FilosoFia e ética

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Universidade regional do noroeste do estado do rio grande do sul – unijuí
vice-reitoria de graduação – vrg
coordenadoria de educação a distância – CEaD
Coleção Educação a Distância
Série Livro-Texto
Aloísio Ruedell
Luis Alles
Maciel Antoninho Vieira
Valdir Graniel Kinn
Vânia Lisa Fischer Cossetin
(Organizadores)
Filosofia
e ética
Condição humana II – René Magritte
Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia.
Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil
2014
2014, Editora Unijuí
Rua do Comércio, 1364
98700-000 - Ijuí - RS - Brasil
Fone: (0__55) 3332-0217
Fax: (0__55) 3332-0216
E-mail: [email protected]
Http://www.editoraunijui.com.br
Editor: Gilmar Antonio Bedin
Editor-adjunto: Joel Corso
Capa: Elias Ricardo Schüssler
Designer Educacional: Jociane Dal Molin Berbaum
Responsabilidade Editorial, Gráfica e Administrativa:
Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil)
Catalogação na Publicação:
Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí
F488
Filosofia e ética / Aloísio Ruedell (Org.) ... [et al.]. – Ijuí : Ed. Unijuí, 2014. – 184 p. –
(Coleção educação a distância. Série livro-texto).
ISBN 978-85-419-0100-0
1. Filosofia. 2. Ética. 3. Ensino. 4. Estratégia organizacional. I. Alles, Luis. II. Vieira,
Maciel Antoninho. III. Kinn, Valdir Graniel. IV. Cossetin, Vânia Lisa Fischer. V. Título. VI.
Série. CDU : 17
Sumário
Conhecendo os professores................................................................................................................................................... 5
Apresentação...................................................................................................................................................................................... 9
UNIDADE 1 – REFLEXÃO FILOSÓFICA: RADICALIDADE, CRITICIDADE E TOTALIDADE..................................................11
Seção 1.1 – Do Mito ao Logos: A Gênese da Filosofia..............................................................................................................11
1.1.1 – O Mito: Base do Futuro Desabrochar da Filosofia...........................................................................................12
1.1.2 – Logos: A Emergência da Filosofia..........................................................................................................................15
Seção 1.2 – Do Mito à Filosofia Hermenêutica: Uma Discussão Sobre Hermenêutica e Finitude...........................16
Seção 1.3 – O que é Filosofia?...........................................................................................................................................................26
Seção 1.4 – Lógica e Racionalidade................................................................................................................................................31
1.4.1 – Entre a Dialética Platônica e a Analítica Aristotélica......................................................................................32
1.4.2 – Para que Lógica?..........................................................................................................................................................33
1.4.3 – O Problema da Argumentação..............................................................................................................................34
UNIDADE 2 – UNIVERSIDADE E CONHECIMENTO: O PAPEL FORMADOR DA FILOSOFIA.............................................39
Seção 2.1 – Filosofia e Ensino............................................................................................................................................................40
Seção 2.2 – Ciências Humanas: Contextualização Histórica e Teórica...............................................................................51
Seção 2.3 – Para que Filosofia?.........................................................................................................................................................55
2.3.1 – A Razão da Pergunta..................................................................................................................................................56
2.3.2 – As Pressuposições Filosóficas nas Ciências........................................................................................................56
2.3.3 – Filosofia Como “Arte do Bem-Viver”......................................................................................................................56
2.3.4 – A Atitude Filosófica: Perguntar...............................................................................................................................57
2.3.5 – A Reflexão Filosófica..................................................................................................................................................58
Seção 2.4 – Filosofia e Formação: O Perfil do Profissional Universitário...........................................................................59
2.4.1 – Idealizando o Profissional Contemporâneo......................................................................................................60
UNIDADE 3 – ÉTICA E AGIR HUMANO............................................................................................................................................65
Seção 3.1 – Introdução aos Estudos Antropológicos...............................................................................................................66
Seção 3.2 – O que é o Homem?........................................................................................................................................................75
Seção 3.3 – Ética a Partir dos Paradigmas.....................................................................................................................................93
3.3.1 – A História da Ética a Partir dos Paradigmas.......................................................................................................95
3.3.2 – Perspectivas Para a Ética........................................................................................................................................ 102
Seção 3.4 – Teorias Éticas................................................................................................................................................................. 104
3.4.1 – Correntes Filosóficas: Podemos Ser Livres?.................................................................................................... 105
3.4.1.1 – Liberdade e Determinismo.................................................................................................................. 105
3.4.1.2 – Racionalismo............................................................................................................................................ 106
3
3.4.1.3 – Fenomenologia....................................................................................................................................... 106
3.4.1.4 – Existencialismo........................................................................................................................................ 107
3.4.2 – A Diversidade das Teorias...................................................................................................................................... 107
3.4.2.1 – Ética Grega................................................................................................................................................ 107
3.4.2.2 – Ética Helenista.......................................................................................................................................... 108
3.4.2.3 – Ética Medieval.......................................................................................................................................... 108
3.4.2.4 – Ética do Dever.......................................................................................................................................... 108
3.4.2.5 – Ética Consequencialista........................................................................................................................ 109
3.4.2.5.1 – Ética Utilitarista................................................................................................................... 109
3.4.2.6 – Ética Nietzschiana................................................................................................................................... 109
3.4.2.7 – Ética do Discurso..................................................................................................................................... 110
Seção 3.5 – Responsabilidade Moral, Determinismo e Liberdade................................................................................... 111
3.5.1 – Ignorância e Responsabilidade Moral.............................................................................................................. 112
3.5.2 – Coação Externa e Responsabilidade Moral.................................................................................................... 113
3.5.3 – Coação Interna e Responsabilidade Moral..................................................................................................... 113
3.5.4 – Responsabilidade Moral e Liberdade............................................................................................................... 114
3.5.4.1 – O Determinismo Absoluto................................................................................................................... 115
3.5.4.2 – O Libertarismo......................................................................................................................................... 115
3.5.4.3 – Dialética Entre Liberdade e Necessidade....................................................................................... 116
Seção 3.6 – Considerações Sobre Ética, Política e Cidadania............................................................................................. 117
3.6.1 – Sobre Ética/Política.................................................................................................................................................. 118
3.6.2 – Reflexões Finais......................................................................................................................................................... 126
Seção 3.7 – A Estética e Suas Relações com o Feio................................................................................................................ 130
UNIDADE 4 – ÉTICA E CONTEMPORANEIDADE....................................................................................................................... 139
Seção 4.1 – Algumas Considerações Sobre o Trabalho Alienado em Marx.................................................................. 140
Seção 4.2 – Ética e Violência: A Ética Como Filosofia Primeira........................................................................................... 149
4.2.1 – A Filosofia Ocidental como Fomentadora da Violência e de Uma Vida Sem Sentido..................... 149
4.2.2 – A Lógica Dominadora da Filosofia Ocidental................................................................................................. 150
4.2.3 – A Filosofia da Alteridade e a Liberdade........................................................................................................... 151
4.2.4 – A Experiência Cognoscitiva e a Experiência Moral...................................................................................... 153
4.2.5 – A ética como Filosofia Primeira........................................................................................................................... 154
Seção 4.3 – Reflexões Acerca das Perspectivas para a Educação no Século 21:
Uma Análise em Perspectiva Ético-Filosófica.................................................................................................... 157
4.3.1 – Ética, Conhecimento e Educação....................................................................................................................... 159
4.3.2 – Considerações Finais............................................................................................................................................... 165
Seção 4.4 – Ética, Comunicação e Novas Tecnologias.......................................................................................................... 169
4.4.1 – A Comunicação como Condição Humana e o Objeto Comunicação................................................... 170
4.4.2 – A Ética e a Comunicação na Contemporaneidade...................................................................................... 175
Conhecendo os Professores
Aloísio Ruedell
Possui Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (1999). Atualmente é professor-adjunto da Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área
de Filosofia, com ênfase em Epistemologia e Filosofia da Linguagem, atuando
principalmente nos seguintes temas: hermenêutica, interpretação, linguagem
e subjetividade.
Cândida de Oliveira
É graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela
Unijuí, e mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). É membro do Observatório da Ética Jornalística (ObjETHOS).
Celso Eidt
Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (1986), Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1999) e Doutorado em Filosofia pela Universidade
Estadual de Campinas (2010). Atualmente é professor-adjunto da Universidade
Federal da Fronteira Sul. Tem experiência na área de Filosofia.
Julio César Burdzinsky
Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (1988), Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1995) e Doutorado em Filosofia pela PUC/RS
(2004).
Luis Alles
Possui Graduação em Filosofia pelo Instituto Educacional Dom Bosco
(1981), Graduação em Estudos Sociais pelo Instituto Educacional Dom Bosco
(1981), Graduação em Teologia pela PUC/RS (1985), Especialização em Filosofia
pela PUC/RS (1984) e Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1996). Atualmente é professor tempo parcial da
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, atuando
principalmente nos seguintes temas: religião, ensino, pastoral, Filosofia e formação humanística.
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EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Maciel Antoninho Vieira
É Graduado em Filosofia e Estudos Sociais pela Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí –, mestre em Filosofia pela
Universidade Federal de Santa Maria – UFSM -. Professor do Departamento de
Humanidades e Educação – DHE – da Unijuí desde 1996.
Maristela Marasca
Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul (1992) e Mestrado em Educação nas Ciências pela
mesma instituição (2001). Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: teatro, dramaturgia, teatro brasileiro, teatro no RS
e educação. Integrante do Grupo de Teatro A Turma do Dionísio desde 1988.
Paulo Rudi Schneider
Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (1981), Mestrado em Filosofia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002) e Doutorado em Filosofia
pela mesma Universidade (2005). Atualmente é professor da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, no Mestrado em Educação
nas Ciências. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos
seguintes temas: Filosofia, verdade, metafísica, pensar e ser.
Valdir Graniel Kinn
É graduado em Filosofia e bacharel em Direito pela Unijuí, mestre em
Filosofia (área de concentração em Ética e Filosofia Política) pela PUC/RS. Seus
estudos estão voltados especialmente para análise política e conjuntural da
sociedade e à ética contemporânea. É professor na Unijuí desde 1988, vinculado
ao Departamento de Humanidades e Educação.
Vânia Dutra de Azeredo
Possui Graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (1987), Mestrado em Filosofia pela mesma instituição (1996),
Doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2003) e Pós-Doutorado
pela Ecole Normale Supérieure Paris (2012). Atualmente é professora da PUCCampinas, membro do corpo editorial da Revista Reflexão, membro do corpo
editorial da Revista Alamedas, membro do corpo editorial dos Cadernos Nietzsche, membro do corpo editorial da Humanidades em Revista, membro do corpo
editorial da Revista Trágica e membro do corpo editorial da Philósophos (UFG)
(Cessou em 2000. Cont. ISSN 1982-2928 Revista Philósophos). Tem experiência
na área de Filosofia, com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes
temas: Nietzsche, genealogia, moral.
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EaD
Filosofia e Ética
Vânia L. F. Cossetin
É graduada em Filosofia e Artes pela Unijuí, mestre e doutora em Filosofia
pela PUC/RS. Seus estudos estão especialmente voltados para o problema da
linguagem no sistema filosófico de Hegel e, atualmente, dedica-se também à
investigação sobre o papel formador da escola de Ensino Médio. É líder do Grupo
de Pesquisa Interdisciplinar de Humanidades no Ensino Médio e participa como
pesquisadora do Grupo de Pesquisa Linguagem, Hermenêutica e Justificação,
da Unijuí, e do Grupo de Pesquisa Dialética, da Unisinos. Atualmente exerce atividade docente na Unijuí, na Faculdade América Latina e no Colégio Tiradentes,
da Brigada Militar de Ijuí.
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Apresentação
Apresentamos aqui o livro Filosofia e Ética, publicado como material
didático-pedagógico, da disciplina do mesmo nome, para os cursos de Graduação
da Unijuí na modalidade a distância e presencial, na forma de Livro-Texto.
A disciplina e o livro aqui apresentados situam-se num contexto em que
diversas correntes filosóficas, seguindo a direção de Kant, propõem que a Filosofia
seja, se não a instituidora de um “tribunal da razão”, ao menos uma “guardadora
de lugar”, para que as ciências possam escapar aos limites cientificistas nos
quais permanecem, via de regra, confinadas; propõem que a Filosofia também
seja uma “intérprete” mediadora do espaço entre essas mesmas ciências e a
linguagem cotidiana.
Vivemos, além disso, hoje um momento de crise, em especial crise de
referenciais: ausência de reflexão crítica acerca da consciência da inconsciência
que permeia a existência humana. Nesse sentido, a Unijuí estabelece a disciplina
Filosofia e Ética como um exercício crítico do pensar e do agir humanos. Na atual
polêmica mundial acerca dos possíveis sentidos dos valores éticos, políticos, estéticos e epistemológicos, a Filosofia e a Ética têm um espaço a ocupar e muito
a contribuir, pois giram em torno de problemas e conceitos criados no decorrer
de sua longa história, os quais, por sua vez, geram discussões promissoras e
criativas que, muitas vezes, desencadeiam ações e transformações. Por isso,
permanecem atuais.
Ademais, Filosofia e Ética, enquanto disciplina acadêmica, desenvolve
as potencialidades que a caracterizam: capacidade de indagação e crítica;
qualidades de sistematização e de fundamentação; rigor conceitual; combate
a qualquer forma de dogmatismo e autoritarismo; disposição para levantar novas questões, para repensar, imaginar e construir conceitos, além da sua defesa
radical da emancipação humana, do pensamento e da ação livres de qualquer
forma de dominação.
Um dos objetivos da formação acadêmico-profissional é a formação pluridimensional e democrática, capaz de oferecer aos estudantes a possibilidade
de compreender a complexidade do mundo contemporâneo, suas múltiplas
particularidades e especializações. Nesse mundo, que se manifesta quase sempre de forma fragmentada, o estudante não pode prescindir de um saber que
opere por questionamentos, conceitos e categorias de pensamento, que busque
articular o espaço-temporal e histórico-social em que se dá o pensamento e a
experiência humanos.
Como disciplina constitutiva da formação geral e humanista, considera-se
que Filosofia e Ética pode viabilizar interfaces com os outros componentes para
a compreensão do mundo da linguagem, das ciências, das técnicas, do mundo
do trabalho e da política.
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EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
A disciplina Filosofia e Ética apresenta e tematiza o conceito de Filosofia
enquanto exercício da reflexão crítica e a Ética enquanto investigação e debate
acerca do agir humano. Considerando essa dupla composição da disciplina, o
livro Filosofia e Ética consta de quatro unidades temáticas: 1 – Reflexão filosófica:
criticidade, radicalidade e totalidade; 2 – Universidade e Conhecimento: o papel
formador da Filosofia; 3 – Ética e o agir humano; 4 – Ética e contemporaneidade.
Cada unidade consta, por sua vez, de diferentes textos, nos quais são tratados os
principais temas que lhe dizem respeito. Além desses textos, porém, elaborados
pelos professores, em cada unidade há ainda outro importante recurso didático:
imagens, que dizem respeito aos temas tratados e que podem contribuir para
o seu aprofundamento.
Cada texto suscita, com certeza, uma série de questionamentos, mas não
vamos adiantá-los aqui. Deixamos para a criatividade do professor e dos alunos
a maneira de trabalhar os textos e sua relação com as imagens.
Os organizadores
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Unidade 1
REFLEXÃO FILOSÓFICA:
Radicalidade, Criticidade E Totalidade
OBJETIVOS DESTA UNIDADE
•
Compreender o processo de nascimento da Filosofia no universo do
mundo grego antigo.
•
Refletir sobre a importância do mito no desenvolvimento da cultura
e do mundo ocidental e a passagem deste para o conhecimento
filosófico/racional.
•
Apresentar a importância do raciocínio lógico para o desenvolvimento das ciências ao longo da História e sua significação no âmbito da
formação acadêmico/profissional.
AS SEÇÕES DESTA UNIDADE
Seção 1.1 – Do Mito ao Logos: a Gênese da Filosofia
Seção 1.2 – Do Mito à Filosofia Hermenêutica: uma Discussão Sobre Hermenêutica e Finitude
Seção 1.3 – O que é Filosofia?
Seção 1.4 – Lógica e Racionalidade
Seção 1.1
Do Mito ao Logos: a Gênese da Filosofia
Maciel A. Vieira
Vânia L. Fischer Cossetin
Nosso olho nos faz participar do espetáculo das estrelas, do sol e da abóbada
celeste. Este espetáculo nos incitou a estudar o universo inteiro. De lá nasce para
nós a Filosofia, o mais precioso bem concedido pelos Deuses à raça dos mortais
(Platão, Teeteto, 155d.).
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EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Conforme a história do pensamento ocidental, a Filosofia é uma
invenção grega que ocorreu entre os
séculos 6º e 7º a.C. e que promoveu a
passagem do saber mítico (alegórico,
poético) ao pensamento racional
(logos), ou seja, a razão e a lógica
tornaram-se pressupostos básicos
para o pensar. Esta mudança, porém, não ocorreu de forma abrupta,
mas em meio a um longo processo
histórico.
1
1
1.1.1 – O Mito: Base do Futuro Desabrochar da Filosofia
Antes da invenção do logos e do saber filosófico havia outro saber, um
modo de pensar que dava conta dos problemas concretos do cotidiano da vida
do homem grego: o mito. Afinal, porém, o que é o mito? Como é e para que
serve? A primeira questão nos remete a uma definição. Para tanto é importante
destacarmos a etimologia da palavra. Em grego, mito significa uma “fala que
narra” a origem dos fenômenos, tanto naturais quanto humanos. Diferentemente
do que se pensa, o mito não é uma lenda ou uma fantasia, mas ele surge como
fruto do processo de compreensão da realidade, por isso podemos dizer que ele
é verdadeiro. E se é uma fala, uma narrativa, quem é que o faz? É o poeta.
Havia, basicamente, dois tipos de poetas: o aedo (um criador de poemas
que também recitava de memória, recriava e transformava o verso ancestral) e
o rapsodo (simples repetidor, declamador, de uma versão já fixada). Vale lembrar
que quando o poeta recitava o poema, apresentava-o cantando, com acompanhamento de música e dança. Eram estratégias utilizadas para uma melhor e
mais rápida apropriação dos mitos e de toda a tradição, que por muito tempo
foi conservada e propagada oralmente. Com o advento da escrita, a tradição oral
passou a ser fixada como um patrimônio comum de que o poeta seria o guardião.
Exemplo deste patrimônio cultural são as poesias de Homero (a Ilíada e a Odisseia,
século 9º a.C.) e de Hesíodo (a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias, 7º a.C.).
A questão central, então, passou a ser sobre a credibilidade e a veracidade
da narrativa do poeta. O que garante que ele diz a verdade? Caso o poeta fosse
escolhido e inspirado pelos deuses e desse testemunho inquestionável sobre
a origem de todas as coisas, como se dá a gestação das coisas e dos próprios
deuses? Quem são os deuses?
Crianças geopolíticas assistindo ao nascimento do novo homem – Salvador Dali. Fonte: Enciclopédia
Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia.
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EaD
Filosofia e Ética
Para os gregos, tudo o que existe, fenômenos naturais e humanos, e mesmo os próprios deuses, é oriundo das relações sexuais entre eles. E os deuses,
conforme Reale (1993), são forças naturais diluídas em formas humanas idealizadas: “Os deuses são homens amplificados e idealizados, são quantitativamente
superiores a nós, mas não qualitativamente diferentes” (p. 21). Os fenômenos
naturais, nesse sentido, são promovidos pelos deuses. Por exemplo: os trovões
e raios são lançados por Zeus do Olimpo; as ondas do mar são levantadas pelo
tridente de Poseidon; o Sol é carregado pelo carro de Apolo, etc. Também os
fenômenos da vida individual e social do homem grego, o destino da cidade,
das guerras, são todos concebidos pelos deuses e manipulados por eles. Tudo é
divino, ou seja, tudo o que acontece é obra dos deuses.
Afinal, qual é a função do mito na sociedade e na vida do homem grego?
A função primordial do mito era responder a questões fundamentais
como: Qual a origem de todas as coisas? O que significa o homem e qual a sua
relação com o mundo natural e com o mundo humano? Nesse sentido, a narrativa explicava e significava a realidade, o modo de vida, a organização social, a
conduta dos homens, os valores e normas, de modo que “os comportamentos
e as atitudes que a sociedade quer preservar são condensados em paradigmas
– exemplos idealizados e fixados em personagens – que os jovens devem incorporar” (Santos, 1985, p. 47).
Dito de outro modo, os valores que a sociedade elegeu como os melhores
a serem observados e vivenciados por todos os membros da sociedade estão
expressos nos deuses, semideuses e heróis contados pelos poetas: “o ideal heróico, representado por um Aquiles, ou por um Ulisses, em múltiplas situações
concretas, consubstancia um código de valores objetivos (...) constituindo-se
como a norma, o exemplo, que todos os cidadãos devem imitar” (Santos, 1985,
p. 47).
Os mitos, portanto, carregam mensagens que se traduzem nos costumes
e na tradição de uma sociedade. São formas de explicar um determinado modo
de vida. A única forma, aliás, de pensar e de significar as relações do homem no
mundo. Os mitos são modelos norteadores que ajudam a organizar e significar
a vida das pessoas, por isso, no caso específico dos gregos, eles “desenvolvem e
alicerçam, cada um a sua maneira, essa magistral lição de vida, fornecendo com
isso à filosofia a própria base do seu futuro desabrochar” (Ferry, 2009, p. 22).
O mito como fala, como narrativa concreta, portanto, serviu de base
para a emergência de um novo modo de pensar, problematizador, conceitual e
reflexivo: o filosófico.
1.1.2 – Logos: a Emergência da Filosofia
O homem é um ser pensante e criativo e, enquanto tal, cria pensamentos.
Pensamentos estes que irão fundar e desenvolver a civilização ocidental. Cria o
mito e o logos: o primeiro se dá mediante figuras, imagens, fantasias; o segundo,
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EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
mediante a razão, produzindo conceitos. Isto explica por que se pode dizer que
a Filosofia surgiu a partir da crítica e racionalização do mito: porque ela supera a
crença mítica e coloca a razão e a lógica como pressupostos básicos para o pensar.
A origem da Filosofia, portanto, está ligada à invenção do logos, razão pela qual
ela pode ser concebida, inicialmente, como o exercício do logos.
Etimologicamente, logos vem do grego legein, que significa “falar”, “reunir”.
Na língua grega clássica, equivale à palavra, verbo, sentença, discurso, pensamento, inteligência, razão, definição. Antes de tudo, portanto, logos se define como
fala, discurso, razão. Nesse sentido ele se opõe ao mito, que também é fala, mas
uma “[...] fala que narra, que comunica por analogia entre situações narradas a
experiência do narrador”, ao passo que logos “[...] significa fala que demonstra,
que descreve o que ocorre às coisas em vista de suas próprias essências” (Cunha,
1992, p. 56).
O surgimento do logos, então, inaugura uma nova fase de entendimento
acerca da realidade: a possibilidade de analisar e interpretar o mundo para além
dos fatos e das experiências, a fim de encontrar sua causa, seu princípio.
O primeiro filósofo foi Tales de Mileto, que viveu entre o final do século 7º e início do século 6º a.C. Vale mencionar outros filósofos desse período
que fizeram questionamentos semelhantes e deram respostas igualmente
semelhantes, dentre eles: Anaxímenes, Anaximandro, Heráclito, Pitágoras, Parmênides, Empédocles, Anaxágoras, Demócrito. O problema fundamental que
aproxima estes pensadores é a pergunta sobre a origem do mundo e as causas
das transformações da natureza. Ou, ainda, a questão filosófica fundamental é
cosmológica: Como surge o cosmos? Qual é seu princípio fundamental? Como
ocorre sua geração?
Desse momento em diante não é mais atribuída aos deuses a origem do
cosmos e de todas as coisas, mas ao próprio homem, que o faz mediante o uso
da razão. Os primeiros filósofos, portanto, forjaram uma ideia que é fundamental
para explicar e significar o mundo e o próprio homem: elaboraram o conceito de
Physis, ou seja, “a fonte original de tudo o que cresce”, a partir do qual as coisas
emergem, brotam. Physis é o princípio unificador e organizador da diversidade
dos seres e, segundo Aristóteles, Tales teria sido o primeiro filósofo a expressar
aquilo que podemos denominar de pensamento racional: “tudo é água”. Eis a
arché, o princípio de todas as coisas (Santos, 1985, p. 88).
O modo de pensar, como exercício da razão (logos) dos primeiros filósofos,
é uma reflexão acerca da origem, ordem e transformação da natureza e do ser
humano. É um discurso que institui conceitualmente o princípio fundante que
unifica e ordena a totalidade. O logos é constitutivo e possibilidade de entendimento da realidade. A ideia de um princípio fundante, de onde tudo nasce e
para onde tudo volta, só é possível para o pensamento racional. Este elemento
primordial, eterno e imperecível, é a própria natureza em transformação: “a natureza é mobilidade permanente (...). O movimento do mundo chama-se devir e
o devir segue leis rigorosas que o pensamento conhece” (Chauí, 1994, p. 36).
14
EaD
Filosofia e Ética
Os filósofos pré-socráticos escolheram diferentes Physis para dizer qual
era o princípio que estaria na origem da natureza e de seus movimentos. Além
de Tales de Mileto, podemos ainda mencionar: Heráclito, cujo princípio era o
fogo, o movimento; Pitágoras, que afirmava ser o número o princípio de todas
as coisas; Leucipo e Demócrito, para quem o princípio era o átomo.
O nascimento da Filosofia, portanto, pode ser entendido como um novo
modo de pensar que se diferencia do mito, de uma visão de mundo única que
se formou a partir de narrativas que eram transmitidas oralmente de geração
para geração. A religião, portanto, era apresentada sem sistemas teóricos escritos, livros sagrados, sacerdotes, e aceita pela população que nela acreditava e
a concebia como verdadeira. Mais tarde esta tradição oral foi sistematizada e
escrita por Homero e Hesíodo.
Por muito tempo o pensamento mítico foi suficiente para organizar, explicar e significar o mundo. À diferença do mito, porém, o pensamento filosófico,
enquanto um pensar conceitual e reflexivo acerca da realidade, busca ordenar,
explicar e significar a complexidade do cosmos e a diversidade dos seres mediante
um discurso que justifique a sua existência. Por isso, filosofar significa buscar na
multiplicidade um princípio (physis) único que seja a fonte de onde toda essa
variedade emerge. Essa foi a grande tarefa realizada pelos primeiros filósofos. Sua
intenção era buscar justamente na totalidade das coisas, na multiplicidade do
mundo, uma unidade a ser conhecida e interpretada pela razão, sem, portanto,
projetar temores e crenças, mas, conforme Platão, simplesmente pela capacidade
de se espantar, que “é o começo da Filosofia”.
Referências
CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994.
CUNHA, J. A. Filosofia: iniciação à investigação filosófica. Campinas: Atual Editora,
1992.
FERRY, L. A sabedoria dos mitos gregos: aprender a viver II. Trad. Jorge Bastos. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2009.
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Seção 1.2
Do Mito à Filosofia Hermenêutica:
Uma Discussão Sobre Hermenêutica e Finitude
Aloísio Ruedell
O que está em questão não é o que fazemos, o que deveríamos fazer, mas o que
nos acontece além do nosso querer e fazer (Gadamer, 2003, p. 14).
2
Esta passagem de Gadamer
fornece uma chave de leitura
para seu livro Verdade e Método
e, por extensão, para a discussão
hermenêutica em geral, como foi
desenvolvida ao longo do século
20, até os dias atuais. O que, pois,
orienta o filósofo é a consciência
histórica ou consciência das condições históricas nas quais toda
compreensão humana está submetida, sob o regime da finitude.
2
Tem consciência de estar exposto à História e a sua ação, de tal forma que
não pode objetivar essa ação sobre nós, porque isso faz parte de seu sentido
enquanto fenômeno histórico.
Essa forma de pensar, contudo, não é exclusividade de Gadamer. São
atualmente muitos os autores que têm a mesma percepção, e o destaque está
por conta de Martin Heidegger, com sua analítica do Dasein. O desenvolvimento
de suas discussões, em Ser e Tempo, acabou produzindo o que se designa como
pensamento da finitude (Stein, 1976, p. 76). É uma perspectiva de grande parte
da Filosofia contemporânea, que se fortalece a partir dos, assim denominados,
mestres da suspeita, como Nietzsche, Freud e Foucault, mas que, certamente,
também tem legitimidade filosófica a partir de Kant, preocupado com os limites
do conhecimento.
O tema do presente ensaio surgiu desse contexto de discussão. Vinculase também ao projeto de pesquisa Interpretação e finitude, cujo propósito é
refletir sobre os limites da linguagem e da interpretação, a partir do conceito de
finitude. Considerando a centralidade desse conceito no atual cenário filosófico,
Prometeu Acorrentado – Peter Paul Rubens. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo:
Alphabetum Edições Multimídia.
2
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Filosofia e Ética
pretendemos examinar sucintamente como ele se configura na discussão hermenêutica. Para efeito de delimitação, sem fazer todo o percurso da história da
hermenêutica, dirigiremos um olhar privilegiado a dois momentos, ao da Filosofia
hermenêutica, marca característica da discussão atual, e o momento do mito, que
eventualmente poderia ser designado como pré-história da hermenêutica.
Iniciaremos a indagação por esse momento específico da história hermenêutica, que é o seu nascedouro na mitologia grega, de onde procedem a
etimologia e o sentido originários do termo. Pretendemos examinar resumidamente o sentido e as consequências dos limites humanos, percebidos diante da
narrativa do mito sobre Hermes, que medeia a comunicação entre os deuses e
os homens. Isso permitirá, ao final, estabelecer uma diferença fundamental entre
essa primeira percepção dos limites humanos, no contexto do mito, e o sentido
desses limites na atual discussão sobre hermenêutica e finitude.
O recurso ao mito não significa nenhuma concessão do rigor filosófico
em favor de um pensamento mítico. Fazer referência a uma narrativa mítica
não equivale a transformá-la em princípio da realidade. A Filosofia, entretanto,
reconhece o teor do mito como genuinamente humano, e enquanto tal o assume em sua discussão. Sem se orientar por sua visão de mundo, nem por suas
soluções, a Filosofia identifica no mito problemas e perguntas fundamentais da
humanidade, que serão debatidos ao longo de toda a História da Filosofia, até
os dias de hoje.
Assim, a riqueza da moderna discussão hermenêutica esclarece-se, em
grande parte, à luz do mito, no qual, pela primeira vez, a humanidade colocou
o problema da compreensão e da interpretação. Personagens e funções na
mitologia serão, posteriormente, fonte de conceitos e de discussões filosóficas.
Embora criação da modernidade, a hermenêutica remete-nos, etimologicamente, ao mito de Hermes. Filho de Zeus e de Maia, Hermes era uma divindade
complexa e imprevisível. Transgredia e, ao mesmo tempo, obedecia à ordem
superior; era diurno e noturno. Acusado de mentiroso diante de Zeus, este o
fez prometer que nunca mais faltaria com a verdade. Aceitou a cobrança do pai,
mas acrescentando-lhe uma ressalva: que não estaria obrigado a dizer toda a
verdade (Brandão, 2005, p. 193).
Ou seja, ao mesmo tempo em que estaria obrigado a dizer a verdade,
lhe assistiria o direito de reter parte dela. Com esse acordo, falar e reter, ocultar
e desocultar a verdade seriam duas faces características da personalidade de
Hermes.
Trata-se de uma divindade que, em sua função paradoxal, representa,
aqui, a personificação da própria linguagem, que, ao mesmo tempo, comunica
e também se interpõe à comunicação. Não faltaram, na História, sonhadores de
uma comunicação direta e perfeita entre as consciências, sem a mediação de
palavras e discursos ou outros meios, que sempre são deficientes; ao mesmo
tempo transmitem uma mensagem e também a retêm parcialmente, em virtude
de sua opacidade. Após o giro linguístico, no entanto, é muito difícil que alguém
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
ainda pense em comunicar-se sem a linguagem. Como isso, afinal, seria possível,
se todo o universo humano é linguisticamente concebido e mediado (Cf. Fehér
in: Figal, p. 2000, p. 192), ou então, como afirma Gadamer: “ser que pode ser
compreendido é linguagem” (1990, p. 478).
Enfim, não resta outra alternativa: já somos ou estamos sempre na linguagem, e todas as tentativas de organização e comunicação terão sempre as
marcas de seus benefícios e de seus limites, que são os limites da própria condição
humana. O que, certamente, surpreende, é descobrir que esse problema já era
tematizado em nosso passado mítico.
Ao estabelecer a comunicação entre o mundo divino e o humano, Hermes,
de alguma forma, traz e estabelece a linguagem, determinante para o desenvolvimento da humanidade. De origem divina, mas com afeição humana, gostava
de estar entre os homens e com eles se comunicar.
São suas relações com o mundo dos homens, um mundo por definição “aberto”,
que está em permanente construção, isto é, sendo melhorado e superado. Os
seus atributos primordiais – astúcia e inventividade, domínio sobre as trevas,
interesse pela atividade dos homens, (...) – serão continuamente reinterpretados e acabarão por fazer de Hermes uma figura cada vez mais complexa,
ao mesmo tempo que um deus civilizador, patrono das ciências e imagem
exemplar das gnoses ocultas (Eliade apud Brandão, 2005, p. 196).
Em uma negociação com Apolo, Hermes teria recebido um bastão de
ouro e com ele a arte divinatória. Andava com extrema rapidez, com sandálias
de ouro, e não se perdia à noite, porque conhecia muito bem o roteiro. Com
esses atributos e por suas habilidades, mereceu o título de “deus mensageiro” ou
“deus da comunicação”. Seu papel era anunciar, traduzir e explicar a mensagem
divina ao nível da compreensão humana. Dessa tríplice tarefa mediadora de
Hermes originaram-se três acepções de hermeneuein (= interpretar) consideradas na hermeneia (= hermenêutica) e, posteriormente, assimiladas na discussão
hermenêutica.
As habilidades linguísticas de Hermes, porém, não nos autorizam a lhe
atribuir uma concepção instrumental da linguagem. Sua função comunicadora é
mais da ordem do “ser” do que do “fazer”, lembrando a concepção hermenêutica
de que “somos linguagem”. Sua missão, pois, consistia em colocar-se no meio
de tudo o que acontecia, para levar a mensagem dos deuses para o horizonte
da compreensão3 da linguagem humana. Ele mesmo, Hermes, deus presente
entre os homens, era a própria mensagem divina. Mais do que mediar palavras
Gadamer (1998, p.452) esclarece que o conceito de horizonte de compreensão refere-se ao âmbito
de visão finita que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Por isso
podemos falar de estreiteza e de abertura de novos horizontes. A elaboração da “situação hermenêutica”
significa a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam perante
a tradição.
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divinas para uma linguagem humana, ele era a mediação ou linguagem efetiva,
porque era um deus que se aproximou e se afeiçoou ao ser humano, encurtando
a distância e manifestando o oculto.
À semelhança de Hermes, que permitia a comunicação entre o mundo
divino e o humano, a linguagem é condição de possibilidade de nossa comunicação. Não se pensa, porém, numa linguagem ideal, de caráter rigorosamente
universal, como que pairando acima do cotidiano humano. Não há racionalidade
e linguagem em estado puro. O homem sempre falou dentro da História, em
determinado contexto sociocultural. No mais, a linguagem não fala por si, e um
texto precisa ser anunciado (lido) e interpretado e, muitas vezes, traduzido para
uma linguagem mais acessível. Enfim, só será compreendido na medida em que
também for explicado o assunto ou o tema sobre o qual é construído. Não há
mera compreensão da linguagem. Compreende-se a linguagem de um texto
na medida em que também se compreende seu conteúdo, a mensagem que
veicula. Ou ainda, não há mera compreensão da linguagem, porque esta nunca
se dá como pura forma, mas já sempre marcada por um conteúdo cultural e
conceitual.
Na história do mito, por mais qualificada que fosse a mediação de Hermes,
ela nunca podia trazer aos homens a própria mensagem divina, mas tão somente
sua interpretação. Já era uma prefiguração do que se afirma atualmente em relação à leitura e à interpretação de um texto: por mais cuidadosa e rigorosa que
seja a leitura, nunca será possível chegar à compreensão correta. Feitas todas
as leituras e realizadas as interpretações possíveis, haverá, ao final, sempre uma
interpretação do texto, e não o próprio texto ou este em si mesmo. O que era
distância entre o mundo divino e o humano caracteriza-se, agora, como limites
da comunicação entre os homens. Não há linguagem totalmente transparente,
nem comunicação direta sem o recurso do meio linguístico.
A emergência dessa discussão na História da Filosofia ainda é um acontecimento relativamente recente. Adquiriu vigor e caráter filosófico com a questão
hermenêutica, no século 19, quando, com Schleiermacher, esta deixou de ser
uma disciplina especial, indagando por um fundamento universal da compreensão. Na época, a pergunta hermenêutica surgia por uma demanda específica
da exegese bíblica, mas foi ampliada e elaborada numa perspectiva universal e
filosófica. Não foi simplesmente um texto bíblico, nem uma mensagem divina
que desafiava a compreensão do filósofo. O que lhe suscitou a questão hermenêutica foi a consciência dos limites humanos em relação à compreensão e à
interpretação em geral.
Num mundo já secularizado, numa época pós-metafísica, tomou-se
consciência do espaço propriamente humano. Sem referência a uma verdade
absoluta e sem se reduzir a uma verdade empírica, eram, então, o sentido e o
agir do homem que careciam de compreensão.
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Certamente já havia problemas de compreensão e de interpretação ao
longo de toda História da Filosofia. Até a metade do século 18, porém, a interpretação, enquanto problema específico, não teve nenhuma importância autônoma
nas formas do conhecimento relacionadas com a linguagem. Uma concepção
lógico-semântica da linguagem garantia por sua clareza e transparência, reproduzindo com fidelidade os fatos do mundo. Um discurso gramaticalmente
correto propiciava representações confiáveis da realidade. Gramática e razão,
ambas universais, reproduziriam concretamente essa universalidade. “Compreender algo como algo significaria iluminar as expressões ditas ou escritas sob
o ponto de vista do seu conteúdo racional, isto é, concebê-las como aquele
universal que não pode cessar de ser em sua historicamente única situação de
uso” (Frank, 2007, p. 80).
Isso muda radicalmente com o Romantismo e, inclusive, em dois sentidos.
Primeiro duvida-se da possibilidade de contar com uma razão supra-histórica,
que, de antemão, corresponderia à realidade. Em consequência, a compreensão
torna-se problema, porque não resulta mais de uma participação paritária dos
interlocutores numa razão comum. Ela não se dá por si, mas, ao contrário, em
cada caso precisa “ser querida e buscada” (Schleiermacher, 1990, p. 92).
O desafio da hermenêutica, segundo Schleiermacher (2005, p. 87), está
em compreender o outro, o diferente, e a rigor cada texto é outro e diferente,
sempre carecendo de interpretação. Há uma peculiaridade no texto, porque a
própria linguagem não existe num padrão rigorosamente universal, mas em
sentidos sempre singularizados, em cada ato de uso.
Ainda mais decisiva, para evidenciar os limites da condição humana, foi
uma segunda mudança de paradigma, “a convicção de que aquilo que forma
a dimensão básica da Filosofia não é alguma representação de objeto, mas a
compreensão de sentido” (Frank, 2007, p. 81).
A Filosofia antiga ocupava-se com o mundo como ele é, na perspectiva
da ontologia; já a Filosofia moderna superou essa perspectiva com a teoria do
conhecimento, com a convicção de que os objetos são mediados por representações subjetivas. A partir de Schleiermacher – afirma Frank (2007, p. 79) – aquilo
que representamos de modo algum são objetos, mas fatos, e o que corresponde
a estes são proposições ou juízos. Isso significa que o limite da atuação e da compreensão permanece no âmbito da linguagem: juízos referem-se tão somente a
objetos já sempre interpretados desse ou daquele modo.
É inegável que a hermenêutica, enquanto arte de compreensão e interpretação (Schleiermacher, 1990, p. 71), é produto da modernidade, mas
é também sua superação. Seu desafio seria operar o giro transcendental no
mundo do sentido, mas sem o rigor e o caráter absoluto do cogito cartesiano.
A consciência de si, a partir da qual se estabelece, é uma consciência humilde,
que percebe os limites da condição humana. É uma “consciência de finitude”
(Schleiermacher, 1980, § 9) e de dependência, que não encontra em si mesma o
seu fundamento, mas se percebe constituída por outrem. Este, afirma Frank, é o
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Filosofia e Ética
mais alto grau de consciência, de quem percebe seus limites, porque já sempre
relacionado e constituído com outro, constituindo a linguagem a forma dessa
relação (1977, p. 115).
Todas essas considerações não deixam dúvidas de que Schleiermacher
já se situa no giro linguístico: todas as questões são colocadas e resolvidas no
âmbito da linguagem, mas ainda não na radicalidade de Gadamer e de Heidegger. Ao demonstrar que a linguagem é o único acesso à realidade e condição de
possibilidade para sua discussão, ele também admite seu caráter instrumental
e representativo. Embora permaneça no âmbito da linguagem, ainda se orienta por um “pensamento ontológico, no qual se acredita que a verdade ou o
verdadeiro tem um estatuto objetivo, cuja busca é árdua, mas não impossível;
boas regras de procedimento e a destreza do intérprete podem conduzir a ela”
(Ruedell, 2007, p. 23).
Daí a preocupação metodológica por uma adequada e correta interpretação, que pudesse conduzir à verdade do texto. Mesmo, contudo, que isso mostre
o quanto o autor ainda se situa no paradigma ontológico, este, entretanto, não
deixa de apontar para sua fragilidade, ao afirmar que o ideal da compreensão
perfeita é irrealizável. Somente pode ser alcançado por aproximação (Schleiermacher, 2005, p. 201).
Chegando, porém, a Heidegger, na perspectiva da Filosofia hermenêutica,
a discussão toma outra configuração. Se antes, com Schleiermacher, apesar dos
limites da condição humana, não se deixava de perguntar pelo procedimento
correto para chegar à verdade, agora já não há mais essa perspectiva. Inaugurase um novo modo de pensar, que vem se estabelecendo na medida em que os
conceitos compreensão e interpretação, referidos ao mundo, passam a ter outro
significado, ou seja, na medida em que a interpretação é “apenas interpretação”,
em oposição ao saber da realidade (Scholtz, 1992-1993, p. 108).
Já era esse o entendimento de Nietzsche ao afirmar que “o mundo se tornou mais uma vez ‘infinito’ para nós, porque ele contém em si a possibilidade de
interpretações infinitas;” e “que não há fatos, mas apenas interpretações” (apud
Scholtz, 1992/93, p. 108). A mesma concepção encontra-se também em Dilthey,
ainda que não no sentido universal e radical de Nietzsche. Para ele, somente
“a religião, a arte e a metafísica fornecem ‘interpretações do mundo’” (Scholtz,
1992/93, p. 108), complementando, nesse sentido, as ciências da natureza. Enquanto estas analisam e desenvolvem as relações universais de estados de coisas
isolados, aquelas expressam o significado e o sentido do todo. Umas conhecem
e outras compreendem.
