania. Fora isso não havia proteção. Então a principal proteção é concedida não ao detentor dos direitos mas ao público em geral em aprender com o material.73 Por fim, restringido o campo de ação legislativo, de forma a impedir a perpetuidade dos direitos concedidos, ou a sua concessão sem que o material seja divulgado, ou ainda que os direitos fossem originalmente concedidos à terceiros que não o próprio criador, restava impedir que os direitos de copyright fossem usados como forma de censura, como haviam sido os privilégios. A solução encontrada para tal no nascente sistema jurídico foi a introdução da Bill of Rights, concluída em 1789, logo após a ratificação da Constituição e o clamor pelos estados de uma declaração de direitos dos homens e mulheres, e tendo sido ratificada em 1791, onde constava a proibição de regulamentar a imprensa com a Free Press Clause do Bill of Rights.74 O sistema protetivo americano inicial, toda a evidência aponta para isso, entendeu o copyright como um conceito regulatório e não proprietário, reconhecendo que a detenção do direito de cópia deveria ser por tempo suficiente para justificar mas não excessivo ao ponto de derrotar a regulamentação, sendo três as políticas de copyright constantes na Constituição Americana: a) promover o aprendizado (promote learning); b) prover acesso 72 Ibidem, p. 937. JOYCE, Craig P. & PATTERSON, L. Ray. Op. cit. p. 940. 74 Ibidem, p. 942-944. 73 17 público (provide public access); e c) proteger o domínio público (protect the public domain).75 7. O direito de autor no Brasil Já no Brasil, a Constituição do Império nada estipulou sobre os direitos autorais nem na carta de Constituição de 1824 ou no ato adicional de 1837, embora tenha protegido os direitos dos inventores na primeira, em seu artigo 179, XXVI: “Os inventores terão a propriedade das suas descobertas, ou das suas producções. A Lei lhes assegurará um privilegio exclusivo temporario, ou lhes remunerará em resarcimento da perda, que hajam de soffrer pela vulgarisação.” A Lei que “Crêa dous Cursos de sciencias jurídicas e sociaes, um na cidade de São Paulo e outro na cidade de Olinda”, de 11 de agosto de 1827, em seu artigo 7 º estabelece que: “Os Lentes farão a escolha dos compêndios da sua profissão, ou os arranjarão, não existindo já feitos, com tanto que as doutrinas estejam de accordo com o systema jurado pela nação, estes compêndios, depois de approvados pela Congregação, servirão interinamente; submettendo-se porém a approvação da Assembléia Geral, e o governo fará imprimir e fornecer às escolas, competindo aos seus autores o privilégio exclusivo da obra por dez annos.” A comentar a lei que instituiu os cursos de direito do Brasil, Bittar conclui que “foram os lentes os primeiros criadores contemplados expressamente com a exclusividade de exploração – embora ainda sobre a forma de privilégio e não com o caráter de ‘direito’ – de suas obras.”76 Cumpre notar o atraso jurídico da concessão de privilégios, tendo a doutrina e legislação internacional já superado esta fase quanto aos direitos autorais. O Código Criminal de 1830 estatui a proteção penal aos direitos autorais, e suas respectivas penas, em seu artigo 26177 Mesmo não tendo obtido proteção específica na legislação civil, exceto para os Lentes na forma de privilégio, a especificidade do artigo 261 do Código Criminal do 75 Ibidem, p. 945-946. BITTAR, Carlos Alberto. 2. ed. Revista, atualizada e ampliada de conformidade com a Lei 9610/98, por Carlos Eduardo Bianca Bittar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 90. 77 “Imprimir, gravar, lithografar ou introduzir quaisquer escriptos ou estampas, que tiverem sido feitos, compostos ou traduzidos por cidadãos brazileiros, em quanto estes viverem, e dez annos depois de sua morte, se deixarem herdeiros. Penas: Perda de todos os exemplares para o autor ou o traductor, ou seus herdeiros, ou, na falta d’eles, do seu valor e outro, e de multa igual ao tresdobro do valor dos exemplares. Se os escriptos ou estampas pertencerem a corporações, a proibição de imprimir, gravar, lithografar ou introduzir durará somente por espaço de dez annos.” 