A decomposição do modelo clássico de análise da sociedade

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A decomposição do modelo clássico de análise da sociedade
O ponto de partida de Dubet é a constatação de uma mudança profunda na
concepção da sociedade, do indivíduo e da ação social, de uma decomposição da
representação do social oferecida pela sociologia clássica. Esta poderia ser
identificada, segundo ele, de maneira ampla, não desprovida de arbitrariedade, às
obras de Durkheim e de Parsons, assim como à apresentação feita por Nisbet da
tradição sociológica (DUBET, 1994, p. 11). E, mesmo que vários sociólogos de
renome não se enquadrem nessa perspectiva clássica, foi ela que forneceu
referências básicas comuns à Sociologia, compartilhadas durante tanto tempo que
elas acabaram adquirindo um caráter 'clássico' (ibidem p. 22).
No pensamento clássico, a sociedade é uma noção central, é uma realidade
altamente integrada e integradora: A sociedade existe como um sistema integrado
identificado à modernidade, a um Estado-Nação e a uma divisão do trabalho
elaborada e racional. Ela também existe porque produz indivíduos que interiorizam
seus valores e realizam suas diversas funções (Id., p. 21).
Definir a sociedade na sociologia clássica equivale a traçar seu nível de
desenvolvimento, seu grau de racionalidade, sua capacidade de assegurar a ordem
e a segurança no quadro de um Estado apoiado em instituições sólidas. Se a idéia
de sociedade é a representação da ordem e progresso, ela também é intimamente
vinculada à idéia de sociedade industrial, hierarquizada e, logo, conflituosa (divisão
do trabalho). Mas o conflito, mesmo que seja tido como disfunção, é fator de
elaboração de novos ajustes e acaba tendo uma função de adaptação e de
integração dos atores em conflito [...] estabelecendo fronteiras mais nítidas entre
os diversos grupos (Id., p. 49). Esta representação está hoje colocada em xeque.
A idéia de sociedade associada à modernidade e ao progresso revelou-se, nos fatos,
mais na ruptura do que em uma evolução harmoniosa, seja nos Estados
revolucionários marxistas ou nos novos Estados descolonizados. A ideologia do
progresso gerou reações nacionalistas e uma dualização econômica e social das
sociedades, provocando a crítica não só por parte da sociologia marxista como
também dos próprios funcionalistas. O Estado-Nação não é mais a encarnação da
idéia de sociedade, já que a internacionalização da economia e da cultura colocam
em questão a soberania nacional e as identidades culturais.
Aparecem novas formações políticas – Mercosul, União Européia – e, ao mesmo
tempo, descentralização de certas prerrogativas e responsabilidades em políticas
públicas. Enfim, assiste-se ao declínio da sociedade industrial e da consciência de
classe que estavam no cerne da vida social, tanto na perspectiva marxista quanto
na perspectiva funcionalista: as relações de produção não são mais a única fonte de
identificação dos atores. Hoje se leva também em conta o sexo, a etnia, a
qualificação, entre outras. A focalização dos problemas sociais se desloca da fábrica
para a cidade, da dominação econômica para outras formas de desigualdades, da
integração à produção para uma participação social mais ampla.
Na sociologia clássica, o ator individual é definido pela interiorização do social
(ibidem, p. 12), o que implica um importante autocontrole, tal como a
interiorização das normas, a consciência do dever e das obrigações morais;
também submete o indivíduo a um rígido controle social, o indivíduo é produto de
uma socialização que visa a incorporação de valores e de condutas socialmente
adaptadas ao funcionamento da sociedade.
O 'eu' sem o 'nós' é patológico, segundo Elias, citado por Dubet. Questiona-se hoje
essa concepção do ator individual. A crítica da modernidade, já iniciada por Simmel
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e Weber (ibidem p. 19) e continuada, entre outros, por Touraine (ibidem, p. 73),
não defende mais, como na sociologia clássica, o papel social do indivíduo e a
unidade da sociedade, mas a autenticidade e a identidade do sujeito, a afirmação
de si e o desejo de ser autor da sua vida: a figura clássica de um indivíduo
constituído por um todo social homogêneo não parece mais aceitável (ibidem, p.
74).
[...] Por outro lado, essa mesma crítica não deixa de censurar o individualismo que
se sobrepõe ao indivíduo, o individualismo da sociedade de consumo incapaz de
fazer seus alguns valores essenciais a partir dos quais ele constrói sua identidade e
sua ação (ibidem, p. 70). Essa forma de individualismo leva, não à neurose da era
vitoriana, mas a uma profunda crise de identidade e a uma indiferença que ameaça
a sociedade e a democracia.
Enfim, na sociologia clássica, a ação social é a realização de um papel integrado,
interiorizando normas e princípios reconhecidos pelos atores e visando a coesão do
sistema. Existe um vínculo de inclusão do ator e do sistema (ibidem, p. 13), uma
identificação total entre os dois, isto é, a identidade do ator e do sistema pelo viés
da noção de ação (Id., p. 50). Hoje em dia, essa perspectiva se desfaz. Em uma
sociedade que se caracteriza pela diversidade cultural, pela multiplicidade das
formas de conflito e de ação social, os atores não podem mais ser reduzidos a um
só tipo de papel programado, não podem atuar segundo uma lógica única e
determinada: o ator e o sistema se separam.
Não existe mais um paradigma único da ação. A ação social não é determinada tão
somente pelo sistema. O indivíduo se destaca pela capacidade de distanciamento
em relação ao sistema e [por] sua capacidade de iniciativa e de escolha. Segundo
Dubet, é na ação que se constrói um conhecimento da sociedade. Ele distingue uma
vertente comunicacional ou fenomenológica: a ação é interação – Goffman e as
relações face to face – e é linguagem – Schutz e Garfinkel. Outra é a vertente da
ação racional, que pode ser estratégica – Crozier e Friedberg e a racionalidade
limitada dos atores –, ou princípio de utilidade – Boudon e o individualismo
metodológico.
Dessa forma, estamos presenciando uma fragmentação do modelo clássico de
análise da sociedade e uma multiplicidade de paradigmas da ação: a dispersão se
tornou regra e a combinação dos modelos substitui a antiga unidade (ibidem, p.
90). A diversidade das lógicas de ação pode ser atualmente o problema mais crucial
da análise sociológica. Mas a reflexão sobre a ação social parece estabelecer hoje
um princípio de unidade do pensamento sociológico além da diversidade dos
paradigmas (ibidem p. 90).
Fonte
WAUTIER, Anne Marie. A decomposição do modelo clássico de análise da sociedade.
In: ______. Para uma Sociologia da Experiência. Uma leitura contemporânea:
François Dubet. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151745222003000100007>. Acesso em: 16 nov. 2005.
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