Ao admitir que foi dessa concepção de interpretação que brotou a Filosofia
hermenêutica, podemos dizer que ela surgiu da crise da concepção tradicional de
verdade e de ciência. Em Kant encontra-se a base teórica desse acontecimento: a
destruição da ontologia tradicional e a redução do mundo ao mundo fenomênico. Em vez da realidade, que era objeto da ontologia, dispõe-se sempre mais de
visões de mundo, tradições e convenções, que, numa linguagem pré-científica,
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sempre articulam e interpretam o mundo. As interpretações são aquilo que
sempre se interpõe entre o mundo e as ciências, e estas, por sua vez, assentamse sobre aquelas e as desenvolvem, sem o saber; sem saber que “compreender
o mundo é mais amplo e mais fundamental do que conhecer cientificamente a
natureza e que a formação do conceito das ciências da natureza está baseada
numa atitude diante do mundo, já linguisticamente articulada” (Scholtz, 1992/93,
p. 109-110).
O filósofo hermeneuta tem consciência de que vive num mundo já sempre
interpretado e compreendido, e de que suas interpretações podem ser as mais
diversas. Há, por conseguinte, uma relação estreita entre Filosofia hermenêutica e
consciência histórica, no sentido em que Nietzsche falava em “filosofar histórico”
e Yorck von Wartenburg referia-se à “historização do filosofar” (Scholtz, 1992/93,
p. 110-111). Não há dúvidas de que, na origem da Filosofia hermenêutica,
encontra-se a consciência do caráter histórico da Filosofia e das Ciências. Todas
têm pressuposições históricas e contingentes.
Diante disso, impõe-se a pergunta sobre a tarefa da Filosofia. O que lhe
restaria a fazer, a não ser constituir-se em reflexão ou interpretação da historicidade, da historicidade do ser humano e de suas interpretações do mundo? Nessa
direção, dentre os diversos níveis de reflexão possível, Heidegger pergunta pelo
fundamento ou vertente dessa história, concentrando-se no caráter histórico do
ser humano, aquele que produz as interpretações do mundo. Isso de tal maneira
que, com sua analítica do Dasein, a afirmação de que “tudo é interpretação” perde
o sentido negativo da perspectiva ontológica, de impedir o acesso à realidade.
Ao contrário disso, essa expressão recebe agora um sentido positivo. Se tudo é
interpretação, isso se deve à liberdade e à capacidade interpretativa do homem,
fonte de todas as interpretações.
Sem o amparo de uma base metafísica, mas também sem a rigidez de uma
estrutura ontoteológica coercitiva, abre-se um espaço propriamente humano,
de atuação livre e responsável do homem, apenas limitado pelas condições e
condicionamentos de sua própria natureza. Se na tradição o homem era entendido como aquele que pensa e conhece, “hoje ele se compreende como aquele
que compreende e se explica como aquele que interpreta” (Scholtz, 1992/93,
p.113).
Compreensão e interpretação deixam de ser exclusividade de uma ciência especial, como a hermenêutica técnica, e se constituem numa dimensão
essencial da vida humana.
Com esse reconhecimento, compreende-se melhor porque “ser que pode
ser compreendido é linguagem” (Gadamer, 1990, p. 478) e que todos os fatos já
estão sempre interpretados, mas ainda sempre abertos para novas interpretações.
Enfim, não há dúvidas, para Heidegger, de que Filosofia é, antes de mais nada,
hermenêutica. Todas as considerações permitem reconhecê-la como Filosofia
primeira.
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Filosofia e Ética
Na complexidade de sua função mediadora, entre o mundo divino e o
humano, Hermes não só representava uma presença amiga dos deuses, mas
também evidenciava a diferença abissal entre os dois mundos e mantinha os
homens numa situação de eterna imperfeição e inferioridade. Por melhor que
fosse o mensageiro e o tradutor, a compreensão humana nunca seria perfeita e
Hermes nunca iria conseguir que os homens ascendessem ao nível da divindade.
Por isso, além da explicação etimológica do termo hermenêutica, a referência à
mitologia grega fornece a matriz ou a fonte alimentadora da história do pensamento ocidental, enquanto pensamento metafísico. O conhecimento depende
da luz, da iluminação divina.
Desde a identidade parmenídica entre ser e pensar até a unidade entre ser e
pensar como autoconsciência em Hegel, o ser e a verdade são colocados no
horizonte da transparência e da identidade. Deus é a total transparência, a luz
em sua plenitude, como identidade consigo mesmo, e, por isso, é a verdade
e o ser por excelência, a noesis noeseos (Stein, 2001, p. 21).
Deus é fundamento do ser e da verdade, mas, sobretudo, é arquétipo
de todo conhecimento perfeito. Na perspectiva do mito, a reflexão filosófica
será sempre medida por aquilo que a excede, referida ao modelo divino. Essa
relação desigual entre divindade e humanidade e a tendência de comparação
entre os dois mundos têm propiciado ao homem uma experiência frustrante
ou meramente negativa dos limites de sua condição. Hermes, mais do que um
socorro amigo, tem-se transformado num peso imobilizador, porque o homem
permaneceria sempre imperfeito e ignorante. Somente no mundo divino poderia
haver perfeição de ser e a luz do verdadeiro conhecimento.
Esqueceu-se, entretanto, por muito tempo, de perguntar por que a condição humana sempre aponta para além de si mesma. Omitiu-se o fato de que a
busca do ilimitado é, precisamente, a afirmação do limite, de que a necessidade
do horizonte infinito é uma imposição da radical finitude. Ou seja, não se tomou
suficientemente a sério a finitude como o chão de toda experiência de ser.
Somente com Heidegger acontecerá essa virada, em que uma nova
concepção de finitude passará a orientar a maior parte das discussões filosóficas. Em Gadamer, o conceito de finitude perpassa toda sua obra e constitui-se
em sua chave de leitura. O que orienta o filósofo é a Wirkungsgeschichtlichesbewusstsein, a consciência histórica ou consciência das condições históricas às
quais toda compreensão humana está submetida, sob o regime da finitude. Tem
consciência de estar exposto à História e a sua ação, de tal forma que não pode
objetivar essa ação sobre nós, porque isso faz parte de seu sentido enquanto
fenômeno histórico. Por isso, “o que está em questão não é o que fazemos, o
que deveríamos fazer, mas o que nos acontece além do nosso querer e fazer”
(Gadamer, 2003, p. 14).
Heidegger, entretanto, permanece o referencial mais importante para
esse debate. A partir da analítica do Dasein, em Ser e Tempo, desenvolveram-se
discussões que produziram o que se designa como pensamento da finitude (Stein,
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
1976, p. 76). É uma perspectiva de grande parte da Filosofia contemporânea,
que se fortalece a partir dos, assim denominados, mestres da suspeita, como
Nietzsche, Freud e Foucault, mas que, certamente, tem legitimidade filosófica
de Kant, preocupado com os limites do conhecimento.
Com a recorrência ao mito foi possível constatar como o tema da finitude
já esteve sempre presente, desde os tempos mais remotos do pensamento ocidental. Hoje, entretanto, mais do que um tema ou uma questão a ser discutida,
a finitude tornou-se uma perspectiva da Filosofia, podendo-se falar em giro da
finitude, assim como em outro sentido se fala em giro linguístico. É uma visão de
mundo e um modo de fazer Filosofia que parte dos estreitos limites da condição
humana, sem, contudo, ater-se ao seu sentido negativo. Consideram-se mais as
potencialidades humanas e as reais possibilidades de sua realização.
O pensamento da finitude entende-se como pensamento da liberdade e
da realização humanas, em oposição a um pensamento metafísico que se afirma
como Filosofia primeira, “condenando o homem a depender de uma estrutura ontoteológica sobre a qual não possui poder algum de ação” (Stein, 1976, p. 18).
A rigidez dessa metafísica clássica “reduz o homem à imobilidade e ao
silêncio diante de questões fundamentais” (1976, p. 18). Em seu lugar postula-se,
hoje, uma ontologia da finitude, representando o lado heterodoxo da tradição
metafísica. A ontologia da finitude procura superar ou transformar a metafísica
a partir de dentro, ou seja,
libertar temas e virtualidades sufocados pelo totalitarismo ontoteológico da
metafísica. A afirmação da finitude é a tentativa de destacar a historicidade,
em face de uma ontologia estática, onde não há propriamente lugar para o
movimento; pois, tudo está ancorado e fixado num mundo ordenado (quando
não pré-ordenado), onde a liberdade humana está sempre ameaçada por uma
ordem sem alternativas (Stein, 1976, p. 19).
Assim como toda Filosofia traz atualmente a marca da finitude, mais ainda
reconhece-se isso da hermenêutica, que emerge, precisamente, desse terreno
movediço e flexível das condições humanas. É, pois, num mundo secularizado,
numa época pós-metafísica, que a hermenêutica efetivamente se estabelece
como questão filosófica. Constituída nas condições humanas do discurso e da
linguagem, ela ocupa um lugar incômodo entre as verdades empíricas das Ciências e a verdade absoluta da metafísica. Não contando mais com esses apoios, a
pergunta e a discussão hermenêuticas voltam-se ao sentido e ao agir humanos,
que carecem de compreensão.
Ao se situar nesse nível, humano e finito, afirma Ernildo Stein, “a hermenêutica é, de alguma maneira, a consagração da finitude” (1996, p. 45). Há, porém, uma
grande diferença desse conceito em relação à experiência de finitude vivenciada
no mito. Neste, a relação desigual entre o divino e o humano e a tendência de
comparação entre os dois mundos têm propiciado uma experiência frustrante
ou meramente negativa dos limites da condição humana, uma condição de
eterna imperfeição. Agora, porém, sem esse termo de comparação, a finitude
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Filosofia e Ética
designa o espaço propriamente humano, com as condições e limites que lhe
são inerentes, mas, sobretudo, designa o espaço da liberdade e da realização
humanas, e a interpretação sinaliza a ocupação deste espaço.
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heideggeriana. Ijuí: Ed. Unijuí, 2001.
______. Melancolia: ensaio sobre a finitude no pensamento ocidental. Porto
Alegre: Movimento, 1976.
______. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: Edipucrs, 1996.
Seção 1.3
O Que é Filosofia? 4
Paulo Rudi Schneider
5
5
A Filosofia pode ser descrita como a atividade perguntadora: – O que é? –
E, em decorrência, surgem com tal atividade as perguntas: – Quando é? – Onde
é? – Como é? – Por que é? – Para que é? – Para quem é? Filosofia é, portanto, a
atividade de quem quer saber.
1) Quem quer saber. Querer significa a procura pela efetuação de um projeto;
implica o desejo de presentificar uma situação em que se esteja satisfeito;
busca a consumação daquilo que no presente é percebido como falta, como
não cumprido e como necessidade de satisfação. Querer implica interessar-se, ir
ao encontro, estar a caminho, tender, procurar, sair da situação em que se está
Texto publicado em primeira versão em: Schneider, Paulo Rudi (Org.). Introdução à Filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí,
1995. p. 32-37.
4
O pensador – Auguste Rodin. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum
Edições Multimídia.
5
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Filosofia e Ética
e andar na direção de algum tempo e de algum lugar, angustiar-se e pôr-se
em movimento. Querer significa que não se está satisfeito com aquilo que se
é e com tudo que está posto como realidade, e então, procura-se a mudança
andando na direção que o projeto indica, construindo pela movimentação e
pela mudança, incluindo e incorporando caminhos. Querer significa o impulso
em direção daquilo que se ama, e, por isso, a situação de amante, ou amador.
A palavra filos, que provém do grego, significa exatamente isso: ser amante,
amigo, querer mudar a si e as circunstâncias movimentando-se direcionadamente, amadoristicamente e ciente do processo ou caminho em que se está.
Ser amador implica concessão de imperfeição e predisposição para perceber,
crescer e movimentar-se, pois existe a clareza de que na processualidade do
caminhar em direção de algo não se pode contar com a tranquilidade da
pretensa perfeição do profissional. Ser amador quer dizer que se sabe que
se está no meio do caminho e, no caso da Filosofia, esse caminho chama-se
saber (sofia).
2) Quem quer saber. O que é o saber? É um estado de coisas? Há um saber supremo a alcançar, além do qual não há mais saber? Há um saber absoluto a
ser conquistado que daria condições de não saber mais adiante? O supremo
saber seria, então, não mais saber? – A Filosofia não se define pela sabedoria
absoluta, pois não representa a fixidez de um caminho que chegou a seu fim. O
saber relativo à Filosofia é o próprio saber construir o caminho, e saber construir
o caminho de si e de tudo que foi posto como realidade é difícil. O querer o
saber é a procura pela ciência da construção, de modo que o saber possa ser
a indicação para a construção certa. Querer e saber estão irremediavelmente
ligados, aliás como na palavra Filosofia: a sabedoria não se conquista como coisa
que se quis e que agora poderia ser mantida e manipulada indefinidamente,
pois quando se para de querer saber, não se sabe mais. Quando pretensamente
se alcança o saber, não se sabe mais.
Numa época em que muitos se chamavam de sabedores, de sábios, de
sofhoi (plural de sophós, sábio), Pitágoras, quando perguntado sobre o que era,
respondeu: “Sou um amante do saber (Philosophos)”. O filósofo é um amante do
saber; alguém que quer saber, e não um sábio. Filosofia é a atividade de quem
quer saber.
Em outra época em que muitos chamam-se de sabedores, em que parece que há muita ciência absolutamente certa, muito conhecimento e muito
especialista, Bertrand Russel aposta e diz: “A filosofia origina-se de uma tentativa
obstinada de atingir o conhecimento real. Aquilo que passa por conhecimento,
na vida comum, padece de três defeitos: é convencido, incerto, e em si mesmo
contraditório. O primeiro passo rumo à filosofia consiste em nos tornarmos conscientes de tais defeitos, não a fim de repousar, satisfeitos, no ceticismo indolente,
mas para substituí-lo por uma aperfeiçoada espécie de conhecimento que será
experimental, preciso e autoconsciente. Naturalmente desejamos atribuir outra
qualidade ao nosso conhecimento: a compreensão. Desejamos que a área do
nosso conhecimento seja a mais ampla possível”.
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
3) Quem quer saber. Quem, isto é, o sujeito define-se pelo querer e pelo saber:
querer não existe sem quem queira e saber não existe sem quem saiba e, por
outro lado, não existe quem, o sujeito, sem o querer e o saber. Quem é definido
pelo movimento, pela procura, e pela angústia da insatisfação do que é, e,
além disso, indica a direção do movimento e do querer: é quem quer saber,
isto é, o filósofo, cuja atividade de querer e de saber é Filosofia. Filosofia,
sendo querer e saber de quem se define por esta atividade, poderá gerar as
perguntas: Quando? Onde? Por quê? Para quê? Na Filosofia embarca-se para
navegar e o navegador é seu próprio timoneiro, a sua própria direção, o seu
próprio ser. A atividade de querer e de saber, que é Filosofia, é, ao mesmo
tempo, transformação consciente do mundo, da vida e da sociedade, pois
querendo e sabendo a Filosofia transparece no agir ao construir nova direção
inscrevendo novo sentido no mundo. O que já foi construído e o que já foi
inscrito aí está para que se possa querer e saber, movimentar-se e construir
a direção. Karel Kosik diz: “Neste sentido, a realidade humana não é apenas a
produção do novo, mas também reprodução (crítica e dialética) do passado”.
E ainda: “A filosofia materialista sustenta que o homem, sobre o fundamento
da práxis e na práxis como processo ontocriativo, cria também a capacidade
de penetrar historicamente por trás de si, e, por conseguinte, de estar aberto
para o ser em geral”.
A procura do saber que define o filósofo traduz-se, em outros termos, pela
busca por visibilidade da totalidade: a infinita variedade que se percebe deve ter
relação entre si, deve possibilitar alguma orientação e deve conceder a explicação
de sua existência. Desta forma a pergunta filosófica constantemente tematiza o
já explicado, o existente posto como realidade, a estrutura fixada como solução
definitiva e a repetir o seu mando, a sua validez e o seu poder de imanência
absoluta. A Filosofia como amor ao saber é a identificação da imanência posta e,
por isso, ao mesmo tempo, a ânsia de transcendê-la, de negá-la, de colocá-la em
novos termos, enfim, de sair da imediatez da inconsciência imanentista. Filosofia
como amor ao saber, como saída da imanência e como possibilidade de novo
sentido, só pode efetuar-se no pressuposto da reflexão racional, na confiança na
racionalidade, na acentuação e na afirmação do exercício autônomo da racionalidade, bem como na desconfiança de qualquer processualidade reveladora
extrarracional, no descrédito da imanência que se tornou transcendência imposta,
fixa, imóvel, realidade fantasmática positivamente desvinculada do saber que o
homem institui em forma de significados de totalidade.
4) Quem quer saber. Quem quer saber é o filósofo. A negação ou quem não quer
saber, o que seria? Heráclito de Éfeso, com a sua constante preocupação pedagógica em relação à Filosofia, expressou-se da seguinte forma sobre essa
questão: “Os asnos prefeririam a palha ao ouro”.
A preferência pela palha por parte do asno significa o sucumbir ante a pura
necessidade intestina, a segurança do condicionamento inconsciente e a busca
do convencional, do normal e do fixamente instituído como significado. Além
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Filosofia e Ética
disso, quem assim não quer saber, tem a si mesmo como resultado instituído
por si próprio, restando apenas a satisfação mastigativa e repetitiva da palha
ordinária e rotineira da vida:
O asno sempre foi, é, e será asno,
Pois todo o asno é rotineiro,
Costumeiro puxador de carroça.
Acostumado,
O asno sente-se vivo, existindo
Ao puxar a carroça instituída.
E, no fim da vida, moído a pancada,
Rejeitado e consumido,
Sente-se condenado e expulso
Da vida, instituída a carroça.
E pensa, então, como carroça instituída:
- Que vida, que sorte;
A carroça é a vida
E eu, longe dela, a morte Sem perceber que a carroça é o asno,
e que o asno é a carroça;
Que a carroça que é vida
É o asno instituído.
5) Quem quer saber é qualquer um que queira saber. O poeta Bertolt Brecht dá
um exemplo:
PERGUNTAS DE UM TRABALHADOR QUE LÊ
Quem construiu Tebas, aquela das sete portas?
Nos livros figuram apenas nomes de reis.
Arrastaram eles, por acaso, os blocos de pedra?
E Babilônia, mil vezes destruída,
Quem voltou a levantá-la outras tantas vezes?
Aqueles que edificaram a dourada Lima, em que casas viviam?
Aonde foram, na noite em que foi terminada a grande muralha, os seus
pedreiros?
Cheia de arcos triunfais está
Roma, a grande. Seus Cézares
Sobre quem triunfaram? Bizâncio,
Tantas vezes cantada, para seus habitantes
Teria apenas palácios? Até na legendária
Atlântida, na noite em que o mar a tragou,
Os que se afogavam pediam, clamando,
Ajuda aos seus escravos.
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Ele sozinho?
Cézar venceu os gauleses.
Não levava um cozinheiro sequer?
Felipe II chorou ao saber sua frota afundada.
Não chorou ninguém mais?
Frederico da Prússia venceu a guerra dos Trinta Anos.
Quem a venceu também?
Um triunfo em cada página.
Quem preparava os festins?
Um grande homem a cada dez anos.
Quem pagava os gastos?
Para tantas histórias
Tantas perguntas!
6) O que é Filosofia?
O Tema Fundamental da Filosofia é a Razão
I. A Filosofia expressa-se na busca da compreensão da totalidade do diverso percebido, por meio de um princípio unificador, mesmo que este seja entendido
como pura processualidade.
II.A Filosofia expressa-se como atividade especulativa na busca e na análise dos
pressupostos que pretendem fundamentar a imediatidade da vida.
III. A Filosofia expressa-se como atividade promotora do estabelecimento de
relações entre todas as áreas do saber, em busca de uma possível visibilidade
do todo pressuposto.
IV. A Filosofia expressa-se como atividade reflexiva na intenção de acompanhar
pela compreensão toda a produção cultural humana.
V.A Filosofia expressa-se como atividade interlocutora do conhecimento estabelecido em forma de ciência tematizando a sua fundamentação, a sua justificação
e o seu exercício como efetividade.
VI. A Filosofia é o estado de admiração ante o enigma do presente a ser desvendado por interpretação possível do passado e por necessária existência de
projeto em relação ao futuro.
VII. A Filosofia expressa-se como atividade identificadora da imanência posta
num exercício de processualidade reveladora extrarracional a tornar-se
transcendência positiva, fixa e fantasmática, e, por isso, como acentuação e
afirmação do exercício autônomo da racionalidade em que há a possibilidade
da instituição coletiva e argumentativa de novo saber em forma de significados
de totalidade.
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Filosofia e Ética
INDICAÇÕES PARA LEITURA
BORNHEIM, Gerd A. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Editora Cultrix, 1998.
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Publicações
Dom Quixote, 1990.
JASPERS, Karl. Iniciação filosófica. Lisboa: Guimarães Editora, 1987.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
RUSSEL, Bertrand. Fundamentos de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1977.
VÁRIOS AUTORES. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Edições Loyola,
1999.
Seção 1.4
Lógica e Racionalidade
Vânia L. F. Cossetin
Frequentemente usamos a
expressão “é lógico”, como se quiséssemos indicar algo evidente, a
conclusão de um raciocínio implícito
e coerente. Em boa medida, esta
expressão faz parte de uma tradição
de pensamento que se origina na
Filosofia grega, quando os filósofos
indagavam se a palavra lógos –
linguagem, discurso, pensamento,
conhecimento – obedecia a regras,
normas, princípios e critérios para
seu uso e funcionamento.
6
6
Nesse contexto, dois importantes filósofos devem ser mencionados: Heráclito, para quem tudo flui, somente a mudança é real e a permanência é ilusória
(“Nunca nos banhamos no mesmo rio; somos e não somos”); e Parmênides, para
quem a identidade e a permanência são reais e a mudança, ilusória (“Somente
o ser é; o não-ser não é”). Para o primeiro, o mundo está em permanente transformação, cujo ordenamento racional é possível justamente pela harmonia dos
O sono da razão produz monstros – Goya. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo:
Alphabetum Edições Multimídia.
6
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
contrários, muito embora nossa experiência sensorial perceba o mundo como
se fosse estável. Para o segundo, o mundo é imutável, imperecível e ausente
de contradições, sendo a mudança, o devir, algo impensável e indizível, razão
pela qual o pensamento e a linguagem só são possíveis porque das coisas conservamos a sua identidade e permanência, pois, caso se tornasse contrária a si
mesma, deixaria de ser.
Eis o problema sobre o qual a Filosofia tem se debruçado em busca de
solução ao longo de sua História: se Heráclito tem razão, o pensamento é pura
fluidez e a verdade a eterna contradição dos seres em mutação; se Parmênides
tem razão, o mundo heraclítico não tem sentido algum, tampouco pode ser
conhecido. A busca dessa solução resultou no surgimento de duas disciplinas
filosóficas: a lógica e a metafísica. Em seu apogeu, a Filosofia clássica oferece as
duas soluções mais importantes para o problema da contradição e da identidade:
a dialética e a lógica.
1.4.1 – Entre a Dialética Platônica
e a Analítica Aristotélica
Platão admitiu o pensamento de Heráclito sobre a constante mudança do
mundo sensível, mas também aceitou a ideia parmenídica de que este mundo
sensível é apenas aparência, cópia do mundo verdadeiro, ou seja, das essências
imutáveis, sem contradições: o mundo inteligível.
A pergunta que se formula aqui é a seguinte: como passar do mundo
sensível ao inteligível? Platão dá a resposta: pelo método dialético, ou seja, pelo
diálogo, pelo discurso compartilhado por dois interlocutores, cujas opiniões estão
em oposição, e pela discussão o argumentador procura superar essa contradição
e chegar a uma ideia aceita por ambos.
Aristóteles, por sua vez, segue uma via diferente daquela escolhida por
Platão. Considera desnecessário separar a realidade da aparência em dois mundos distintos, pois há um único mundo no qual existem essêncais e aparências.
O equívoco de Heráclito, para ele, foi supor que a mudança se realiza sob a
forma da contradição, pois a mudança ou transformação é a maneira pela qual
as coisas realizam todas as potencialidades contidas em sua essência. Assim,
quando a semente se transforma em árvore, nenhuma delas torna-se contrária a
si mesma, mas desenvolve uma potencialidade definida pela identidade própria
de sua essência.
Cabe à Filosofia buscar responder: como e por que, sem mudarem de
essência, as coisas se transformam? Como e por que há seres imutáveis? Se, por
um lado, Parmênides tem razão ao defender que o pensamento e a linguagem
exigem a identidade, por outro Heráclito também tem razão ao afirmar que as
cosias mudam. Ambas existem, portanto, sem que seja preciso cindir a realidade em dois mundos, à maneira platônica. Por isso, Aristóteles considera que a
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Filosofia e Ética
dialética não é um procedimento seguro para o pensamento e a linguagem da
Filosofia e da Ciência, pois parte de meras opiniões contrárias cuja escolha de
uma delas não garante que se tenha chegado à essência da coisa investigada.
Para Aristóteles, à Filosofia e à Ciência interessa a demonstração ou a
prova de uma verdade. Por isso ele criou a Lógica: enquanto a dialética platônica
é um modo de pensar e conhecer que opera com os conteúdos do pensamento
e do discurso, a Lógica é um instrumento para o exercício do pensamento e da
linguagem que oferece procedimentos que conduzem a um conhecimento
universal e necessário, cujo ponto de partida não são opiniões contrárias, mas
princípios, regras e leis necessários e universais do pensamento.
1.4.2 – Para que Lógica?
Somos seres de linguagem. Tal é a importância da linguagem na vida
humana. A linguagem é o meio pelo qual o homem se expressa e expressa o
mundo que o circunda. E isto nós fazemos mediante a arte, os gestos, as sentenças. Os inúmeros modos possíveis de expressão linguística são diferenciáveis
pela atribuição de regras e ordenamentos aos quais são submetidas.
No mundo acadêmico assumimos algumas regras que definem a linguagem apropriada para este meio, reconhecidamente denominadas de sentenças,
argumentos, proposições, proferimentos, enunciados. Estas regras buscam identificar se há ou não rigor na fundamentação e demonstração dos discursos neste
âmbito exigido. Como, porém, certificarmo-nos se de fato este ou aquele discurso
consegue alcançar tal fundamentção ou demonstração coerentemente?
A Lógica, nesse sentido, desempenha um papel muito importante, não
apenas na Filosofia, mas na construção de todo conhecimento que se pretenda
verdadeiro, ou ao menos, sustentável, qual seja: ajudar a analisar a própria estrutura formal e expressiva do conhecimento, de como pode ser bem estruturado
e, assim, bem compreendido. Se por um lado todo conhecimento se sustenta
mediante argumentos, nem todo argumento pode ser considerado. É preciso
que seja um bom argumento, e para que seja bom é necessário que seja válido.
Exemplo disso é o silogismo aristotélico:
Todo homem é mortal.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.
Ou seja, a conclusão deve ser uma consequência necessária das premissas,
não pode informar algo que não esteja contido nelas. Nesse sentido, a Lógica é
justamente esta área do saber que ajuda a determinar se um argumento é ou
não válido, desempenhando, assim, dois papéis no conhecimento: clarifica o
pensamento e ajuda a evitar erros de raciocínio, devido à posição crítica que
sempre assume diante de problemas, teorias e argumentos.
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A isso chamamos de pensamento consequente: o pensamento fundamentado, baseado em razões, cujas consequências são corretamente retiradas das
razões em que se baseia. Diante disso, podemos tomar consciência das diversas
formas pelas quais corremos o risco de errar enquanto pensamos, ajudando-nos
a apenas aceitar nossas ideias e argumentos se e somente se foram submetidos
à reflexão.
Exemplo disso encontramos na frase, hoje equivocadamente repetida:
“Todas as verdades são relativas”. Sem qualquer instrução lógica, esta frase
apresenta um problema fundamental: trata-se de uma ideia que se autorrefuta,
pois se todas as verdades são relativas, também esta é uma verdade relativa, de
modo que uma determinada comunidade, em uma determinada circunstância,
pode ou não concebê-la como falsa. Dito de outro modo: se é verdade que todas
as verdades são relativas, é igualmente falso, em algumas circunstâncias, que
todas as verdades sejam relativas.
Esse exemplo mostra, apesar de nosso vasto conhecimento e informação,
como facilmente podemos nos apoiar em argumentos extremamente frágeis,
iludidos de que o conhecimento pouco tem a ver com a forma de sua expressão,
quando, ao contrário, a credibilidade de um saber é correlata à coerência de sua
exposição e justificação.
1.4.3 – O Problema da Argumentação
Argumento é um conjunto de proposições (asserções sobre o mundo,
independe da língua na qual é expressa) ou um conjunto de sentenças (sequência gramatical de palavras de uma língua pela qual transmitimos informações).
A Lógica, como um todo, interessa-se por proposições (muito embora a Lógica
formal se interesse pelas sentenças, ou seja, pelo aspecto formal dos argumentos, sobre os quais só se pode dizer se são válidas ou não válidas). Com relação à
primeira definição, podemos afirmar que um argumento, ainda que formado por
sentenças, sempre é apresentado em um certo contexto e expressa, ao menos,
uma única proposição (Ex.: “Está chovendo”, pode ser uma abreviatura de “está
chovendo no centro da cidade de Ijuí, às 8 horas do dia 20 de junho de 2013”);
além disso, é importante destacar que mesmo não se interessando pelo poder
de persuasão dos argumentos, mas pela relação entre evidências e conclusão,
a Lógica mantém um compromisso com o saber científico, com a construção
de conhecimentos seguros. Por isso é que o primeiro grande objetivo de um
argumento é o de convencer e produzir novos conhecimentos. Estes argumentos
podem ser de dois tipos: dedutivos e indutivos.
Argumentos dedutivos
Tais argumentos tiveram sua origem na Geometria. Por trabalhar com a
determinação de proposições gerais sobre espécies de coisas individuais (por
ex., linha AB, apesar de se referir a uma linha em particular, subentende todas
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EaD
Filosofia e Ética
as linhas em uma determinada condição), a Geometria é o primeiro ramo do
conhecimento que surge como teoria dedutiva e, desde os gregos, considerada
como paradigma para a construção de tais teorias. Os egípcios, por exemplo, já
procuravam calcular o volume da base de uma pirâmide, só que o faziam apoiados
num estudo empírico. Os gregos, por sua vez, substituíram este procedimento
por uma ciência demonstrativa e a priori. Antes, palavras como círculo tinham
sentido porque se referiam a certos esquemas perceptivos, de modo que quando
um grego diz que “um círculo é o lugar geométrico dos pontos equidistantes de
um ponto dado” está usando a palavra círculo num novo contexto, desvinculado
da experiência do caso particular.
Nesse sentido, Tales foi o primeiro a demonstrar um teorema de Geometria e Pitágoras a desenvolver um estudo sistemático, no qual a Geometria
passa a ser uma ciência, exclusivamente dedutiva: certas proposições têm de ser
tomadas como verdadeiras sem demonstração e todas as outras proposições
tem de ser derivadas formalmente destas e independentes do tópico particular
em questão.
Já para Aristóteles, um argumento dedutivo é uma inferência que vai dos
princípios para uma consequência logicamente necessária. É o silogismo: a ligação de dois termos por meio de um terceiro, cuja relação é necessária, ou seja, a
conclusão é imposta. Se, por um lado, porém, a dedução é um modelo rigoroso,
por outro tende a surgir como algo estéril, porque não apresenta nada de novo
daquilo que já estava nas premissas, apenas organiza o conhecimento. Por isso
a validade dos argumentos dedutivos é determinada pela forma lógica e não
pelo conteúdo, ela depende apenas da relação entre premissas e conclusão: a
conclusão precisa ser V se as premissas forem V, não pode haver, por exemplo,
premissas V e conclusão F. Esta regra é aplicada à forma do argumento para
identificar a sua validade ou não validade. Ex.:
a)
Todos os G são H
Todos os F são G
Todos os F são H.
b) Todos os gatos têm asas
Todos os pássaros são gatos
Todos os pássaros têm asas.
No silogismo não é preciso saber o que os enunciados significam, nem
cogitar sua V ou F: se a forma lógica é seguida, o argumento é válido. Um argumento de forma não válida é uma falácia: um argumento que não respeita a
forma lógica.
Argumentos indutivos
São aqueles que, a partir de dados singulares enumerados, levam à
inferência de uma verdade universal. Chega-se à conclusão a partir dos dados
particulares, de modo que o conteúdo da conclusão acaba excedendo o das premissas. O argumento indutivo sacrifica o caráter de necessidade dos argumentos
dedutivos, porque um argumento indutivo e correto pode admitir uma conclusão
falsa, ainda que as suas premissas sejam verdadeiras. É considerado correto se
pertence a uma classe em que a maioria dos argumentos de premissas V tem
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conclusões V e é falaz quando as premissas não sustentam a conclusão. Assim, é
importante que haja uma enumeração suficiente para que se possa passar mais
seguramente do particular para o geral. Neste argumento está sempre suposta
uma probabilidade, por isso é um raciocínio associado às descobertas, a novas
formas de compreender o mundo. É muito fecunda nas ciências experimentais.
Ex.:
Todos os grãos da amostra observada são do tipo A.
Todos os grãos do barril são do tipo A.
Falácias: argumentos de forma não válidas
Lemos e ouvimos muitas coisas, a todo momento. Muitas vezes, porém,
estes discursos são ardilosos, enganadores, falsos, embora não pareçam. Trata-se
da falácia: um tipo de argumento que parece correto, mas, na realidade, não é.
As falácias podem ser classificas em 11 tipos:
a) Apelo à força: consiste em ameaçar com consequências desagradáveis se não
for aceita ou acatada a proposição apresentada. Ex.: Você deve se enquadrar
nas novas normas do setor. Ou quer perder o emprego?
b) Apelo à misericórdia: consiste em apelar à piedade, ao estado ou virtudes do
autor. Ex.: Ele não pode ser condenado: é bom pai de família, contribuiu com a
escola, com a igreja, etc.
c) Apelo ao povo: consiste em sustentar uma proposição por ser defendida pela
população ou parte dela. Sugere que quanto maior o número de pessoas
que defende uma idéia, mais verdadeira ou correta ela é. Incluem-se aqui os
boatos, o “ouvi falar”, o “dizem”, o “sabe-se que”. Ex: Dizem que um disco voador
caiu em Minas Gerais.
d) Apelo à autoridade: consiste em citar uma autoridade (muitas vezes não qualificada) para sustentar uma opinião. Ex: O melhor antigripal é Benegripe, porque
Pelé toma (ou diz tomar) Benegripe quando está gripado.
e) Generalização apressada: trata-se de tirar uma conclusão com base em dados
ou em evidências insuficientes. Dito de outro modo, trata-se de julgar todo um
universo com base numa amostragem reduzida. Ex: Todo político é corrupto.
f) Ataque à pessoa ou argumento contra o homem: consiste em atacar, em desmoralizar a pessoa e não seus argumentos. Ex.: Não deem ouvidos ao que ele diz: ele
é um beberrão, bate na mulher e tem amantes (uma variação deste argumento é
o “tu quoque” (tu também): consiste em atribuir o fato a quem faz a acusação.
Ex: alguém lhe acusa de algo, e você diz: “tu também”! Isso, evidentemente, não
prova nada).
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g) Redução ao absurdo: consiste em tirar de uma proposição uma série de fatos
ou consequências que podem ou não ocorrer. É um raciocínio levado indevidamente às últimas consequências. Ex.: Mãe, cuidado com o Joãozinho. Hoje,
na escolinha, ele deu um beijo na testa de Mariazinha. Amanhã, estará beijando
o rosto. Depois... Quando crescer, vai agarrar todas as meninas.
h) Falsa analogia: consiste em comparar objetos ou situações que não são comparáveis entre si, ou transferir um resultado de uma situação para outra. Ex:
Tomei mata-cura e fiquei bom. Tome você também.
i) Ônus da prova: consiste em transferir ao ouvinte o ônus de provar um enunciado. Ex: Se você não acredita em Deus, como pode explicar a ordem que há no
universo?
j) Apelo à ignorância: consiste em concluir que algo é verdadeiro por não ter
sido provado que é falso, ou que algo é falso por não ter sido provado que é
verdadeiro. Ex: Ninguém provou que Deus existe. Logo, Deus não existe (não há
evidências de que os discos voadores não estejam visitando a Terra; portanto,
eles existem).
k) Questão complexa: consiste em apresentar duas proposições conectadas como
se fossem uma única proposição, pressupondo-se que já se tenha dado uma
resposta a uma pergunta anterior. Ex: Você já abandonou seus maus hábitos?
Referências
ARISTÓTELES. Organon I, II, III, IV, V. Lisboa: Guimarães Editores, 1985.
COPI, I. M. Introdução à lógica. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978.
KNEALE, M.; KNEALE, W. O desenvolvimento da lógica. 2. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1962.
MORTARI, C. Introdução à lógica. São Paulo: Editora da Unesp, 2001.
SALMON, W. Lógica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1981.
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Síntese da Unidade 1
Nesta Unidade estudamos, em primeiro lugar,
a origem da Filosofia na Grécia, entre os séculos 6º e 7º a.C., quando e onde se promoveu a
passagem do saber mítico (alegórico, poético)
ao pensamento racional. O mito, ao mesmo
tempo em que ele foi superado, também serviu
de ponto de partida para a Filosofia. A razão e a
Lógica tornaram-se, então, pressupostos básicos
para o pensar.
Na segunda seção estudamos sobre a hermenêutica, que trata do modo peculiar de como o
homem compreende e interpreta um texto e a
própria realidade, a partir da linguagem e dando
destaque positivo à condição humana e limitada da compreensão. O tema foi desenvolvido
utilizando-se de uma comparação entre o atual
estado de discussão da hermenêutica com o mito
de Hermes, em que, curiosamente, já se levantou
a questão da compreensão e da comunicação
pela linguagem.
Em terceiro lugar estudamos o que é Filosofia.
Mais do que um conhecimento elaborado, entendemos que ela é uma busca incessante pelo saber.
Revela isso no seu modo de agir, perguntando.
Perguntar ou questionar é a principal característica da Filosofia. Pode-se afirmar que a Filosofia
é uma atividade perguntadora.
Na quarta seção estudamos a Lógica, que faz
parte da Filosofia, e com ela surgiu. Com o estudo desse tema se esclareceu que o pensamento
racional, filosófico, segue determinadas regras. Há
um certo padrão de pensamento e conhecimento
humanos. Toda linguagem ou discurso orienta-se
necessariamente por princípios ou critérios de
uso ou funcionamento, sob pena de permanecer
sem sentido e ininteligível.
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Unidade 2
UNIVERSIDADE E CONHECIMENTO:
O Papel Formador da Filosofia
OBJETIVOS DESTA UNIDADE
•
Compreender que os conceitos de Filosofia e ensino estão intimamente associados desde o início da sua História e que a origem da
Filosofia deu-se como exercício de um método cujos participantes
estavam implicados pelo diálogo.
•
Perceber a implicação entre a História das Ciências Humanas e a trajetória da cultura, da tradição, da educação e do ensino no mundo
ocidental e que a concepção moderna de Ciência, o seu conteúdo
qualificativo de humana(s), remete à Antiguidade Clássica.
•
Entender a importância, a função e a utilidade da Filosofia.
•
Refletir sobre o papel da universidade na formação profissional enquanto constituidora de um sujeito capaz de apreender e reelaborar
criticamente os conhecimentos, a cultura, os valores e a sociedade.
A SEÇÃO DESTA UNIDADE
Seção 2.1 – Filosofia e Ensino
Seção 2.2 – Ciências Humanas: Contextualização Histórica e Teórica
Seção 2.3 – Para que Filosofia?
Seção 2.4 – Filosofia e Formação: o Perfil do Profissional Universitário
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EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Seção 2.1
Filosofia e Ensino
Paulo Rudi Schneider
Dificilmente poder-se-á deixar de associar os conceitos
de Filosofia e ensino. Desde
o início da sua história no
Ocidente a Filosofia deu-se
como exercício de um método em que todos os dialogantes estavam implicados
pela simples participação na
conversação.
1
1
A suposição de um método, seja maiêutica, dialética, análise, crítica, hermenêutica ou meramente exposição, sempre compromete o pretenso ensinante
com os efeitos da sua participação direta, efetiva e incontornável no exercício
em que está ocupado com outros supostos ensinados. A Filosofia como sistema
a ser somente ensinado para fins de uso estratégico e eficiente nas diversas
perspectivas da vida invariavelmente significou traição ao seu conceito e, por
isso, também o seu próprio esmaecimento e esquecimento merecido. Ela não é
um conteúdo que se possa aprender definitivamente como dado científico para
posterior utilização tecnicista em determinado setor da vida, mas uma constante
tarefa por cumprir. O professor de Filosofia como mero apresentador e repassador de conteúdos culturais, científicos, ou até filosóficos seria, nessa acepção,
ao contrário de Sócrates, o verdadeiro personagem ocupado em corromper a
juventude do mundo, mesmo que não fosse condenado oficialmente a beber
cicuta com os seus semelhantes e comparsas, que hoje chamam-se multidão
nas mais diversas áreas do saber. É conhecida a opinião de Immanuel Kant sobre esse assunto, ou seja, de que não há como aprender Filosofia, mas somente
aprender a filosofar, posto que ela não existe enquanto ultimada, definitiva e
universalmente válida (Eisler, 1984, p. 418).
Por outro lado, a reflexão sobre a relação da Filosofia com o ensino traz
de imediato a questão da “Darstellung”, da apresentação necessária do que já
foi pensado para que se pense adiante. A apresentação enquanto tal é inevitavelmente posterior ao pensamento, uma vez que este vai pelos caminhos do
Alegoria da Caverna. Disponível em: <http://www.estudopratico.com.br/mito-da-caverna-de-platao>.
Acesso em: dez. 2013.
1
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EaD
Filosofia e Ética
desvio, da busca tateante e do ensaio, enquanto que a apresentação mesma
tem conotações retórico-pedagógicas por motivos da sua intenção inerente de
exposição pública clara e compreensível.
A apresentação expositora de um conteúdo filosófico objetivado em
conhecimento suposto certamente corre o perigo de deixar de ser Filosofia para
transverter-se em mero discurso de convencimento e arregimentação de quadrilha ou seita, caso houver esquecimento do método filosófico que se intenta
exercitar. A própria apresentação expositora de um conteúdo pensado, portanto,
pode e, quem sabe, deve ter a tranquilidade de um desenho público que em seu
desenvolvimento transforma-se em filosofar no sentido de Kant. Apresentam-se
os resultados da certeza provisória à qual se chegou com a possível descrição
de dúvidas e dívidas em forma de recordação do que aconteceu pelo método
ensaístico próprio do pensamento.
O caminho de elucidação da relação entre a Filosofia e o ensino depende,
de qualquer forma, do que se entende pelo próprio conceito de Filosofia, bem
como de História da Filosofia, Filosofia da história, teoria do conhecimento, Filosofia da Linguagem, etc. O que é que une tudo isso? De que espécie de exercício
se trata? Qual o método ou processo que deve ser instituído? Sabe-se que é
sempre perigoso decidir-se à definição apressada do que seja Filosofia depois
de Sócrates, com o seu método de maiêutica, ter indicado ser quase impossível
a separarão entre definição filosófica, pedagogia processual em que a mesma se
dá e a simultânea instituição comprometida de formas de dizer e de ação. Mesmo
assim, não há como fugir da raia e mostrar a que se veio no que se chama vida,
em cujo cenário se está a compreender algo e a querer compreender as razões
disso, o que, por sua vez, é um jeito típico de ser.