76 18 Império nos força a reconhecer a existência destes direitos também no plano civilista, ainda que indiretamente, pois admite que o contrafator esteja violando um direito, que portanto existe. Finalmente, é possível observar a superação do conceito destes direitos como privilégios. Este entendimento corrobora a conclusão de Teixeira de Freitas, que afirma que há proteção da imaterialidade.78 Neste mesmo sentido figura Tobias Barreto, embora ressaltando sua insuficiência, dizendo que “Além da sancção penal referir-se sómente a uma ordem de factos, que não abrange a totalidade dos casos possiveis, resta sempre de pé a questão de saber, de que natureza é o direito que o codigo alli garantiu.”79 Acrescenta, o mesmo autor, mais adiante, sobre o alcance destes direitos, que: “o direito de autor é garantido entre nós pela lei penal; o que cahe no dominio da lei civil, é simplesmente a indemnisação do mal causado pela violação desse direito, e isto nada tem a vêr com a personalidade, mas sómente (tem que ver) com o quanti interest, com as relações economicas do autor80.” Tobias Barreto destaca ainda a importância de se determinar “qual a posição que elle deve occupar no systema da sciencia juridica81.” E em resposta à própria indagação, propõe que: “a importancia dada ao interesse real, ás relações econômicas do autor, não supre nem compensa o que ella tem de erroneo. A theoria tomou outra feição e chegou-se enfim a conceber o direito autoral como uma derivação da pessoa, como um direito classificavel entre os direitos pessoaes. Neste pé se acha a questão. Os diversos modos de encaral-a e resolvel-a têm todos ainda os seus representantes. Entretanto me parece que a verdade está do lado dos que seguem o último ponto de vista. O direito autoral, diz Bluntschli, pertence á classe dos direitos geraes humanos. A obra é uma expressão do espírito pessoal do autor, um pedaço da sua personalidade.”82 Data de então, através de alguns trabalhos de Tobias Barreto, a introdução no Brasil da visão de que os direitos autorais submetem-se aos direitos da personalidade. Com relação à natureza jurídica dos direitos autorais, e seu enquadramento na estrutura de Direito Civil, Tobias Barreto discorda de Teixeira de Freitas, que enquadra sob a teoria da propriedade a natureza dos direitos autorais, como podemos notar quando explica que “o direito de propriedade com aplicação comprehensiva, isto é, aos objetos intangíveis – res que tangi non possunt – que in jure consistunt (embora visíveis) é o vero direito de propriedade.”83 78 FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das Leis Civis. Rio de Janeiro: Il Garnier, Livreiro Editor, 1896. Nota 1 ao artigo 884. 79 BARRETO, Tobias. O que se deve entender por direito autoral. In Estudos de Direito. Sergipe: Edição do Estado do Sergipe, 1926. Obras completas, v.2, p. 152-153. 80 Ibidem, p. 159. 81 Ibidem, p. 153. 82 Ibidem, p. 157. 83 FREITAS, Augusto Teixeira de. Op. cit. 19 A existência de decisões judiciais reconhecendo estes direitos84 é outro fator indicativo de sua proteção no ordenamento jurídico nacional do Império, ainda que sem especificidade. Esta proteção jurídica então teria, a partir da análise civilista do Código Criminal, a seguinte configuração: (a) apenas os autores brasileiros estariam protegidos; (b) o autor teria proteção por dez anos; (c) os herdeiros seriam beneficiados por 10 anos após a morte do Autor; (d) caberia ao Autor o direito exclusivo de utilização econômica da obra; (e) a pessoa jurídica poderia ser titular, ainda que derivado, dos direitos autorais, pelo prazo de 10 anos, a partir de sua comunicação ao público. No