De acordo com esse jeito, há que certamente lembrar os pré-socráticos
que com a sua sequência de sugestões sobre o que se possa indicar como a arché
fundante e relacionadora de todo o devir levam-nos a crer que a Filosofia, desde
o seu início na Grécia, seja primordialmente um diálogo sobre como se poderá
entender justificadamente o que se está a perceber. Há um estado de coisas que
se percebe e que é explicado e organizado de determinada maneira. Saber viver
organizadamente conforme um determinado estado de coisas costumeiramente
se reputou como sendo sabedoria na História da humanidade.
A sofia/sabedoria já sempre remete ao viver de acordo com um estado de
coisas em operação e que é acionada por determinados critérios, modelos e valores, os quais em grande parte permanecem inconscientes na operação imediata,
mas que são capazes de formar consenso a ponto de legitimar os julgamentos
sobre o que acontece. Por que não deixar tudo exatamente assim como está
sendo julgado? Por que os pré-socráticos inauguraram a pergunta pela relação
e pelos critérios de julgamento da sabedoria costumeira? Porque a pergunta e
o interesse sobre Sofia e com isso a instituição do exercício da Filo-sofia.
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EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
A pergunta é historicamente pertinaz, tanto que a temos como herança
até hoje, só que acrescida de um tom acusador por parte dos sábios construtores
do status quo contemporâneo, mas de novo assumida carinhosamente angustiada e transfigurada pelo filósofo de hoje, ou seja, assim: “Por que perguntar
pela pergunta”?
A própria fixação das dúvidas, das perguntas e das tentativas de resposta
já apresentadas na História da Filosofia, por sua vez, também se tornaram Sofia
que instiga à nova investigação e pesquisa filosófica. Quer se queira ou não, o
interesse e a pergunta pela sophia atual não foi esquecida e marca a sua presença,
apesar de tudo o que foi construído como ciência em todas as áreas, como tecnologia a favorecer comodidades gerais e como administração organicamente
planificada e controlada do desejo de ser feliz. Quer se queira ou não, a pergunta
filosófica surge em todos os níveis educacionais e nos mais diversos setores em
meio às tentativas de organização cultural via estética, comunicação dirigida
e indústria do lazer e do prazer. A pergunta toma a forma do que se chama de
crise de legitimidade.
A atualidade sempre nos remete a uma pré-história, com a qual o nosso
presente ainda tem muito que se preocupar: senão todos, pelo menos a maioria
dos problemas que hoje nos afligem em todas as áreas estão profundamente
relacionados com o nosso enraizamento no passado. O apelo de perguntas não
respondidas, problemas não resolvidos e erros não solucionados têm a capacidade de nos inquietar suficientemente para nos pôr agudamente em questão,
em forma de crise de sentido na política, na economia, na ciência, na tecnologia
e na cultura em geral.
A administração meramente das crises na política, ciência e cultura não
tem a capacidade de abordar mais profundamente a questão do sentido: é
conhecido o fato de que nessas áreas os problemas são visualizados enquanto
apenas administrativos e, então, pertencentes somente à área da ação estratégica, já pressupondo, por isso, o que deva ser consensualmente estabelecido.
O descompasso torna-se evidente, pois tal consenso pressuposto não existe e,
então, instala-se por todos os lados uma crise de legitimação: não há consenso
visível e em seu lugar toma assento o comando da vida uma maquinaria com
toda a sua burocracia administrativa obsoleta, desagradável e injustificável. A
política, a administração, a cultura, os processos econômicos parecem fugir do
controle possível de uma arregimentação coletiva e consensual e tudo isso é visto
e percebido por todos os participantes da sociedade como destino fatal inimigo,
incompreensível e destrutivo. Kafka que o diga (Frank, 1982, p. 9 et seq.)
A crise de legitimidade cultural também não se deixa debelar pelo recurso
geral ao mito do Direito, à formulação geral de leis e ações de mágica administrativa, que já sempre pressupõem diálogos feitos, consensos já estabelecidos e
falta de apenas aplicação lógico-operatória e interpretativa do já resolvido.
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EaD
Filosofia e Ética
As religiões com o seu viés dogmático missionário muitas vezes apenas
sofisticam o processo quando tentam exorcizar os problemas da humanidade
com implantes doutrinários e falsa mística. A arte, por sua vez, parece perderse definhando na satisfação de se ver reconhecida como atividade meramente
contestatória de algumas facetas da sociedade, ou como recurso pedagógico
em favor da continuidade de modelos educacionais e sociais, a respeito dos
quais infelizmente não se sente obrigatoriamente encorajada a assumir alguma
postura mais reflexiva.
O embretamento e o encarrilhamento da vida nos valores e critérios
consagrados e atuantes no presente parecem ser fortes demais para merecer
qualquer tipo de reflexão cuidadosa, uma vez que em grande parte, com toda a
sua competência, a ciência e a tecnologia de todas as áreas do saber estão entusiasticamente comprometidos com eles. Mesmo assim a crise de legitimidade
instala-se e se expressa por insatisfação indefinível generalizada, violência em
suas mais diversas formas, religiões a assumir a forma do espetáculo massificado,
movimentos de formação de seitas de cunho milenarista e, entre outras mais, a
perda de sentido na atividade de quase todo o sistema educacional: a atividade
educacional no ensino, na pesquisa e na extensão acontece a reboque de toda
a maquinaria já sem legitimidade consensual geral.
Já o poeta Hölderlin dizia que os deuses nos abandonaram e que estamos
ao léu. Paradigmática é a sua loucura após a sua grandiosa produção poética. Um
dos seus diagnósticos iniciais a respeito da modernidade foi o de que os deuses
de uma nova legitimação coletiva e consensual geral deverão ser descobertos e
instituídos. Em outras palavras, os deuses nos abandonaram, estão escondidos,
invisíveis e permanecem não reconhecidos para que pudesse acontecer a sua
entronização e consequente discussão sobre o alcance e legitimidade de seus
poderes. Para a sua descoberta seria preciso a instituição da Filosofia poética
ou da poesia filosófica, em todo o caso do exercício filosófico de acordo com os
ensinamentos da sacerdotisa Diótima, iniciadora de Sócrates nos segredos do
amor à Filosofia (Hölderlin, Bd II, 1995, p. 7 et seq.).
O tempo atual estaria, portanto, numa situação de credulidade inconsciente nos deuses que desconhece e ao mesmo tempo, por isso mesmo, a afirmar
incredulidade e consciência absoluta de si. Walter Benjamin tem uma frase excelente para circunscrever tal situação: “Desconfiamos daqueles que recebem o
estado de embriaguês de um espírito a quem não servem. Estes são incrédulos”
(Benjamin, 1991, Band I, p. 47).
Aliás, o mesmo autor expressa com uma frase lapidar a enorme dificuldade
de visualizar pela reflexão filosófica o que desde sempre nos inquieta: “Nunca,
jamais, vimos o local da luta silenciosa que o Eu encetou contra os pais” (Benjamin, 1991, Bd II, p. 91).
Ainda estamos a ver continuamente apenas as sombras no fundo da caverna platônica, amarrados e impossibilitados de ver os modelos que prefiguram
a atividade teórico-compreensiva e a ação que nos definem. O pior aspecto da
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
situação de fixação confiante no trabalho explicativo de sombras é a crença de
que todos os modelos estão elucidados em forma de representação clara, distinta e científica a ocorrerem numa parede lógico-objetiva. Tal clareza de visão
redundaria em suprema sabedoria e tornaria supérflua a atividade filosófica no
ensino. Trata-se da recusa em perceber a crise de legitimidade e a tentativa de
continuar apenas acionando todos os comandos dos aspectos da maquinaria
operatória já sem legitimação.
A Filosofia enquanto exercício no seu ensino e na sua relação com o ensino em geral dá-se como insistente e angustiante procura pelos modelos que
a distância e de maneira encoberta nos comandam, e a sua descoberta institui
o verdadeiro diálogo sobre as questões da legitimação quanto a um consenso
possível em todas as áreas. Ela vai em busca das redes que invisivelmente nos
enredam e nos manipulam a distância e, proximamente por demais, amarramnos para que permaneçamos fixamente o que somos e vejamos estaticamente
o que vemos como sabedoria funcional.
Assim, o filósofo em exercício de ensino, seja professor ou aluno, não pode
ser apenas sábio, porque a sua inevitável função é a investigação dos bonecos
que comandam todo o processo funcional do ser. A investigação como procura
dos vestígios dos bonecos paradigmáticos que projetam as suas sombras no
fundo da caverna humana não é feita para liquidá-los, mas para reconhecê-los
em nossa atividade de já aceitação submissa para que, pelo menos inicialmente,
sejamos apresentados. O que chamamos de paradigma, modelo, configuração
ou rede é o motivo da fixidez costumeira erigida pela anuência às razões de
uma ficção esquecidas na inconsciência, uma vez que estamos encantados em
nosso trabalho supostamente criativo de fazer tal fantasma funcionar como
máquina em operação lógica competente e supostamente fundamentada por
argumentos objetivos.
A lembrança de formas de conversação talvez elucide melhor a relação
fundamental entre filosofia e ensino: a conversação discursiva sofística e o diálogo socrático.
A conversação sofística dá-se o direito a uma construção discursiva absolutizante a partir da decisão por algum ponto de partida, mas esquecida de que
se trata de criação. Procura remover rapidamente todas as contradições internas
e rebater todos os ataques externos que pudessem pôr em perigo qualquer uma
das partes do edifício em construção. Os meios para tanto são o convencimento,
a sedução, a propaganda, a retórica e todo o caráter missionário capaz de liquidar
com resistências e demover de desvios construtivos tortuosos.
Costumeiramente nos deparamos com essa vontade discursivo-construtiva em amplos setores da Igreja, do Direito, da Economia e do comércio, na
exigência de assunção incondicional de direcionamento partidário na política, em
todos os sistemas de poder já instalados como excelência de perspectiva cultural,
e na linguagem sistematizada ou em processo de sistematização a arvorar-se
como única possível pelo fato de se imaginar possuidora de todas as credenciais
filosófico-científicas. A atitude filosófica correspondente a este viés vai desde o
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EaD
Filosofia e Ética
fanatismo patético na formação de feudos filosófico-eclesiáticos fechados, com
rituais característicos e liturgia decorada à exaustão, até o esnobismo hilariante
da burocracia teórica na administração de imaginadas luzes filosóficas que se
pretende ter alcançado por meio de títulos, a respeito do que se pode dizer com
Fernando Pessoa: “Tudo, menos o ridículo” (Pessoa, 1999, p. 338 et seq.).
Por outro lado, a conversação discursiva sofística tem como perspectiva
positiva a necessária autoapresentação (Selbstdarstellung) inevitável da opinião
que se tem e que se há de defender até certo ponto obedecendo aos ditames da
verdade adequativa e não, portanto, como sendo ela verdade objetiva absoluta
a ser defendida com unhas e dentes e desvinculada do que, no exato momento,
se é. A opinião que se tem e que se apresenta como de cunho objetivo externo
é, no entanto, uma Selbstdarstellung que se há de assumir, já na consciência de
que não existe outro jeito de se apresentar qualquer opinião numa interlocução
a não ser em forma de discurso com pretensões de validade objetiva.
A característica principal sempre subjacente ao diálogo socrático-filosófico
é a ALETEIA2 como verdade mais original, o desesquecer intermitente, que é a constante tentativa de perceber de onde, com que e como se tem e se é aquilo que se
tem e mesmo se é. Percebemo-nos a ter opiniões, certezas científicas aparentemente fundamentadas de forma absoluta e estamos a fluir de cá para lá a desaguar-nos
numa construção coletiva que de um lado parece erguer-se com segurança até
aos céus, mas, de outro, já é a própria dispersão em milhares de fragmentos de
linguagem desconectados entre si. A Filosofia em seu exercício relacionado com
o ensino é, então, amante do discurso, de qualquer discurso: mesmo o seu próprio
discurso aguça-lhe a curiosidade e a admiração de que tenha vindo a ser. É como
quem diz: “Vamos ver se o santo não tem pés de barro”; pois o discurso, uma vez
proferido aos quatro ventos, tem o péssimo costume de geralmente exigir anuência
por unanimidade, esquecido que está de que o seu ponto de partida é hipotético,
de que o início absoluto é somente uma ficção útil. O discurso tende a esquecer
que o início é apenas uma simulação do tipo “vamos imaginar como se fosse” para
ver no que dá; é ficção invisível para possível explicação das definições confusas
de que somos feitos no fluxo do ser. É claro que muitas ficções durante séculos
cumpriram o papel de realidade suprema a operar como explicação absoluta da
vida. Trata-se de configurações de conceitos, por exemplo, posando de modelos
eternos, capazes de fazer suar sangue de líderes melancolicamente arrependidos
pelo que fizeram no exercício da liderança, e de justificar assassinatos em massa
nas fogueiras medievais, em convulsões sociais completamente estabanadas e,
de maneira mais sofisticada, em promover a crença no destino progressista que
estaria a exigir os sacrifícios da miséria, da fome e da morte.
O exercício filosófico parece levar-nos a obedecer ao milenar e necessário
instinto de caça ao deslocar o nosso interesse por uma presa imediata que capturamos e cultivamos regularmente pelos meios convencionais para as armadilhas
às quais somos levados e presos aos seus comandos: queremos pelo menos
Palavra grega onde “LETE” significa esquecimento e “A” negação, então, não esquecimento ou
desesquecer.
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ver e conhecer de que material são feitas. Na medida em que visualizamos os
deuses por descoberta, porém, estamos a oficializá-los objetivamente e, já para
isso, quem sabe, nesse mesmo passo outros estão a armar as suas armadilhas e
redes sem que possamos perceber.
Talvez seja esse um dos sentidos possíveis da intuição de Nietzsche
fixada na expressão “eterno retorno”, para a qual já foram ensaiadas tantas
interpretações. A Filosofia em sua relação com o ensino é o eterno retorno, ou
seja, a inevitabilidade do engajamento numa lógica construtiva tentando a
objetivação de uma fundamentação absoluta do que se está a dizer para logo
retornar à condição de desesquecimento, para o dar-se conta de que o que
acontece é a ocorrência do ser como compreensão em que todo o construído
representa somente a ponta de um iceberg, mas que também tudo isso já é
também explicação impositivo-edificante e novo retorno: construir em direção
ao passado e ao futuro num presente sempre finito. O eterno retorno é o jeito
de ser da Filosofia a expressar-se construindo e vendo-se a assumir a construção
como o seu próprio ser: explicações fundamentantes são destruídas pelo novo
que aparece como nova intuição acontecente do ser a coagular-se, por sua vez,
esclerosar-se, fixar-se como merecedora de nova destruição, ou evolução, ou
ruptura, ou desconstrução, ou interpretação.
O exercício filosófico no ensino alerta para o fato de que qualquer explicação, mesmo em pleno sucesso operatório, necessita do acompanhamento
dialógico-filosófico como cuidado em sua construção progressiva. O eterno retorno da Filosofia enquanto ensino é qual oscilação entre construção e destruição
do construído, é passagem de uma constelação de conceitos para outra ainda
vindoura, é o que erige o estatuto do “entre” para mediar hermeneuticamente a
possibilidade por vir. Embarcado completamente em compreensão ôntica seja
qual for, o homem necessita do exercício filosófico no ensino para desembarcar
e limpar a mente obnubilada, desestabilizar-se, levantar as tendas, queimar
navios, mudar o linguajar cotidiano que o escraviza numa rede compreensiva
em que foi capturado.
O acontecer do eterno retorno é o que em última instância suscita e institui o pasmo, a admiração e a pergunta por justificação do que foi construído
compreensivamente até agora e que está a funcionar em operações em grande
parte suspeitas, mas sempre certamente alguma vez edificadas logicamente por
processos discursivos. A petulância filosófica exercita-se no âmbito da possibilidade constante de afastamento das execuções operatórias em funcionamento
competente.
Querer distanciar-se de si num gesto de intenção metafísica, além de todo
o comprometimento já acontecente, abstraindo por negação as dívidas que
tornaram possível tal atitude, é o pecado original da Filosofia. Ela deve tudo o
que é à própria tradição atuantemente presente no sistema educacional, tanto
que, para poder ser, necessita de tudo o que foi instaurado enquanto retórica
científico-tecnológica e cultural prática e socialmente concreta, o que perfaz a
sua condição de possibilidade mais fundamental. Assim, o eterno retorno inter46
EaD
Filosofia e Ética
pretado como quase-método em execução no ensino capacita a Filosofia para
um diálogo profícuo com todas as áreas do saber de retórica já estabelecida. A
Filosofia, portanto, é capaz de interferir praticamente no percurso de um sistema
educacional em construção, na medida em que participa do diálogo sobre o que
possa ser a relação entre o conhecimento e a reflexão nos mais diversos campos
do saber e a aprendizagem.
A inevitável e necessária apresentação discursiva da Filosofia no ensino
universitário pode centrar-se numa justificativa humanista que intenta a relação
entre todos os saberes para favorecer a construção de um projeto de sociedade
comum e consensual, portanto, nos seguintes termos:
Na universidade, a concepção de um conhecimento tendente à articulação
dominadora de um sujeito sobre determinado objeto poderá ser redirecionada,
pela aprendizagem, para um exercício de reavaliação do seu conteúdo já produzido e, por isso, já em operação na tradição, e da forma metódica que o instaurou.
Supõe-se, assim, a informação correta de conteúdos e formas em operação em
cada área da tradição sistematizada em saber, mas agora acrescida do exercício da
hermenêutica e da reflexão crítica e dialética, visando a relações e compromissos
com os interesses fundamentais da sociedade humana como um todo.
A sociedade, reificada pela funcionalidade imediatamente utilitária e
na qual a concretude histórica das pessoas e das coisas é substituída pela sua
redução a objetos intercambiáveis entre si qual mercadoria de troca, tem na
aprendizagem universitária, enquanto insistente tematização do conhecimento
já instituído e por instituir, a possibilidade de vislumbrar o caminho da emancipação das garras da mera razão instrumental na qual se enredou no decorrer
dos séculos.
O sistema mental de produção e repetição de conhecimentos pelo esquema de separação em termos de sujeito e objeto poderá ser reconstruído e
incorporado em nova feitura compreensiva, qual seja, a promoção da intersubjetividade (intertextualidade) em que se acentua o centramento do conhecimento,
agora relacionado com a ética reflexiva, na linguagem pragmática como ação
de permanente comunicação dialogante sobre os interesses de todos para a
construção respeitosa da vontade coletiva.
A retórica de todas as ciências como conhecimento sistematizado, voltada ao reexame dos fundamentos de seu exercício, implicação e sentido na
história da humanidade é o que se quer. A fragmentação disciplinar, resultado
de paradigma de conhecimento a ser superado devido às patologias a que deu
origem, e resultante dos processos internos de análises formalmente diferentes,
não pode levar ao esquecimento de que cada conhecimento assim sistematizado
em ciência está a se debruçar sobre, a se envolver e contribuir com a construção
da mesma realidade, bem como não pode autoalienar-se, imaginando-se capaz
de se desvencilhar e fugir das determinações do todo social em que tem a sua
origem e em que deve justificar o sentido da sua atividade. “Na facilidade com que
o espírito se satisfaz, pode-se medir a extensão da sua perda” (Hegel, 1970).
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A apresentação discursiva da Filosofia no ensino universitário de um
modo mais abrangente pode motivar-se e justificar-se pela pergunta por relação
entre os conceitos de ética, conhecimento e cidadania. Uma sugestão possível
é o que segue:
“Para a compreensão cabal do conceito de cidadania considera-se inicialmente o gesto teórico mais fundamental do Ocidente, ou seja, a concepção
de arché em Anaxágoras (500 a.C.). Incorporando esforços teóricos de filósofos
pré-socráticos e arriscando novas soluções para a relação entre o todo e a parte,
o grande pensador propôs a ideia de uma totalidade que até hoje perfaz o pano
de fundo, bem como o ideal da atividade pensante sobre teoria e prática do
Ocidente, nos seguintes termos:
a ) Fazemos parte de um universo em contínua e infinita transformação.
b) Universo infinito em possibilidades sob o ponto de vista do macrocosmo sem
limite de amplitude.
c) Universo infinito em possibilidades sob o ponto de vista do microcosmo sem
limite em pequenez.
d) Universo infinito em elementos em transformações infinitas.
e) Universo sem espaço vazio, em multicausalidade e ação recíproca.
f ) Universo em que cada partícula tem notícia da totalidade e a representa sob
seu ponto de vista.
g) Universo em que há sempre a possibilidade de visibilidade e transparência
total entre tudo e todos, os quais assim estão na situação de Cidadãos do
Universo.
h) Quem comanda o processo de notícia mútua é o nous, que significa a imediatidade da Inteligência, do Espírito Universal, da Mente, que é a força, a dinâmica
da própria informação de todos em relação a todos em participação.
i) Corpo e mente estão, assim, em consonância imediata com a totalidade do
universo.
Os herdeiros dessa ideia no mundo grego foram, entre outros, os sofistas
Sócrates, Platão e Aristóteles. Na modernidade e contemporaneidade vislumbramos a continuidade da Filosofia anaxagórica, principalmente em Leibnitz, Kant,
Hegel, Nietzsche, Benjamin e Heidegger, além de ainda em toda a atividade
científica.
Platão, por exemplo, descreve em A República o diálogo em exercício e
efetivação da ideia de universo de Anaxágoras no que concerne à construção
do Estado (Polis), que na conceituação latina é Res Publica, ou seja, Coisa Pública
em construção transparente de vida em comum e conhecimento em todos os
sentidos. Os compromissos centrais de Platão expressos em A República são:
– A procura por visibilidade de todos por todos e verdade constante pela recordação de supostos das opiniões e práticas capazes de contribuir na construção
do Estado.
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EaD
Filosofia e Ética
– A responsabilidade de todos por todos em termos de fala e ação.
– A consideração e consciência de dependência.
– A produção participativa da transparência.
Arte, educação, conhecimento, Filosofia, amor, paixão, religião, mitos,
classes e grupos sociais, entre outros, são descritos em diálogo público. Trata-se
da ideia de construção da Polis por meio do diálogo em que todas as abordagens
e apresentação de conteúdos são política, isso é, participação vital, inerente,
efetiva e inequívoca. Trata-se da construção da cidade e todos os assuntos são
sobre cidadania, isto é:
– A participação ativa na discussão e decisões que direcionam o todo da sociedade, e a forma é a visibilidade em processo de diálogo público na praça.
– A ideia de produzir o amanhã de acordo com a totalidade das possibilidades
em consonância com o todo do universo.
A concepção de universo de Anaxágoras ainda hoje baliza os discursos
que intentam a construção da nação, pois também o Brasil intitula-se República
(Coisa Publica em construção). Por isso é preciso perguntar até que ponto na
educação e na Universidade brasileira optamos teórica, política e administrativamente pela formação e informação construtiva de todos para todos, ou pela
sistemática e estratégica desinformação das grandes massas para a construção
do poder próprio de determinados grupos?
O conhecimento como saber formalizado em sistemas teóricos nas mais
diversas áreas e capaz de operações práticas, que interferem na natureza, na
sociedade e na compreensão valorativa do indivíduo, é necessariamente limitado se comparado à totalidade das experiências humanas. Toda a formalização
científica paga o preço da sua coesão interna autorreferencial com a limitação de
sua compreensão e com a aplicabilidade a um campo necessariamente restrito. É
invisível articulação de sentido, tendo na linguagem a sua expressão e na prática
científica e tecnológica a possibilidade de sua execução operatória concreta. Na
inter-relação ou acentuação fragmentada dos conhecimentos formalizados, no
re-exame constante ou aceitação passiva dos seus princípios e no esquecimento
ou no combate de suas intenções doutrinárias e absolutistas que se gestam os
resultados das suas aplicações e aproveitamentos nos setores do real.
O sistema educacional como um todo propõe-se repassar de forma organizada às novas gerações o conhecimento já produzido pela humanidade na
História. A informação sobre o repasse de teorias e práticas para a manutenção ou
o desenvolvimento da sociedade, para a saúde ou para a doença do corpo social
em suas atividades de produção e criação de relações entre as pessoas, para a
felicidade ou para a desgraça da humanidade, é a tarefa precípua das instituições
formativas. O sistema educacional é a mais importante instância legitimadora
das sendas e descaminhos da tradição e tradução dos conhecimentos já produzidos. Reconhecendo ou não a sua atuação e responsabilidade pelo status quo,
os resultados são assustadores.
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EaD
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Cada vez mais a sociedade humana depende do conhecimento formalizado em forma de ciência e tecnologia em todas as áreas: cultura, lazer, saúde,
transportes, agropecuária, energia, arte, indústria bélica. A própria vida humana
depende de toda a produção científica já existente, tanto que a sua repentina
exclusão significaria a morte de um número incalculável de pessoas. Por outro
lado, a sua atual manutenção em processo de desenvolvimento crescente também representa a morte de milhares de seres humanos.
Resultados desastrosos são visíveis nas patologias da natureza, vítima
de exploração delirante da ação instrumental veiculada por conhecimentos
científicos e tecnológicos esquecidos de sua origem, função e sentido; também
na sociedade em termos de sofrimento incalculável por miséria, fome, injustiça
doenças e desesperança; igualmente na loucura potencialmente assassina dos
indivíduos alienados em desesperadas certezas em forma de reducionismos
absolutizados.
A teia invisível da compreensão por meio de conhecimentos formalizados é constantemente tecida pelo sistema educacional. Veneno ou remédio?
Aprimora-se em velocidade de repasse legitimante do agenciamento da morte
e da desgraça ou assume o combate à alienação feliz por inconsciência já nas
suas próprias fileiras?
A moralidade está sempre em execução prática em todas as áreas da atividade humana e diferenciadamente em todos os grupos e classes sociais. Moral
é o status quo, seja qual for. Refletir sobre os fundamentos e valores do status
quo instaura a atividade ética, hoje facilitada pela velocidade e aceleração das
informações por meio das inovações na técnica computacional. A possibilidade
de informação de todos para todos favorece a participação reflexiva de cada
um sobre os princípios, valores e critérios já em agenciamento efetivo na produção do real. Os supostos, as intenções e a função de todos os conhecimentos
formalizados e atuantes operatoriamente na sociedade podem ser mais bem
elucidados e avaliados.
Cidadania, conhecimento e ética estão profundamente relacionados sob
o pano de fundo da participação universal. A própria ética é o processo filosófico
na educação e na cultura. A cidadania é a assunção da ética como participação
e consciência da necessidade de reflexão sobre as mais diversas totalidades formalizadas e reducionistas. O conhecimento por si só e sem o sentido da relação
universal pode ser um grande acúmulo de esquecimento automatizado e extremamente perigoso a explodir em forma de bomba atômica, injustiça, sofrimento
e burrice geral. “Não há cidadania sem Ética reflexivo-filosófica sobre o que somos
em conhecimento automatizado. O pensar-se e o pensar mais profundo sobre
a participação na construção da nação e do universo é a característica éticofilosófica” (Schneider, 2000, p. 3 et seq.).
Referências
BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch Wissenschafft, 1991.
50
EaD
Filosofia e Ética
FRANK, Manfred. Der Kommende Gott. Vorlesungen über die Neue Mytologie.
Frankfurt am Main: Edition Suhrkamp, 1982.
HEGEL, G. W. F. Werke. In: 20 Bd. Frankfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch
Wissenschaft, 1970.
HÖLDERLIN, Friedrich. Sämtliche Werke und Briefe 1-4. Berlin: Aufbau – Verlag,
1995.
EISLER, R. Kant Lexikon: Hildersheim-Zürich-New York: Georg Olms Verlag,
1984.
NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe. In: 15 Bd. Berlin:
Deutscher Taschenbuch Verlag de Gruyter, 1988.
PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. São Paulo: Companhia da Letras,
1999.
SCHNEIDER, Paulo Rudi. (Org.) Introdução à Filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí, 1996.
______. O pensar e o pensar-se na universidade. In: Rufino, Solange (Org.). Cadernos de Seminário/Curso Especial. Ijuí: Ed. Unijuí, 2000.
Seção 2.2
Ciências Humanas: Contextualização Histórica e Teórica
Aloísio Ruedell
A história das Ciências Humanas confunde-se com a trajetória da cultura, da tradição, da
educação e do ensino no mundo
ocidental. Ainda que a concepção
moderna de ciência seja relativamente recente, o seu conteúdo
qualificativo de humana(s) remete à Antiguidade clássica.
2
3
Falava-se então em humanidades (humanitas), designando com esse
termo os cursos ou estudos que visavam ao cultivo e ao desenvolvimento do
especificamente humano.
Por muito tempo, o termo humanidades designava o estudo do Latim
e do Grego – línguas que tiveram papel decisivo nos percursos da civilização
ocidental. Hoje o termo é empregado em sentido mais amplo, mas sem coincidir com humanista da época da Renascença. O movimento do humanismo
A torre de babel – Peter Bruegel. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum
Edições Multimídia.
3
51
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
renascentista refere-se, com esse termo, não apenas às Ciências Humanas, mas
também às Ciências da Natureza, porque nenhuma delas é alheia ao homem. Não
só a busca de textos clássicos de literatura, sua leitura ou proclamação são tidas
como humanistas, mas também o desenvolvimento das emergentes Ciências da
Natureza. Umas e outras são expressão e cultivo da humanidade. São um meio de
o homem tomar consciência de sua grandeza e dignidade, afirmando-se como
sujeito consciente e benemérito de todas as Ciências e artes da época.
Transpondo essa concepção para os dias de hoje, todas as Ciências e a
própria tecnologia integrariam as humanidades. E este seria certamente o sentido
originário de toda e qualquer ciência que se estabelecesse: estar a serviço da
humanidade, ser um meio para a vida e a realização humanas. É nesta direção
que S. P. Rouanet define atualmente o termo humanidades como
[...] as disciplinas que contribuem para a formação (Bildung) do homem, independentemente de qualquer finalidade utilitária, isto é, que não tenham
necessariamente como objetivo transmitir um saber científico ou uma competência prática, mas estruturar uma personalidade segundo uma certa paidea,
vale dizer, um ideal civilizatório e uma normatividade inscrita na tradição, ou
simplesmente proporcionar um prazer lúdico.4
O que hoje se designa por Ciências Humanas esclarece-se, de alguma
forma, por essa definição de humanidades. Ainda mais esclarecedora, contudo,
é a sua vinculação com a discussão de Wilhelm Dilthey (1883) sobre as ciências
do espírito, posteriormente retomada por H. G. Gadamer (1960), em Verdade e
Método. É a partir dessa discussão, visando à fundamentação das ciências do
espírito, que efetivamente se estabelecem as Ciências Humanas.
A discussão emerge precisamente num contexto em que se impõe um
pragmatismo positivista e instrumental, presente nas Ciências da Natureza.
Dilthey (1883), influenciado e desafiado por esse contexto, propugna pela
autonomia das ciências do espírito, dotando-as de uma metodologia e epistemologia próprias, tão respeitáveis quanto as das Ciências da Natureza. Propõe,
nesse sentido, uma distinção entre explicar e compreender ou explicação e
compreensão, explicação da natureza e compreensão da História; a explicação
como metodologia própria das Ciências da Natureza e a compreensão como
distintivo das ciências do espírito ou Ciências Humanas. Enquanto as Ciências
explicativas buscam determinar as condições causais de um fenômeno por meio
da observação e da quantificação, as ciências compreensivas visam à apreensão
das significações intencionais das atividades históricas concretas do homem.
Em boa medida, essa oposição entre Ciências explicativas e compreensivas equivale à oposição entre o mundo psíquico e o mundo físico. Ou seja, na
compreensão, a atenção volta-se, sobretudo, para o caráter particular ou singular
dos fatos históricos, que, por sua vez, remete à singularidade do indivíduo.
Rouanet, S. P. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 309.
4
52
EaD
Filosofia e Ética
O problema da compreensão, em verdade, já pode ser identificado antes
de Dilthey, como é o caso de Friedrich Schleiermacher.5 É a partir do primeiro,
entretanto, que a compreensão passa a figurar regularmente no núcleo de grandes obras do século 20, como em: Ser e Tempo, de Martin Heidegger,6 Verdade
e Método, de Hans-Georg Gadamer,7 Do texto à ação, de Paul Ricoeur,8 dentre
outros. Essa afirmativa, entretanto, não inclui que todas as discussões hodiernas
sobre esse tema sigam se orientando pela distinção diltheyana entre explicar
e compreender. Já Gadamer inicia Verdade e Método criticando a fragilidade
do empreendimento de Dilthey.9 Sua convicção é a de que toda a reflexão das
ciências do espírito, desenvolvida desde o seu estabelecimento, está ainda
totalmente dominada pelo modelo das Ciências da Natureza. Segundo ele, até
Dilthey as ciências do espírito simplesmente se estabeleceram em analogia
com as Ciências da Natureza, portanto sob o seu paradigma, validando-se pelo
método descritivo e indutivo.
Uma concepção adequada do objeto das ciências do espírito, no entanto,
argumenta Gadamer (1960), requer outra metodologia. O método indutivo seria
insuficiente ou inadequado, porque o conhecimento histórico não pretende reduzir o fenômeno concreto como caso de uma regra geral, e o individual não se
limita a ser confirmação de uma regularidade, a partir da qual seria possível fazer
predições. Mesmo Dilthey, escreve Gadamer (1960), por mais que ele defenda
uma autonomia epistemológica das ciências do espírito, não tem um método
próprio para elas.
Hoje, a par da crítica de Gadamer (1960), há, sem dúvida, outras objeções
à proposta metodológica diferenciada de Dilthey. Mesmo que se reconheça a
legitimidade da distinção entre explicar e compreender, questiona-se o caráter
excludente que Dilthey conferira originalmente a um e a outro procedimento
metodológico. Sem negar que para as ciências do espírito cabe, fundamentalmente, uma metodologia compreensiva, e para as Ciências da Natureza uma
explicativa, entende-se, de modo geral, que também as ciências do espírito,
para poderem ser compreendidas, requerem algumas explicações. Da mesma
forma que as Ciências da Natureza não se explicam devidamente sem que haja
também o concurso da compreensão.
A discussão permanece aberta, apontando para diversas direções, inclusive para a superação da distinção entre o humano e o natural, em virtude
de uma base biológica mais fundamental. Diversas e importantes discussões,
entretanto, vêm a favorecer a fecundidade da distinção metodológica de Dilthey,
Cf. Schleiermacher, F. D. E. Hermeneutik und Kritik; mit einem Anhang sprachphilosophischer Texte
Schleiermachers. Hrsg. von Manfred Frank. 4. Aufl., Frankfurt: Suhrkamp, 1990, p. 8-9.
5
Heidegger, Martin. Sein und Zeit 17. Aufl. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1993. A primeira edição da obra
é de 1926.
6
Gadamer, Hans-Georg. Wahrheit und Methode 1. Grundzüge einer philosophischer Hermeneutik. 6. Aufl.,
Tübingen: Mohr, 1990. A primeira edição foi em 1960.
7
Ricoeur, Paul. Du texte à l’action; Essais d’herméneutique, II. Paris: Du Seuil, 1986.
8
Gadamer, Hans-Georg. Wahrheit und Methode 1. Grundzüge einer philosophischer Hermeneutik. 6. Aufl.,
Tübingen: Mohr, 1990. p. 9 et seq.
9
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
reconhecendo que há dois procedimentos metodológicos possíveis e necessários: explicativo e compreensivo. Em Jürgen Habermas, por exemplo, isso é
possível a partir de sua distinção fundamental entre razão instrumental e razão
comunicativa, residindo a primeira na explorabilidade técnica e vinculando-se
a segunda ao interesse prático da comunicação inter-humana.10
São duas perspectivas distintas, das quais a primeira opera prioritariamente nas ciências da Natureza e a outra mais nas Ciências Humanas. De modo
semelhante, encontra-se em Heidegger (1993) a distinção entre logos apofântico
e logos hermenêutico, designando, pelo primeiro, o caráter instrumental e a
racionalidade das Ciências positivas e, pelo último, a racionalidade das Ciências
interpretativas, como as humanas em geral.
Sem que se chegue, nessa discussão, a uma unidade conceitual, identificase, em todos os autores, um ponto de convergência, qual seja, o reconhecimento
de um campo temático distinto para as Ciências Humanas, requerendo, consequentemente, uma abordagem metodológica igualmente distinta.
Trata-se, no mais, de um campo do saber que marcou o estatuto das instituições universitárias desde a sua origem. Ainda que, com o desdobramento
da História, houvesse mudança na configuração das universidades, a mudança
ocorreu geralmente mais no sentido da inovação e consolidação de novos campos de saber do que da supressão ou superação de algum. Isso de tal maneira
que, nas assim denominadas humanidades ou Ciências Humanas, sempre se
colocassem novas possibilidades e determinações de objetos de investigação,
com referência a campos tradicionais já consolidados.
Nessas novas configurações de objetos, faz hoje sentido um conjunto de
questões e de expectativas designadas por termos tais como interdisciplinaridade,
transdisciplinaridade, formação geral, formação humanística, transversalidade,
multidisciplinaridade. Em todo o contexto dos saberes tradicionais das Ciências
histórico-hermenêuticas, das Ciências Sociais e das Ciências empírico-analíticas e
nas tendências de multiplicação das especializações e de novas articulações, não
se produziram discursos que negassem os planos das referências e das possíveis
interlocuções entre os saberes tradicionais e os novos. Aliás, toda a tradição é
uma tradição que se afirma em todos os campos do saber pelo reconhecimento
ou pela inovação que recorre ao pretensamente superado ou ultrapassado para
se expor. Um dos desafios das Ciências Humanas é a atualização do passado e a
apresentação de novos saberes com o recurso da tradição.
Referências
GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode – 1. Grundzüge einer philosophischer Hermeneutik. 6. Aufl., Tübingen: Mohr, 1990. Primeira edição 1960.
Ricoeur, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. p. 121-122. Cf. também
Habermas, Jürgen. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L&PM, 1987.
10
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Filosofia e Ética
HABERMAS, Jürgen. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L&PM, 1987.
HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit 17. Aufl. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1993.
Primeira edição 1926.
RICOEUR, Paul. Du texte à l’action: Essais d’herméneutique, II. Paris: Du Seuil,
1986.
______. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. p. 121122.
ROUANET, S. P. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
p. 309.
SCHLEIERMACHER, F. D. E. Hermeneutik und Kritik: mit einem Anhang sprachphilosophischer Texte Schleiermachers. Hrsg. von Manfred Frank. 4. Aufl., Frankfurt:
Suhrkamp, 1990. p. 8-9.
Seção 2.3
Para que Filosofia?11
Aloísio Ruedell
11
Somos, muitas vezes, questionados
em nossas aulas:
para que Filosofia?
É, sem dúvida, uma
pergunta interessante.
12
De outro lado, porém, causa-nos surpresa porque não vemos e nem
vimos ninguém perguntar: para que Matemática ou Física? Para que Geografia
ou Geologia? Para que História ou Sociologia? Para que Biologia ou Psicologia?
Para que Astronomia ou Química? Para que Pintura, Literatura, Música ou Dança?
Todos, entretanto, acham muito natural perguntar: para que Filosofia? O que nos
sugere isso? Existe uma explicação para essas atitudes diferenciadas em relação
à Filosofia e às demais disciplinas? Vejamos algumas considerações!
Reelaboração de parte do texto que consta em: Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. 6. ed. São Paulo: Ática,
2010. p. 9-14.
11
Escola de Atenas – Rafael. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum
Edições Multimídia.
12
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2.3.1 – A Razão da Pergunta
Perguntar pela utilidade da Filosofia geralmente esconde ou supõe uma
resposta irônica, conhecida de muitos estudantes: “A Filosofia é uma ciência
com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Em outras palavras: “A
Filosofia não serve para nada”. Chama-se, por isso, de “filósofo” alguém distraído,
que está com a cabeça no mundo da lua, pensando e falando coisas que ninguém
consegue entender e que são totalmente inúteis.
A pergunta “para que Filosofia?” tem, contudo, sua razão de ser. Tem a
ver com a cultura e o tipo de sociedade em que vivemos. Estamos numa cultura
e numa sociedade em que só se considera como legítimo, com direito a existir,
aquilo que tiver alguma finalidade prática bem visível e de utilidade imediata.
Por isso, é compreensível que ninguém pergunte: para que as Ciências? Todos
imaginam “ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação
científica à realidade” (Chauí, 1991, p. 13).
De modo semelhante, todos também imaginam ver a utilidade nas artes.
De um lado, há a compra e a venda das obras de arte, com impacto importante na
economia. De outro lado, no entanto, a cultura também “vê os artistas como gênios
que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade” (Chauí, 1991, p. 13).
Enquanto isso, ninguém consegue ver para que serviria a Filosofia. E, se ninguém
consegue ver a utilidade da Filosofia, isso significa que não serve para nada.
2.3.2 – As Pressuposições Filosóficas nas Ciências
Quem não consegue ver para que servirá a Filosofia, de modo geral
também não percebe quanto as Ciências estão ligadas à Filosofia. As Ciências,
pois, pretendem ser conhecimento verdadeiro, obtido mediante procedimentos rigorosos do pensamento; pretendem agir sobre a realidade, utilizando-se
de instrumentos e objetos técnicos; pretendem progredir no conhecimento,
corrigindo-o e aumentando-o. Ora, todas essas pretensões pressupõem que as
Ciências acreditam na verdade, em procedimentos corretos, na racionalidade
dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados. E tudo isso
não é Ciência, mas são questões filosóficas.
A Ciência, portanto, pressupõe a Filosofia. O cientista parte de questões
filosóficas, como de questões já resolvidas, e é a Filosofia que as formula e busca
suas respostas. O trabalho das Ciências pressupõe o trabalho da Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. Como, porém, só os cientistas e os filósofos
sabem isso, o senso comum continua com a ideia de que a Filosofia não serve
para nada.
2.3.3 – Filosofia Como “Arte do Bem-Viver”
Abandonando, de momento, a preocupação com a utilidade da Filosofia,
podemos concordar parcialmente com aqueles que consideram que ela de fato
não serviria para nada, se “servir” fosse entendido como “possibilidade de fazer
56
EaD
Filosofia e Ética
usos técnicos dos produtos filosóficos ou dar-lhes utilidade econômica” (Chauí,
1991, p. 13), visando à obtenção de lucros. Para eles, inclusive, a Filosofia nada
tem a ver com Ciência e Tecnologia.
Quem pensa dessa forma considera que o foco principal da Filosofia
não estaria nos conhecimentos (que ficariam para as Ciências), nem em suas
aplicações (reservadas para a tecnologia), e sim no ensinamento moral ou ético.
Nessa perspectiva, “a Filosofia seria a arte do bem-viver”. “Estudando as paixões
e os vícios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a capacidade de nossa
razão para impor limites aos nossos desejos e paixões, ensinando-nos a viver de
modo honesto e justo” (Chauí, 1991, p. 13) em relação aos outros, a Filosofia teria
a incumbência de ensinar a virtude, que é o princípio do bem-viver.
Essa noção de Filosofia, entretanto, ainda não resolve a nossa questão,
pois, mesmo que admitamos que a Filosofia seja arte moral ou ética, ou uma
arte do bem-viver, ela continua fazendo suas perguntas desconcertantes e
embaraçosas:
O que é o homem? O que é a vontade? O que é a paixão? O que é a razão? O
que é o vício? O que é a virtude? O que é a liberdade? Como nos tornamos
livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade e a virtude são valores para
os seres humanos? O que é um valor? Por que avaliamos os sentimentos e as
ações humanas? (Chauí, 1991, p. 14).
Mesmo que disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento
da realidade, nem o conhecimento de nossa capacidade para conhecer, ou que
afirmássemos que o objeto da Filosofia é apenas a vida moral ou ética, o estilo
e a atitude filosófica permaneceriam os mesmos, ou seja, permaneceriam as
perguntas filosóficas: O quê? Por quê? Como?
Por isso, mais do que os objetos da Filosofia, convém ressaltar a atitude
filosófica.
2.3.4 – A Atitude Filosófica: Perguntar
O que identifica a Filosofia é sua atitude de constante questionamento,
de indagação, independentemente do conteúdo investigado. Inicia-se dirigindo
suas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que com ele mantemos.
Neste primeiro momento há basicamente três tipos de pergunta: O quê? Como?
e Por quê?
Ao perguntar o que é (a coisa, a ideia, o valor), a Filosofia pergunta pela
realidade ou pela natureza e qual a significação de alguma coisa, independentemente do que seja. Quando pergunta como (a coisa, a ideia ou o valor) é, a
Filosofia quer saber da estrutura e quais são as relações que constituem uma
coisa, uma ideia ou um valor. Por fim, ao perguntar por que a coisa, a ideia ou
o valor existe e é como é, a Filosofia indaga pela origem ou pela causa de uma
coisa (de uma ideia, de um valor).
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A atitude filosófica inicia-se com essas indagações, dirigindo-as ao mundo
que nos rodeia e às relações que com ele mantemos. Aos poucos, porém, vai
descobrindo que essas questões referem-se a nossa capacidade de conhecer e
de pensar. Por isso, também aos poucos, as perguntas da Filosofia dirigem-se ao
próprio pensamento: “o que é pensar?”, “como é pensar?”, “por que há o pensar?”
A Filosofia torna-se, dessa maneira, pensamento interrogando-se a si mesmo.
Realiza-se como reflexão, ato de se voltar sobre si mesmo.
2.3.5 – A Reflexão Filosófica
A reflexão significa o movimento de volta sobre si mesmo. É o movimento
pelo qual o pensamento se volta para si, interrogando-se a si mesmo. É uma
reflexão radical, porque o pensamento, voltando-se sobre si, quer conhecer a si
mesmo, perguntando como é possível o próprio pensamento.
Não somos, porém, apenas seres pensantes. Também agimos no mundo,
relacionamo-nos com os outros, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos
e acontecimentos, e exprimimos essas relações por meio de linguagem, gestos
e ações. Também essas relações são incluídas na reflexão filosófica, as relações
com a realidade circundante, aquilo que dizemos e fazemos.
A reflexão filosófica, mais uma vez, é organizada em torno de perguntas.
Destacam-se três conjuntos de perguntas ou questões. 1. “Por que pensamos o
que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos?” (Chauí, 1991,
p. 14). Isso quer dizer, quais os motivos, razões ou causas de nosso pensar, dizer
e fazer? 2. A segunda pergunta é sobre o que. O que, efetivamente, queremos
pensar quando pensamos, dizer quando falamos e fazer quando agimos? É a
pergunta pelo conteúdo ou pelo sentido do que pensamos, dizemos e fazemos.
3. Por fim, pergunta-se para quê? “Para quê pensamos o que pensamos, dizemos
o que dizemos e fazemos o que fazemos”? (Chauí, 1991, p. 14). É a pergunta pela
intenção ou finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos.
Referências
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 6. ed. São Paulo: Ática, 1991. p. 9-14.
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Filosofia e Ética
Seção 2.4
Filosofia e Formação:
o Perfil do Profissional Universitário
Vânia L. F. Cossetin
12
Historicamente a visão prática profissionalizante definiu o perfil da
formação universitária brasileira, cuja
origem decorre do assim chamado
modelo napoleônico, surgido a partir
das faculdades de Direito, Medicina
e Engenharia, no início do século 19.
Tais cursos visavam, prioritariamente,
à preparação de profissionais aptos a
atender às demandas para a formação do quadro de funcionários do
Império, quais sejam: médicos para
enfrentar as doenças tropicais e engenheiros para superar os obstáculos da
natureza hostil (Goergen, 2010).
13
Não é de se estranhar, portanto, que um pensamento excessivamente
pragmático tenha marcado e, continue marcando, a formação universitária
brasileira. Seu objetivo ainda está voltado para a preparação de mão de obra
técnica, supostamente competente para atender à demanda do mercado de
trabalho, substituindo sua função pedagógica, de formação integral e humanista,
pelo mero treinamento de habilidades técnicas com vistas ao desempenho de
tarefas operacionais. O problema é que o ensino superior parece ter se esquecido de que a formação profissional supõe a própria existência, ou seja, a vida e o
cuidado para com ela, o que implica, justamente, uma formação que considere
a multifacetada dimensão do humano.
Indubitavelmente, num contexto em que há carência de profissionais
aptos para atender a certas atividades técnicas no âmbito do trabalho, é compreensível a expectativa dos acadêmicos de se qualificar pela aquisição de conhecimentos e habilidades técnicas, como se o sucesso profissional pudesse ser
encontrado única e exclusivamente no conhecimento técnico especializado. Eis
o engodo da formação superior: cria-se uma falsa dependência do indivíduo à lei
imposta pelo sistema mercadológico. Em boa medida, tal imposição mostra-se
já na infância, quando é perguntado à criança o que deseja ser quando crescer
Relatividade – Escher. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições
Multimídia.
13
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e, imediatamente, tem sua resposta refutada caso não se enquadre naquelas
áreas de grande demanda profissional ou ilusório status social – não por acaso:
Direito, Medicina e Engenharia.
E, assim, aquilo que ingenuamente tem-se denominado de movimento
natural do suposto progresso histórico-social, não passa de uma forma vil (mascarada por uma equivocada “liberdade de escolha”) de negociar os sonhos, a
realização pessoal, as tendências, as vocações, para preencher as vagas do sistema
ou atingir ascensão social.
A profissionalização, a habilitação profissionalizante, consequentemente
a inserção das pessoas no mercado de trabalho é, indubitavelmente, relevante.
O problema está na concepção meramente tecnicista dessa formação, como
se a atuação do profissional não implicasse também o conhecimento sobre a
complexidade humana para a qual está inexoravelmente voltado; como se o
conhecimento científico não tivesse, também, a potencialidade de intervir e
modificar, inclusive, a própria natureza da técnica e de apreender e reelaborar
criticamente a cultura, os valores, a sociedade.
Como, no entanto, grande parte dos acadêmicos busca exclusivamente
a formação técnica profissional, tudo o que ultrapassar estas fronteiras tende a
ser considerado supérfluo. A pergunta, então, não pode deixar de ser feita: quais
são, ou deveriam ser, os objetivos do Ensino Superior com respeito à formação
profissional? De que profissional o nosso mundo carece? Qual o seu perfil? Quais
as suas atribuições? E mais: se a universidade se entrega à mera transmissão
de saberes, ou àquilo que Coelho (2006) denomina de um “supermercado do
conhecimento” (p. 43), no qual o conhecimento se transveste de produto e se
banaliza na repetição irrefletida de seus especialistas, o que podemos esperar
das ações e seus efeitos produzidos pelo egresso universitário? Ou seja, quando
o conhecimento torna-se certeza inabalável a ser reproduzida e proferida, a que
instituição caberia a promoção da construção criativa de novos saberes, a crítica,
a dúvida, a suspeita dos saberes já formulados e em aplicação irresponsável, a
inovação desmedida e inconsequente, enfim, a reflexão sobre a própria condição
e futuro da humanidade? Se o Ensino Superior não o fizer, quem irá fazê-lo?
2.4.1 – Idealizando o Profissional Contemporâneo
Apesar da aparente reclusão das pesquisas científicas, tudo o que é
pesquisado, pensado, criado, tem direta ou indiretamente repercussão na vida
concreta das pessoas. Concretude esta na qual estamos inevitavelmente jogados, mas cuja fatalidade biológica, química, física, procuramos transcender pelo
exercício da liberdade, própria da condição humana. Levar em consideração a
integralidade desta condição existencial e histórica do homem impõe-se como
necessária à formação profissional universitária. E o que isso quer dizer? Ora, a
Filosofia, desde os gregos, tem se preocupado com a formação integral humanista, pela consideração da cultura com princípio formativo e norteado por um
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EaD
Filosofia e Ética
ideal de homem, de humanidade, pensado em sua integralidade corpórea e
espiritual, e mais: num esforço grandioso de justificação última da comunidade
e individualidade humana (Jeager, 1995, p. 3-10).
Isto conduz à reflexão sobre a ambiguidade, determinação e transcendência implícita a sua condição; na tematização dos valores que perpassam a ação
humana em sua história e na discussão crítica do conhecimento, especialmente
pela identificação das ideologias. Ou seja, o profissional contemporâneo não
pode voltar-se apenas aos interesses científico/epistêmicos, mas também, e,
sobretudo, aos culturais e ético/políticos.
1. O aspecto epistêmico da formação: trata-se do domínio das ferramentas investigativas de construção do conhecimento, o estudo metódico e sistemático,
as regras do saber e a manipulação da realidade natural, pela superação da
padronização e estímulo da criatividade e do espírito inventivo, numa tentativa
de superação da falsa divisão entre teoria e prática. O profissional contemporâneo precisa saber traduzir os conhecimentos mediante a indagação, a análise,
a problematização acerca da sociedade, da política, da economia, das práticas
sociais e culturais, colocando-se como protagonista diante das novas situações
postas por estes campos. Situações estas hoje especialmente colocadas pela
fragmentação e pelo impacto das novas tecnologias que acabam interferindo
profundamente nas relações socioculturais, pelo que dele é exigido a superação
do preconceito ingênuo diante destas tecnologias e a avaliação crítica do seu
papel nos processos histórico-sociais.
2. Cultural: o profissional, aqui considerado, deve conceber o conhecimento e a
própria formação enquanto processo de humanização, como aquele sujeito
que está em permanente e ininterrupto processo, que não está pronto. Sua
tarefa é compreender a sociedade, sua gênese e sua transformação, além dos
múltiplos fatores que nela intervêm, como produtos da ação humana. Nisso,
compreende a si mesmo como agente social e, sobretudo, a produção das
instituições sociais, políticas e econômicas no seio do processo histórico.
3. Ético/político: do profissional contemporâneo espera-se que supere os conhecimentos meramente mecânicos e autônomos, desprovidos de identidade e
de sentido. Ou seja, o comprometimento com a construção de uma sociedade
solidária por meio da ação cooperativa e não individualista, com a responsabilidade ética, tanto em âmbito social quanto ambiental, tanto com seu tempo
quanto com gerações futuras. Os fundamentos e as justificativas do agir profissional, portanto, enquanto a sua questão ética fundamental é perguntar se
cada ato concreto seu contribui para a melhoria das condições de vida do seu
entorno, da manutenção ou resgate da dignidade humana.
Concluindo...
A formação profissional universitária é complexa. Não pode ser reduzida
apenas ao repasse de informações e ao treinamento para o desenvolvimento
de habilidades técnicas, ou seja, sua formação não pode ser simplesmente es61
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
pecializada e profissionalizante, que “(...) apenas o treina para executar tarefas
específicas, com a habilidade e a competência necessárias a uma sociedade
mercantil, ou para um estreito mercado de trabalho” (Pereira, 2007, p. 9).
A formação universitária, ao contrário, deve ajudar o acadêmico a transcender esta visão positivista ingênua de uma razão instrumental, ajudando a
construir, neste futuro profissional, a postura da dúvida, da suspeita, da crítica,
da imaginação, com vistas à promoção de um efetivo enlace entre o saber, a
reflexão e a ação, pois, apesar de a construção do conhecimento não ser unidirecional, e tampouco ingênua, tudo o que é elaborado, tanto teórica quanto
tecnicamente, torna-se o modo pelo qual a vida pode ser pensada e orientada,
não, porém, sem que este sujeito que articula o conhecimento seja consciente e
responsável tanto pelos saberes técnico-científicos quanto pelas metodologias
mediante as quais eles são construídos, bem como pela possibilidade de sua
aplicação. Isso porque profissional algum é apenas um técnico. Antes, ele é um
existente, uma subjetividade resultante de um determinado processo históricosocial e que busca respostas para a dinamicidade e concretude da vida, para a
efemeridade dos processos e conhecimentos técnicos que não podem mais ser
compreendidos mediante uma receita.
Ou seja, a ciência realiza diagnósticos, previsões, soluções, mas não pergunta pelo sentido da vida. É por essa razão que a formação universitária, além de
adotar componentes cujos conteúdos forneçam as informações e conhecimentos
relativos aos objetos e fenômenos de cada área em estudo, precisa também, e,
sobretudo, garantir momentos distintos de reflexão sobre o papel ético-político
dos futuros profissionais e de que forma pretendem atuar e intervir na sociedade
na qual se inserem. Se este não for o objetivo primeiro da formação superior, e
consequentemente, a postura do profissional egresso, então devemos nos perguntar sobre a finalidade do conhecimento científico e se o sentido da formação
profissional não se esvazia por completo.
Referências
COELHO, Ildeu M. Universidade e formação de professores. In: GUIMARÃES, Valter
S. (Org.). Formar para o mercado ou para a autonomia? O papel da universidade.
Campinas: Papirus, 2006.
GOERGEN, Pedro. Formação superior: entre o mercado e a cidadania. In: PEREIRA,
Elisabete M. A. (Org.). Universidade e currículo: perspectivas de educação geral.
Campinas: Mercado de Letras, 2010. p. 17-40.
JAEGER, Werner. Paideia: formação do homem grego. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1995.
PEREIRA, Elisabete M. A. (Org.). Universidade e educação geral: para além da especialização. Campinas: Alínea, 2007.
62
EaD
Filosofia e Ética
Síntese da Unidade 2
Nesta Unidade estudamos que:
• O conhecimento por si só e sem o sentido da
relação pode ser um grande acúmulo de esquecimento automatizado e extremamente
perigoso, por isso a reflexão profunda sobre
a participação na construção do mundo é a
característica ético-filosófica fundamental.
• Um dos desafios das Ciências Humanas é a atualização do passado e a apresentação de novos
saberes com o recurso da tradição.
• A reflexão filosófica é organizada em torno de
três perguntas: 1. Quais os motivos, as razões
ou as causas de nosso pensar, dizer e fazer? 2.
Qual o conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos e fazemos? 3. Qual a intenção
ou a finalidade do que pensamos, dizemos e
fazemos?
• A formação universitária, além de adotar
componentes cujos conteúdos forneçam as
informações e conhecimentos relativos aos
objetos e fenômenos de cada área em estudo, precisa também, e, sobretudo, garantir
momentos distintos de reflexão sobre o papel
ético-político dos futuros profissionais e de que
forma pretendem atuar e intervir na sociedade
na qual se inserem.
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Unidade 3
ÉTICA E AGIR HUMANO
OBJETIVOS DESTA UNIDADE
•
Apresentar o caráter histórico da antropologia filosófica discutindo
as principais visões de homem e de mundo já elaboradas.
•
Analisar e comparar as definições de homem defendidas desde
Sócrates até Marx.
•
Distinguir os conceitos de ética, moral e deontologia e como tais
conceitos foram sendo paradigmaticamente pensados ao longo da
História.
•
Apresentar as principais teorias éticas desde os gregos até a contemporaneidade.
•
Refletir sobre as concepções de responsabilidade moral, determinismo e liberdade.
•
Debater sobre as dimensões e a fundamentação da ética na política.
•
Tematizar os conceitos de belo e feio e sua relação com a ética.
AS SEÇÕES DESTA UNIDADE
Seção 3.1 – Introdução aos Estudos Antropológicos
Seção 3.2 – O que é o Homem?
Seção 3.3 – Ética a Partir dos Paradigmas
Seção 3.4 – Teorias Éticas
Seção 3.5 – Responsabilidade Moral, Determinismo E Liberdade
Seção 3.6 – Considerações Sobre Ética, Política e Cidadania
Seção 3.7 – A Estética e Suas Relações Com o Feio
65
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Seção 3.1
Introdução aos Estudos Antropológicos1
Julio César Burdzinsky
2
3.1.1 – O QUE É ANTROPOLOGIA
2
A disciplina que se dedica ao estudo do homem recebe o nome de An-
tropologia. Como tantas outras palavras da língua portuguesa “Antropologia”
tem, também, raízes etimológicas em duas palavras gregas que significam, respectivamente, “homem” e “discurso” ou “estudo”. Assim, a Antropologia pode ser
entendida como discurso ou estudo sobre o homem. Esta definição, entretanto,
é muito insuficiente porque um “estudo sobre o homem” pode se apresentar sob
várias formas completamente diferenciadas e, historicamente, foi exatamente isto
o que aconteceu. Assim podemos ter, por exemplo, uma Antropologia biológica
cujo objeto de estudo será, justamente, o homem enquanto entidade biológica
situada entre as demais espécies animais. A Medicina, tal como a conhecemos
tradicionalmente, ocupa-se deste aspecto do estudo sobre o homem. Também
o estudo de fósseis de homens pré-históricos, antecessores do Homo Sapiens,
assume uma direção semelhante e se dedica a investigar as várias diferenças
entre os distintos estágios do desenvolvimento biológico humano ao longo da
evolução natural.
A Antropologia também pode, por outro lado, ocupar-se das diferentes
formas de civilização que os seres humanos constituíram em diferentes pontos do
tempo e do espaço buscando, assim, identificar os fatores culturais e sociais que
aí se revelam. Temos, então, a “Antropologia Cultural” que, por sua vez, diferenciase em várias escolas que seguem diferentes caminhos de pesquisa privilegiando
ora um, ora outro aspecto de uma determinada sociedade.
Há, ainda, um terceiro sentido em que podemos entender o termo Antropologia, qual seja, um estudo do homem que busca investigá-lo não apenas
como um ser biológico ou cultural mas, antes, como aquele específico tipo de ser
que se pergunta pelo seu próprio ser: é a esta que denominamos de Antropologia filosófica e que aqui nos interessa mais diretamente. Definir de uma forma
Texto publicado em primeira versão em: Schneider, Paulo Rudi (Org.). Introdução à Filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí,
1995. p. 108-119.
1
Fotografia – As meninas lobo. Fonte: <http://novaemoderna.blogspot.com.br/2011/03/estranha-lendade-amala-e-kamala-as.html>.
2
66
EaD
Filosofia e Ética
mais clara o que podemos entender por Antropologia filosófica é uma tarefa
extremamente difícil, uma vez que essa explicação pressupõe, evidentemente,
uma elucidação do conceito de Filosofia o que, por si só, não é nada simples.
Não obstante, é possível darmos algumas indicações gerais que possam situar
o lugar que ocupa a Antropologia filosófica no universo da própria Filosofia e
do conhecimento humano como um todo.
3.1.2 – A Antropologia Filosófica ontem e hoje
Referimos anteriormente que podemos entender a Antropologia filosófica
como uma disciplina que toma por objeto de estudo o homem mesmo enquanto
aquele que se propõe objetos de estudo. Isto, porém, é ainda um tanto vago e,
desde esta definição, podemos situar a Antropologia filosófica como um pequeno
e particular campo da Filosofia até como a sua totalidade. Na verdade, o espaço
que a Antropologia filosófica ocupou dentro da Filosofia variou, historicamente,
de um extremo a outro. A perspectiva predominante contemporaneamente, porém, é a de que o estudo antropológico é a primeira e mesmo a mais importante
parte da Filosofia, embora a Filosofia não possa se resumir a ele. Esta é, aliás, a
perspectiva deste nosso curso: o estudo filosófico do homem – e a extensão e
o significado deste estudo é algo que deverá tornar-se evidente ao longo do
próprio curso – como parte inicial e principal do estudo filosófico.
Vejamos em que ponto nos encontramos agora: começamos afirmando
que a Antropologia é o estudo do homem e prosseguimos mostrando que esse
estudo poderia assumir diferentes perspectivas – o biológico-científico, o cultural ou o filosófico. Finalmente, ocupando-nos dessa última vimos a dimensão
que o estudo antropológico ocupa na Filosofia. Precisamos agora, após termos
esclarecido essas considerações preliminares, ocupar-nos com a realização de um
estudo introdutório de Antropologia filosófica, isto é, vamos investigar desde o
ponto de vista de alguns tipos básicos as diferentes formas pelas quais, ao longo
da História, o homem viu a si mesmo e sua relação com o mundo.
3.1.3 – Visões do Homem e do seu mundo
Nosso primeiro pressuposto básico é o seguinte: a Antropologia tem um
caráter histórico, ou seja, a perspectiva que o homem tem de si próprio não é
sempre a mesma ao longo do tempo. Ou ainda: a forma segundo a qual o homem
encara suas relações com outros homens (relações sociais), sua relação com o
mundo (cosmovisão) e, por meio destas, suas relações consigo mesmo, difere
conforme a época histórica sobre a qual nos detemos. Esse pressuposto traz,
como decorrência, duas consequências imediatas: em primeiro lugar deve ficar
claro que a visão de Antropologia e de homem que estamos articulando aqui é,
exatamente, a nossa visão, isto é, a perspectiva contemporânea, a qual se caracteriza entre outras coisas como sendo uma perspectiva historicista. Em segundo
lugar precisamos não apenas relativizar nossa própria perspectiva antropológica,
67
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
mas devemos, ainda, situá-la enquanto resultado de um processo histórico ao
longo do qual várias perspectivas diferentes a antecederam e, em boa parte, a
determinaram. O que tentaremos fazer aqui é expor da forma mais simplificada
possível os “modelos” básicos de homem e mundo que se sucederam na história
e a razão dessa sucessão.
3.1.3.1 – A Mitologia
A espécie humana surge como tal na superfície da Terra a cerca de um ou
dois milhões de anos. A “baixa” pré-História, conhecida como período paleolítico
ou “idade de pedra lascada”, alcança cerca de 10 mil anos atrás, enquanto a era
neolítica ou “idade da pedra polida” não remonta a mais de 5 mil anos. As primeiras
civilizações humanas conhecidas e o consequente início da época propriamente
histórica se dá por volta de 3.000 a.C. na Mesopotâmia, Egito, China e Índia. Todas
essas civilizações são-nos, entretanto, muito distanciadas não apenas histórica,
mas também culturalmente. Muito mais próximo do que podemos denominar
genericamente de “cultura ocidental” encontramos o mundo grego clássico,
matriz distante mas sólida da nossa civilização e que já foi chamado de “infância
da humanidade”.
Pode-se afirmar que a civilização grega iniciou a formar-se em cerca de
1.500 a.C., mas só atingiu seu apogeu dez séculos mais tarde. Por volta dessa
época estabeleceu-se a democracia ateniense, a arte grega atingiu os píncaros
de seu desenvolvimento e a Filosofia nasceu e se desenvolveu rapidamente.
Antes disso, porém, predominava uma forma muito distinta de compreensão do
homem e do mundo: é o que conhecemos por mitologia. Duas grandes obras
restam-nos desse período, as quais traçam um painel do mundo grego de então,
dando-nos informações preciosas sobre sua moral, religião, etc. São a Ilíada e a
Odisséia, obras cuja autoria é lendariamente atribuída a um poeta cego que teria
vivido por volta do século 8º a.C., chamado Homero. É mais provável, entretanto,
que tais obras constituam-se de um conjunto de várias lendas diversas que foram reunidas formando então o conjunto que conhecemos. Estas obras são os
documentos principais a serem pesquisados na investigação dessa longínqua
época da História. A pergunta que então nos interessa colocar aqui é a seguinte:
Que concepção de homem encontramos ali?
Para responder a isso devemos, primeiro, vislumbrar o mundo da época:
tecnologicamente falando ele é, naturalmente, extremamente rudimentar. A
origem dos fenômenos naturais é então explicada de uma forma obviamente
diferente daquela que caracteriza uma sociedade moderna. O modelo para
explicação desses fenômenos é, em primeiro lugar, os fenômenos do mundo
social. Assim, por exemplo, se a ordem de uma comunidade é mantida pelo
poder exercido pelo seu líder supõe-se, igualmente, um governante – de muito
superior poder, é claro – deve também responder pela ordem do mundo da
natureza. Por extensão, são explicados da mesma forma fatos singulares como
a chuva e a reprodução. Se o Sol percorre um determinado trecho do céu num
68
EaD
Filosofia e Ética
movimento regular que se sucede dia após dia isso ocorre porque um deus assim o conduz; se uma colheita é prejudicada pela irregularidade das chuvas, se
os animais rareiam em um determinado campo de caça, é porque a divindade
responsável pelo ordenamento desses processos naturais está “irritada” contra
os homens que deles dependem. Daí então a necessidade de oferecer sacrifícios
como meio de reconquistar a simpatia divina.
Num mundo assim concebido inexiste uma diferenciação clara entre o
mundo dos fenômenos naturais e a esfera dos acontecimentos propriamente
humanos ou sociais, dado que o mundo como uma totalidade é visto como
uma projeção daquilo que é especificamente humano. Os próprios deuses têm
as mesmas qualidades e defeitos de qualquer homem comum, diferenciando-se
destes em apenas dois sentidos: primeiro, essas qualidades e defeitos ocorrem
num grau muito maior, pois os deuses são mais poderosos que os humanos;
segundo, os deuses são imortais. Além disso, sendo o comércio uma das formas
básicas de relação entre os homens – e devemos lembrar aqui que os gregos
eram um povo de comerciantes –, é o comércio também a forma básica de relação
entre homens e deuses: os homens oferecem sacrifícios aos deuses e esperam
destes, em retribuição, favores.
Como consequência dessa visão do mundo, encontramos aqui a ausência de uma efetiva preocupação com a “natureza humana”, uma vez que essa
natureza mesma não é diferenciada de forma clara. Pelo contrário, “homem” e
“mundo” surgem aqui como dois elementos que se interpenetram a tal ponto
que se tornam praticamente indistinguíveis. Essa indistinção e a consequente
despreocupação de qualquer estudo que poderíamos denominar “antropológico”
prosseguiria ainda, como veremos a seguir, no momento seguinte da história do
pensamento grego, ainda que sobre bases completamente diferentes.
3.1.3.2 – Os primeiros pensadores
É a partir do século 6º a.C. que surge na Grécia aqueles que chamamos de
primeiros filósofos. Falar acerca deles nos permite, ao mesmo tempo, formularmos
uma primeira visão geral do que chamamos de Filosofia.
Desses primeiros pensadores não temos, em geral, mais do que pequenos
fragmentos resgatados de obras de pensadores bem posteriores. No caso de Tales
de Mileto, considerado o primeiro filósofo, não temos sequer uma linha de seus
escritos, tendo sido perdido então, qualquer registro direto do seu pensamento.
As únicas notícias que temos de Tales nos chegam por meio de comentários
indiretos de pensadores que são bem posteriores a ele. Desse pouco que sabemos podemos, entretanto, reconstituir aquela que teria sido a ideia central do
pensamento de Tales e que pode ser resumida na seguinte afirmação:
“Tudo é água.”
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Nesta pequena frase encontramos de uma forma bastante clara dois elementos que são essenciais para o pensamento filosófico e cuja caracterização
se torna ainda mais evidente se posta sob o pano de fundo das perspectivas
mitológicas. Senão vejamos: o pensamento mitológico típico, como vimos muito
resumidamente, surge como uma tentativa de explicação dos fatos do mundo
mediante a atribuição da autoria desses fatos a entidades divinas moldadas à
semelhança do homem. Enquanto isso a tentativa de explicação de Tales vai
numa direção em tudo diferente. Primeiro, porém, esclareçamos: ao afirmar
“Tudo é água” Tales pretende expor uma concepção segundo a qual todas as
coisas do mundo – minerais, vegetais e animais, incluindo-se aí, naturalmente,
o próprio homem – são formadas e, portanto, tem seu princípio fundamental
na água. Como Tales supusesse que poderia ocorrer essa constituição de tudo
o que encontramos no mundo a partir desse simples elemento, isso é algo que
infelizmente não sabemos. O que precisa ficar bastante claro, porém, é que
existe uma radical diferença entre essa tentativa de explicação e aquelas anteriores. Já não vemos mais aqui qualquer referência a uma divindade que seria a
responsável pela manutenção do mundo, muito menos a uma divindade com
quaisquer características humanas. Pelo contrário, estamos agora como que no
polo oposto da explicação mitológica: se então os fenômenos naturais eram
explicados a partir de uma projeção sobre eles dos processos do mundo social,
agora as realidades do mundo social devem ser como que derivadas a partir de
uma explicação cosmológica que, no caso de Tales, tem como princípio a água.
Outros pensadores que lhe seguem proporão diferentes princípios; em todos eles,
porém, essa tentativa de explicação se caracteriza, primeiro, por uma pretensão
de abarcar a totalidade das coisas do mundo. Assim, a explicação de Tales, por
exemplo, pretende não apenas explicar alguns fatos isolados do mundo, mas a
totalidade deles. Em segundo lugar, temos ali uma busca de unidade, ou seja:
buscar um princípio (seja este concebido como “água” ou de qualquer outra
forma) implica que não apenas se quer explicar de uma forma genérica todas
as coisas do mundo – sob um certo aspecto o pensamento mitológico já fazia
isso –, mas, também, que se quer explicar tudo isso a partir de um princípio
simples e único. Assim, por mais ingênua que a proposta de Tales possa soar aos
ouvidos modernos, devemos ter claro que com ela se inaugura aquela forma de
pensamento que nos acostumamos a denominar de racional.
3.1.3.3 – Sócrates
Mais de um século depois de Tales de Mileto vamos encontrar na cidade
grega de Atenas Sócrates, provavelmente o mais famoso nome não apenas da
cultura grega, mas de toda a Filosofia. Tal como ocorre em relação a Tales, não
temos nenhum registro escrito das doutrinas que Sócrates professava. Os motivos, porém, são bastante diferentes. Enquanto os escritos de Tales simplesmente
perderam-se em algum ponto da História, de Sócrates não herdamos obra alguma
porque este durante toda a sua vida recusou-se a registrar por escrito seus pensamentos, entre outros motivos, por desconfiar seriamente da validade filosófica
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EaD
Filosofia e Ética
da palavra escrita. Ao invés disso, preferia sempre a utilização da conversação, do
diálogo, da palavra viva e dinâmica. Em compensação, a figura e os ensinamentos
de Sócrates foram brilhantemente descritos por um dos seus discípulos, o qual
veio a se tornar tão famoso quanto o seu mestre: Platão. Este guardou de Sócrates a paixão pela dinâmica do diálogo mas, por outro lado, não quis renunciar
a escrever suas obras. Procurou, então, um meio-termo; como resultado, praticamente todos os seus textos foram redigidos na forma de diálogos. Em muitos
desses diálogos Platão fez de Sócrates o interlocutor principal e são eles que nos
indicam o sentido e a dimensão do trabalho de Sócrates. E isso ocorre de uma
forma tão profunda, aliás, que é muitas vezes impossível distinguir onde termina
a contribuição histórica real de Sócrates e onde começa a de Platão.
De toda forma, é certo que, com Sócrates, começa propriamente a Antropologia. O homem em suas muitas faces foi sempre o único interesse de Sócrates.
Ali, então, já aparecem claramente diferenciados o reino de fenômenos naturais e
a dimensão dos fenômenos humanos – onde encontramos o interesse de Sócrates. Lembremos que nem entre os pensadores da época mitológica, nem entre
os primeiros filósofos essa diferença estava suficientemente clara. Na mitologia,
o mundo natural se apresentava, de certa forma, como uma mera extensão do
mundo humano, sendo governado por leis idênticas. Para os primeiros filósofos
o homem é quase uma decorrência – ela mesma natural – do mundo natural;
encontrada a chave de explicação do cosmos, o homem estaria imediatamente
explicado. Em Sócrates a diferença que vai da explicação de um fenômeno natural,
por exemplo, a chuva, até a investigação de questões especificamente humanas,
como a Justiça, é evidente. Sócrates parece preocupar-se exclusivamente com
questões desse último tipo. Platão também dedicou-se preferencialmente à
investigação dessa dimensão, embora tenha escrito também textos nos quais
se dedica a investigar questões cosmológicas. Aristóteles, o terceiro grande
nome da Filosofia clássica grega e que foi aluno de Platão, se dedicará com igual
intensidade seja ao estudo da natureza, seja ao estudo de temas como a ética e
a política. Voltemos, porém, a Sócrates.
Não é suficiente afirmar que o interesse de Sócrates é um interesse antropológico. O que realmente preocupa a Sócrates é a dimensão moral do homem.
As questões que ele está sempre a colocar são do seguinte tipo: Que é a justiça?
Que é a virtude? Que é o bem? A todos os pretensos sábios de sua época Sócrates dirigia estas questões. Atenção, porém, Sócrates formulava estas questões
num sentido filosófico, o que implica, lembremo-nos, uma ideia de totalidade e
uma ideia de unidade. Assim, se à pergunta “O que é a justiça?” alguém dá como
resposta “pagar as dívidas devidas” Sócrates retrucaria, por exemplo, que “punir
os malfeitores” é também um ato justo. Isso significa que a resposta à pergunta
pela natureza da justiça deve abranger a todos os casos em que a justiça está
em questão. Ainda mais: se a mesma questão fosse respondida da seguinte forma: “Justiça é pagar as dívidas devidas e punir os malfeitores”, com certeza isto
ainda não satisfaria a Sócrates. A pergunta que ele imediatamente dirigiria a seu
interlocutor seria algo do tipo: “Falas em pagar as dívidas devidas e punir os mal71
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
feitores; dize-me então o que há de comum entre esses dois atos tão diferentes
entre si que permite identificar a ambos como atos de justiça.” Assim fica claro
que uma resposta filosófica à questão “O que é a justiça” deve responder a duas
exigências básicas: deve abranger a totalidade das coisas consideradas justas e
deve, ainda, encontrar a razão de sua unidade.
Há ainda um elemento que devemos considerar em relação ao mundo
grego. É aí que nasce a forma de governo que denominamos democracia. São
os gregos, também, os primeiros a se dedicarem de forma intensa, profunda e
sistemática ao estudo da política. É do grego Aristóteles a clássica definição do
homem como um “animal político”. Nesta afirmação múltiplas implicações estão
imbricadas e, sobretudo, esta: o homem só se realiza plenamente e só pode ser
compreendido de forma perfeita quando está inserido numa determinada sociedade. É ainda Aristóteles que afirma que um ser que não vive em sociedade
é “uma besta ou um deus”, argumentando com isto que o viver em sociedade é
uma característica essencial do homem e aqueles seres que vivem em condições
diferentes estão acima ou abaixo da condição humana e, de qualquer forma, fora
dela. Isto significa, finalmente, que a relação dos homens com a comunidade em
que vivem é uma relação muito íntima; um homem faz parte de uma comunidade
da mesma forma que um órgão faz parte de um corpo, isto é, é inseparável e incompreensível sem a referência à totalidade da qual faz parte. Assim a concepção
grega de homem estará sempre ligada a uma compreensão do homem como
parte de uma estrutura política que, afinal define esse homem.
3.1.3.4 – A Cristandade
Nessa nossa rápida visão histórico-antropológica, daremos agora um
salto de dez séculos para mergulharmos nesse período histórico que encontramos denominado nos livros de Idade Média e que abrange um período de
cerca de mil anos, indo desde a invasão de Roma pelos bárbaros até o início do
Renascimento italiano.
A Idade Média é representada, muitas vezes, como um período no qual
a História paralisou ou desandou e a cultura desapareceu. Costuma-se chamar
esse período, às vezes, de “Idade das Trevas”. É bom, pois, que se diga logo que
nada disso é verdade. O que ocorreu, mais simplesmente, é que com a queda
de Roma, terminou o ciclo dos grandes impérios ocidentais, sendo estes substituídos por uma infinidade de pequenos reinos independentes política e economicamente. Com isto, é claro, a comunicação entre pontos diversos do mundo
europeu tornou-se mais difícil, e as atividades em geral sofreram uma espécie
de desaceleração. O comércio tornou-se obviamente muito mais difícil, pois não
era raro que tais pequenas unidades políticas entrassem em conflito pelos mais
diversos motivos; além disso, o trânsito através deles deveria pagar tributo a
qualquer duque ou barão pelas terras de quem esse trânsito se efetuasse. Com
isso, a base econômica predominante passou a ser a agricultura praticada de
forma independente por cada reino ou feudo. Com uma tal desestruturação
72
EaD
Filosofia e Ética
poder-se-ia esperar logicamente que a própria cultura como um todo e o tesouro
espiritual da humanidade até então acumulado fosse fragmentado, dispersado e,
afinal, perdido. Isso, entretanto, não ocorreu por pelo menos dois bons motivos:
em primeiro lugar, porque, como já afirmamos anteriormente, a desestruturação
social e política não foi tão completa como se pretende algumas vezes; em segundo lugar – e fundamentalmente – porque nesse período existia uma grande e
poderosa instituição que ligava sub-repticiamente boa parte da Europa de então.
Essa instituição tinha forças suficientes para manter um certo nível de organização
e um trânsito cultural relativamente ordenado no meio do caos que então se
instalava na Europa. Referimo-nos, é claro, à Igreja cristã. Em mosteiros, conventos,
abadias e outros tantos centros de devoção religiosa, bibliotecas contendo muitas obras da Antiguidade foram preservadas da aniquilação e do esquecimento
absoluto. Além disso, muitos dos grandes religiosos medievais, alguns dos quais
foram mais tarde santificados pela Igreja foram também grandes pensadores e
eruditos. De um modo geral os pensadores cristãos não produziram obras que
introduzissem novidades radicais em relação ao que os grandes pensadores
gregos já haviam feito; limitaram-se, via de regra, a um trabalho de interpretação
dos autores clássicos. Os maiores entre os filósofos medievais tomaram a si uma
tarefa que consideravam fundamental: adaptar a Filosofia clássica – primeiro
Platão, depois Aristóteles – aos limites e às necessidades teóricas da teologia
cristã. Nem só a repensar os autores antigos, no entanto, dedicaram-se os autores
medievais. Ocorre que, com o advento da religião cristã, uma nova dimensão
do homem passou a ser tomada como essencial e, com isso, passou a receber
a atenção de vários pensadores. Se os antigos se interessavam expressamente
pela dimensão política e social do homem, vislumbrando-o como “cidadão” e
interessando-se, então, basicamente pelo comportamento moral do homem na
cidade, aos cristãos interessava uma dimensão mais oculta e subjetiva da alma
humana: algo que denominaríamos de “interioridade”. Isso ocorre na medida
em que noções como a de “pecado” ou “fé” fazem referência a uma dimensão
do espírito humano que se constitui numa espécie de “foro íntimo”, dimensão
esta que os antigos não viam como um problema a ser resolvido, uma vez que
toda a questão espiritual se colocava imediatamente como um problema moral
a ser equacionado em parâmetros políticos. É nesse ponto que encontramos
uma das grandes fontes de originalidade do pensamento medieval. O homem
já não é mais entendido unicamente desde o ponto de vista político, enquanto
cidadão, mas é visto, também, como membro de uma comunidade celestial de
almas. Assim, podemos resumir da seguinte forma o que se passa nesse período:
a herança filosófica da Antiguidade é preservada, retomada e adaptada ao universo cristão ao mesmo tempo, recebe um impulso na direção da interioridade.
Devemos ter cuidado, entretanto, em não confundirmos interioridade com individualidade. Lembremo-nos de que a religião cristã propõe uma alma imortal
indissoluvelmente ligada a Deus. O grau de originalidade que pode ser assumido
deve restringir-se a uma interpretação das escrituras e dos autores consagrados
pela Igreja. Recordemo-nos, ainda, que a imensa maioria trabalhadora da época
está ligada economicamente a terra na qual trabalha e por meio dela ligado
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EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
politicamente ao senhor feudal ao qual deve obediência. Vemos então que os
homens de então eram duplamente dependentes: seu corpo pertencia ao seu
senhor, em defesa do qual tinham a obrigação de entregar a própria vida; sua
alma pertencia a Deus e à Igreja. Noções que hoje nos são comuns, como as de
“liberdade” e “individualidade”, eram então completamente estranhas; seu surgimento na História está ligado a uma revolução de vastas proporções que nos
levou ao período histórico que denominamos de Modernidade.
3.1.3.5 – A Modernidade
No início do século 16 uma série de mudanças de grande porte ocorreu
no mundo europeu. Tais mudanças afetaram todos os campos: a moral, a religião,
a arte, a ciência, a Filosofia, a economia, a política. Todas estas mudanças estão,
naturalmente, interligadas. São, entretanto, conhecidas por diferentes nomes.
Assim, as mudanças profundas na estrutura religiosa iniciadas nos estados germânicos são conhecidas por Reforma Protestante e a reação a estas mudanças
deu origem à Contrarreforma Católica. A grande impulsão que conheceram as
artes, notadamente na Itália, são identificadas como Renascimento. Na Economia,
o capitalismo deu seus primeiros passos, enquanto a descoberta e colonização
da América dá origem ao sistema comercial do Mercantilismo. A ciência, tal como
a entendemos, dá seus primeiros passos com Bacon e se afirma definitivamente
com Newton. Na política assistimos à decadência do feudalismo e à ascensão dos
primeiros Estados nacionais. A Filosofia liberta-se enfim do jugo do cristianismo
que a utilizara durante mil anos como serva. O Discurso do Método de Descartes
é um brado contra toda submissão à tradição e ao respeito sagrado que sempre
cercara os textos de autores consagrados pela Igreja, como Aristóteles. Abrem-se
as portas para a originalidade e a palavra de ordem passa a ser o “Ousa Saber!”
Toda essa série de mudanças implicou uma profunda e ampla caracterização da natureza humana. É nesse momento histórico que surgem as noções
de “indivíduo” e de “sujeito”. A primeira dessas encontra lugar desde que, com
o fim do sistema feudal e da vinculação direta do homem a terra na qual ele
trabalha, tem início um processo de independentização dos homens dos fortes
laços que os ligavam aos senhores feudais. Ao mesmo tempo, com a perda do
poder de influência da Igreja, a noção de “comunidade”, tão presente em toda
a Idade Média, é substituída pelo espírito de competitividade e de valorização
do empreendimento individual típicos do período inicial do capitalismo. Todos
estes fatores conduzem à formação de um novo homem. Este tem uma noção
totalmente nova acerca do mundo, de sua relação com este e com os demais
homens.
Este novo caráter ficará mais claro se notarmos que é a esta época que
remonta à criação da “História” como disciplina e perspectiva de estudo do
homem. Lembramos que, em toda a Antiguidade sempre houve uma total
falta de perspectiva histórica, essa noção que hoje nos é tão comum. Estamos
acostumados a representar a nossa sociedade e nosso modo de vida como um
74
EaD
Filosofia e Ética
período particular de uma longa série de mudanças levadas a cabo pela humanidade ao longo do tempo. Ora, esta visão encontra sua origem exatamente no
início da época moderna. Com a perspectiva histórica, dois elementos centrais
foram incorporados na visão que o homem tem de si mesmo e de seu mundo:
em primeiro lugar, aprendemos a relativizar a própria sociedade e sua época;
com isto reconheceu-se que os valores morais e os costumes os quais estamos
acostumados a considerar como normais não são absolutos, mas devem ser colocados em seu devido lugar. Em segundo lugar, ao mesmo tempo em que isto
ficou claro, isto é, em que ficou evidente que o mundo se transforma ao longo
do tempo, ficou igualmente evidente que é o próprio homem o agente dessa
mudança, o sujeito responsável por essa transformação.