fim do Império, com o influxo de novas idéias sobre os direitos autorais, os debates eram intensos e diversificados. Disputava-se sobre a categoria jurídica ao qual devem pertencer os direitos autorais, se era um direito de propriedade, ainda que especial, ou um direito pessoal. No Brasil, o primeiro Código Penal da República, promulgado pelo Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, tratou, em seu Capítulo V, “Dos Crimes Contra a Propriedade Litteraria, Artistica, Industrial e Comercial”, nos artigos 342 até 355. Especificamente com relação aos direitos autorais, então denominados propriedade literária e artística, protegia criminalmente os direitos de reprodução e representação, defendendo-os tanto contra a contrafação como contra o plágio, conforme disposto em seus artigos. O prazo de proteção manteve-se em dez anos após a morte do autor e as penas eram pecuniárias, com perda dos exemplares e pagamento de multa em favor do autor, como podemos observar em seu artigo 34585, que constitui a sua essência. A Constituição de 24 de fevereiro de 1891, ao contrário da anterior, no Título IV, “Dos Cidadãos Brasileiros”, Seção II, “Declaração de Direitos”, em seu artigo 72, inciso 26, dispõe que: “Aos autores de obras literárias e artísticas é garantido o direito exclusivo de reproduzi-Ias, pela imprensa ou por qualquer outro processo mecânico. Os herdeiros dos autores gozarão desse direito pelo tempo que a lei determinar.” Garante assim na primeira Constituição Republicana a existência dos direitos autorais, a duração durante toda a vida do autor, a transmissão causa mortis por tempo determinado, que, em razão da legislação infra-constitucional penal vigente, é de 10 anos. Por fim, a garantia constitucional se refere 84 ASCENSÃO, José Oliveira. Direito Autoral. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. 2 ª Edição, refundida e ampliada, p. 11. 85 “Art. 345. Reproduzir, sem consentimento do autor, qualquer obra litteraria ou artistica, por meio da imprensa, gravura, ou lithographia, ou qualquer processo mecanico ou chimico, emquanto viver, ou a pessoa a quem houver transferido a sua propriedade e dez annos mais depois de sua morte, si deixar herdeiros: Penas – de apprehensão e perda de todos os exemplares, e multa igual ao triplo do valor dos mesmos a favor do autor.” 20 explicitamente a um direito exclusivo, concebendo este direito não como propriedade mas sim como exclusivo comercial sobre os direitos de reprodução, mesma posição adotada anteriormente pelos países de common law, como os Estados Unidos, em quem se inspiraram os constituintes de então. Em 1º de agosto de 1898, promulgou-se a Lei nº 496, baseada no projeto de autoria de Augusto Montenegro, que veio a ser denominada Medeiros e Albuquerque, em homenagem ao seu relator e autor efetivo86, que foi o primeiro estatuto civil regulamentando os direitos autorais do Brasil. Antes desta, alguns projetos objetivando a proteção dos autores haviam sido propostos, mas não lograram êxito. Em 1856, Aprigio Justiniano da Silva Guimarães apresentou o primeiro projeto ao parlamento. Logo após, em 1858, Gavião Peixoto fez o mesmo, e “a quem o primeiro acusou implicitamente de plágio, com boas razões”.87 E em 1875, José de Alencar apresenta um novo projeto, também sem obter sucesso.88 Bittar aponta mais dois projetos nos anos de 1861 e 1893, almejando a regulamentação do assunto, sem, contudo, indicar os seus autores.89 Outro projeto da era republicana de autoria de Pedro Américo foi apresentado, também sem lograr continuidade, e sem data especificada.90 Esta Lei foi baseada na Lei Belga de 22 de março de 1886, “representava texto compatível com o estágio evolutivo da ocasião”91, “que honra a nossa cultura, adiantada como era a época de sua elaboração.”92 Inovadora, ao proibir as modificações não autorizadas e instituir o direito de nominação, “esse diploma tratou do assumpto, cerca de trinta annos antes do apparecimento das leis que tem disciplinado o direito moral, embora nenhuma vez usasse expressamente este nome.”93 Embora progressista a Lei, o ordenamento jurídico nacional era conservador e copiador, e assim teve a Lei 496 duração limitada, “eis que fermentava a idéia de codificação dos direitos privados”94. O advento da República no Brasil constitucionalizou assim como especializou a proteção, que foi inserida na primeira Consttuição da República bem como organizada em lei ordinária especializada, a Lei 496 de 1898, além da assinatura de alguns tratados 86 ASCENSÃO, José Oliveira. Op. cit. p. 12. Ibidem, p. 13. 88 CHAVES, Antônio. Direito de Autor I: Princípios Fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 28. 89 BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 4a ed., 2003, p. 12-13. 90 AZEVEDO, Philadelpho. Op. cit. p. 148. 91 Ibidem, p. 148. 92 Ibidem, p. 148. 93 Ibidem, p. 148. 94 Ibidem, p. 94. 87 21 internacionais, bilaterais e multilaterais, sobre o assunto. O próximo momento ocorre a partir da entrada em vigor do Código Civil pátrio, em 1917. Durante a discussão do projeto, ocorreram debates sobre sua inclusão em categoria especial, enquanto monopólio ou como propriedade, perpétua ou não, sendo aprovada esta última. Neste documento optou-se assim pelo enquadramento destes direitos como propriedade, nomeando-os de propriedade literária, científica e artística, e ateve-se aos fundamentos da codificação francesa, voltando sua regulamentação unicamente para a faceta patrimonial, o que pode ser visto como um retrocesso doutrinário. Ao código seguiu-se uma grande quantidade de leis extravagantes regulamentando aspectos ignorados pelo código mas que faziam-se necessários para a almejada efetivação plena destes direitos e adequação ao desenvolvimento tecnológico do período. 8. Conclusões As conclusões principais deste trabalho são então, primeiro, o apontamento da existência de elementos da proteção normativa e valoração social dos autores aos bens intelectuais artísticos ou literários deste tempos remotos, como na Grécia, no Império Romano e na Idade Média. A partir dos privilégios, envoltos em uma reação ao absolutismo reinante e o crescente individualismo, pode-se concluir também que a construção da idéia de autor no período do surgimento da proteção foi uma elaboração retórica dos livreiros de então, intermediários entre os autores e o público, ávidos em garantir a perpetuidade de sua exclusividade de reprodução, abraçando inclusive as teses naturalistas. Tendo iniciado como regulamentação do comércio, por razões econômicas e políticas, de garantia de monopólio, censura política e religiosa, desenvolvimento local e regional, esta conformação teórica encontrou um contraponto na perspectiva de serem estes direitos naturais e proprietários, com pretensões de perpetuidade. Destaca-se outrossim que, mesmo em tempos também individualistas e patrimonialistas, lograram êxito os esforços de inoculação do interesse público na proteção autoral. Os fundamentos baseavam-se no direito de acesso, seja ao mercado (pelos agentes de comércio), à cultura, à educação, à informação, à livre expressão. Limitaram temporalmente seu alcance, em alguns casos condicionaram-lhe a proteção jurídica à publicação, mantiveram espaços de uso livre incondicionado, pela relevância dos interesses coletivos. A compreensão dos processos históricos no período formativo destes direitos deve certamente auxiliar, pelo menos assim espera-se na solução dos debates sobre os limites desta proteção jurídica e a determinação de usos livres das obras protegidas, que interesses têm a função de proteger, a quem deve esta beneficiar, por que e em que medida, o conteúdo e funções do domínio público, a legitimidade da expansão da proteção, e a validade e conseqüências das teorias justificadoras utilizadas.