Toda essa série de mudanças a que aqui fizemos menção moldaram o
homem moderno e o mundo que conhecemos. A ciência, a visão histórica, as
artes e a moral tais como as conhecemos, foi aí que receberam a direção que
hoje em dia apresentam. O caminho que conduziu desse direcionamento inicial
até os dias de hoje não foi, entretanto, sem acidentes ou equívocos. Esta, porém,
já é uma outra história.
Seção 3.2
O que é o Homem?3
Celso Eidt
4
SÓCRATES
4
É durante a crise ateniense da segunda metade do século 5º a.C. e em
meio ao movimento sofista que surge a figura de Sócrates, um dos expoentes
da Filosofia clássica.
Texto publicado em primeira versão em: Schneider, Paulo Rudi (Org.). Introdução à Filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí,
1995. p. 120-140.
3
Retirantes – Cândido Portinari. Fonte: <http://www.proa.org/exhibiciones/pasadas/portinari/salas/
portinari_retirantes.html>.
4
75
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Segundo Werner Jaeger, “Sócrates proclama o evangelho do domínio do
homem sobre si próprio e da “autarquia” da personalidade moral”.5 A ideia da
personalidade moral, introduzida por Sócrates, é certamente a base da ética e
do Direito da civilização ocidental.
A interioridade (alma = sopro de vida) passa a ser a verdadeira dimensão
por onde se manifesta a grandeza humana. A interioridade converte-se em esfera
definidora da ação humana conforme a virtude e baseada nos valores do justo e
injusto. O indivíduo é valorizado a partir do preceito délfico do “conhece-te a ti
mesmo”. O conhecimento da interioridade é a condição da verdadeira sabedoria
e esta leva à verdadeira virtude.
O desenvolvimento das faculdades intelectuais como condição para a
vida virtuosa é um ponto chave para a compreensão do homem grego. A virtude
grega tem na sabedoria da “alma” sua base de ser.
Neste sentido Werner Jaeger pôde identificar em Sócrates uma personalidade cujas atitudes estão acima de seus ensinamentos.6
Agnes Heller na mesma ótica, considera que “Os ensinamentos e a vida
de Sócrates são uma só coisa”.7
PLATÃO
O homem para Platão, é essencialmente alma8 e a política é a arte por meio
da qual a alma chega a sua realização. A atividade humana se ordena a partir da
realidade do mundo das ideias. O mundo das ideias, ao qual a alma é congênita,
explica no homem a vida da alma, na sua condição terrena. Isto se deve ao fato
de a alma permanecer ligada ao mundo das ideias pela reminiscência.
A alma é complexa e se estrutura em três dimensões: a dimensão racional,
a irascível e a volitiva, e cada uma dessas partes é regida por sua virtude própria.
A virtude da parte racional da alma é a sabedoria, da parte irascível a coragem
e a parte volitiva a moderação.
Os três graus da alma encontram-se, por natureza, nos homens em dimensões diferentes. Há aquela classe de homens que personificam o desejo.
São as almas inquietas e ávidas que buscam bens materiais; cobiçam luxo e
prazeres. São as chamadas almas de bronze a cujos portadores Platão atribui na
República a tarefa de prover as necessidades materiais de todos os membros.
Platão também concebe uma classe de homens que nascem com a parte irascível
da alma mais desenvolvida. São homens que se caracterizam pelo sentimento
de coragem e que buscam acima de tudo a vitória na luta. Sua alma de prata os
Jeager, Werner. Paidéia, p. 353.
5
Jeager, Werner. Paidéia, p. 317.
6
Heller, Agnes. Aristoteles y el mundo antigo. Barcelona: Ed. Península, 1983. p. 38.
7
“... alam significa, para os gregos, vitalidade, e o homem participa da vitalidade, vive a partir dela. Nesse
sentido, o homem é alma a medida que participa de uma vitalidade que o transcende” (Oliveira, Manfredo
A. de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993).
8
76
EaD
Filosofia e Ética
torna mais lutadores que ambiciosos. Orgulham-se mais do poder do que das
posses. A essa classe de homens Platão atribui, na República, a tarefa da guarda,
da segurança de toda comunidade humana.
Há, enfim, os homens com alma de ouro. Estes se caracterizam pelo poder da razão, do pensamento e da sabedoria. Seu papel consiste em governar
a República.
Assim percebemos que Platão estrutura a República com base na estrutura
da alma humana. Em certo sentido o homem é “... uma micro-pólis e a pólis um
macro-homem, enquanto realização e atualização de suas potencialidades”.9
O Estado é o que é porque seus cidadãos são o que são. O Estado, a pólis,
é constituída segundo a natureza humana. Quando os homens melhoram, a
pólis se aperfeiçoa.
Entre as várias artes que Platão perspectiva na República política é a arte
por excelência. A política é a arte por excelência porque é autoprodutora do
homem. Se a característica das demais artes é produzir um determinado bem,
uma obra, a arte política tem a característica de fazer coincidir a virtude do desempenho com a virtude da obra. A arte política é assim a arte suprema, porque
se utiliza de todas as demais artes e lhes serve, ao mesmo tempo, de fundamento
avaliativo. A arte política visa ao bem enquanto tal. O bem enquanto tal só pode
ser captado pela atividade racional que é a atividade da reflexão filosófica. Assim
Platão atribui a melhor arte – a política – ao melhor homem, que é o filósofo. O
propósito é claro: alcançar a harmonia e a justiça.
A razão possibilita ao homem perceber o mundo de forma ordenada e
justa. A política tem como função organizar a vida humana com normas racionais e justas.
A tarefa de ordenar a cidade com base na justiça cabe ao filósofo precisamente porque este tem a propriedade de se elevar acima do mundo das formas
sensíveis e contemplar pelo uso do logos, o mundo das ideias, que é o mundo
essencial do qual toda forma sensível é uma cópia perfeita. Platão observa que
a alma conhece as ideias no mundo transcendente antes do nascimento e que
conhecimento efetivo da realidade não é, portanto, senão uma reminiscência
do que a alma tem visto antes de seu nascimento.
Atribuir a atividade política enquanto atividade humana por excelência,
aos homens sábios, não é um acaso; há, em Platão, uma preocupação básica em
unir o saber e a política. Converter os governos em filósofos ou elevar os filósofos
ao governo, esta é a perspectiva de Platão. Na base desta pretensão temos uma
concepção de sabedoria, comum aos pensadores gregos. Ser sábio é ser bom;
ou seja, a sabedoria da alma leva à virtude.
Oliveira, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. p. 49.
9
77
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Como a atividade política, que é a arte do filósofo rei, pode ser justa? A
justiça consiste em organizar a vida política da melhor maneira possível, de forma
que cada homem ocupe na sociedade o lugar que lhe compete por natureza. A
justiça está ligada à igualdade, mas os homens são diferentes por natureza com
base em suas próprias almas. Logo, justiça significa possibilitar o desenvolvimento
das capacidades do indivíduo de maneira proporcional ao desenvolvimento das
capacidades dos outros.
ARISTÓTELES
Segundo Lima Vaz:
O centro da concepção Aristotélica de homem é a physis, mas animada pelo
dinamismo teleológico da forma que lhe é iminente, o que como forma ou
eidos é o seu núcleo inteligível.10
Aristóteles situa na natureza o telos, que é o fim do ser e do agir do homem
que Platão situava no mundo das ideias.
Enquanto portador de alma, o homem é um ser natural, mas é mais que um
ser meramente natural; ele se distingue dos outros seres da natureza em virtude
da razão. A racionalidade é o elemento que diferencia e peculiariza o homem. O
logos proporciona ao homem a capacidade de falar e discorrer, o que lhe permite
entrar em relação com outros homens e instaurar a comunidade política.
O homem tem em comum com os animais a voz e esta pode indicar os
sentimentos de dor e prazer; mas a fala é peculiar ao homem. A fala possibilita
ao homem indicar o conveniente e o inconveniente e estabelecer o justo e o
injusto.
Nas palavras do próprio Aristóteles:
A característica específica do homem em comparação com os outros animais
é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e
de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento
que constitui a família e a cidade.11
O homem, pelas qualidades morais que lhe são peculiares, tem a capacidade de se constituir enquanto ser político. O homem é, por natureza, um
animal político, dirá Aristóteles (Zôon politikón). Como animal político apenas a
vida política (bios politikós) expressa a plenitude do ser do homem. A natureza
de qualquer ser revela-se quando o mesmo chegar ao grau final de seu desenvolvimento.
Vaz, Henrique C. L. Antropologia filosófica I. p. 39.
10
Aristóteles. A política. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 15.
11
78
EaD
Filosofia e Ética
Assim a comunidade política não é uma invenção arbitrária ou artificial
que rompe com a natureza humana, mas, ao contrário, é a plenificação do animal
político. A cidade, ou comunidade política, resulta da continuidade natural da
comunidade familiar e do povoado, que são pré-políticos e unicamente com
base nas necessidades diárias. A cidade tem como tarefa não apenas assegurar
a vida de seus membros, mas igualmente lhes proporcionar uma vida melhor.
Uma vida melhor que a cidade possibilita por ser o estágio final da comunidade
humana e enquanto tal ser autossuficiente.
O indivíduo humano, quando tomado isoladamente, não é autossuficiente, ele apenas encontra resposta para sua condição de animal social na pólis,
para a qual naturalmente se sente impulsionado. Enquanto parte, o indivíduo
se completa como um todo na vida social que a comunidade política garante.
A comunidade política, como autossuficiente, tem precedência sobre as partes.
Não existem, na concepção aristotélica de homem, interesses privados colocados
acima dos interesses coletivos. A comunidade e suas finalidades estão acima dos
indivíduos e seus interesses.
Do ponto de vista ético a comunidade política, mais do que qualquer
comunidade, visa ao bem: o bem consiste em ordená-la segundo a justiça. A
justiça é a base da sociedade, e quando aplicada garante a ordem e a felicidade
da comunidade humana. Aristóteles assegura que “A felicidade é o melhor, mais
belo e mais agradável dos bens...”12
Há uma relação direta entre ético e político também em Aristóteles, de
forma que o pensamento grego, distinto do pensamento político moderno,
opera com paradigma próprio.
Ética e política são assim, para Aristóteles, como tinham sido para Sócrates
e Platão, e assim eles se fazem intérpretes de uma das características mais
profundas do homem grego – o campo por excelência onde se manifesta
a finalidade do homem coroada pelo exercício da razão ou definida pela
13
primazia do logos.
HOMEM MEDIEVAL
O período conhecido como Idade Média operou profundas mudanças
em todas as dimensões da vida humana. Tanto a vida econômico-social quanto
a produção e a vivência cultural diferenciam-se essencialmente da sociedade
grega.
Na base do pensar e agir do homem da sociedade medieval situa-se a
doutrina do cristianismo, ou a concepção cristã de mundo; esta ocupa gradativamente todas as dimensões da existência humana.
Aristóteles. Ética e Nicômacos. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2005. p. 27.
12
Vaz, Henrique C. L. Antropologia filosófica I. p. 42.
13
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
No campo da Filosofia Santo Agostinho revela-se a primeira expressão
da nova concepção de mundo do homem. A concepção agostiniana é resultado
da retomada e reinterpretação das ideias de Platão a partir da ótica dos escritos
bíblicos e da teoria da criação. O fundamento da concepção de homem em Santo
Agostinho é a tese de que o homem foi criado por um ser poderoso, mantendo
com este uma relação essencial, fundada na existência paradisíaca. Com Adão,
porém, o homem rompeu a relação com a essência divina. O homem decaiu. A
queda trouxe como uma de suas consequências o obscurecimento do poder original da razão humana. O homem, com a razão obscurecida, não mais encontra,
com as próprias forças, o caminho de retorno à unidade perdida. Apenas a graça
divina pode reconduzir o homem a sua essência primeira. O homem, concebido
como ser depravado, já não é sujeito de seu próprio destino, mas este depende
de uma graça especial da divindade.
O percurso da vida do cristão resume-se na vivência em busca da unidade
original, que só será alcançada após a morte, quando então a alma, já sem o
cárcere do corpo, retorna à essência divina.
Esta concepção mitológica de homem e de mundo interfere diretamente
no valor que se atribui à existência humana. A vida humana perde o valor e o
sentido em si para se converter num meio, que tem sua finalidade fora da vida
real. O homem cristão volta-se ao mito da divindade e vive em função desta
ilusão, crendo alcançar, por meio de uma vida abnegada e servil, a prometida
graça de uma vida eterna, num mundo paradisíaco transcendente.
Como o destino e o fim último da vida humana é o mundo transcendente,
tudo que é terreno e humano é valorizado apenas na medida em que venera seu
“criador” ou se volta à glorificação de Sua obra.
Deus sendo tudo, o homem só pode ser o nada. As atividades humanas
em geral, como o trabalho, a política, a arte, a Filosofia, etc., voltam-se a Deus
e convertem-se em servos da teologia. A Bíblia passa a ser o grande livro da
verdade, diante do qual os filósofos e teólogos cristãos se ajoelham para que o
saber lhes seja revelado.
A inversão operada na concepção de mundo e de homem trouxe como
consequência uma paralisação no progresso humano em geral. O homem e a
sociedade avançam a passos lentos. A Idade Média é conhecida como período
histórico pouco fértil para o desenvolvimento cultural da humanidade. É um
período obscuro e nebuloso, bem distinto da vitalidade e luminosidade da
cultura clássica.
O HOMEM DO RENASCIMENTO
As bases da sociedade cristã-feudal começaram a ser abaladas pelo movimento social global conhecido como Renascimento. O Renascimento (período
histórico que abrange os séculos 14, 15 e 16, principalmente na Itália) é o primeiro
passo de um processo histórico longo e que opera profundas mudanças em
todas as esferas da sociedade.
80
EaD
Filosofia e Ética
O Renascimento, portanto, não se caracteriza apenas como movimento
cultural, artístico-filosófico, como geralmente se pensa; o seu conceito
... significa um processo social total, estendendo-se da esfera social e econômica onde a estrutura básica da sociedade foi afetada até ao domínio da
cultura, envolvendo a vida de todos os dias e as maneiras de pensar, as práticas
morais e os ideais éticos cotidianos, as formas de consciência religiosa, a arte
e a ciência.14
No campo econômico-social o Renascimento pode ser definido como
a aurora do capitalismo, cujos primeiros passos se deram no próprio seio do
mundo feudal. Pela produção econômica os homens buscam alcançar a riqueza
material. As manufaturas aumentam a produção, o comércio se amplia e novas
relações humanas se estabelecem.
As primeiras formas de forças produtivas capitalistas e das relações sociais
burguesas surgiram a partir do desenvolvimento imanente do feudalismo;
à medida que gradualmente corroíam e dissolviam este último, os homens
encontraram-se muito simplesmente numa nova situação, em que eram forçados a atuar, sentir o pensar sobre o mundo e sobre si próprios de maneira
diferente da habitual nas comunidades dadas naturalmente, característica do
sistema dos domínios feudais.15
A maneira de viver do homem renascentista revela uma gradual dissolução
dos laços naturais que ligavam os homens à família, à tradição, à comunidade,
à estrutura social global, que lhes conferiam um lugar predeterminado e fixo na
sociedade. A hierarquia e a estabilidade social aos poucos foram dissolvidas, o
que proporcionou a abertura de espaços novos em que as relações sociais se
tornaram mais fluidas.
Sem uma ligação natural com a comunidade e sem uma existência definida por laços de sangue, tradição ou posição social, o indivíduo encontra o
espaço social dinâmico a partir do qual pode desenvolver suas potencialidades.
O indivíduo passa a escolher seu próprio destino dentro de uma dinâmica social
com possibilidade quase infinita.
O Renascimento cria, portanto, o conceito de homem dinâmico.
O indivíduo passa a ter a sua própria história de desenvolvimento pessoal, tal
como a sociedade adquire também a sua história de desenvolvimento. A identidade contraditória do indivíduo e da sociedade surge em todas as categorias
fundamentais. A relação entre o indivíduo e a situação torna-se fluída.16
Heller, Agnes. O homem do renascimento. São Paulo: Presença, 1982. p. 9.
14
Idem, ibidem. p. 12.
15
Idem, ibidem. p. 9.
16
81
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
No campo da Filosofia há, de um lado, um retorno aos clássicos da cultura
greco-romana, e de outro lado, um retorno do homem a si e a sua realidade social.
O retorno aos clássicos e a sua releitura se fez acompanhar de um espírito crítico
em relação à interpretação que a tradição oficial fizera das mesmas e impusera
às universidades. O retorno do homem a si se fez acompanhar de um gradual
afastamento da concepção cristã de homem. Este renasce como centro de preocupação, como objeto de interesse filosófico, científico, político, artístico, etc.
Este passa a compreender como ser racional que dispõe de todas as condições
para construir seu próprio destino. Ou seja, no lugar do artífice transcendente
que conduz a vida humana, o homem cobra a si mesmo como artífice.
Diante da concepção cristã do homem como ser decaído e degenerado,
o Renascimento coloca a ideia de dignidade do homem. Mirandola escreve um
discurso sobre a dignidade humana no qual considera o homem o espetáculo
mais maravilhoso do universo. O homem, criado pela divindade como “ótimo
artífice”, foi constituído por uma natureza indefinida. Ao homem não foi concedido nenhum lugar em especial, não foi imposta nenhuma tarefa específica,
precisamente para que pudesse obter tudo com base no próprio querer, na
decisão livre.
Dispondo das “sementes de toda a espécie dos germens de toda a vida”17
o homem pode cultivá-las e fazer crescer conforme sua livre decisão. Assim, a
dignidade do homem é tamanha que este se assemelha muito mais à divindade do que à besta, desde que desenvolva a razão filosófica e por meio desta
investigue as causas dos processos da natureza, bem como os fundamentos do
universo e do homem.
O homem do Renascimento toma consciência do seu poder criativo e
autocriativo. Ficino escreve:
Quem pode negar que o homem possui quase o mesmo gênio do criador
dos céus? E quem pode negar que o homem também poderia criar de algum
modo os céus, se pudesse obter os instrumentos e o material celeste, dado
que mesmo hoje ele os cria, embora com um material diferente, mas com uma
ordem bastante semelhante?18
Também Nicolau Maquiavel concebe o homem em sua grandeza e excelência terrena, repleta de potencialidades e capacidade criativa.
Na potencialidade do homem existe tudo, à sua própria maneira. Na humanidade tudo é humano – tal como no universo tudo se desenvolve universalmente. O mundo existe aqui como um mundo humano... Nada impõe limites
à atividade criativa da humanidade, exceto a própria humanidade.19
Maquiavel apud Heller. Idem, ibidem. p. 44.
17
Ficino, apud Heller, idem, ibidem. p. 67-68.
18
Heller, Agnes. O homem do renascimento. São Paulo: Presença, 1982. p. 355.
19
82
EaD
Filosofia e Ética
Giordano Bruno, um dos mais entusiasmados defensores dos novos
tempos e, em especial, da descoberta de Copérnico, não se assusta diante das
dificuldades que o avanço da ciência traz ao homem. Porque o homem é um ser
infinito, é uma ofensa à Causa Infinita pensar o homem como limitado. O homem
tem o poder não apenas de trabalhar de acordo com a ordem normal da natureza, mas inclusive de ultrapassar as leis naturais criando uma nova natureza. A
propensão das capacidades intelectuais cria dificuldades e necessidades sociais,
mas estas igualmente estimulam a mente humana.
Os homens inventaram os ramos da indústria e descobriram as artes, até que
hoje, sob o aguilhão da necessidade, invenções cada vez mais prodigiosas
saem dia-a-dia da profundidade da mente humana ... Não nos admiremos
com as injustiças e iniquidades que cresceram lado a lado com as aspirações
do homem ao bem...20
O novo discurso da grandeza e da dignidade do homem típico da Filosofia
humanista do Renascimento entra em conflito com a tradição escolástica, como
mostra a seguinte polêmica entre Manetti e o Papa Inocêncio III.
Inocêncio III em seu livro Da Miséria da Vida Humana assim se dirige ao
humanista Manetti:
Tu, homem, andas pesquisando ervas e árvores; estas produzem flores, folhas
e frutos, e tu produzes lêndeas, piolhos e vermes; daquelas brotam azeite,
vinho e bálsamo; do teu corpo, catarro, urina e excremento”.
Manetti, por sua vez, responde da seguinte forma a Inocêncio III.
Os frutos do homem não são constituídos por essas matérias sujas, mas pelas
obras de sua inteligência e de sua criação criadora, para as quais ele nasceu
como integrador e aperfeiçoador da natureza, através de suas artes e inventos. Nossas, quer dizer, humanas, são todas as casas, os castelos, as cidades,
os edifícios da terra. Nossas, as pinturas, as esculturas, a sabedoria. Nossos,
finalmente, os mecanismos admiráveis e quase incríveis que a energia, o
esforço e o engenho humano (dir-se-ia, antes, divino) conseguiram produzir
e construir por sua singular e extraordinária indústria.21
A exaltação da grandeza humana certamente foi um dos traços mais significativos da cultura renascentista em ruptura com a concepção cristã medieval
de homem.
O mesmo movimento cultural que louva a grandeza humana, no entanto,
descobre com Copérnico a insignificância do homem diante do universo. Com
a descoberta do heliocentrismo a Terra deixa de ser pensada como centro fixo
do mundo, rodeado pelo céu coberto de luzes celestes.
Descartes e sua concepção de homem. p. 17.
20
Idem, ibidem. p. 17-18.
21
83
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
A consciência da pequenez humana diante da amplitude do cosmos pode
ser identificada na seguinte citação de Montaigne:
Quem o autoriza a pensar que o movimento admirável da abóbada celeste, a
luz eterna dessas tochas girando majestosamente sobre suas cabeças, as flutuações comoventes do mar de horizontes infinitos, foram criados e continuam
a existir unicamente para sua comodidade e serviço? Será possível imaginar
algo mais ridículo do que essa miserável criatura, que nem sequer é dona de
si mesma, que está exposta a todos os desastres e se proclama senhora do
universo? Se não lhe pode conhecer ao menos uma pequena parcela, como
há de dirigir o todo?22
Cabe ainda ressaltar que o Renascimento como “aurora do capitalismo”,
mereceu igualmente críticas de ordem econômico-social.
Os novos tempos gestaram novas relações na esfera coletiva e social, repleta de contradições. A propriedade privada começou a se afirmar e a dinamizar
a vida humana. A acumulação de capital e a exploração do trabalho revelam
uma nova realidade que causa profunda impressão nos cérebros mais sensíveis
à problemática humana.
É o caso de Thomas Morus, que com sua Utopia perspectiva um ideal
de sociedade plenamente harmonizada. Na Utopia Morus tece críticas duras à
realidade da sociedade inglesa da época e aponta um modelo social perfeito em
que todas as carências humanas possam ser satisfeitas.
Na Utopia de Morus a perspectiva humana máxima é a liberdade; esta
é resultado de uma vida produtiva limitada a seis horas de trabalho diário e
conforme a inclinação pessoal, em consonância com um vasto tempo dedicado
ao descanso.
Da mesma forma Campanella responde à problemática do homem da
época. Após articular e organizar uma sublevação com o propósito de libertar
a Itália do domínio espanhol, Campanella é encarcerado e na prisão escreve a
Cidade do Sol. Trata-se de uma sociedade ideal, fundada na prosperidade e na
unidade do gênero humano. Na cidade ideal de Campanella a propriedade privada é eliminada e submetida à utilidade coletiva. Os homens trabalham quatro
horas diárias e depois se dedicam à arte e às Ciências buscando aplicá-las a todas
as finalidades, ou seja, em Campanella há uma preocupação em promover o
desenvolvimento global do homem, num momento histórico em que a fragmentação começa a se impor.
DESCARTES
As reflexões sobre o homem moderno e sua nova realidade encontram no
próprio fundador da Filosofia moderna seus primeiros traços básicos.
Montaigne. Ensaios. Livro II. Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2005. p. 182.
22
84
EaD
Filosofia e Ética
Descartes é conhecido como o fundador do racionalismo, movimento
filosófico que aposta na razão humana. A razão confere grandeza e dignidade
ao homem. O homem é senhor e possuidor da natureza, pode conhecê-la e
transformá-la. É a subjetividade, o eu que determina o outro-de-si, faz dele
objeto seu.
Segundo Lima Vaz, a concepção racionalista de homem se sustenta em
duas linhas básicas:
a) a subjetividade do espírito como res-cogitans e a consciência-de-si;
b) a exterioridade (concebida mecanisticamente) do corpo com relação ao
espírito.23
O espírito separa-se do corpo precisamente para melhor conhecer e
se apropriar do mundo. O corpo humano está integrado como res-extensa ao
universo máquina. O corpo assemelha-se a uma máquina, em que as funções
seguem as disposições dos órgãos como o faz o relógio ou qualquer autômato.
A máquina corpo encontra o princípio de seu movimento no próprio sangue e
nos “... espíritos agitados pelo calor do fogo que queima continuamente em seu
coração...”24
O corpo humano, na concepção cartesiana, assemelha-se a um modelo
técnico caracterizado externamente pela cor e pela configuração dos membros
e internamente pelas peças que são necessárias para pô-lo em movimento,
fazê-lo alimentar-se e respirar. Assim como a máquina é autônoma e se move a
si mesma, também o corpo o é. O corpo é perfeitamente explicável a partir do
paradigma do físico.
O corpo humano é integrado no conjunto dos artefatos e das máquinas e só
a presença do espírito, manifestando-se sobretudo na linguagem, separa o
homem do animal máquina.25
O espírito, res-cogitans, é explicado a partir de uma concepção metafísica,
sustentado pelo método que propõe regras para a direção do espírito. O espírito
manifesta sua existência na evidência do cogito. O cogito inaugura uma nova
relação do espírito com o mundo. O homem é senhor e possuidor da natureza.
A razão interpreta-se agora como capacidade do homem, que assim se torna
sujeito, de impor-se ao mundo e manipulá-lo.26
O pensar enquanto fundador do sujeito, todavia, é produto da dúvida.
A dúvida cartesiana quer evitar precipitações e se precaver dos enganos. Os
sentidos podem enganar. As razões dos outros muitas vezes enganam. Tudo é
duvidoso. Em meio a dúvida geral surge a primeira certeza: quem duvida está
pensando e quem pensa existe.
Vaz, Henrique C. L. Antropologia filosófica I. p. 82.
23
Marques, Jordino. Descartes e sua concepção de homem. p. 45.
24
Vaz, Henrique C. L. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1993. p. 84.
25
Oliveira, Manfredo A. Ética e sociabilidade. p. 130.
26
85
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Eu penso, eu existo é a proposição primeira e mais certa que se apresenta
àquele que conduz por ordem seus pensamentos.27
Assim, pela certeza do cogito ergo sum Descartes afirma o homem como
sujeito, como artífice de sua própria história. A realidade humana se afirma enquanto subjetividade criadora do ser.
HOBBES
Thomas Hobbes, filósofo empirista inglês e contemporâneo da Revolução Burguesa na Inglaterra instaura um novo paradigma de natureza humana,
completamente oposta à concepção aristotélica do homem.
Para Hobbes o homem é mau por natureza. “O homem é o lobo do homem: que por natureza se encontra em estado de guerra onde a luta é de todos
contra todos”.
O paradigma hobbesiano de homem nega a socialidade enquanto traço
natural do homem. O homem é movido pelo egoísmo que consiste em um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder que só termina com a morte.
O ponto de partida da concepção de homem em Hobbes é a igualdade. A
igualdade se dá pelo desejo de lutar pela conservação da própria vida e causar
um ao outro o maior dano possível, que é a morte. Os homens com forças e capacidades iguais lutam pela preservação da própria vida e o fazem numa relação
de confronto, que resulta na guerra e destruição do outro. A vida humana tornase embrutecida, solitária e curta; o estado de natureza encontra-se ameaçado,
colocando em risco a sobrevivência da espécie humana.
Diante da ameaça da destruição, o instinto de conservação apóia-se na
razão humana, que por sua vez pode levar à paz. A paz resulta da instauração
de um contrato, que consiste numa transferência mútua de direitos, firmados
pelo pacto de cumprir as cláusulas do contrato. O pacto introduz, portanto, o
homem numa ordem moral, que se funda na máxima de que ninguém faça aos
outros o que não gostaria que não lhe fizessem.
O pacto social que Hobbes propõe não é, portanto, produto de uma
sociabilidade natural dos homens; o pacto da convivência pacífica é muito mais
uma resposta da razão para garantir a sobrevivência e conservação da espécie
humana.
Apenas a ameaça à conservação da vida leva o homem a fundar a sociedade. Logo, a socialidade não é consequência natural do dever do ser humano, mas
sim uma instituição artificial que se impõe ao homem como medida necessária
à convivência.
Descartes apud Marques. Descartes e sua concepção de homem. São Paulo: Loyola, 1993. p. 76.
27
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Filosofia e Ética
Os críticos de Hobbes em geral entendem sua concepção de homem
como expressão do nascente indivíduo burguês, o tipo de homem que goza de
plena autonomia e liberdade na esfera civil.
O indivíduo burguês – o novo rico em confronto com outros ricos – começa
a construir sua propriedade com o desenvolvimento da indústria e do comércio
e vem conquistando seu espaço no mercado. A sociedade civil na qual se desenvolvem as relações econômicas e sociais, em que a competição é a alma que
anima, é concebida por Hobbes como a “guerra de todos contra todos”.
O pacto social que Hobbes perspectiva no Leviatã não torna os homens
sociáveis, mas apenas os articula com base num poder maior, forte o suficiente
para garantir a conservação da espécie humana.
ROUSSEAU
Embora partindo de ideias do homem em estado de natureza, Rousseau
não partilha da tese de que a natureza humana é má ou egoísta. Os homens não
são inimigos por natureza, mas são naturalmente bondosos. Na base do conflito
humano, quando este acontece, situa-se a propriedade privada; esta é a fonte
geradora de atritos entre os homens.
Se há um estado de guerra, este é produto da relação entre as coisas e
não entre os homens.
Como em estado de natureza não há propriedade privada, a guerra originada pela propriedade também não reflete o estado de natureza. Rousseau define
a guerra como uma relação de Estado a Estado, na qual os homens particulares
tornam-se inimigos apenas por acidente. Com essa ideia Rousseau se contrapõe
às concepções que defendem de alguma forma o direito à escravidão. Em nenhum
momento o escravo pode ser produto da guerra, porque esta não é uma relação de
homem a homem. A guerra não concede nenhum direito que não seja necessário
a seus fins, e os fins nunca são particulares; logo, para os particulares nenhuma
consequência pode resultar após o fim da guerra da qual participam.
Em Rousseau o homem é definido como livre e igual por natureza. Renunciar à liberdade equivale a renunciar à própria condição de homem. O princípio
da liberdade é inalineável; a norma o imperativo da ação.
O homem que Rousseau define como livre e igual por natureza, porém,
revela-se numa existência bastante distante da natural. “O homem nasce livre e
por toda parte encontra-se a ferros”.28
Se Rousseau confessa ignorar a origem da mudança que trouxe a desigualdade, confessa igualmente que tem meios para resolver o problema. A questão
a que Rousseau se propõe é exatamente estabelecer os princípios a partir dos
quais o homem possa sair do estado natural, que é sem restrição, para o estado
civil, fundado no pacto contratual, sem perder a liberdade que lhé é inata.
Rousseau. Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 22.
28
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EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
No capítulo VI do livro I do Contrato Social Rousseau parte da suposição
de que a conservação humana corre risco:
Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos
prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua
resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir e o gênero humano,
se não mudasse de modo de vida, pereceria.29
A saída para a sobrevivência humana passa a ser perspectivada a partir da
agregação de forças individuais que operam em harmonia sem destruir a liberdade individual, mas ao contrário, transformando-a de natural para convencional.
O contrato consiste precisamente em
encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens
de cada associado com toda a força comum e pela qual cada um, unindo-se
a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre
quanto antes.30
As possíveis desigualdades e injustiças dos cidadãos são evitadas pela
alienação dos associados de seus direitos em benefício de toda comunidade.
Logo, o cidadão obedece à vontade geral e não aos interesses de algum grupo
particular.
Ao conceber o homem como ser de natureza livre e igualitária, Rousseau
se contrapõe diretamente às concepções tradicionais da sociedade feudal que
partia da ideia de uma natureza humana diferenciada hierarquicamente e a fazia
valer em todas as esferas da sociedade.
A concepção de homem livre e igual por natureza desenvolvida no campo
filosófico somava-se aos anseios das novas forças sociais em ascensão, na nascente sociedade industrial e naqueles que se sentiam discriminados na velha
sociedade. Todos os excluídos do mundo feudal – fundado na compartimentação
humana – encontravam nos ideais da liberdade e da igualdade humana uma
força espiritual para levar a termo seu projeto de sociedade.
Apenas a aceitação da ideia de liberdade e igualdade como naturais ao
homem podia legitimar a livre produção e circulação de mercadorias e a liberdade
e igualdade de organização e participação política.
Rousseau torna-se certamente um precursor e ideólogo fundamental da
nova época; época em que a sociedade moderna vem se afirmando e rompe com
a sociedade feudal; época que encontra na Revolução Francesa sua expressão
máxima.
Idem, ibidem. p. 31.
29
Idem, ibidem. p. 32.
30
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MARX
O princípio a partir do qual Marx explicita o ser e o devir do homem é
a processualidade do ser natural. O homem é um ser natural, isto é, pertence à
natureza. Enquanto ser natural está dotado de forças e necessidades naturais e
as realiza na sua relação com a natureza.
O homem, contudo, não é apenas um ser natural biológico; ele é natural
e humano. A dimensão humana surge e se explicita a partir do intercâmbio
entre o homem e a natureza. A relação entre o homem e a natureza é mediada
pela atividade vital consciente, que é o trabalho. O salto de qualidade de um
mero ser natural para um ser natural humano se dá, portanto, pelo surgimento
da atividade subjetiva, o que possibilita ao homem agir com prévia – ideação.
Pelo trabalho o homem transforma o ser da natureza, isto é, dá forma humana
a objetos naturais.
A atividade animal é instintiva porque o animal é determinado geneticamente; o homem age com projetos que ele constrói primeiro no plano mental
e depois efetiva na prática. Isto significa que o homem antecipa na mente os
resultados a serem alcançados pelo seu agir prático.
Pela atividade vital consciente o homem não apenas transforma o mundo objetivo, mas igualmente transforma seu próprio ser, sua subjetividade. O
trabalho, neste sentido, processa uma dupla transformação: o mundo natural é
transformado em mundo humano, isto é, os objetos e seres naturais adquirem
qualidade distinta do seu mero ser natural na medida em que são transformados em valores de uso. A natureza é humanizada pelo trabalho. Por outro lado,
o homem transforma a si mesmo, o seu ser biológico, o seu próprio mundo é
autotransformado. O homem continuamente reordena a sua forma de pensar,
sentir e agir, ou seja, o totalidade do homem está em contínuo processo de
transformação. Pelo processo de autoconstrução o homem instaura seu próprio
mundo, cria uma espécie de “segunda natureza”, enquanto o mundo no qual o
animal vive não se distingue da natureza.
O homem só consegue explicitar os seus poderes específicos pela ação
coletiva dos homens. A atividade humana é exercida socialmente. O homem é
um ser social. Não é uma suposição artificial que o homem estabeleça relações
sociais ao produzir sua própria vida. A produção e o intercâmbio humano exigem
a cooperação social. Quanto mais o homem se desenvolve, mais complexifica
suas relações com os outros homens. É na relação com os seres do mesmo
gênero que o homem alcança sua verdadeira humanidade. O homem é um ser
próprio. Isto significa que o pensar e o agir do homem não são atos isolados, mas
são antes manifestações individuais dentro de uma realidade social construída
historicamente.
O desenvolvimento do ser humano revela que nem a natureza objetiva
e nem a natureza subjetiva se apresentam imediatamente ao homem de forma
adequada. Toda a história humana é um processo movido por coerência. O homem, ao satisfazer suas necessidades físicas e mentais, cria novas necessidades.
89
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Ele nunca supera suas necessidades biológicas, como comer, beber, procriar,
etc., mas as humaniza, isto é, as satisfaz não de forma apenas instintiva, mas
socialmente.
Não apenas o ser biológico do homem se humaniza, mas o seu verdadeiro ser se explicita pela produção e reprodução social, em que o novo é o
traço diferenciador. O animal permanece preso às necessidades biológicas e
estas lhe bastam. A caracterização básica da reprodução do mundo animal é a
permanência do mesmo, ao passo que a reprodução humana é um constante
empreendimento do novo.
Se o homem é resultado de sua própria atividade e se esta se exerce tanto
sobre o mundo externo quanto sobre a natureza subjetiva, como perspectivar
a liberdade humana?
A liberdade é uma das questões centrais da reflexão filosófica marxiana,
voltada à problemática humana. A liberdade dependeria da ampliação do conhecimento e da transformação da natureza pelo homem? É possível perspectivar
a liberdade para os indivíduos humanos aos quais não está garantido o atendimento das necessidades básicas?
Quanto menor o desenvolvimento da sociedade humana, mais as leis dos
poderes naturais podem interferir e até se impor à vida. O desenvolvimento do
ser humano se dá precisamente na direção da superação das “barreiras naturais”.
O homem, ao aumentar seu saber, amplia a capacidade de transformar e humanizar a natureza. O processo de transformação e humanização da natureza pelo
homem parece ser um dos caminhos pelo qual ele alcança a maioridade, isto é,
põe-se como sujeito do devir.
A realidade social, no entanto, demonstra que o mundo construído pela
atividade humana revela contradições profundas que se chocam com a grandeza
e capacidade transformadora do homem. As contradições na sociedade do capital afetam profundamente a existência humana, colocando classes inteiras de
homens na mais completa miséria econômica e cultural. Nós, a seguir, destacaremos algumas contradições que desumanizam o homem em meio ao processo
humanizador. Trata-se das várias formas de alienação humana.
Uma primeira característica da alienação humana na sociedade capitalista
consiste no fato de tanto os meios de produção quanto os meios de subsistência
se encontrarem privatizados. A maioria dos homens carentes de propriedade
precisam vender sua força de trabalho para realizar a produção e assim obter
os meios de vida. Isto significa que na sociedade capitalista a força de trabalho
converte-se em mercadoria.
O capitalista, que detém os meios de produção e os meios de subsistência,
isto é, as condições objetivas do trabalho, compra no mercado a força de trabalho
viva para realizar a produção. O produto do trabalho pertence ao capitalista, que
o converte em capital. Do outro lado da sociedade o homem que vendeu sua
força de trabalho pelos meios de subsistência se reproduz enquanto tal.
90
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Filosofia e Ética
A relação capitalista da produção, que aparentemente parece livre, não
passa de uma relação servil. Uma relação servil em que o trabalho está subordinado ao capital e o sujeito humano aos objetos por ele produzidos. O domínio
do capital sobre o trabalho converte o produtor real em meio de produção de
riqueza e esta não lhe pertence, mas lhe aparece como riqueza estranha. Quanto
mais o trabalhador produz, mais objetos contrapõem-se a ele com poder hostil,
os quais não lhe pertencem, mas o subordinam.
Uma segunda característica da alienação na sociedade capitalista está
ligada à própria atividade produtiva do homem. Como a riqueza resultante da
atividade produtiva não pertence ao trabalhador, mas se contrapõe a ele como
riqueza estranha e que o domina, a própria atividade vital do homem surge
como uma atividade estranha. O estranhamento também resulta do fato de não
ser o homem que emprega os meios de produção, mas os meios de produção
empregarem o homem. Isto significa que as condições objetivas do trabalho
dominam a atividade subjetiva. Quando o trabalhador chega à fábrica, defrontase com os meios de produção como uma força estranha que dele independe e
que o domina. Um meio pelo qual a atividade vital do homem se converte em
atividade estranha é a própria divisão do trabalho. Pela divisão do trabalho a atividade humana transforma-se em atividade maquinal, unilateral; uma atividade
separada do pensamento e idêntica ao agir animal. Esta atividade maquinal não
oferece satisfação ao trabalhador, mas, ao contrário, o trabalho lhe aparece como
atividade estranha, que não o realiza, mas que o nega, desgasta suas energias
físicas e mentais. O trabalhador que vende sua força de trabalho por um salário
não se afirma no trabalho, não desenvolve livremente suas energias físicas e
mentais, mas as esgota. O trabalhador se sente em si, livre, fora do trabalho, e
quando trabalha sente-se estranho, fora de si.
A seguir descreveremos, de forma abreviada, algumas características
da problemática do dinheiro na sociedade em que a produção de mercadorias
torna-se a forma predominante da produção. Marx, nos Manuscritos EconômicoFilosóficos submete a uma crítica profunda o poder de alienação do dinheiro.
Na sociedade burguesa a produção social é regulada mediante a troca
dos produtos do trabalho com base na lei do valor, isto é, segundo o tempo
socialmente necessário à produção da mercadoria. O produto do trabalho, portanto, converte-a em mercadoria e uma determinada mercadoria converte-se
em dinheiro que nesta qualidade possui o poder de mediar todas as trocas.
Assim, não são os seres humanos que regulam diretamente a produção,
mas esta é regulada por uma coisa material, pelo dinheiro. Pelas características
que a produção e a troca adquirem na sociedade capitalista, o dinheiro torna-se a
atividade mediadora, o movimento mediador pelo qual os produtos dos homens
se completam. Nas palavras de Marx:
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O dinheiro, enquanto possui a propriedade de comprar tudo, enquanto possui
a propriedade de comprar todos os objetos, é, pois, o objeto por excelência.
A universalidade de sua qualidade é a onipotência de sua essência, ele vale,
pois, como ser onipotente (...). O dinheiro é o proxeneta entre a necessidade
e o objeto, entre a vida e os meios do homem.31
O dinheiro é a forma efetiva e universal pela qual as relações sociais se
estabelecem na sociedade burguesa. Entre o indivíduo e a sociedade, entre a necessidade e o objeto coloca-se o poder do dinheiro. O dinheiro, segundo Marx, é o
laço de todos os laços, o verdadeiro meio de união e separação da sociedade.
Na sociedade burguesa o dinheiro transforma-se no ser todo poderoso.
Como o dinheiro é a forma universal da existência da riqueza é também o modo
geral pelo qual existem as potencialidades humanas. Desta forma, as qualidades
do próprio homem encontram-se alienadas no dinheiro. O poder do dinheiro
transfere-se ao seu possuidor.32
O estranhamento social pelo dinheiro reside, portanto, no fato de o homem estar subordinado ao poder da coisa. O objeto domina o homem e regula
seu ser. O homem torna-se escravo do objeto, da coisa, porque quanto menos a
possui mais dela necessita e isto porque no mundo do capital o dinheiro possui
qualidades universais.
Aquilo que mediante o dinheiro é para mim, o que posso pagar, isto é,
o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro.
Minha força é tão grande quanto a força do dinheiro. As qualidades do dinheiro
– qualidades e forças essenciais – são minhas, de seu possuidor. O que eu sou
e o que eu posso não são determinados de modo algum por minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar a mais bela mulher. Assim sendo, não sou
feio, pois o efeito da feiúra, sua força afugentadora, é aniquilado pelo dinheiro.
Segundo minha individualidade sou inválido, mas o dinheiro me proporciona 24
pés, portanto não sou inválido; sou um homem mau, sem honra, sem caráter e
sem espírito, mas o dinheiro é honrado e, portanto, também o seu possuidor. O
dinheiro é o bem supremo, logo, é bom o seu possuidor; o dinheiro poupa-me
além disso o trabalho de ser desonesto, logo, presume-se que sou honesto; sou
estúpido, mas o dinheiro é o espírito real de todas as coisas, como poderia seu
possuidor ser um estúpido? Além disso, seu possuidor pode comprar as pessoas
inteligentes e quem tem o poder sobre os inteligentes não é mais inteligente
do que o inteligente? Eu, que mediante o dinheiro posso tudo o que o coração
humano aspira, não possuo todas as capacidades humanas? Não transforma meu
dinheiro, então, todas as minhas incapacidades em seu contrário?
Marx. Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2005. p. 29.
31
Idem, ibidem. p. 30.
32
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EaD
Filosofia e Ética
Se tenho vocação para estudar, mas não tenho dinheiro para isso, não
tenho nenhuma vocação (isto é, nenhuma vocação efetiva, verdadeira) para
estudar. Ao contrário, se realmente não tenho vocação alguma para estudar, mas
tenho a vontade e o dinheiro, tenho para isso uma vocação efetiva.
Seção 3.3
Ética a Partir dos Paradigmas
Luis Alles
33
Podemos afirmar que no mundo da
Filosofia, de um modo geral, a ética é
vista como o conjunto de ideias que
orientam a humanidade na busca de
uma convivência satisfatória. Todos
os seres humanos desejam encontrar
um modo de vida que lhes satisfaça o
anseio natural de estar de bem com
os semelhantes. Todos, em princípio,
querem viver uma vida boa.
33
Nesta perspectiva, a ética passa a ser entendida como um conjunto de
normas e princípios a partir dos quais os homens procuram distinguir o bem do
mal, o certo do errado, o justo do injusto, para melhor poderem conviver em sociedade. Nesses termos, a ética regulamenta as ações do convívio humano. Pode-se,
contudo, também destacar que a ética é o conjunto de conhecimentos e teorias,
expressos em princípios e normas, de que se serve a vontade humana para bem
conduzir as suas ações. Essas ações voltam-se para a sobrevivência e a realização
do ser humano como ser complexo dotado de razão, sentimentos e emoções.
Assim, a ética visa a tornar a vida relacional possível e quer ajudar as pessoas na
sua realização. A ética passa a ser a mediação necessária para que a humanidade
possa aproximar-se da utopia sonhada em termos de convivência.
a) Distinção entre deontologia, moral e ética: deontologia vem do grego déontos, “dever” e lógos, “discurso”. É um tratado, um conjunto de deveres, princípios
e normas adotados por um determinado grupo profissional. Já a palavra moral
O grito – Edvard Munch. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições
Multimídia.
33
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EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
tem sua origem no latim. Ela provém dos termos mos ou mores que significam
os usos e costumes de um povo. Também podem significar um conjunto de
regras adquiridas pelo hábito. Já a palavra ética tem a sua origem na palavra
grega ethos e significa o modo de ser, caráter adquirido. Os três termos, em sua
origem etimológica, expressam uma forma de comportamento adquirido. Daí
porque muitas vezes não se faz distinção entre moral e ética. Nesse nosso texto
seguiremos essa compreensão, no entanto é bom termos presente também
a distinção que muitos pensadores fazem e que está bastante presente em
nosso meio. Para estes, a moral é o conjunto de normas que regulamentam as
ações no convívio social. É a prática consagrada pelo costume, pelo hábito. É a
cultura vigente que norteia e delimita as ações. Age moralmente quem segue
os princípios estabelecidos tacitamente. A ética, por sua vez, é a reflexão dessa
prática moral. É a discussão, o debate em torno das práticas consagradas pelo
costume ou que estão sendo instituídas como formas corretas de vida moral.
Sob esta ótica, a ética passa a ser um estudo metódico em torno de um objeto
específico. A ética será, então, uma ciência cujo objeto é a moral. É a ciência
que estuda e analisa o comportamento habitual do modo de vida do dia a
dia das pessoas. Nesse sentido, a ética não é normativa como a moral, mas
apenas discute o sentido de determinada prática moral. Esta discussão pode
resultar numa interferência nas normas morais na medida em que a reflexão
evidencia a necessidade de uma mudança do comportamento vigente. Para
que tal mudança aconteça é preciso que as pessoas passem, gradualmente, a
assumir um novo comportamento.
b) Quando nasceu a ética? A ética nasceu no momento em que duas ou mais
pessoas decidiram viver em grupo. No momento em que o homem tomou esta
decisão percebeu imediatamente que a vida grupal só seria viável mediante
uma regulamentação dos comportamentos e das ações. A vida solitária é sempre sem ética, mas como o homem é praticamente impensável fora de uma
sociedade, a ética tornou-se imprescindível. Assim, a ética surge nas sociedades
mais primitivas, antecedendo as normas jurídicas. Estas apenas aparecem com
o nascimento da sociedade civil, quando a moral tornara-se insuficiente para
garantir a boa convivência.
c) Qual é a base da ética? A partir da própria definição terminológica pode-se
afirmar que a base da ética é sempre a cultura, o hábito, o modus vivendi de
um grupo. Esse modus vivendi começa de uma forma bem simples, com poucas
orientações e restrições. Na medida em que a vida de um grupo ou um povo
vai-se prolongando, também a complexidade vai aumentando, exigindo cada
vez mais princípios que possam salvaguardar a dignidade humana e a felicidade de viver. O modus vivendi vai sendo construído a partir da visão de mundo
e de homem que o grupo ou o povo vai constituindo. Esta visão de mundo
(cosmovisão), somada à visão de homem, é que irá formar uma visão ampla
de toda realidade que chamaremos de paradigma. O paradigma é construído
lentamente pela História da humanidade. É um modelo de compreensão do
mundo das coisas e da vida e servirá de fundamento para nortear as ações
94
EaD
Filosofia e Ética
humanas. Assim, a partir de cada paradigma vai-se constituindo uma ética.
Isso significa que a ética é, propriamente, o resultado da cosmovisão e da
visão de homem.
Quando lançamos um olhar sobre a História da humanidade percebemos que, inicialmente, a cosmovisão é fortemente influenciada pela fantasia e
pelo temor do homem diante das “forças divinas” ou “cósmicas”. A ética é, assim,
o resultado das exigências atribuídas aos seres ou forças invisíveis que, de certa
forma, nos controlam. Aos poucos essa visão vai-se modificando e o homem,
de simples criatura subserviente, vai-se tornando senhor do seu destino. Daí
em diante o homem passa a ser senhor do mundo e das próprias ações. A ética,
resultante dessa visão, caracterizar-se-á pela busca da satisfação das vontades
individuais que, na maioria das vezes, estão voltadas apenas para os interesses
próprios de cada homem. É o início da modernidade que vai produzir reflexos
negativos que hoje amargamos e que, pela reflexão e discussão, procuramos
superar.
d) Quais são os grandes paradigmas? Até aqui temos defendido a hipótese de
que a ética resulta da visão de mundo e de homem que a humanidade constrói.
Se a nossa hipótese estiver correta perguntamo-nos: Quais são os grandes
paradigmas que a humanidade produziu e que sustentaram historicamente a
ética? Entendemos que podemos dividir a História da humanidade em quatro
grandes paradigmas, com o quarto deles ainda em fase de estruturação, visto
que a nossa época é de crise. A crise que hoje vivenciamos configura-se nos
seguintes termos: já sabemos que o que está aí, não queremos. De certa forma
também já sabemos o que queremos. Não sabemos, porém, qual é o ideal
de homem e de ética que devemos perseguir para que possamos superar o
que consideramos negativo no atual modelo. Os paradigmas, historicamente
consagrados, são os seguintes: o mitológico, o da objetividade e o da subjetividade. O paradigma da intersubjetividade nos parece ser o que está em
construção. Esses paradigmas são os grandes pilares que serviram e servem
de fundamento da ética. Na nossa análise iremos caracterizar cada paradigma
pela sua cosmovisão e visão antropológica. Depois procuraremos entender a
ética que decorre de cada paradigma. Em seguida apontaremos para alguns
elementos responsáveis pela crise de cada paradigma e a consequente necessidade de gestar um novo modelo.
3.3.1 – A História da Ética a Partir dos Paradigmas
a) 1º Paradigma: Mitológico
Período que antecede a Filosofia.
Cosmovisão: A concepção mitológica é a que forma o primeiro paradigma
do qual temos conhecimento. É o período dos povos mais antigos até o século
7º a.C. Segundo essa concepção, a Terra é o centro de tudo. O mundo todo, que
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
gira em torno da Terra, está prenhe de deuses, de espíritos que controlam o universo todo. Tudo está animado e é determinado por estes seres sobrenaturais. O
universo parece muito pequeno. Ele se reduz ao Sol, à Lua, algumas estrelas e à
Terra, que é central e é a porção maior. Para além desses elementos há somente
os deuses (ou espíritos) responsáveis por tudo o que acontece. Nesse sentido,
o Universo comandado por esses seres é muito terrível. Parece que a natureza,
como um todo, por meio de suas forças, conspira contra o homem. São os animais,
com as suas especialidades de defesa e ataque que atemorizam os homens. São
os fenômenos naturais como as tempestades, vulcões ou terremotos que levam
o homem a concluir sobre sua pequenez e fragilidade.
Antropologia: O homem está profundamente imerso nesse universo e é
apenas uma peça a mais no conjunto das coisas que existem. O homem não se reconhece como um ser importante, um ser que fosse superior aos demais animais.
Pelo contrário, quase sempre o homem se julgou um ser inferior, merecedor de
comiseração. Na sua vida miserável, o melhor a fazer era entregar-se ao destino
incontrolável. Afinal, o homem era apenas um reflexo da vontade e da ação dos
deuses. Se os deuses brigavam, os homens também entravam em guerra. Se
os deuses faziam a paz, os homens faziam o mesmo. Se os deuses quisessem
eliminar alguém ou alguns, realizavam seu intento por meio de raios ou outras
forças cósmicas. Com base nessa concepção o homem sentia-se profundamente
dominado pelas forças dos deuses ou espíritos, sobre os quais não tinha poder.
O máximo que o homem podia fazer era implorar pela benevolência dos deuses
ou espíritos, o que fazia por meio de ritos e orações.
Ética: O ideal ético que brota desse paradigma é de que o homem deve
viver conforme os limites impostos pelos deuses. Como tudo já está predestinado,
a melhor maneira de o homem viver neste mundo está na resignação diante do
que lhe fora reservado. É salutar ao homem não se revoltar contra o que o destino
já lhe traçou. A submissão à vontade dos deuses é que se recomenda. Para saber
da vontade dos deuses os povos criaram as suas lendas, os seus mitos. Nesse
período predomina a emoção, o sentimento colado intimamente à atividade do
dia a dia. O homem não toma distância das coisas ou de sua realidade. Sente-se
como que um prolongamento da natureza, que nem sempre lhe é favorável.
Crise: O homem é um eterno insaciável. Por isso, aos poucos e naturalmente
o mito, que era a fonte de explicação de tudo e de acomodação do homem diante
das incertezas, num dado momento vai-se esgotando. O homem não mais se
satisfazia com o que o mito significava e representava para ele. Nascia assim, aos
poucos, uma nova visão de mundo e das coisas, que teria por base não mais o
sentimento e a emoção, mas a razão.
b) 2º Paradigma: da Objetividade
Vai do início da Filosofia até a época moderna. É também chamado de
período da Razão Clássica.
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Filosofia e Ética
Cosmovisão: O mundo, aos poucos, “tornava-se” mais ameno. O homem
já não se sentia mais um refém dos espíritos que estariam animando o universo.
Agora o universo passou a ser visto como algo que é comandado pela Razão Universal, que escapa aos nossos olhos. É uma Razão que comanda tudo e somente é
compreensível aos olhos da inteligência. Na Idade Média esta Razão é substituída
pelo Deus único do povo hebreu, encarnado na pessoa de Jesus Cristo.
O universo, nesse segundo paradigma, já não é mais tão assustador quanto
no paradigma anterior, no entanto permaneceu ainda o geocentrismo. Quanto
aos deuses, estes deram lugar à Razão Universal ou ao Deus único dos cristãos.
Este universo, porém, na sua aparência, não é confiável. O verdadeiro mundo não
podia resumir-se àquilo que os nossos sentidos atestavam. O mundo, pela sua
pluralidade e mutabilidade, parecia muito caótico. Por isso, entendia-se que, para
além desse mundo, deveria existir um outro mundo constituído por uma ordem
OBJETIVA, perfeita, eterna e imutável. Este outro mundo seria o verdadeiro e devia
ser buscado pelos homens mediante o uso da inteligência racional, ou então pela
fé, como se propunha na Idade Média. Essa ordem objetiva, portanto, eterna e
perfeita, características fundamentais da verdade, não dependia dos homens,
mas, os homens poderiam alcançar este mundo mediante o conhecimento que
resultava do esforço intelectual ou da vivência da fé.
Antropologia: Nesse novo paradigma o homem é visto como um ser livre,
mas apenas em parte. No fim de tudo, predomina o destino, por maior que seja
o esforço do homem. O homem, contudo, não mais se sujeita às explicações
oriundas dos mitos, no entanto continua sujeito ao Logos (Razão Universal) ou
à Providência Divina.
O que é que distingue o período medieval em relação à época antiga?
Na época antiga tudo se ordena, em último caso, à razão objetiva. A liberdade
humana necessariamente desemboca no destino. Na época medieval esse Logos
universal é substituído por Deus. Ali não se fala mais em destino, mas tudo acaba
na Providência Divina.
Como surge esse novo paradigma da objetividade? O mito chega a
um momento de saturação. A explicação da realidade com base na emoção e
no sentimento parecia carecer de fundamento. Busca-se então uma explicação
que visa a ser racional, objetiva e lógica, mas tem sempre como pressuposto a
existência de uma ordem objetiva, eterna e imutável. Por isso a verdade também
é eterna, objetiva e imutável. E ao homem cabe a tarefa de compreender essa
ordem. Quanto mais o homem souber dessa ordem, mais livre será. O mal não é
nada mais, em última instância, do que a ignorância. O homem nunca age contrário ao bem. Ele faz o mal achando que é o bem. Com essa visão de homem já
temos um indicativo do que será a ética.
Ética: Nesse contexto, ética significa buscar sempre mais a sabedoria.
Sócrates entende que o conhecimento se iguala à ação. O nosso agir depende
exclusivamente do conhecimento que temos. E o conhecimento não é algo
pronto. Ninguém é possuidor do conhecimento perfeito. Por isso, o constante
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debate e a incessante investigação são exigências da moral para que possamos
atingir a melhor maneira de viver na pólis. A razão especulativa e discursiva é
que torna os homens aptos para viverem moralmente em sociedade. Aristóteles
também defende que é uma obrigação moral do homem buscar o saber teórico.
Isto porque somente o saber teórico, que é livre, poderá satisfazer a sede natural
que o homem tem de saber. E o saber nos leva à virtude. A virtude, segundo
Aristóteles, está sempre no meio de dois extremos. O mal está nos excessos por
falta ou demasia. Somente o saber é que nos poderá aproximar desse meiotermo. Assim, a moral resulta do uso correto da razão que está na investigação
constante do que é e do que deva ser.
O cristianismo não foge dessa visão objetiva, porém a verdade que o
homem busca está em Deus. E os meios pelos quais ela é atingida estão na fé e
na razão, privilegiando, de modo geral, mais a primeira. Além disso, o cristianismo
traz um elemento novo que é a questão da liberdade e da igualdade. O Deus
criador, segundo os cristãos, fez o homem livre para que ele possa fazer da sua
vida o que quiser. O homem poderá optar por Deus, o que será a sua felicidade,
ou contra Deus, o que será a sua perdição. Temos aqui, de certa forma, a superação da ideia do destino próprio da visão grega. No lugar do destino, contudo,
o cristão apresenta a ideia da Divina Providência. Dessa forma a liberdade é
entendida dentro de uma submissão a essa Divina Providência.
Crise: Esse paradigma entra em crise quando o homem começa a perceber
que essa ordem objetiva, eterna e imutável, não é tão objetiva, eterna e imutável.
O homem dá-se conta de que não existe uma razão que possa elucidar toda essa
ordem. Durante 2 mil anos o homem tentou compreender essa ordem, porém
nunca conseguiu realizar a contento essa pretensão. Por isso, aos poucos nasce a
compreensão de que a realidade toda só tem o seu sentido e o seu ser a partir do
sujeito. Ou melhor, essa ordem toda é sempre construção que passa pela razão
humana. É o homem que vai dizer o que é eterno, o que é imutável.
c) 3º Paradigma: da Subjetividade
Início: século 16 com Descartes. Razão moderna. Dali em diante, até hoje,
o homem, como sujeito, está colocado no centro.
Cosmovisão: O universo tem as suas leis e a sua trajetória própria, mas a
sua existência só tem sentido na medida em que está aí para servir ao homem.
O universo deixou de ser um elemento estranho. O homem não só pode, como
deve dominá-lo. A Terra não é mais o centro de tudo. É o fim do geocentrismo
e o começo do heliocentrismo. É também o início de uma compreensão de que
o conhecimento deve gerar uma dominação sempre mais acelerada sobre o
universo. Com essa cosmovisão desencadeia-se um processo de visão científica,
baseada no método experimental, que repudia as humanidades e incentiva
uma progressiva valorização da técnica que deve proporcionar um domínio
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EaD
Filosofia e Ética
e um controle sempre maior sobre a natureza. É o princípio da fragmentação
do saber e da exagerada valorização da especialização em detrimento de uma
visão holística.
Antropologia: O homem é o Sujeito, é o Senhor. Não existe mais Deus.
Deus está morto. As Ciências, baseadas na razão e no método experimental,
dão sinais de que resolverão todos os problemas humanos, até mesmo a morte.
Instaura-se aos poucos a razão instrumental, ou seja, a razão a serviço da produção
científico-tecnológica. E tudo terá sentido, na medida em que estiver servindo
aos interesses do homem. Dessa forma, aos poucos o homem vai sentindo as
“vantagens” desse seu domínio sobre a natureza e cada vez mais vai cedendo
à ideia da “lei” do menor esforço possível. A técnica facilita a vida de tal modo
que, somando à possibilidade do lucro, a busca da inovação tecnológica tornase uma obsessão.
Nesse período o homem passa a não mais aceitar a concepção de que
exista uma ordem objetiva, eterna imutável. A verdade deixa de ser algo absoluto
que está para além do homem. A verdade agora passa a depender do sujeito que
se sente cada vez mais livre e senhor de tudo, porém o sujeito aos poucos vai ser
apenas aquele que tem poder. Os demais serão “objetos” que lutarão competitivamente para conseguirem a sua emancipação, que será cada vez mais difícil.
Ética: É bom aquilo que satisfaz ou que vem ao encontro dos desejos do
homem. O sujeito é que determina o bom. E o bom depende das circunstâncias
atuais e dos interesses momentâneos. O que importa é o momento e a vontade
de cada um. E cada um quer exercitar sempre mais a sua liberdade e o seu poder.
No final, bom é aquele que consegue vencer. É, no fundo, a reabilitação da moral
da selva em tempos modernos.
Crise: A absolutização da subjetividade conduz ao relativismo. Isso significa
o fim da ética, pois tudo se torna relativo ao indivíduo que oscila conforme a sua
vontade. Para compreendermos melhor essa crise apresentaremos três características que consideramos fundamentais na elucidação do relativismo.
1º: Cada um é dono absoluto de si. Cada um tem uma vontade própria, que é a
fonte da verdade. O ser humano pensa que ali está a sua realização, independente da realização ou felicidade alheia. A sociedade de consumo, mediante
a publicidade, cria falsas necessidades, que se transformam em interesses
particulares dos indivíduos, ou seja, o indivíduo tem desejos, vontades, que,
na verdade, foram criados por quem quer vender. O indivíduo, porém, considera, falsamente, que esses desejos, essas vontades, são o resultado de sua
liberdade. O homem pensa que ele mesmo criou ou engendrou em si essas
necessidades. Uma vez “possuído” por esses desejos, o homem, que é dono
absoluto de si, faz o possível para satisfazer esses desejos, ou necessidades,
pensando que assim há de se realizar, mesmo que para isso precise destruir
a natureza e até mesmo coisificar o outro.
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EaD
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2º: O homem está diante do problema criado pela assim chamada razão instrumental (razão que está em função da produção técnica). Essa razão é responsável pela geração dos avanços no campo da informática, da robótica, da
biogenética, etc. Sem dúvida, são avanços importantes para a humanidade.
Só que esses avanços também, cada vez mais, excluem as pessoas do meio
social. Isso mais uma vez nos revela a dimensão paradoxal da vida humana:
o homem é o Senhor do Mundo, mas cada vez mais sente-se esmagado por
forças incontroláveis. O homem é o Senhor da natureza; mas a natureza, desrespeitada e destruída aos poucos, também vai matando o homem. O homem
é o Senhor da bomba atômica; mas ela só foi criada para destruir esse mesmo
homem. O homem é o Senhor da informática, da robótica e da biogenética;
mas tudo isso transforma, muitas vezes, o homem num “sobrante”. O homem
é o Senhor do mercado; mas agora é o mercado que vai decidir se haverá
emprego ou desemprego, quem tem direito de sobreviver ou não.
Normalmente a humanidade tentou encobrir essa ambiguidade, fazendo
prevalecer o lado dos poderosos como algo necessário, algo que brota da fatalidade. E a ideologia encarregou-se de mostrar que nada pode ser feito contra
essa fatalidade.
3º: O problema do novo como critério de verdade. Esse problema decorre do
cientificismo-tecnicista. Os avanços rapidíssimos no campo tecnológico
levaram o homem da cultura atual a entender que a verdade acompanha o
que existe de mais novo. Cada modelo novo que se cria parece ser melhor e,
como tal, mais verdadeiro que o anterior. Qual é a consequência desse tipo de
visão da realidade? É que essa concepção da realidade leva o homem a uma
atitude de espera e consequente acomodação. O que será que vão inventar
daqui a pouco? O que “eles” vão criar para que os problemas sejam resolvidos?
E enquanto a solução não vem, o homem se refugia nas drogas, no prazer a
qualquer custo ou nos jogos de azar, ou se lança em qualquer subterfúgio
com a intenção de encontrar a solução para seus problemas. O resultado
disso é o aumento do número de crimes, assaltos, estupros, violência e, por
fim, uma vida sem sentido.
d) 4º Paradigma: da Intersubjetividade Comunicativa
É o paradigma que está em construção e está apontando para novas
perspectivas. É uma proposta neo moderna.
Cosmovisão: O homem já não mais se coloca como Senhor da Natureza.
Ele vai tomando consciência da imensidão do universo e reconhecendo que
sabe muito pouco sobre tudo o que está aí. Ao mesmo tempo, cada vez mais o
homem cria a consciência de que a natureza precisa ser preservada e que desse
cuidado resulta a garantia de escaparmos de um desastre ecológico. Neste sentido, preservar a natureza é preservar a própria vida.
100
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Filosofia e Ética
Antropologia: No paradigma da subjetividade predominou a razão técnica.
Pensava-se que a racionalidade instrumental era a dimensão mais importante do
ser humano e que ela, quando desenvolvida, daria conta de todas as limitações e
insuficiências do homem. Como já vimos, porém, essa racionalidade entrou em
crise por representar, mais do que uma solução para os problemas do homem,
uma ameaça para a vida como um todo. Por isso, na nova perspectiva que estamos
gestando, a razão técnica precisa ser controlada pela razão comunicativa.
O novo paradigma não vem para suplantar os anteriores. Apenas se fará
uma releitura de tudo o que já é passado, no sentido de apresentar a realidade
sob um novo enfoque, o que nos dará uma nova compreensão de tudo o que
está aí.
No paradigma da razão instrumental o homem entendeu que fundamentalmente possuía uma razão para produzir instrumentos. Essa razão começou
a se desenvolver a partir do momento em que o macaco usou um osso apropriado
para bater na cabeça do seu adversário. Esse desenvolvimento culminou, por
enquanto, no seu aspecto mais negativo, que foi a produção e o lançamento da
bomba atômica.
No novo paradigma entende-se que a racionalidade fundamental do
homem não está na produção de instrumentos, mas na capacidade que o homem
tem de se entender com outro homem em vista a um determinado fim. Assim, a
racionalidade fundamental se constituirá pela produção do entendimento entre
os homens em torno de seus mundos.
É importante ressaltar que dessa nova visão da racionalidade decorre
uma nova compreensão do que seja a produção do conhecimento científico.
Científico será o resultado do entendimento que os homens construírem em
torno do mundo objetivo e social. Desse modo, algo será aceito como verdadeiro quando fundado numa discussão e num discurso argumentativo realizado
pelos integrantes da comunidade. Essa verdade, assim constituída, será sempre
provisória, pois novos elementos poderão, futuramente, integrar o discurso que
colocará a comunidade diante de uma nova situação.
Para que esse paradigma possa dar uma nova resposta aos anseios humanos é preciso que se estabeleça algo parecido com uma comunidade ideal de
fala. Isto significa que os integrantes da comunidade devem ter a pretensão de
serem entendidos; devem dizer o que realmente pensam e devem estar abertos
ao novo.
Ética: A ética se dará no mundo social e no mundo subjetivo. Ela se
constituirá a partir do entendimento que se produzirá em torno dos diversos
temas morais. E cada discurso, marcado pela pretensão de validade, buscará um
sentido para um determinado tema em que a questão básica será a justiça. Por
exemplo: “O homem tem direito à vida”. Cada discurso em torno do tema terá
como objetivo a validade e buscará, não a verdade, mas a justiça. E o resultado
dessa discussão não se dará por um “democratismo”, mas deverá se aproximar
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ao máximo do consenso. Assim, a ética será uma construção coletiva na qual
deverá predominar a discussão argumentativa com base na busca sincera de
um entendimento consensual.
3.3.2 – Perspectivas Para a Ética
Talvez o que mais atrapalha nesse novo paradigma seja a possibilidade
real da produção do consenso. O consenso será possível mediante a constituição
da comunidade ideal de fala. E para que esta seja possível é preciso construir uma
cultura na qual, de certa forma, se priorizem os seguintes elementos: igualdade,
responsabilidade e dedicação.
a) IGUALDADE – Superação da mentalidade hierárquica.
Desde as épocas mais remotas o homem tem tido uma mentalidade
hierárquica. E até hoje idolatramos os que sabem um pouco mais, ou quem tem
um pouco mais, pois são um pouco “melhores”. Ex.: respeitamos profundamente
alguém que é da “elite”, ou seja, aquele que é considerado um dos melhores, seja
no campo do esporte, da intelectualidade, da arte, da economia, da política ou
de qualquer outro campo. Respeitamos e admiramos. E esses que estão “acima”
fazem de tudo para que essa diferença seja mantida e até aumentada. Então, o
que normalmente acontece é que nós nos digladiamos em busca de posições
privilegiadas. Aquele que se sente lisonjeado, ou sente os privilégios de ser
“importante”, faz de tudo para garantir essa posição. O que está mais abaixo,
luta ou sonha em um dia também chegar no lugar daqueles que estão “acima”.
Normalmente, porém, tudo permanece no sonho.
Na verdade, diante dos problemas que os homens enfrentam, diante
da imensidão do mundo desconhecido, todos nós somos pequenos e, nessa
pequenez, somos iguais. Lembramos Hobbes que, no século 17, defendeu a tese
de que todos somos iguais por natureza, e que as diferenças de um em relação
ao outro, quando tomamos o conjunto da sociedade, nada significam. Até mesmo porque, por melhor que seja alguém, de longe é portador da solução dos
problemas da humanidade. Como exemplo disso podemos lembrar os maiores
cientistas, filósofos, economistas e sociólogos que a humanidade já produziu,
e veremos que até hoje ninguém foi capaz de solucionar os nossos problemas.
Os seus estudos e as suas descobertas ajudaram em muito a vida do homem,
mas também as suas soluções foram e são portadoras de inúmeras dificuldades
para a organização do homem na sociedade. Com isso queremos destacar que
esses “grandes homens” não são semideuses. Eles são seres humanos e, como
seres humanos devem ser respeitados, mas não mais do que qualquer outro ser
humano. Eles não são merecedores de privilégios que os coloquem num nível
supra-humano. Por isso, enquanto não cultivarmos uma mentalidade igualitária,
cada vez mais teremos uma elite privilegiada e uma massa desqualificada e marginalizada, o que impossibilita a aproximação de uma verdadeira comunidade.
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EaD
Filosofia e Ética
b) RESPONSABILIDADE – Não devemos culpar os outros pelos nossos atos.
Vivemos num período em que precisamos aprender a não culpar os outros pelos nossos atos. Se queremos um mundo moralmente melhor torna-se
imprescindível o aprendizado da responsabilidade.
Parece que já se tornou hábito a autojustificação dos próprios atos. Já
na Bíblia lemos que Adão e Eva justificaram os seus atos culpando terceiros pelo
que fizeram. Esse processo de justificação tornou-se tão vil que atualmente temos
uma tendência de inocentar até os maiores criminosos, alegando que os seus
atos são uma decorrência de forças que independem da vontade da pessoa. Até
mesmo no nível mais pessoal encontramos um esforço para justificar o que se é.
Se alguém pergunta: Por que você é assim? A resposta surge de imediato: – Ah,
eu sou assim por causa da minha natureza ou por causa dos meus pais, dos meus
irmãos, dos vizinhos, dos professores, da comunidade ... Assim, o passado é só
desculpas.
Na verdade, a ação do homem é uma ação livre (salvo em caso de coação
interna ou externa) e, por isso, o homem é sempre responsável por sua ação.
Na medida em que o homem não assume a sua responsabilidade, nós estamos
matando a ética, qualquer que ela seja. A autojustificativa representa o fim da
ética. É sempre um agir de má-fé. E a má-fé é uma mentira que impossibilita o
verdadeiro sentido da liberdade humana e da consequente responsabilidade.
c) SUPERAÇÃO DA “LEI” DO MENOR ESFORÇO
Podemos afirmar que a tendência ao menor esforço possível já é uma lei
plenamente encarnada. O maior esforço que o homem faz parece que está em
descobrir uma maneira de fazer as coisas sem esforço ou com o menor esforço
possível. Essa é uma inclinação, talvez até natural, do ser humano, no entanto a
razão instrumental fomentou essa tendência ao máximo sem perguntar pelas
consequências disso para a vida das pessoas em sociedade.
É dentro disso que propomos a superação da lei do menor esforço. Partimos do pressuposto de que o homem só se realiza, se humaniza, pela sua ação.
E toda ação significa enfrentamento, superação de dificuldades e obstáculos. É
uma ilusão encontrar a realização humana fora do empenho, da dedicação, da
participação efetiva. E a tendência atual é a de “formarmos” as novas gerações
com um perfil de quem recebe tudo pronto. E a maioria, que não tem acesso ao
que é produzido, também é “formada” dentro do espírito de acomodação e não
participação. Assim, tanto os que têm acesso aos resultados da razão instrumental
quanto os que estão excluídos, são animados por um espírito de acomodação e
entrega à “lei do menor esforço”.
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
O que queremos destacar com tudo isso é que só há realização humana
quando houver uma participação efetiva e com responsabilidade de todos na
construção da sociedade que queremos para todos. Pensamos que esses três
elementos são fundamentais para podermos falar de uma ética que torna a vida
humana menos trágica.
Outros grandes desafios, contudo, se nos apresentam, por exemplo: Como
conciliar a liberdade individual com a universalidade da lei? Como ir ao encontro
dos interesses pessoais sem ferir a necessária ordem exigida pela convivência
social? Como definir o meio-termo entre o particular e o universal? Como fugir
do objetivismo e do subjetivismo? Parece que a saída para essas questões está
na educação que deverá engendrar uma nova cosmovisão e principalmente uma
nova visão antropológica. A ética será, então, uma decorrência natural dessas
novas visões.
Seção 3.4
Teorias Éticas
Vânia L. F. Cossetin
34
A vida coletiva só foi possível
porque o ser humano passou
a estabelecer regras a fim de
organizar as relações entre
os indivíduos. Sem estas
normas seria impossível a
convivência em grupo.
34
Segundo o antropólogo Lévi-Strauss (2000), a passagem da natureza à
cultura foi produzida pela instauração da lei, pela proibição do incesto, mediante a qual se estabeleceram as relações de parentesco e de aliança e o mundo
humano, simbólico, foi construído. Essa orientação normativa da conduta, no
entanto, é exterior ao indivíduo, de modo que a adequação ou não à norma
estabelecida, bem como a variação de tempo e lugar, é que acaba definindo se
o ato é moral ou imoral.
A moral, porém, não é apenas um conjunto de regras impostas aos
indivíduos, mas a livre e consciente adesão a elas, razão pela qual um ato só
pode ser considerado moral se passar pela aceitação da norma, ou seja, não é
verdadeiramente moral o ato que for cumprido ou não mediante ameaça de
A morte de Sócrates – Jacques-Louis David. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo:
Alphabetum Edições Multimídia.
34
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EaD
Filosofia e Ética
sanções. O que não significa que uma norma não possa ser questionada, mas
também não pode ser persistentemente interrogada, porque isto pode levar à
destruição da moral. Segundo Gianotti, a flexibilidade existe, porém não pode
levar a um relativismo em todas as formas de conduta:
Os direitos do homem, tais como em geral têm sido enunciado a partir do século
XVIII, estipulam condições mínimas do exercício da moralidade. Por certo, cada
um não deixará de aferrar-se à sua moral; deve, entretanto, aprender a conviver
com outras, reconhecer a unilateralidade de seu ponto de vista. E com isso está
obedecendo à sua própria moral de uma maneira especialíssima, tomando os
imperativos categóricos dela como um momento particular do exercício humano
de julgar moralmente. Desse modo, a moral do bandido e a do ladrão tornam-se
repreensíveis do ponto de vista da moralidade pública, pois violam o princípio
da tolerância e atingem direitos humanos fundamentais (1992, p. 245).
Para ser moral um ato deve ser livre, consciente, intencional e responsável. Isso cria um compromisso de reciprocidade e compromisso com a
comunidade. O sujeito, assim, deve saber o que e por que faz, não deve ser coagido ou obrigado a fazer algo e, além disso, deve assumir a autoria do seu ato,
reconhecendo-o como seu e respondendo pelas consequências de sua ação. A
reponsabilidade, assim entendida, acaba criando um dever: a obrigatoriedade, o
que implica a interiorização da norma, na autoimposição do seu cumprimento.
Apesar de parecer paradoxal, o cumprimento da norma não é coercitivo, mas é
sinônimo de liberdade. Por isso, nem mesmo a desobediência – o que determina
o caráter moral ou imoral do ato – pode ser excluída, pois justamente por ser livre
é que o sujeito pode transgredir a norma, mesmo aquela por ele escolhida.
Diante disso, podemos afirmar que a moral é uma construção humana.
Como, porém, o ser humano não é um ser natural e fixamente definido, além
disso, é um ser social e a sociedade sofre transformações, dizemos que a moral
é uma construção histórica. Por isso é que apesar de os sistemas morais estarem
fundamentados em valores como o bem e a liberdade, aquilo que seja o bem e
a liberdade, o seu conceito, varia historicamente. Isto explica a diversidade de
concepções éticas.
3.4.1 – Correntes Filosóficas: Podemos ser Livres?
O conceito de liberdade pode ser pensado a partir de inúmeras perspectivas. Alguns filósofos encetaram uma discussão profunda e até mesmo radical
sobre o problema, no sentido de buscar saber se somos ou podemos ser livres
ou se a liberdade seria apenas uma ilusão.
3.4.1.1 – Liberdade e Determinismo
O conflito entre liberdade e determinação foi pensado de diversas formas
pelos filósofos. Na tradição filosófica grega, a liberdade humana absoluta foi
enfatizada como liberdade incondicional, ao passo que, na Idade Média, especial105
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
mente com Santo Agostinho, ela aparece como noção de livre-arbítrio, indicando
a possibilidade de o homem agir de um modo ou de outro apesar das forças que
o constrangem. Segundo tal perspectiva, ser livre é decidir sem determinação
causal, seja pela força determinante do ambiente, seja pela força determinante
dos desejos. Já na Idade Moderna, a exemplo de Descartes, o intelecto passou
a ter prioridade sobre as paixões, de modo que conhecê-las era o melhor meio
para dominá-las.
O determinismo, por sua vez, diz que tudo o que existe e acontece tem uma
causa. Trata-se do reino da necessidade, e necessário é tudo aquilo que tem de ser
de certa maneira nem pode deixar de ser; exatamente o oposto de contingência
que diz que as coisas podem ser de um jeito e também de outro. Este princípio
rege toda a Ciência, sem o qual, inclusive, tampouco seria possível estabelecer
qualquer lei. Auguste Comte e, mais tarde, na Psicologia behaviorista, Watson e
Skinner, são os principais representantes dessa corrente.
3.4.1.2 – Racionalismo
Os filósofos desta corrente procuram pensar a dupla definição do homem
como ser determinado e livre. Para eles, o homem é dotado de consciência moral
enquanto é capaz de conhecer e decidir sobre suas ações, de modo que mesmo sofrendo influência da cultura, do tempo e do espaço, ele pode identificar
estes condicionamentos. Conhecendo as causas, então, seria possível construir
um projeto de ação, razão pela qual a liberdade encontrar-se-ia no poder de
transformação do homem tanto sobre a natureza do mundo como também da
humana. A ação livre, portanto, poderia concretizar-se no trabalho do indivíduo
como ser consciente e prático.
3.4.1.3 – Fenomenologia
No século 20, filósofos desta corrente tematizaram a questão da liberdade visando a superar justamente a antinomia determinismo-liberdade. Para
eles, a liberdade não se efetivaria pela privilegiada atividade da consciência ou
da razão, mas a partir de um sujeito situado no espaço e no tempo e capaz de
se relacionar com o mundo e consigo mesmo. Por isso, ao invés de os filósofos
desta teoria falarem em determinismo e liberdade, referem-se à facticidade (o
fato de o sujeito estar no mundo, na forma de um corpo, com determinadas características psicológicas, pertencente a uma família, a um grupo social, situado
num tempo e espaço que não escolheu) e à transcendência (o fato de o sujeito
não estar no mundo apenas como as coisas estão, por isso seria capaz de superar
tais determinações, não para negá-las, mas para lhes dar sentido). Neste caso,
a dimensão da liberdade estaria justamente ligada a esta capacidade humana
de transcendência.
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Filosofia e Ética
O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) relaciona a liberdade à compreensão do corpo. Para ele, esta seria a condição de nossa experiência
no mundo, no sentido de que o corpo não seria um mero objeto no mundo,
mas aquilo pelo qual o mundo existe para mim (“sou um corpo e não tenho um
corpo”). Não haveria, portanto, um mundo de objetos (facticidade) de um lado,
e um mundo da consciência (transcendência) de outro, posto que o mundo
apareceria para cada um segundo a sua percepção, sua vivência, seu modo de
existir e de dar sentido ao mundo.
3.4.1.4 – Existencialismo
Como um dos mais importantes representantes desta corrente, o filósofo
Jean-Paul Sartre (1905-1980) destaca uma questão fundamental do existencialismo, expressa na famosa frase “A existência precede a essência”. Em oposição
às correntes tradicionais que defendem uma essência humana, uma natureza
humana universal, para Sartre o homem, além de não ter uma natureza, é
aquilo que se concebe e faz de si mesmo após existir, porque, diferentemente
dos animais, é o único capaz de se colocar fora-de-si e se autoexaminar. E mais:
por não haver destino, uma essência ou um modelo que o oriente seu futuro
encontra-se aberto, razão pela qual, para Sartre, o homem está irremediavelmente
condenado a ser livre.
3.4.2 – A Diversidade das Teorias
Como vimos, a ética não é um assunto novo. Desde os gregos, os filósofos se debruçam sobre o problema da ética e o vêm fazendo até os dias atuais
com discussões cada vez mais complexas. Por isso é que não existe “a ética”
propriamente, mas “éticas”, no sentido de que os debates em seu entorno são
tão numerosos quanto as tendências de suas abordagens.
3.4.2.1 – Ética Grega
Na Antiguidade clássica o sujeito moral não podia ser compreendido na
sua completa individualidade. Como os gregos eram, antes de tudo, cidadãos,
a ética ligava-se diretamente à política, exatamente onde a liberdade era exercida. Outro aspecto importante da ética grega era o caráter metafísico que ela
assumia, ou seja, a busca pela compreensão e sentido do ser, da sua essência.
Daí a importância que, desde Sócrates, foi dada à definição do conceito. É justamente nesse sentido que Platão vai defender que “alcançar o bem” está ligado
à capacidade de “compreender o bem”.
Aristóteles, por seu turno, aprofundou as discussões éticas inicialmente
pela busca do fim último de todas as atividades humanas, uma vez que tudo o que
fazemos visa àquilo que nos parece ser um bem. Pergunta-se, então, pelo sumo
bem, aquele que é em si mesmo um fim e não um meio, coisa que ele encontra
no conceito de “vida feliz” (em grego, eudaimonia). Por tal razão, prazer, riqueza,
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honra, fama, não são condições necessárias para nos conduzirem à felicidade, e
sim as ações que mais próximas chegam daquilo que é essencial ao ser humano: o
exercício da inteligência teórica, a contemplação. A virtude aristotélica, portanto,
concilia a ação, um certo modo de vida, com um princípio racional.
Assim, a virtude torna-se uma permanente disposição de caráter para
querer o bem, supondo a coragem para assumir os valores escolhidos e o enfrentamento dos obstáculos que dificultam a ação, razão pela qual a vida moral não
se resume a um ato ocasional e fortuito, mas ao hábito. Ademais, como a moral
implica o enfrentamento dos elementos irracionais da alma, como as paixões,
Aristóteles cria a teoria da mediania, de encontrar o justo meio: a virtude é boa
quando é controlada no seu excesso e na sua falta (a coragem em excesso é
audácia e deficiente é covardia).
3.4.2.2 – Ética Helenista
Nessa fase (séculos 3º e 2º a.C) a ética surge dividida em duas doutrinas:
a hedonista e a estoicista. Quanto à primeira, representada por Epicuro, o bem se
encontra no prazer. Não, porém, nos prazeres materiais e corporais, que causam
ansiedade e sofrimento, mas nos espirituais, sobretudo na amizade. Já para a
segunda, representada por Zeno de Cítio, as paixões devem ser desprezadas, de
modo que sábio é aquele que vive de acordo com a natureza e a razão, aceitando
de forma impassível o destino e a dor. Ou seja, como para os estoicos o universo
segue um movimento e ordem necessários e nada pode ser feito contra ele, a
felicidade consiste na liberdade interior de aceitar a dor e o sofrimento.
3.4.2.3 – Ética Medieval
Após a queda do Império Romano, a Igreja Católica surge como elemento
agregador das diferenças ao difundir a mesma fé cristã. E como único detentor da
educação e da tradição greco-romana, o Clero passa a defender a primazia dos
elementos sobrenaturais sobre os humanos, de modo que toda ação volta-se à
contemplação de Deus e à conquista da vida eterna. Os valores religiosos, portanto, tornam-se definidores das concepções éticas, razão pela qual as concepções
de bem e de mal tornam-se dependentes da fé e da esperança de vida após a
morte. Por isso mesmo é que a concepção estoica é bem aceita pelo cristianismo,
especialmente porque orienta à resignação e ao controle das paixões.
3.4.2.4 – Ética do Dever
Um dos maiores expoentes desta corrente é o filósofo alemão Immanuel
Kant (1724-1804). Para ele, enquanto na natureza tudo é regido segundo leis,
no mundo humano as ações são regidas por princípios, porque o homem é
portador de vontade e de capacidade de escolha, não é orientado apenas pelos
desejos ou instintos. A vontade ou razão prática, então, torna-se o instrumento
para compreender o mundo dos costumes e orientar o indivíduo na ação. Assim,
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EaD
Filosofia e Ética
ao analisar os princípios da consciência, Kant emprega o conceito de imperativo:
aquilo que se impõe como um dever na orientação da ação. Pode ser de tipo
hipotético (ordena a ação como um meio: a ação é boa porque possibilita alcançar
outra coisa) e de tipo categórico (a ação é necessária por si mesma, é boa em si,
e não por ter como objetivo outra coisa).
Para Kant, porém, a vontade humana é verdadeiramente moral quando
regida pelo imperativo categórico. Por isso rejeita as concepções éticas desenvolvidas até então, que norteiam a ação a partir de condicionantes como a felicidade
ou o prazer. A ação não pode ser movida por interesses, mas deve estar fundada
na razão, além de ser universal, necessária e não meramente subjetiva. O imperativo categórico assim rege: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas
ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (Kant, 1980, p. 129).
É importante ressaltar que o imperativo kantiano não é exterior ao indivíduo, imposto de fora ao sujeito, mas é um dever autoimposto. Daí a ideia de
autonomia tão cara a Kant: ela não visa apenas a uma realização subjetiva, mas
à universalidade. A ação moral, portanto, é aquela que pode ser exercida por
todos, indiscriminadamente. Isso leva a outro conceito kantiano, o da dignidade
humana: “Aja de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como
na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
simplesmente como meio” (Kant, 1980, p. 135).
3.4.2.5 – Ética Consequencialista
O consequencialismo afirma que devemos agir de modo a aumentar os
benefícios produzidos por nossa ação, independentemente da situação. Em geral, ele pretende resolver os dilemas éticos, ou seja, uma situação complexa que
coloca demandas contraditórias cujas consequências são igualmente negativas,
mas dentre as quais é preciso decidir. Ex.: dilema do maquinista.
3.4.2.5.1 – Ética Utilitarista
É um tipo de consequencialismo. Seu criador foi Jeremy Bentham (17481832) e seu divulgador foi John Stuart Mill (1806-1873). Segundo tal concepção o
critério de avaliação do ato moral é considerar o bem como aquilo que possibilita
a felicidade, reduz a dor e o sofrimento e beneficia o maior número de pessoas.
À semelhança do hedonismo grego, portanto, para o utilitarista a felicidade é
o critério para avaliar as consequências de uma ação, de modo que a busca do
prazer deve levar em consideração o caráter social e não apenas pessoal.
3.4.2.6 – Ética nietzschiana
Nietzsche critica a tradição por ter valorizado demasiadamente a consciência como capaz de dominar as paixões. Em contrapartida, seu pensamento
orienta-se na perspectiva de recuperar as forças vitais, instintivas, que foram
subjugadas pela razão durante séculos. Critica a tradição grega socrática, o
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EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
cristianismo e o pensamento moderno, denunciando a incompatibilidade entre
moral e vida, no sentido de que sob o domínio da moral, o homem torna-se
fraco, doente e culpado. Ao fazer a crítica à tradição e propor a “transvaloração
dos valores”, Nietzsche questiona o valor dos valores, ou seja, busca saber como,
quando e porque foram criados, alegando que os valores de bem e mal não
foram senão criados pelo próprio homem. Diante disso, cria a genealogia como
método: a busca pela origem da moral, mostrando as lacunas, o que não foi
dito, os valores que predominaram na cultura de modo inquestionável. Assim,
Nietzsche denuncia a falsa moral de rebanho, de escravos, que submetem os
instintos vitais em nome da bondade, da humildade e da piedade.
3.4.2.7 – Ética do Discurso
No século 20 a consciência, tal como era entendida na modernidade,
deixou de ser o critério último de avaliação e cedeu lugar à interpretação da
linguagem. Nesse sentido, é que o filósofo Jürgen Habermas (1929) desenvolve
a teoria da ação comunicativa, recorrendo à razão para sua fundamentação. Uma
razão, porém, fundada no sujeito, mais especificamente na interação entre os
indivíduos do grupo e mediada pela linguagem, pelo discurso, formada por seres
capazes de se posicionarem criticamente diante das normas. As normas, assim,
são formuladas a partir do diálogo e do consenso, supondo o entendimento e
a possibilidade de convencimento do outro mediante argumentos racionais,
pelo que a sociabilidade, a espontaneidade, a solidariedade e a cooperação são
instauradas.
Referências
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 6. ed. São Paulo: Ática, 1991.
COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Filosofar. São Paulo: Saraiva, 2010.
GIANOTTI, José Arthur. Moralidade pública e moralidade privada. In: NOVAES,
Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de
Cultura, 1992.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril
Cultural, 1980.
LA TAILLE, Yves de. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre:
Artmed, 2006.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 2000.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de (Org.). Correntes fundamentais da ética contemporânea. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
110
EaD
Filosofia e Ética
Seção 3.5
Responsabilidade moral, determinismo e liberdade35
Aloísio Ruedell
36
O nível da vida moral depende da
responsabilidade dos indivíduos
ou grupos sociais em relação ao
seu comportamento. Atos propriamente morais são somente aqueles
aos quais se pode atribuir responsabilidade a quem os realiza, tanto
responsabilidade no que se propôs
realizar quanto pelos resultados ou
consequências de sua ação.
36
O problema da responsabilidade moral está, por sua vez, ligado com o
da necessidade e liberdade humanas. Somente pode ser responsabilizado por
seus atos quem tem liberdade de opção e de decisão.
Isso significa que, para avaliar determinado ato, não basta julgá-lo segundo uma norma ou regra de ação. Também é preciso examinar as condições
concretas, nas quais é praticado, para verificar se existe possibilidade de opção
e decisão livres, condição necessária para lhe poder imputar uma responsabilidade moral.
Vejamos um exemplo! Se João rouba na casa de Pedro, seu amigo, a
reprovação moral deste ato, ao que parece, não oferece dúvida alguma. A
condenação de João se justifica, porque roubar a um amigo não tem desculpa.
E se a ação de João não tem desculpa, então não se pode eximi-lo da responsabilidade. Suponhamos ainda a situação em que João, além de sua relação de
amizade com Pedro, tenha uma situação econômica favorável, sem suspeita de
que poderia ter roubado por necessidade. Nada disso poderá explicar o roubo. A
realidade, entretanto, muda: tudo ficará diferente quando soubermos que João é
cleptomaníaco. Com essa informação cessa a reprovação do ato. Não seria justo
atribuir-lhe uma responsabilidade, mas, ao contrário, seria necessário eximi-lo
dela, considerando-o um doente, que realiza um ato – normalmente ilícito – por
não conseguir se controlar.
Reelaboração do texto que consta em: VÁSQUEZ, Adolfo. Ética. Tradução de João Dell’Anna; 18. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 87-109.
35
A liberdade guiando o povo – Delacroix. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo:
Alphabetum Edições Multimídia.
36
111
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
A partir desse exemplo, podemos perguntar: “Quais as condições necessárias e suficientes, para poder imputar a alguém uma responsabilidade
moral por determinado ato” (Vásquez, 1998, p. 88)? Em outras palavras: Em que
condições uma pessoa pode ser louvada ou censurada por seu agir? Quando se
pode dizer que alguém é responsável por seus atos “ou se pode isentá-lo, total
ou parcialmente, de sua responsabilidade” (1998, p. 88)?
Já desde Aristóteles a resposta a essa pergunta evidencia duas condições
fundamentais: ser consciente e ser livre. Ou seja: 1. “que o sujeito não ignore nem
as circunstâncias nem as consequências da sua ação” (Vásquez, 1998, p. 88) ou
comportamento; 2. que a causa de seus atos esteja nele próprio, e não em outro
agente externo, que o force a agir contra sua vontade. Ou ainda: para que haja
responsabilidade moral, supõe-se conhecimento (do ato e de suas consequências) e liberdade. A ignorância, ao contrário, e a falta de liberdade permitem
eximir o sujeito da responsabilidade moral.
Vamos ainda examinar mais detalhadamente essa duas condições fundamentais da responsabilidade moral.
3.5.1 – Ignorância e Responsabilidade Moral
Considerando que somente pode ser responsabilizado quem decide e age
conscientemente, é evidente que deve ser eximido da responsabilidade moral
aquele que não tem consciência do que faz, ou seja, ignora as circunstâncias e a
natureza de sua ação. A ignorância é condição que exime da responsabilidade
moral.
Será, no entanto, que toda e qualquer ignorância exime da responsabilidade? Há duas possibilidades: 1. A situação em que o sujeito ignora as circunstâncias
de sua ação e também não tem a obrigação e a possibilidade de conhecê-las;
2. A situação em que o sujeito ignora as circunstâncias de sua ação, mas tinha
possibilidade e obrigação de conhecê-las.
Em relação à primeira situação, podemos nos referir à criança, que, em
certa fase do seu desenvolvimento, ainda não acumulou a experiência social
necessária para que seja responsabilizada por todos os seus atos. Há situações
em que a criança ignora as circunstâncias daquilo que faz e também não tem
obrigação de conhecê-las, porque o estágio de seu desenvolvimento ainda não
o permite. Nessas situações ela não pode ter responsabilidade moral.
Para ilustrar a segunda situação, vejamos o exemplo de um motorista.
Imaginemos um motorista que decidiu fazer uma longa viagem e se chocou
com outro carro que estava parado por defeito na estrada, provocando grandes
prejuízos materiais e pessoais. Ele pode alegar que não viu o carro estacionado,
ignorava sua presença (as circunstância da ação) porque a luz de seus faróis
era muito fraca. Essa desculpa, obviamente, não pode ser aceita, porque ele
poderia e deveria ver o carro parado, se tivesse feito a revisão dos faróis, como é
112
EaD
Filosofia e Ética
obrigação moral de quem viaja à noite. Assim, ele ignorava as circunstâncias da
estrada, mas tinha obrigação de conhecê-las. Neste caso, não pode ser eximido
da responsabilidade moral.
3.5.2 – Coação Externa e Responsabilidade Moral
A segunda condição para que alguém possa ser responsabilizado por
seus atos é a exigência de a causa deles estar nele próprio, e não vir de fora, de
algo ou um sujeito estranho, que o force a agir contra sua vontade, pois, quando
o indivíduo está sob pressão ou coação externa, perde o controle de seus atos,
ficando sem condições de escolher e decidir com liberdade. Na medida em que
isso acontecer, o indivíduo não pode ser responsabilizado por seus atos.
Para ilustrar essa situação, podemos nos referir a um motorista, que,
andando numa velocidade regulamentar e dirigindo com habilidade, acaba
causando um acidente fatal com outro carro, ao querer desviar de um pedestre
que inesperadamente cruzou na sua frente. O motorista pode ser moralmente
responsabilizado? Ele alega que fez tudo para não matar o pedestre, mas, infelizmente, acabou causando outra morte. Está claro que, nesse caso, ele não decidiu
livremente matar; a causa da morte estava fora dele e, por isso, com razão pode
dizer que não se sente responsável.
A causa da coação externa, no entanto, pode provir não apenas de algo,
circunstâncias imprevistas, mas de alguém que, consciente e voluntariamente
força o sujeito a realizar um ato que não quer fazer, ou seja, que não escolheu e
decidiu. Assim, por exemplo, alguém pode ser forçado, sob a mira de um revólver, a assinar um documento que ele não queria assinar. Nesse caso, a coação
externa, física, não deixa possibilidade de optar, ou seja, não permite agir como
gostaria.
Dessa forma, a coação externa pode anular a vontade e a liberdade do
agente moral, eximindo-o de sua responsabilidade. Isso, porém, não pode ser
tomado em sentido absoluto, porque há situações em que, apesar da pressão
externa, sobra uma certa margem de opção. Se não houvesse essa possibilidade,
os principais dirigentes do nazismo, no famoso processo de Nüremberg, deveriam todos ser inocentados, porque todos alegam ou ignorância dos fatos ou a
necessidade de cumprir ordens superiores. Ou será que, de fato, nenhum deles
tinha responsabilidade?
3.5.3 – Coação Interna e Responsabilidade Moral
Vimos que o sujeito não é responsável pelos atos que têm sua causa fora
dele. A pergunta agora é: Ele será responsável por todos os atos que têm sua
causa ou fonte dentro dele? Ou pode haver algum ato, cuja causa esteja no sujeito
e pelo qual não seja moralmente responsável?
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EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Para responder a essas questões convém, antes, relembrar que “o homem
só pode ser moralmente responsável pelos atos cuja natureza conhece e cujas
consequências pode prever, assim como por aqueles que, por se realizarem na
ausência de uma coação extrema, estão sob seu domínio e controle” (Vásquez,
1998, p. 94-95).
Considerando essas afirmações gerais, pode-se dizer que o indivíduo
normal é “moralmente responsável pelo roubo que comete”, diferente do “cleptomaníaco, que rouba por um impulso irresistível” (Vásquez, 1998, p. 95). Assim
também o assassinato é moralmente reprovável, e quem o comete contrai responsabilidade moral. Pergunta-se, entretanto: Pode ser moralmente responsável
“o neurótico que mata num momento de crise aguda” de sua neurose? Ainda
numa outra situação, considera-se normalmente reprovável o comportamento
do homem que dirige frases obscenas a uma mulher, e quem procede dessa
maneira contrai responsabilidade moral. Se quem faz isso, porém, é um doente
sexual e age levado por motivos inconscientes, ainda se pode falar em responsabilidade moral?
Está claro que os três casos aqui referidos – cleptomania, neurose e desajuste sexual – são situações de forte coação interna. São situações nas quais
o sujeito não tem consciência, ao menos não no momento, dos verdadeiros
motivos, da natureza e das consequências de seu ato. Apesar de o ato se originar
do íntimo de quem o comete, este não tem o controle sobre ele; propriamente
não lhe pertence. A coação interna é tão forte que o sujeito não consegue agir
de outra maneira.
Os três exemplos referidos são obviamente casos extremos, casos de
coação interna, contra a qual o sujeito não consegue resistir de forma alguma.
São situações de doença ou de anormalidade que podem ocorrer. Embora seja
difícil estabelecer uma linha divisória entre o normal e o anormal ou doentio,
“as pessoas que costumamos considerar normais não agem sob uma coação
irresistível, embora seja indiscutível que sempre se encontram sob uma coação
interna relativa” (Vásquez, 1998, p. 96).
3.5.4 – Responsabilidade Moral e Liberdade
Vimos que a responsabilidade moral requer ausência de coação externa
e interna, ou então a possibilidade de lhe resistir, em maior ou menor grau.
Pressupõe que o sujeito aja não como resultado de uma coação irresistível, mas
“como consequência da decisão de agir como queria agir, quando poderia ter
agido de outra maneira” (Vásquez, 1998, p. 96). A responsabilidade moral, portanto, pressupõe a possibilidade de decidir e agir, superando a coação externa
e interna.
Se alguém, no entanto, tem essa possibilidade de resistir à coação e,
nesse sentido, é livre, isso ainda não é toda a explicação do problema da responsabilidade moral em relação à liberdade, pois embora o homem possa agir
livremente, na ausência de coação externa e interna, encontra-se sempre sujeito
114
EaD
Filosofia e Ética
a causas que determinam sua ação. Se, de um lado, a responsabilidade moral
exige a possibilidade de decidir e agir livremente, formamos, de outro, parte de
um mundo causalmente determinado. Como se conciliam essas duas perspectivas de nossa vida: a determinação de nosso comportamento e a liberdade de
nossa vontade?
Vimos que somente há responsabilidade se existe liberdade. Até que
ponto, então, o homem é moralmente responsável por seus atos, se estes se dão
no contexto de uma determinação causal?
A solução do problema da responsabilidade moral depende da questão
das relações entre determinação causal (determinismo) do comportamento
humano e a liberdade da vontade. Já é um problema ético antigo, para o qual
encontramos, historicamente, duas posições diametralmente opostas: o determinismo absoluto e o libertarismo e, por fim, uma tentativa de síntese entre as
duas: dialética da liberdade e da necessidade.
3.5.4.1 – O Determinismo Absoluto
A posição do determinismo absoluto baseia-se no princípio de que neste mundo tudo tem uma causa. A experiência do cotidiano e a própria ciência
confirmam essa tese. A ciência já parte desse pressuposto de que tudo tem uma
causa, embora esta nem sempre possa ser conhecida. Neste caso, se de fato é
assim, se tudo é causado, como podemos evitar agir como agimos? Se aquilo que
fazemos é resultado de atos anteriores, que, possivelmente, nem conhecemos,
como podemos afirmar que nossa ação é livre? Pois também nossa decisão, nosso
ato voluntário é causado por um conjunto de circunstâncias.
Não nos resta outra saída do que reconhecer que a posição do determinismo absoluto é incompatível com a liberdade. Afirmando que o comportamento
do homem é totalmente determinado pelas circunstâncias, não tem mais sentido
falar em liberdade e, por conseguinte, em responsabilidade moral.
3.5.4.2 – O Libertarismo
Na posição do libertarismo nega-se que o agente esteja causalmente
determinado, quer de fora, quer de dentro. Parte-se da liberdade como um dado
da experiência imediata, ou como uma convicção que não pode ser destruída
pela existência da causalidade. Embora se admita que o homem esteja sob uma
determinação causal, por ser parte da natureza e estar inserido na sociedade,
“acredita-se que exista uma esfera do comportamento humano – e muito especialmente a moral – na qual é absolutamente livre; isto é, livre a respeito da
determinação dos fatores causais” (Vásquez, 1998, p. 101-102).
O libertarismo caracteriza-se pela contraposição entre liberdade e necessidade causal. A liberdade exclui o princípio causal, pois se nosso querer, decidir ou
fazer fossem resultado de causas, então não seriam livres. “A liberdade, portanto,
implica numa ruptura da continuidade causal universal. Ser livre é ser incausado”
(Vásquez, 1998, p. 102).
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
3.5.4.3 – Dialética Entre Liberdade e Necessidade
Uma posição conciliadora entre determinismo absoluto e o libertarismo
argumenta que o comportamento humano se dá numa dialética entre liberdade e
necessidade. Se o comportamento do homem é determinado, essa determinação
não anula a liberdade, mas, ao contrário, é sua condição de possibilidade.
A liberdade, pois, não existe em abstrato, fora da História e da sociedade.
Ela sempre implica uma ação do homem concreto, que se baseia na compreensão
da necessidade causal. É uma liberdade que não exclui a determinação causal,
mas, ao contrário, mediante ou por cima dela se afirma ou conquista.
Não há dúvidas de que a responsabilidade moral pressupõe certo grau
de liberdade, e esta, por sua vez, também implica a necessidade causal. Responsabilidade moral, liberdade e necessidade estão, por isso, “indissoluvelmente
entrelaçadas no ato moral” (Vásquez, 1998, p. 109).
Referências
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 6. ed. São Paulo: Ática, 1991.
COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Filosofar. São Paulo: Saraiva, 2010.
GIANOTTI, José Arthur. Moralidade pública e moralidade privada. In: NOVAES,
Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de
Cultura, 1992.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril
Cultura, 1980.
LA TAILLE, Yves de. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre:
Artmed, 2006.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 2000.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de (Org.). Correntes fundamentais da ética contemporânea. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
116
EaD
Filosofia e Ética
Seção 3.6
Considerações sobre ética, política e cidadania
Valdir Graniel Kinn
Questões Preliminares
37
Vivemos um período histórico ímpar da humanidade. Presenciamos
um pro­cesso de profundas mudanças políticas, econômicas e sociais
em âmbito mundial, com fortes
reflexos em âmbito nacional.
37
Estamos, segundo inúmeros teóricos, na plenitude da globalização e a afirmação definitiva de um único modelo econômico/político. Fala-se, inclusive, no
fim da História e a instauração definitiva do último “ismo” (capitalismo). Estamos,
também, na iminência de um novo século e de um novo milênio e, mesmo assim,
boa parte da humanidade aguarda ainda por uma resposta ética/política/social,
capaz de lhe garantir uma vida digna e plena de paz. Apesar disso, muitos ainda
insistem na ideia de que o espaço da política é um espaço reser­vado apenas para
alguns, os denominados “políticos”.
Há ainda um amplo movimento de desvalorização e descrença na política
e nas possibilidades que a ação política pode produzir em termos da construção de uma sociedade mais justa (ética) e adequada ao bem-viver humano. O
momento é de extrema desconfiança em relação à importância e dignidade da
ação política. Conforme enfatiza Garcia (1997, p. 6),
hoje, a suspeita não se estende apenas sobre quem deve ocupar-se com a
política, mas também sobre a idéia mesma de que a política deva ser considerada entre as mais dignas e necessárias atividades humanas. Se antes a
idéia de participação e responsabilidade no âmbito das interações humanas
e do interesse comum indicava uma imensa restrição aos homens comuns,
hoje o que se generaliza, sobretudo nas sociedades mais ricas, a indiferença,
o desinteresse, e a descrença da política como lugar decisivo onde possa
ganhar forma o interesse possível de todos. Se é difícil descrever em detalhes
as decisões, acasos, escolhas e circunstâncias que se somaram para produzir
nossa presente situação, é fácil no entanto constatar que se esvaneceu a
antiga dignidade greco-romana atribuída à política como responsabilidade
pelo bem comum.
Guernica – Pablo Picasso. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições
Multimídia.
37
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Talvez em nenhuma época da humanidade se faz tão necessário refletir sobre o “político”, como na nossa. Mais que nunca é fundamental que a ação política
e a reflexão sobre o significado desta ação sejam retomadas entre as mais dignas
e imprescindíveis atividades que tornam possível ao ser humano dar conta dos
sentidos e das tarefas de seu tempo. “É preciso reafirmar com convicção de que
a ‘política’ mais que um ‘termo’ e/ou ‘objeto’ de reflexão, diz respeito à atividade
e interesse essencial à condição humana” (Garcia, 1997, p. 13).
Neste sentido, a reflexão sobre a política e seu processo de fundamentação
tem se constituído numa preocupação teórica permanente na Filosofia. Uma
das principais discussões da Filosofia política contemporânea tem como fulcro
de suas atenções o Estado. Discute-se, por exemplo, qual deve ser seu lugar,
sua função, sua dimensão e, principalmente, qual deve ser a medida adequada
do seu poder. Para isso faz-se fundamental uma ampla reflexão sobre as suas
dimensões e a sua fundamentação ética.
3.6.1 – Sobre Ética/Política
A presente exposição não tem a pretensão de ser um tratado sobre
ética-polí­tica, ao contrário, o que se deseja é levantar e problematizar alguns
elementos que possam nos auxiliar e/ou indicar caminhos no exercício de busca
por compreensão desta complexa e vasta temática.
A partir do mundo moderno e, em especial, do mundo e da política
contemporâneos, ética e política tornaram-se dois conceitos que, não necessariamente, fazem parte de um mesmo processo. No plano da reflexão teórica/
filosófica/política, assim como da ação política, tem-se discutido e insistido na
necessidade da ética na política ou ainda, da ação política feita a partir de pressupostos éticos. Em outros termos, isto significa dizer que a ação ética e a política
não possuem, necessariamente, a mesma natureza, podendo ser pensadas e/ou
desenvolvidas de forma distinta ou, até mesmo, antagônicas. Os conceitos de
ética e política, porém, na forma como a tradição filosófica grega originalmente
os haviam pensado, não são conceitos distintos que possam ser instituídos e
pensados desarticulados ou antagônicos.
Genericamente é possível afirmar que as teorias políticas clássicas da
antiga Grécia são marcadas pela profunda intenção de dizer qual é a melhor
forma de construir um modelo político que esteja em sintonia com o ideal de
justiça. A lei, neste sentido, deve ser a expressão da justiça. A ação política, na
perspectiva clássica engendrada pelos gregos, é uma ação necessariamente
ética, pois ela deve sempre visar ao que é o melhor, o mais justo para o cidadão
e para a cidade. A este respeito, num sucinto, porém brilhante artigo intitulado
Ética e Política, H. Vaz argumenta que:
[...] as teorias políticas clássicas, de Platão a Cícero, se propõem como teorias
da melhor constituição: não da que garante mais eficazmente o exercício do
poder, mas da que define as condições melhores para a prática da justiça. Se,
como ensina Aristóteles, o homem é vivente político (Zôon politikón) porque
118
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Filosofia e Ética
é vivente racional (zôon logikón), a ciência política tem como objeto definir
a forma de racionalidade que vincula o livre agir do cidadão à necessidade,
in­trínseca à própria liberdade e, portanto, eminentemente ética, de conformarse com a norma universal da justiça. A racionalidade política na conceituação
clássica é, pois, essencialmente teleológica. Ela é ordenadora de uma prática
em vista de um fim, que é a justiça na cidade. [...] E se é verdade que Aristóteles introduz uma diferença de natureza metodológica entre ciência teórica
e ciência prática, a definição da ciência prática fortalece o finalismo do Bem
que unifica Ética e Política segundo a mesma razão do melhor, ou seja, do que
é mais justo para o indivíduo e para cidade (1988, p. 258-259).
Como é possível perceber, para o pensamento político clássico a busca
pela consecução do ideal de justiça faz com que se unifique ética e política.
Ambos os conceitos – ética e política – fazem parte indissociável do processo
de edificação de uma sociedade que tenha como fim a justiça, a realização da
ideia de Bem. Sendo assim, ao considerarmos exclusivamente as origens da
nossa tradição filosófica/política/cultural, não faz sentido falar em ação política
dissociada da dimensão da eticidade. Segundo a perspectiva política clássica,
da qual somos herdeiros e devedores, a ética constitui parte integrante da vida
política e isso implica que tanto a ação política quanto a ética, necessariamente,
não devem ser consideradas separadamente.
O advento do pensamento moderno e da modernidade enquanto evento
histó­rico/social/político/cultural produz um significativo processo de mudança/
ruptura na concepção e na forma do agir político. Na teoria política moderna,
que é, sob vários aspectos, impulsionadora e instauradora de um novo modelo
para a ação política, a ética, não necessariamente, é parte constitutiva desta
ação. Na modernidade instala-se um processo de divórcio entre as dimensões
do ético e do político. É possível afirmar que o primeiro incitador e/ou mentor
teórico deste divórcio é Maquiavel. Com a teoria política de Maquiavel instala-se
em definitivo o processo de cisão entre o ético e o político. A partir desta nova
perspectiva filosófica/política/ética, presente no horizonte da modernidade,
o poder passa a ser a meta primordial/essencial da reflexão e da ação política.
Segundo H. Vaz (1988, p. 259),
[...] na aurora dos tempos modernos, a vontade de poder se impõe como
constitutiva do político, sem outra finalidade a não ser ela mesma e sem outras
razões legitimadoras senão as que podem ser deduzidas da hipótese inicial da
sua força soberana. O mundo da ação política passa a pesar sobre o homem
moderno como um destino trágico que encontra sua primeira figura, de incom­
parável vigor, no Príncipe de Maquiavel. A partir de então, acentua-se, com a
identificação entre política e “técnica do poder”, a cisão entre Ética e Política.
E justamente com o advento do mundo moderno, tão saudado e exaltado
pelos seus avanços em âmbito técnico-científico, pela evolução em termos de
razão comunicativa que, porém, produz-se, em termos da política, uma significativa defasagem ética. Diferentemente do mundo clássico grego, na modernidade rompe-se com a original complementaridade entre ética e política. A ação
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
política passa a carregar a marca da ausência de um necessário vínculo ético,
tendo como meta fundamental o acesso ao poder. O poder torna-se o objetivo
essencial e fundante da ação política. A meta é o poder e não necessariamente
o bem-estar da coletividade. A partir de então, a questão central em termos de
política passa a ser qual a melhor estratégia para se atingir o elemento/meta
fundante da ação política, ou seja: o poder. Assim, política resume-se a um exercício técnico/estratégico – definição de quais os melhores procedimentos e/ou
discursos – de luta pelo poder.
Outro elemento que corrobora significativamente com este processo
de rompimento/cisão entre ética e política provém do próprio campo da ética
na sua designação moderna, ou seja: aquilo que se denominou teoricamente
como o “refluxo individualista da ética moderna”. Conforme Vaz (1988, p. 260),
“Teoricamente a cisão entre Ética e Política acaba sendo consagrada pelo refluxo
individualista da Ética moderna que irá condicionar a ideia de ‘comunidade ética’
ao postulado rigoroso da autonomia do sujeito moral tal como o definiu Kant.”
No plano da Filosofia política, antes de Kant, o esforço passa a se concentrar
na busca teórica por fundamentação e legitimação do poder, uma vez que este
se torna o elemento central e fundante da vida política no mundo moderno. Sob
vários aspectos, os teóricos vão retomar o princípio básico herdado da tradição
clássica, em que o poder não é um fim em si mesmo e para ser político, carece
de legitimação – forma­lizada na forma de leis. Retomando mais uma vez a perspectiva construída por Vaz (op. cit., p. 260),
[...] a idéia de vida política no Ocidente não pode renunciar ao princípio
fundamental da herança clássica: o poder só é político na medida em que
for legítimo, isto é, circunscrito e regido por leis. [...] Por outro lado, a lei que
legitima o poder deve ser uma lei justa, isto é, garantidora e reguladora do
direito do cidadão. [...] Eis a Ética introduzida no coração da política e eis definidos os termos, aparentemente inconciliáveis, cuja síntese passa desafiar
o pensamento político moderno: como definir o Estado do poder [...] como
Esta­do de direito?
A partir desta perspectiva é possível afirmar que o elemento aglutinador,
ou melhor, o fio condutor que vai marcar e direcionar a ação política, assim como
as teorias políticas no alvorecer do mundo moderno, é a questão da soberania
– poder soberano – e onde reside sua fonte de legitimação.
Coerente com esta premissa básica, de que o poder político carece de
fundamentação e legitimação, T. Hobbes vai ser o primeiro autor a efetivamente
dar forma teórica a uma nova matriz conceitual que, por um longo período – e
sob certos aspectos ainda vigora até o hoje – vai servir de base às teorias políticas
da modernidade: o contratualismo e/ou jusnaturalismo moderno.
Com Hobbes e o modelo jusnaturalista moderno, a Filosofia política passa
por um significativo processo de transformação, ganhando um novo modelo
teórico/argumentativo. Inaugura-se uma nova concepção do universo político,
na qual o Estado deixa de ser resultado de um processo evolutivo/natural, não
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EaD
Filosofia e Ética
estando, também, atrelado a uma concepção divino/metafísica. Assim o poder
político, não sendo mais natural e/ou representativo de uma delegação divina,
torna-se artificial. Passa a ser concebido enquanto uma construção racional,
genuinamente humana, resultante, única e exclusivamente, das intenções e
vontades dos seus artífices. Do ponto de vista político, a partir do modelo teórico hobbesiano, o homem está “abandonado” as suas próprias necessidades
e capacidades racionais.
Por meio da teoria jusnaturalista moderna processa-se uma inovação
importan­te, qual seja: a unidade metodológica de argumentação. Parafraseando N. Bobbio e Bovero (1994), no que concerne à teoria jusnaturalista, pode-se
afirmar que o método que une autores tão diversos é o método racional, ou
seja, deve permitir a redução do Direito e da moral (bem como da política), pela
primeira vez na História da reflexão sobre a conduta humana, a uma ciência
demonstrativa. Desta forma, o Direito natural moderno passou a ser designado
como Direito racional. Isso significa que o mesmo não possui mais como base
um princípio ontológico metafísico, mas busca desenvolver-se segundo critérios
racionais.
Referir-se ao contrato social na perspectiva da teoria jusnaturalista
moderna significa perguntar pelo fundamento de legitimidade da sociedade
civil, pois no jusnaturalismo a legitimação reside sempre em alguma forma de
contrato social, uma vez que o Estado não é mais uma realidade natural. Natural
é, pelo contrário, a situação de ausência do Estado. Assim, o Estado deve ser
compreendido enquanto resultado de um ato voluntário e racional por parte
dos indivíduos que dele participam.
Para Hobbes (1988), o contrato38 significa a passagem do estado de natureza para o Estado civil, que implica a substituição da ordem natural por uma
ordem artificial. Implica também, um ato de renúncia aos direitos individuais/
naturais em favor de um novo sujeito político, que passa a ser o novo titular do
poder, agora reunido em um só sujeito, ou seja: “o soberano”. É exatamente este
processo de acordo contratual que designa e institui o fundamento racional da
sociedade civil e da concepção polí­tica hobbesiana como um todo.
Hobbes é frequentemente identificado como o iniciador do modelo jusnaturalista moderno, porém ele
não é o inventor da teoria do contrato em matéria política. “Existia a respeito uma antiquíssima idéia,
que se atribuiu a Epicuro e mesmo a pensadores mais remotos. Era um aspecto da busca racional – tão
importante na história das idéias políticas – da origem do Poder. Semelhante busca fora dominada, em
geral, pela segunda intenção de enfraquecer o Poder, de limitá-lo fundando racionalmente os direitos dos
súditos em face dos seus. Na verdade, os teólogos da Idade Média haviam distinguido dois contratos. Pelo
primeiro, dito pactum unionis ou societatis, os homens, isolados do estado de natureza, constituíam-se
em sociedade. Pelo segundo, dito pactum subjectionis, ou de submissão, a sociedade assim constituída,
transferindo ou alienando seus poderes sob certas condições, propiciava-se um senhor, um soberano”
(Chevallier, 1995, p.72). Segundo a leitura de Paulo J. Krischke, Johannes Althusius (1557-1638) deve
ser considerado “[...] como primeiro defensor articulado do contrato social, por ocasião das revoluções
antiabsolutistas que inauguraram os Estados modernos no Ocidente. [...] A sua proposta encaminhava,
portanto, uma pirâmide acumulativa e sucessiva de contratos (ou dimensões menores, constitutivas
do ‘contrato original’), que resultavam na delegação condicional da ‘suprema magistratura’ ao governo
máximo (através dos representantes das unidades que constituíam o Estado em todos os seus níveis).
[...] Apresenta-se assim, pela primeira vez, uma defesa do ‘contrato original’ de formação de um governo
legitimado pelo consentimento popular (condicional) [...]” (Krischke, 1993, p. 28-29).
38
121
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
O estado de natureza hobbesiano caracteriza-se por uma situação de
perma­nente insegurança, o que o torna restritivo e impeditivo do agir humano,
segundo os preceitos da razão. Sendo assim, a condição necessária para que se
possa viver em segurança é a instauração da paz, de forma definitiva. Na visão
de Hobbes, o único meio para garantir a paz e fazer com que os homens ajam
racionalmente, é a construção do pacto original/universal. Sobre as características
fundamentais desse acordo e/ou pacto original, o autor é incisivo. Inicialmente
deve ser um pacto de muitos – da absoluta maioria – e, principalmente, precisa
possuir o caráter permanente, jamais temporário.
Outro aspecto importante do pacto hobbesiano diz respeito a sua própria
gênese e natureza. Ele deve transcender o nível meramente associativo entre
os indivíduos com interesses comuns, tendo de viabilizar a criação de um novo
ente de poder. “[...] Hobbes recusa nitidamente a doutrina que funda o Estado no
pactum societatis e que identifica a sociedade civil com uma simples sociedade
de ajuda mútua” (Bobbio, 1991, p. 41). Para a teoria hobbesiana, o pacto original deve, necessariamente, fazer surgir um terceiro elemento, absolutamente
independente e artificial.
Hobbes, ao tratar das causas, da geração e definição do Estado, refere-se
à necessidade deste acordo contratual entre os homens, ao afirmar:
A única maneira de instituir um tal poder comum, [...] é conferir toda sua força
e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir
suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. [...] Isto é
mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos
eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com
todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada
homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este
homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a
ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito
isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas
(Hobbes, 1988, p. 105).
Com Rousseau, o modelo teórico hobbesiano passa por um processo de
críti­ca, aprimoramento e complexificação, sem que isso signifique sua negação.
Rousseau, em conformidade com Hobbes, assegura que o Estado é uma construção humana/artificial – um artefato racional –, contrapondo-se, assim, à tese
de que o homem é, desde sua gênese – por natureza – um ser social/político.
Por natureza, segundo Rousseau (1987), o homem é um ser antissocial, que vive
apenas para si mesmo.
Assim, a partir da teoria jusnaturalista e, em especial, a partir de Hobbes, o
Estado torna-se uma instituição absolutamente artificial/racional e, como tal, uma
construção genuinamente humana. No jusnaturalismo o Estado é identificado
como o lugar – o habitat – por excelência da razão.
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EaD
Filosofia e Ética
Com o desenvolvimento da teoria racional do Estado, mediante o jusnaturalismo, ocorre um progressivo processo de secularização do poder político
e da própria vida civil como um todo. Este fenômeno, por sua vez, possibilita
o efetivo desencadeamento do processo de emancipação política do homem,
tornando-o liberto das maquinações e armadilhas do “destino”, da volúpia
incontrolável das paixões naturais e, também, permite a distinção e separação
definitiva das atividades e atribuições do Estado, daquelas exercidas pelas autoridades religiosas.
A política e o poder político, por meio da racionalização do Estado, imposta
pela concepção jusnaturalista, não se encontram mais sob a tutela das verdades
teológicas. Segundo Bobbio Bovero (1994, p. 88),
construir racionalmente uma teoria do Estado significa prescindir totalmente
de qualquer argumento (e, portanto, de qualquer subsídio) de caráter teológico, ao qual sempre recorrera a doutrina tradicional, na tentativa de explicar
a origem da sociedade humana em suas várias formas; [...] significa buscar
explicar e justificar um fato puramente humano como o Estado partindo
da natureza humana, das paixões, dos instintos, dos apetites, dos interesses
que fazem do homem um ser sociável/insociável, ou, em suma, partindo dos
indivíduos [...]
Fica evidente que o elemento teórico que caracteriza e ao mesmo tempo
distingue o modelo jusnaturalista das demais filosofias que o antecederam reside
no fato de que, para os teóricos jusnaturalistas, a questão central é a construção
de uma teoria racional do Estado. Quer dizer, uma teoria que esteja “[...] apoiada
em princípios evidentes e deduzida desses princípios de modo logicamente
rigoroso” (Bobbio; Bovero, 1994, p. 87).
A antítese básica, a partir da qual se estrutura a teoria racional do Estado,
engendrada pelo jusnaturalismo, encontra-se na tensão indissolúvel entre as
paixões humanas e a razão. O Estado, enquanto ente racional por excelência,
surge como consequência necessária e/ou inevitável deste tensionamento produzido pelo embate das paixões e razão humana. O Estado e sua racionalidade
característica constituem-se no elemento capaz de fazer com que a racionalidade
passe a ser o agente propulsor e mediador das ações entre os homens. Isto não
significa, porém, a eliminação das paixões, que são típicas da natureza humana.
Assim, o Estado surge como o instru­mento, “[...] como o garante do interesse
coletivo, do útil mediato, que é o ‘verdadeiro’ útil, precisamente o útil tal como
é sugerido pela reta razão” (Bobbio; Bovero, 1994, p. 88).
O jusnaturalismo e sua teoria racional do Estado fazem surgir o Estado
racio­nal – um Estado que é produto das necessidades, dos interesses e da inteligência racional daqueles que, de forma livre e autônoma, decidiram criá-lo
mediante um contrato que conta com o consentimento de todos os partícipes.
Ele é o único ele­mento capaz de garantir o direito natural supremo, que é o direito à vida. Desta forma, o Estado torna-se o gestor e o lugar por excelência da
vida regida pela razão, que é a única forma de vida em que há possibilidade de
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
previsibilidade e garantia dos direitos que competem a cada indivíduo. Sendo
assim, o Estado, na perspectiva jusnaturalista, pode ser compreendido enquanto
produto da vontade racional dos in­divíduos que o constituem.
Hobbes, enquanto representante teórico do jusnaturalismo, no intuito de
de­monstrar as vantagens e o significado do Estado como sede da vida racional,
afirma:
Fora desse estado, todo homem tem direito a tudo, sem poder desfrutar,
porém, de nada; nesse estado, cada um pode desfrutar, em segurança, do
seu direito limitado. [...] Finalmente: fora dele, assistimos ao domínio das pai­
xões, da guerra, do medo, da miséria, da imundície, da solidão, da barbárie,
da ignorância, da crueldade; nele, ao domínio da razão, da paz, da segurança,
das riquezas, da decência, da sociedade, da elegância, das ciências e da benevolência (Hobbes, 1992, p. 78).
O Estado é, desta forma, a única maneira pela qual os homens podem viver
segundo os preceitos da razão e, assim, garantir uma vida com paz e segurança,
ou seja: uma vida adequada ao bem-viver humano/racional.
A forma pela qual a racionalidade do Estado se explicita, no jusnaturalismo,
é a lei, uma norma geral e abstrata que diz respeito a todos os indivíduos que
constituem um determinado Estado: a lei, porém, é um poder e uma atribuição
exclusiva do Estado-razão. As leis são a única forma de exteriorização e formalização da vontade racional de cada indivíduo que, por meio do contrato original,
fora depositada – transferida – no Estado. O Estado é, desta forma, o elemento
sintetizador, explicitador e garantidor da razão humana. Ele é por excelência o
intérprete e guardião da racionalidade.
Mediante a teoria jusnaturalista, ao contrário das teorias tradicionais
que a pre­cederam, torna-se possível a instituição de um Estado laicizado e uma
consequente dessacralização do poder e, como consequência, da ação política.
O poder deixa de ser exercido em nome de uma representação divina, passando
a ser exercido de forma impessoal, regido por leis provenientes de um poder
consentido pelos indivíduos a elas submetidos.
O Estado torna-se, assim, o ente exclusivo de onde o poder emana, não
sendo admissíveis entes intermediários de poder. Para o modelo jusnaturalista
existem apenas duas possibilidades: “Ou os indivíduos sem Estado, ou o Estado
composto apenas de indivíduos. Entre os indivíduos e o Estado, não há lugar
para entes intermediários” (Bobbio; Bovero, 1994, p. 94). O único ente autônomo
de poder é o Estado. Exatamente por isso é que o Estado e seu poder devem
ser absolutos.
Rousseau expõe sua concepção unificada de poder ao definir o Estado
como o “eu comum” ou “um ser coletivo”. Expressa sua não aceitação quanto à
possibilidade de faccionamento do poder ao afirmar que: “Importa, pois, para
alcançar o verdadeiro enunciado da vontade geral, que não haja no Estado
sociedade parcial e que cada cidadão só opine de acordo consigo mesmo”
(Rousseau, 1987, p. 47).
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Filosofia e Ética
Hobbes, por sua vez, também é enfático ao afirmar a necessidade de um
único ente autônomo de poder. No capítulo 29 do Leviatã o autor enumera várias
situações e doutrinas que são contrárias a unidade do Estado, levando ao seu
enfraquecimento e dissolução. Afirma o autor:
Existe uma sexta doutrina, aberta e diretamente contrária à essência do Estado, que é esta: o poder soberano pode ser dividido. Pois em que consiste
dividir o poder de um Estado senão em dissolvê-lo, uma vez que os poderes
divididos se destroem mutuamente uns aos outros? [...] Assim como houve
doutores que sustentaram que há três almas no homem, também há aqueles
que pensam poder haver mais de uma alma (isto é, mais de um soberano)
num Estado e levantam a supremacia contra a soberania, [...] atuando sobre
o espírito dos homens com palavras e distinções que em si nada significam
[...] (Hobbes, 1988, p. 194-195).
A partir das afirmações de Hobbes e Rousseau, fica evidente que o único
ente capaz e legítimo de poder é o Estado, seja na figura do soberano, no caso de
Hobbes, ou na ideia da vontade geral, no caso de Rousseau. Para a teoria jusnaturalista, o Estado, enquanto Estado-razão, torna-se único e absoluto em matéria
de poder e ordenamento jurídico, pois esta é a condição básica para que o direito
fundamental de natureza – preservação da própria vida – possa ser efetivada e
garantida, em meio às relações exigidas pela vida em sociedade.
Desta forma, a absolutização do poder do Estado não deve ser compreendida como o pressuposto básico, do qual parte a teoria jusnaturalista. Ela surge
e se impõe como consequência lógico/necessária do processo de racionalização
do próprio Estado, como forma de despersonificação e laicização do poder.
A realidade social-política do mundo contemporâneo não conseguiu
produzir os efeitos e resultados esperados que, teoricamente, teriam levado os
indivíduos a abdicar das suas liberdades e poderes individuais absolutos em favor
de um novo e único ente de poder. Enquanto realidade histórica efetiva, a ideia
de um Estado/poder surgido e legitimado num pacto original entre indivíduos,
naturalmente portadores de liberdade e poder, tem se revelado insuficiente para
responder às demandas tão variadas e complexas do mundo contemporâneo.
O desafio que nos é imposto, enquanto cidadãos, estudantes, professores
e pensadores da Filosofia política diante da realidade ético-política contemporânea – extremamente dinâmica e complexa – é o da construção de alternativas
filosóficas/ teórico-políticas que transcendam a “dialética indivíduo-poder”, que
serve de elemento fundante das teorias políticas moderno-contemporânea e das
estruturas de poder delas derivadas. Conforme H. Vaz (1988, p. 261):
Parece, assim, razoável supor que a crise das sociedades políticas con­
temporâneas, sacudidas pelo combate entre as aspirações à participação
demo­crática e a justiça social de um lado e, de outro, a hipertrofia das estruturas do poder do Estado [...] tenha uma das suas raízes num projeto de
existência políti­ca que aceita a oposição indivíduo-poder como a oposição
primeira e constitutiva do ser-em-comum político. [...] o indivíduo é pensado
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aqui primariamente como um ser de carência e necessidade, a alienação ou a
restrição da liberdade no pacto de sociedade encontra sua significação como
condição inicial da qual se deduz o sistema da satisfação das necessidades
que, como sistema político, passa a ser regido pela racionalidade instrumental
do “fazer” ou da produção dos bens.
Assim, o espaço da ética e da política sucumbe ante a lógica da razão
instrumental do puro fazer, tendo em vista a satisfação das necessidades e
carências individuais em detrimento de um projeto de emancipação coletiva.
A questão central, o desafio maior está posto, ou seja: “[...] como recompor, nas
condições do mundo atual, a comunidade humana como comunidade ética e
como fundar sobre a dimensão essen­cialmente ética do ser social a comunidade
política?” (Vaz, 1988, p. 262).
3.6.2 – Reflexões Finais
A intenção aqui não é a de responder à questão anteriormente indica­da,
pelo contrário, esta é uma tarefa coletiva que transcende as opiniões e interesses
individuais, transcende inclusive as fronteiras de nacionalidade. É uma questão
que diz respeito à humanidade como um todo. Com certeza, este deve ser um
trabalho de aprendizado coletivo/solidário, porém não estamos proibidos, mesmo correndo o risco de sermos acusados de pretensiosos, de levantar alguns
elementos que possam contribuir nesta tarefa.
Neste sentido, penso que o aprendizado e a herança clássica grega não
podem ser desprezados, sob o risco de aprofundarmos ainda mais a cisão entre
ética e política. Assim, é urgente a rememoração e revigoração dos princípios
democráticos, como elementos fundantes da ação política, pois “é nas experiências históricas da Polis Grega e da República Romana que se articula, por primeira
vez, a noção de política enquanto um pensar e um agir em comum em vista do
interesse da Cidade ou da República” (Garcia, 1987, p. 9).
A reflexão e a ação política devem ser vistas como um espaço fundamental
para a discussão e construção daquilo que é comum a todos. O espaço da política
precisa ser compreendido como instância do agir, segun­do a vontade livre dos
homens tendo em vista a consecução do bem coletivo.
É urgente a ampliação e aprofundamento dos instrumentos e canais de
participação coletiva/democrática, no sentido de garantir a participação de todos os indivíduos/cidadãos no processo de criação e responsabilização de um
novo projeto coletivo-humano. Um projeto que tenha como elemento fundante
e orientador os interesses da coletividade – da comunidade humana – não só
em relação ao presente, mas também em relação à responsabilidade para com
o futuro desta coletividade. Faz-se necessário uma crítica e revisão dos padrões
éticos hegemônicos, que vigoram e orientam as ações no mundo contemporâneo. Esta é uma das propostas, por exemplo, defendidas pelos pensadores do
chamado “giro ético contemporâneo”.
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EaD
Filosofia e Ética
A designação “giro ético” é algo recente e ainda polêmico dentro dos
padrões da tradição filosófica do Ocidente, porém isso não significa que ele
não esteja lastreado teoricamente e não possua questões significativas sobre
as quais se deva refletir.
A discussão e o apelo à necessidade de uma “virada (giro) ética” podem
ser considerados como resultado e/ou produto da própria crise da modernidade.
É uma tentativa de fazer uma leitura crítica/teórica das consequências e efeitos
produzidos pela razão moderna ao nível das práticas sociais, do pensamento
filosófico, da produção científica e das teorias éticas. É também, uma busca por
soluções que respondam à defasagem e incapacidade das éticas tradicionais,
diante das novas situações e desafios impostos pelo mundo tecnológico contemporâneo.
A base da crítica dirigida à maioria das éticas tradicionais reside no fato de
que elas são dotadas de um antropocentrismo absoluto e também, pelo fato de
não transcenderem o nível da pura formalidade, restringindo-se, assim, apenas ao
âmbito das intenções. Outra limitação característica das éticas tradicionais – por
exemplo, as éticas configuradas a partir do modelo kantiano – diz respeito à sua
abrangência temporal, ou seja, são éticas restritas apenas às ações presentes, e
não consideram as repercussões e consequências futuras destas ações. São éticas
desprovidas de responsabilidade para com o futuro.
Este processo de renovação e atualização do estatuto ético (giro ético)
busca priorizar a revitalização das relações entre teoria e prática, dando ênfase ao
caráter interdisciplinar que se faz presente na constituição dos objetos e discursos
teóricos. O que se deseja como resultado deste processo é urna ética orientada
para o social, diretamente embricada com as ações e relações dos diversos grupos
sociais existentes. Além disso, é uma ética que deve sempre se perguntar pelas
consequências das nossas ações no plano do meio ambiente.
Em última instância, poderíamos considerar que a denominação “giro
ético” desig­na uma proposta de construção de novos projetos de convivência
pelo homem e para o homem. É um verdadeiro processo de conversão da vida
humana por meio da autocompreensão e autorresponsabilidade coletiva.
[...] El espacio cada vez mayor ocupado por las investigaciones antes aludidas,
con su carácter interdisciplinario y dialógico, el reconocimiento de su responsabilidad ética por parte de los científicos (unido al descrédito creciente
de la creencia en la neutralidad axiológica de las ciencias), las exigencias de
esclarecimiento y de orientación morales por parte de la sociedad toda sefialan
la pertinencia de la denominación de giro ético. En efecto, con ella se expresa
un proyecto de convivencia nuevo, otras costumbres y hábitos (éthos y éthos)
de pensamiento y de acción; es decir, un lugar (éthos) propio, construido por
el hombre y para el hombre (Bonilla, 1996, p. 6).
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Como podemos perceber, a nova perspectiva construída pelo “giro ético”
exige-nos um urgente repensar das nossas ações e dos direitos do homem perante o mundo (universo) que habitamos. É uma proposta de discussão e revisão
da concep­ção antropocêntrica tão característica da modernidade.
É uma tentativa de alargamento do espaço de abrangência da ética e,
desta forma, trazendo para dentro do campo de preocupações e discussões
éticas as questões que dizem respeito, por exemplo, à ecologia e à forma como
nos relacionamos – uso – com a natureza. Isto nos remete a uma situação que
implica um possível afrouxamento da concepção antropocêntrica absoluta e,
assim, fazer com que além de termos direitos, tenhamos deveres para com a
natureza e o mundo que habitamos e construímos.
Esta nova ética requer, pelo menos, uma revisão e consequente afrouxamento do antropocentrismo absoluto vigente nas concepções científicas e
políticas de até então. É preciso que se reconheça que o homem não é o único
elemento e/ou ser que tem valor e deve ser considerado no momento da instituição de critérios éticos. Não se está aqui negando que o homem seja um ser
especial, diferente dos demais, porém ele não é o único e sua autonomia e sobrevivência não são absolutamente inde­pendentes dos demais seres e elementos
que compõem o universo. Neste sentido, não necessariamente o homem deva
ser o centro do universo. Apesar de ser especial e diferenciado dos demais, ele
compartilha e mantém relações de dependência com aqueles.
Outro aspecto relevante desta nova concepção ética, desenvolvida a partir
do princípio de responsabilidade, diz respeito à responsabilização do homem
contem­porâneo em relação ao destino da humanidade. Nossas ações devem
estar pautadas pela responsabilidade que temos diante das gerações futuras.
Sendo assim, a ética a ser construída é uma ética não apenas do presente, ela
não se restringe à avaliação e orientação das nossas ações apenas no âmbito
da imediaticidade das mesmas, mas, e principalmente, preocupa-se com as
repercussões e implicações futuras destas ações. Por isso, é uma ética voltada
para o futuro.
A responsabilidade para com o futuro deve agir como princípio orientador
das ações no presente. A garantia de que no futuro haverá um mundo apto à
continuidade da vida humana de forma digna é obrigação e responsabilidade do
homem que, no presente, habita e age neste mundo. Assim, “[...] como proposta
moral, isto é, como obrigação prática para com a posteridade de um futuro distante e como princípio de decisão para a ação presente, essa tese é muito diferente
dos imperativos das éticas anteriores [...]” (Bonilla, 1996, p. 38).
Como já referimos, é uma ética/política que não se restringe à pura “presentidade” das ações, uma vez que está voltada para o futuro. É um tipo de ação
ética/política que se estrutura a partir da projeção do direito das gerações futuras,
ou seja, o direito de continuarem existindo enquanto humanidade. Desta forma, a
garantia da efetividade do direito das gerações futuras é responsabilidade nossa,
128
EaD
Filosofia e Ética
pois, no presente, somos os gestores da humanidade. Neste sentido, o que se
deseja é a construção de um novo modelo de ação ética/política, dirigida muito
mais ao coletivo e ao público do que às ações privadas.
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STEIN, Ernildo. Epistemologia e crítica da modernidade. Ijuí: Ed. Unijuí, 1991. 88p.
(Coleção ensaios, política e filosofia; 4).
VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola,
1988. 293p. (Filosofia).
Seção 3.7
A Estética e suas Relações com o Feio
Maristela Marasca
39
A Estética, enquanto disciplina filosófica, surge
somente em 1750, com a publicação da obra
Estética: a lógica da arte e do poema, de Alexander Baumgarten. Nessa obra o autor utiliza o
termo Estética para designar a ciência que trata
do belo. Para Baumgarten, assim como existe
uma ciência, a Lógica, para conhecer as “coisas
inteligíveis” (“noéta”), deve haver uma ciência
que permita conhecer as “coisas sensíveis” (“aisthéta”). Assim, estão instituídas as condições
para o surgimento da Estética como “ciência do
conhecimento sensitivo” (Baumgarten, 1993,
III, p. 95).
39
Temas relacionados à Estética, entretanto, são discutidos pela Filosofia
desde a Antiguidade clássica. A reflexão sobre o Belo (“Kállos”) e a arte (“Tékne”)
está presente em Sócrates, Platão e Aristóteles. No início da modernidade as
discussões estéticas voltam-se para os critérios que fundamentam o juízo de
gosto – faculdade humana capaz de distinguir entre o belo e o feio. Segundo
Luc Ferry, a discussão sobre o belo sofre uma “mutação radical” na medida em
A Fonte: Marcel Duchamp. http://egonturci.wordpress.com/2012/09/10/a-fonte/
39
130
EaD
Filosofia e Ética
que “o belo é ligado tão intimamente à subjetividade humana, que se define, no
limite, pelo prazer que proporciona, pelas sensações ou pelos sentimentos que
suscita em nós” (Ferry, 1994, p. 36).
Adolfo Vázquez (1999) destaca que a Estética é uma experiência humana
específica, que se caracteriza pela apropriação preponderantemente sensível
da realidade. O autor defende a necessidade de ampliar a “esfera do estético”
incorporando as discussões de outros aspectos, como o feio, o cômico, o trágico,
o grotesco e o sublime.
As reflexões sobre o belo, na Estética, são consideradas predominantes em
diversos períodos históricos. À sombra desse conceito, porém, um vasto universo
permanece latente. Revela sua existência física apesar da resistência em tratá-lo
teoricamente. O feio sempre ocupou um extenso espaço na existência real e artística de todos os tempos, mesmo sendo combatido ou negado. Apesar disso, é
inegável a dificuldade de abordar teoricamente o conceito. Por séculos, o conceito
é mencionado de um modo superficial, para designar a antítese do belo.
Umberto Eco sustenta que o feio não pode ser definido como o contrário
do belo. O autor analisa uma das primeiras tentativas de abordar o tema, feita
por Karl Rosenkrantz na “Estética do Feio”, em 1853. Para Rosenkrantz, o feio está
presente na natureza, na ordem espiritual e na arte e pode ser compreendido
como: “[...] a ausência de forma, a assimetria, a desarmonia, o desfiguramento e a
deformação (o mesquinho, o débil, o vil, o banal, o casual e o arbitrário, o tosco),
as várias formas de repugnante (o desajeitado, o morto e o vazio, o horrendo, o
insosso, o nauseabundo, o criminoso, o espectral, o demoníaco, o feiticeiresco,
o satânico) [...]” (Eco, 2007, p. 16).
Segundo Eco, a análise feita por Rosenkrantz mostra que o feio deve ser
considerado um conceito mais rico e complexo do que tradicionalmente vem
sendo tratado. A partir disso, o autor propõe abordar a questão a partir de uma
história da feiúra que considere três fenômenos diferentes: o feio em si, o feio
formal e a representação artística do feio.
Já Adolfo Vázquez (1999) chama a atenção para a dificuldade histórica de
admitir a dimensão estética do feio. O autor destaca a tendência, em várias épocas,
de associar o feio a valores negativos de áreas como a moral, o conhecimento
cognitivo e a prática. É notória a presença de uma mentalidade que associa o feio
ao mal em diversas culturas. Também é possível perceber a identificação entre o
feio e o falso (não verdadeiro) e entre o feio e o inútil. Para se contrapor à vinculação com valores negativos de outras dimensões da experiência humana, o autor
sustenta a necessidade de reconhecimento da dimensão estética do feio:
O feio ocorre em um objeto que por sua forma é percebido esteticamente,
ainda que se note – sobretudo quando se trata de objetos reais – a ausência
ou negação da beleza. Mas como acontece com outras qualidades estéticas,
mesmo que se trate de uma experiência singular que vive um sujeito em
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EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
determinada situação estética, o feio só ocorre historicamente e, com o fluir
histórico, muda o seu conteúdo. Nem sempre o que foi considerado feio em
uma época sobrevive como tal em outras (Vázquez, 1999, p. 212).
Para o autor, a relação entre o sujeito e o feio não pode ser considerada
uma experiência da ordem do indiferente. Ao contrário, essa relação provoca
uma série de reações sensíveis no sujeito. O fato de o feio ocorrer numa esfera
preponderantemente sensível justifica sua consideração como uma categoria
estética:
O feio, conseqüentemente, não é sinônimo de não-estético ou de indiferente (ou
inestético) a partir do ponto de vista estético... O feio ocorre na esfera do sensível
(da aisthesis) e não de um estado de anestesia (no sentido original de carente
de sensibilidade). Como todo estético, ocorre em um objeto concreto-sensível
e na experiência de um sujeito ao percebê-lo sensivelmente (1999, p. 212).
O sujeito reage de modo diverso diante do feio real e do feio produzido
pela arte. Mesmo assim, trata-se de reações estéticas. Diante de uma situação
real, o feio normalmente produz repulsa, desagrado e um desejo de afastamento. Ao contemplar o feio “reproduzido” na arte, o sujeito experimenta um certo
tipo de prazer. Tomando como exemplo o Boi Esfolado de Rembrandt, Vázquez
esclarece a distinção feita:
Certamente, o boi esfolado real, ao ser contemplado, só pode produzir um
efeito negativo. Todavia, ao ser representado, esse objeto ingrato, ignóbil, se
transformou, graças à forma sensível que o pintor concedeu à matéria, graças
a seus efeitos de luz e a sua cor carnosa, em um objeto grato e nobre que nos
apraz contemplar (Vázquez, 1999, p. 227).
As relações do sujeito com o feio precisam ser compreendidas nas
transformações do processo histórico. Tomando como referência o período
medieval, percebe-se que a presença do feio é justificada por diversos autores
como manifestação da precariedade e decadência da existência terrena. Se o
mundo cristão é essencialmente belo e bom pelo fato de ser uma criação divina,
a existência do feio é justificada a partir de sua identificação com o mal.
Santo Agostinho, ao investigar as causas do mal, afirma que ele não existe
em substância, mas sim por uma “perversão da vontade desviada da substância suprema” (Agostinho, 1996, p. 190). O mundo é concebido como um todo,
constituído por corpos inanimados, seres vivos sem razão e criaturas espirituais
– seguindo uma escala hierárquica. Apesar dessa ordem estabelecida, à qual é
preciso se conformar, o homem deve aproximar-se da perfeição divina, mesmo
reconhecendo que esta seja inatingível em toda sua extensão.
Essa dialética ascendente do espírito humano apoia-se na concepção de
beleza. A beleza presente no universo físico é considerada uma decorrência da
criação divina. Por isso, é preciso reconhecer que, acima da beleza física, existe a
beleza espiritual, fonte criadora de toda beleza. A verdadeira beleza transcende
132
EaD
Filosofia e Ética
a esfera sensual; pertence apenas a Deus e pode ser apreendida pela intuição
intelectual ou intuição mística. Manifesta-se, sobretudo, na harmonia matemática
e na proporção.
O teólogo critica os que se limitam a apreciar a beleza natural e reprova
o encanto sensual provocado por algumas formas artísticas. Nas “Confissões”,
escreve sobre seu arrependimento em relação ao prazer que sentiu durante a
juventude nos espetáculos teatrais. Recrimina-se por sentir compaixão diante das
dores e sofrimentos dos atores – compaixão por “assuntos fictícios e cênicos”:
Mas eu, miserável, gostava então de me condoer, e buscava motivos de dor. Só
me agradava e atraía com veemência a ação do ator quando, num infortúnio
alheio, fictício e cômico, me borbulhavam nos olhos as lágrimas...
Disto provinha o meu afeto pelas emoções dolorosas, só por aquelas que me
atingiam profundamente, pois não gostava de sofrer com as mesmas cenas
em que a vista se deleitava. Comprazia-me com aquelas coisas que, ouvidas
e fingidas, me tocavam na superfície da alma. Mas, como acontece quando
remexemos (uma ferida) com as unhas, este contato provocava em mim a inflamação do tumor, da podridão e o pus repelente (Agostinho, 1996, p. 81-82).
Em sua obra o “esplendor da verdade”, o bem, o belo e a criação divina
aparecem como elementos indissociáveis. Por outro lado, a existência do mal e
do feio são concebidos como formas de corrupção, de desvirtuamento da ordem
perfeita e harmônica:
Em absoluto, o mal não existe nem para Vós nem para vossas criaturas, pois
nenhuma coisa há fora de Vós que se revolte ou que desmanche a ordem
que lhes estabelecestes. Mas porque, em algumas das suas partes, certos
elementos não se harmonizam com os outros, são considerados maus. Mas
estes coadunam-se com outros, e por isso são bons (no conjunto) e bons em
si mesmos... (Agostinho, 1996, p. 188).
No entendimento de Umberto Eco (2007), é a ideia de “pankalia” (beleza
de todo universo) que domina as discussões medievais. Isso, entretanto, não
elimina a presença do feio nesse período; ao contrário, abre espaço para sua
representação em temas como o sofrimento de Cristo, a inevitabilidade da morte
e as tentações do diabo e do inferno. Ressalta Eco:
É na esteira agostiniana que reencontraremos no pensamento escolástico
vários exemplos da justificação do feio no quadro da beleza total do universo,
onde também a deformidade e o mal adquirem o mesmo valor, no qual no
claro-escuro de uma imagem, na proporção entre luz e sombra, se manifesta
a harmonia do conjunto (Eco, 2007, p. 46).
No século 12, São Bernardo escreve em Apologia ad Guillelmum sobre a
presença do feio nos espaços religiosos. O autor questiona a potencialidade de
sedução exercida por tais elementos, capazes de distrair os fiéis de sua atividade
fundamental, a oração. Entre os ornamentos citados estão figuras consideradas
estranhas, disformes e monstruosas:
133
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
De resto, para que serve, nos claustros, onde os frades lêem o Ofício, aquela
ridícula monstruosidade, aquela espécie de estranha formosidade disforme
e disformidade formosa? O que estão ali a fazer os imundos símios? Ou os
ferozes leões? Ou os monstruosos centauros? Ou os semi-homens? Ou os tigres
manchados? Ou os soldados na batalha? Ou os caçadores com trombetas?
(...) Enfim, por todo lado aparece uma estranha e grande variedade de formas
heterogêneas, para que se tenha mais prazer em ler os mármores do que os
códigos, para que se ocupe o dia inteiro a admirar, uma a uma, estas imagens
em vez de meditar na lei de Deus. Oh Senhor, já que não nos envergonhamos
destas criancices, porque não lamentamos, ao menos, os dispêndios? (apud
Eco, 1989, p. 18).
No período medieval não há uma distinção clara entre a beleza e a utilidade ou a beleza e a bondade. O feio, por sua vez, encontra espaço na arte, ao
ser representado com uma finalidade didática. Ao mesmo tempo em que deve
deleitar, a arte deve “servir” como instrumento de divulgação dos princípios
cristãos:
Os mesmos autores eclesiásticos que celebram a beleza da arte sacra insistem,
por outro lado, no seu fim didático; o objetivo de Suger é o que foi sancionado
pelo sínodo de Arras em 1025, para o qual o que os humildes não podiam
apreender através da escrita devia ser-lhes ensinado através das figuras; o
fim da pintura, diz Honório de Autun, como bom enciclopedista que reflete a
sensibilidade dos seus tempos, é tripla: serve, antes de mais, para tornar bela
a casa de Deus (ut domus tali decore ornetur), para chamar à memória a vida
dos santos e, finalmente, para o deleite dos incultos, dado que a pintura é a
literatura dos leigos... (Eco, 1989, p. 27).
O uso de formas artísticas com finalidade didática aparece nas tentativas
de evangelização feitas pela Companhia de Jesus nos territórios luso-hispânicos.
Tanto na Província do Paraguai quanto na Província do Brasil, as Reduções indígenas eram dirigidas pelos jesuítas que organizavam o trabalho, o processo de
evangelização e a ordem econômica. As oficinas de carpintaria e de escultura
produziam as ferramentas necessárias para o trabalho, instrumentos musicais
e para esculpir.
Um dos meios de evangelização preferidos pelos jesuítas era o teatro. O
teatro jesuítico incorporou alguns elementos dos rituais indígenas primitivos,
como é o caso da música, da dança e do canto cerimonial. As primeiras formas
de dramatização, criadas sob o formato de alegorias, eram utilizadas para marcar
celebrações e festividades do calendário cristão:
El camino estaba abierto para que dentro de un recitado local y temporal,
se incorporasen (sin violencia) sencillas alegorías como virtud, salvación
eterna, y los principales fundamentos de la Iglesia, como Nuestro Señor, la
Virgen María, Santos y Apóstoles, que fueron consolidando su presencia en
imágenes exhibidas al pueblo, en las celebraciones y festividades de aldeas
cristianizadas (Rela, 1990, p. 112).
134
EaD
Filosofia e Ética
Espetáculos com propósitos evangelizadores também eram encenados
nas cidades. Eram destinados aos colonos, mamelucos e indígenas cristianizados
e representados nos pórticos das igrejas ou em palcos especialmente feitos para
este fim. Um exemplo disso é a obra de Padre Anchieta que intercala alegorias
e diálogos correntes para despertar o interesse do espectador em relação aos
ensinamentos do Evangelho. Povoados por anjos e demônios, seu enredo cumpre
a finalidade de expor aos espectadores a doutrina cristã. Analisando a obra de
Anchieta, Monsenhor Guilherme Schubert ressalta a presença dessas figuras:
Hay discusiones entre demonios y ángeles, oportunidad para que estos expongan la doctrina cristiana. Los Santos cristianos aparecen con trajes vistosos
y multicolores. De esta forma, a diferencia del teatro europeo de época, en
los Autos predominan figuras concretas: Nuestra Señora, Angeles y Santos,
pero mucho menos las alegorías, como Amor y Temor de Dios, la ciudad de
la Victoria, y la Ingratitud (apud Rela, 1990, p. 125).
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Em seguida, analisa a representação do bem e do mal na obra de Anchieta. Enquanto o mal e o feio são relacionados aos elementos pagãos da cultura
indígena, o bem e o belo só podem ser conquistados pela salvação cristã:
Los demonios, con nombres indígenas traen a sus víctimas amarradas con
cuerda usada para los sacrificios humanos, y hay referencia al canibalismo
indio. Hay luchas entre Angeles y Demonios, y el Angel de la aldea asegura
en su mano el garrote, mientras un demonio dispara un arcabuz en plena
escena. Pero los Angeles o San Mauricio, vencen y mandan a los demonios al
“infierno”. Y cuando uno de ellos se quiere resistir, tiene la cabeza partida con
un tacapé (otro instrumento usado en el sacrificio pagano), ¡argumento muy
convincente para los indios! (apud Rela, 1990, p. 125).
Adolfo Vázquez aponta para uma vinculação intrínseca entre o belo e o
feio no período medieval. As duas categorias são consideradas a partir de uma
relação de subordinação, na medida em que o feio só é admitido quando reforça
a ideia de oposição ao belo e para servir à exteriorização de uma mentalidade
predominante na época:
O feio existe certamente na vida real e entra na arte e na literatura para mostrar
que o belo é apenas relativo, precário, já que só a beleza divina é absoluta,
plena e eterna. E o feio, ao ser representado artisticamente, recorda a transitoriedade do belo, associada ao pecado, à enfermidade, à decrepitude e à morte.
Em suma, o feio neste mundo terreno é o limite do belo... (1999, p. 219).
Na modernidade, a discussão sobre o feio segue uma nova direção em
meio à polêmica travada entre os representantes da estética clássica e da estética
romântica. O Romantismo rompe com princípios vigentes que estabeleciam
regras para a criação artística. Victor Hugo, no Prefácio de Cromwell (1827), afirma
que a arte moderna deve ser orientada pelo princípio de liberdade e demonstra
sua rebeldia em relação a qualquer tentativa de regrar sua produção:
135
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Usemos o martelo nas teorias, nas poéticas e nos sistemas. Deitemos abaixo
esse velho estuque que esconde a fachada da arte! Não há regras, nem modelos; ou melhor, não há outras regras senão as leis gerais da natureza que
planam sobre toda arte no geral, e as leis especiais que, para cada composição, resultam das condições da existência próprias a cada assunto [...] (Hugo,
2004, p. 306).
Inspirado pelo “espírito de melancolia cristã”, o autor defende uma nova
poesia que mostre outras facetas além do belo, como o feio e o grotesco. Está
aberta uma nova perspectiva, que sustenta teoricamente a representação do feio
na arte e na literatura. Hugo afirma: “[...] a Musa Moderna verá as coisas com um
olhar mais elevado e mais vasto. Sentirá que tudo na criação não é humanamente
belo, que o feio existe aí ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco
no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz [...]” (Hugo, 2004,
p. 305).
Para Umberto Eco, Victor Hugo faz uma “apaixonada exaltação romântica do feio”, desconstruindo a convicção do belo como ideia predominante na
estética. O feio não aparece mais apenas como contraponto ao belo, mas como
categoria estética autônoma:
O feio que Hugo vê como típico da nova estética é o grotesco (“uma coisa
disforme, horrível, repelente, transportada com verdade e poesia para o domínio da arte”), a mais rica das fontes que a natureza poderia oferecer à criação
artística... Mas em Hugo o grotesco transforma-se na categoria que (embora
ele fale de fenômenos artísticos que se estendem ao longo de dezenas de
séculos) explica, anuncia e, em parte, promove uma galeria de personagens
que, entre o final do século XVIII e os nossos dias, parecem marcados por uma
satânica ou patética ausência de beleza (Eco, 2007, p. 280).
Rompendo com a rigidez da estética clássica que preconiza a “pureza”
dos gêneros, Victor Hugo propõe a mistura de elementos trágicos e cômicos,
provocando um “terremoto” na criação poética. Inspirado pela natureza, o poeta
moderno deve livrar-se das convenções estabelecidas pela tradição: “Por-se-á a
fazer como a natureza, a misturar nas suas criações sem, portanto, as confundir,
a sombra com a luz, o grotesco com o sublime, noutras palavras, o corpo com a
alma, a besta com o espírito [...]” (HUGO, 2004, p. 305).
Dessa maneira, a poesia dramática deve ser uma espécie de espelho da
natureza, entretanto, mais do que ser “fiel” à natureza, o poeta deve ser capaz
de criar um “espelho de concentração”, no qual aspectos diversos da realidade
estejam presentes: “O teatro é um ponto de óptica. Tudo o que existe no mundo,
na história, na vida, no homem, tudo deve e pode refletir-se aí, mas sob a varinha
mágica da arte. A arte folheia os séculos, folheia a natureza, interroga as crônicas,
ensaia-se a reproduzir a realidade dos fatos, sobretudo as dos costumes e dos
caracteres [...]” (2004, p. 309).
136
EaD
Filosofia e Ética
Na arte moderna, o feio aparece não mais como subterfúgio para finalidades didáticas ou para ser convertido em beleza. O feio surge, nas obras,
enquanto tal, chamando a atenção para aspectos usualmente desconsiderados
pela arte acadêmica. Vázquez destaca essa concepção do feio nas produções de
Velázquez, Rembrandt e Ribera:
O feio como tal, com sua realidade própria, está aí na pintura deles para expressar certa relação do homem com o mundo: uma relação tensa, purulenta
ou desgarrada que não pode ser expressa com a serenidade e o equilíbrio
emocional do belo. O feio, portanto, não pode deixar patente ante nossos
olhos essa relação embelezando-se, ou seja, negando-se a si mesmo, deixando
de ser propriamente feio... (Vázquez, 1999, p. 222).
A arte de vanguarda, no início do século 20, e as manifestações artísticas
contemporâneas, consagraram o feio como uma categoria estética autônoma.
Na estética, novos espaços de discussão sobre o tema se estabelecem. O questionamento filosófico sobre o significado do feio para a existência humana e
histórica afirma-se como condição indispensável para compreender a experiência
estética.
Ao descrever uma personagem em Um Cavalo de Raça, Baudelaire
afirma: “Ela é muito feia. Mas é deliciosa!” O poeta parece insinuar o caminho
para compreendermos melhor as diversas facetas do feio, desvinculando-o de
sua óbvia associação à negatividade. É um convite para vê-lo com outros olhos,
aproximando-o da ironia, da criticidade, do prazer e do lúdico.
Referências
AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Col. Os Pensadores).
BAUDELAIRE, Charles. O Spleen de Paris – pequenos poemas em prosa. Rio de
Janeiro, RJ: Imago, 1995.
BAUMGARTEN, Alexander G. Estética: a lógica da arte e do poema. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1993.
BAYER, Raymond. Historia de la estética. México: Fondo de Cultura Económica,
1993.
ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Lisboa: Editorial Presença,
1989.
______. História da feiúra. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2007. (Col. Dimensões).
FERRY, Luc. Homo Aestheticus. A invenção do gosto na era democrática. Ensaio
movimento de idéias/idéia em movimento. São Paulo, SP, 1994.
HUGO, Victor. Prefácio de Cromwell. In: HUGO, Victor. Estética teatral – textos de
Platão a Brecht. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
RELA, Walter. El Teatro en Brasil, Paraguay, Argentina: Siglos XVI-XVIII. Montevidéu:
Universidad Católica del Uruguay, 1990.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Convite à estética. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1999.
137
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Síntese da Unidade 3
Nesta Unidade, estudamos que:
• Todas as mais variadas formas pelas quais as
visões de homem e de mundo vieram sendo
pensadas ao longo da História moldaram o
homem moderno e o mundo que conhecemos.
Com isso aprendemos a relativizar a própria
sociedade e sua época, reconhecendo que os
valores morais e os costumes não são absolutos e que o mundo tem o homem como o seu
agente transformador.
• O homem não pode ser reduzido a uma única,
simples e fixa definição, ou seja, aquilo que
dizemos dele, o seu conceito, está condicionado pela História, pela cultura na qual está
inserido.
• A base da ética é sempre a cultura, o hábito, o
modo de vida de um grupo, que vai se complexificando com o passar do tempo e, por isso
mesmo, exigindo novos princípios que possam
salvaguardar a dignidade humana. Este modo
de vida, construído a partir da visão de mundo
e de homem que o grupo possui, formará uma
visão ampla de toda realidade: o paradigma, ou
seja, um modelo de compreensão do mundo
que norteia as ações humanas.
• A moral é uma construção humana. E como o homem não é um ser natural e fixamente definido,
mas um ser social que está sujeito a transformações, dizemos que a moral é uma construção
histórica. Por essa razão é que, apesar de os
sistemas morais estarem fundamentados em
valores como o bem e a liberdade, aquilo que
seja o bem e a liberdade, o seu conceito varia
historicamente. Isto explica a diversidade de
concepções éticas.
• A responsabilidade para com o futuro deve ser
princípio orientador das ações no presente, pois
a garantia que no futuro haverá um mundo apto
à continuidade da vida humana é obrigação e
responsabilidade do homem que, no presente,
nele habita. Ou seja, é uma ética que está voltada
para o futuro, para uma ação que se estrutura a
partir da projeção do direito das gerações futuras
de continuarem existindo.
• A arte no início do século 20 e as manifestações
artísticas contemporâneas consagraram o feio
como uma categoria estética, cunhando novos
espaços de discussão sobre o significado do
feio e, assim também, do que vem a ser o bom,
o belo, o justo, para a existência humana.
138
Unidade 4
ÉTICA E CONTEMPORANEIDADE
OBJETIVOS DESTA UNIDADE
•
Compreender os fenômenos contemporâneos presentes nas relações
de trabalho e suas implicações éticas.
•
Analisar, sob a perspectiva ética, os processos crescentes de violência
presentes na cultura da modernidade.
•
Refletir as perspectivas, em termos ético/educacionais, para a sociedade e a cultura vigentes em nosso tempo histórico.
•
Debater as implicações éticas presentes no fenômeno da comunicação e suas tecnologias.
AS SEÇÕES DESTA UNIDADE
Seção 4.1 – Algumas Considerações Sobre o Trabalho Alienado em Marx
Seção 4.2 – Ética e Violência: a Ética como Filosofia Primeira
Seção 4.3 – Reflexões Acerca das Perspectivas para a Educação no Século 21:
Uma Análise em Perspectiva Ético-Filosófica
Seção 4.4 – Ética, Comunicação e Novas Tecnologias
139
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Seção 4.1
Algumas Considerações
Sobre o Trabalho Alienado em Marx1
Vânia Dutra de Azeredo
2
A QUESTÃO
Marx denuncia a desvalorização do homem a partir do crescente aumento e valorização das mercadorias produzidas por este mesmo homem. Procura
mostrar como se desenvolve essa desvalorização no conjunto da sociedade. Com
isso, detém-se sobre as relações sociais nas quais se apresentaria a concretização
da desvalorização humana e sua crescente desumanização.
O homem se faz humano nas próprias relações sociais, entretanto é nessas
mesmas relações sociais que perde sua essência, ou seja, sua humanidade. Essa
perda ocorre a partir da forma como o trabalho é desenvolvido em determinada
sociedade. O trabalho apresenta-se, por um lado, como a essência humana, isto
é, pelo trabalho o homem se autoproduz e, por outro, como o responsável pela
desumanização. Embora o trabalho seja definido por Marx como a essência do
homem, na atividade produtiva o que se verifica é a coisificação do homem, sua
transformação em mercadoria. Isso ocorre devido ao hiato existente entre o trabalho como essência humana e a concretização dessa essência na existência.
Marx argumenta que “a essência do homem nunca se manifesta efetiva,
real ou historicamente”, pois, na existência concreta, o trabalho – essência humana – aparece como trabalho alienado. A alienação do trabalho apresenta-se
Texto publicado em primeira versão em: Schneider, Paulo Rudi (Org.). Introdução à Filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí,
1995. p. 62-72.
1
Colhedores de batatas – Van Gogh. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo:
Alphabetum Edições Multimídia.
2
140
EaD
Filosofia e Ética
como resultante da alienação com relação ao objeto produzido e com relação à
própria atividade produtiva. Como consequência dessas duas alienações, tem-se a
autoalienação do homem e a alienação deste com relação aos outros homens.
O TRABALHO ALIENADO
A alienação é um dos conceitos centrais do sistema marxiano, visto que
se estende a todos os domínios das relações humanas. O estudo da alienação
principia pela alienação religiosa, perpassando a filosófica, a política, a social,
culminando com a alienação econômica. Nessa última é que se situa a questão
básica, ou seja, o fator de autoalienação do homem: o trabalho alienado.
A essência humana é definida pelo trabalho. É pela atividade produtiva
que o homem constrói seu ser, mediante o estabelecimento de relações com a
natureza. O trabalho é responsável pela mediação entre o homem e a natureza.
Tal mediação consiste na relação da natureza com ela mesma, uma vez que o
homem, como uma parte dela, se relaciona com o todo. Pelo trabalho o homem
se apropria e transforma a natureza e acaba por transformar-se a si mesmo. A
atividade produtiva, por conseguinte, é determinante do autorreconhecimento
do homem e do reconhecimento dos outros homens, isto é, vincula necessariamente o caráter social do ser humano.
O trabalho, todavia, ou a atividade produtiva, nem sempre cumpre a sua
função definidora da essência humana. De fato, Marx observa que a essência
humana não se concretizou historicamente na existência humana. As formas de
relações estabelecidas pelo trabalho – divisão de trabalho, trabalho assalariado
– foram responsáveis pela cisão entre a existência do trabalho e a essência que
deveria caracterizá-lo e, consequentemente, definir o homem enquanto humano.
Esse desvio da essência é que caracteriza, por um lado, o trabalho alienado e,
por outro, a alienação do próprio trabalho.
A alienação do trabalho pode ser caracterizada em quatro pontos fundamentais: o homem se aliena do produto do seu trabalho, daquilo que ele produz;
aliena-se de si mesmo; aliena-se da própria atividade produtiva e aliena-se dos
outros homens.
A alienação do objeto
A questão da alienação com relação ao produto do trabalho – objeto –
ocorre devido à impossibilidade de o trabalhador se apossar do objeto produzido.
O operário produz, mas, concluída a produção, entrega o objeto produzido a um
terceiro em troca de um salário. Ocorre então não a venda do produto, mas a
venda da força de trabalho. O operário passa a vender a si próprio. Devido a isso,
o trabalhador torna-se mercadoria, pois vende a si e o seu trabalho. Há, portanto,
uma dupla produção de mercadorias: aquelas produzidas pelo trabalho do operário e o trabalho do operário produzido como mercadoria, e, por conseguinte,
a transformação do operário em mercadoria.
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O trabalho não produz só mercadorias, se produz também a si mesmo e
ao operário como mercadoria, e além disso, na mesma proporção em que produz
mercadorias em geral.3
O objeto produzido deixa de pertencer ao operário e apresenta-se a este
como algo estranho e alheio. “O produto é a objetivação do trabalho,”4 encerra
em si o desdobramento de sua confecção, ou seja, no produto está objetivado
o ato da produção, o próprio trabalho. O operário, no sistema capitalista, dificilmente tem acesso ao produto de seu trabalho. Quanto mais gera mercadorias,
mais difícil torna-se a sua participação na sua distribuição. Quanto mais produz,
mais distante fica da produção com relação à aquisição e, em contrapartida,
acaba cada vez mais submetendo-se – estar a serviço – à acumulação desta
mesma produção. O aumento de riquezas acarreta ao operário o aumento de
sua pobreza, pois as riquezas se originam do acúmulo de seu trabalho e, uma
vez que este não lhe retorna, o trabalhador se vê privado dos meios necessários
para sua própria subsistência.
O capital, que se constitui como trabalho acumulado, é gerado pelo
operário, todavia o trabalho não se apresenta a ele como algo seu. Apresenta-se,
pois, como determinante de sua subjugação. O operário fica submetido ao capital, o que faz com que o aumento da produção acarrete sua maior subjugação.
Dessa forma, o objeto produzido não só não lhe pertence, como se lhe opõe, e,
ainda, passa a determinar sua condição. Isso é o que, propriamente, caracteriza
a alienação do objeto produzido com relação ao seu produtor.
A alienação em seu produto significa não só que seu trabalho transformouse em um objeto, em uma existência externa, se não que esta existência está
fora dele, é independente dele e alheia a ele, e representa um poder próprio
e substantivo frente a ele, a vida que operário deu ao objeto enfrenta-se a ele
como algo estranho e hostil.5
O homem, como foi exposto anteriormente, se relaciona com a natureza
por meio de sua atividade produtiva. Tal atividade, por sua vez, só pode exercerse sobre a natureza. Por essa razão, a natureza fornece os meios necessários –
“objetos sobre os quais o trabalho atua”6 – para a concretização do trabalho. É
a natureza, também, que fornece os meios de vida necessários para a própria
subsistência do operário, sua existência física. Um sistema em que o trabalhador é privado do fruto de seu trabalho tem como consequência a privação, ao
trabalhador, dos meios de produção para tal trabalho, bem como dos próprios
meios de subsistência que adviriam deste trabalho.
Marx, K. Manuscritos econômicos-filosóficos de 1844. Tradução Mauky Cardama Guedes, p. 68.
3
Id. ibidem, p. 69.
4
Id. ibidem, p. 69.
5
Id. ibidem, p. 69.
6
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Filosofia e Ética
Quanto mais apropria-se o operário do mundo exterior, a natureza sensível, por meio do seu trabalho, tanto mais fica privado de meios de vida neste
duplo sentido, porque, em primeiro lugar, o mundo exterior sensível deixa de
ser cada vez mais um objeto pertencente ao trabalho, um meio de vida deste, e,
em segundo lugar, porque em medida cada vez maior deixa de representar um
meio de vida no sentido direto da palavra, um meio para a subsistência física
do operário.7
O operário tem sua existência duplamente submetida ao objeto. A sua
existência enquanto trabalhador está determinada pelo objeto, assim como sua
existência enquanto sujeito físico também está. Ele só existe como operário devido à produção do objeto – a venda da força de trabalho – e só pode manter-se
como sujeito físico, adquirindo os meios necessários para sua subsistência, por
ser operário. Marx faz questão de mostrar que o operário só existe como sujeito
físico por ser operário e, sendo operário, só pode existir como sujeito físico. Ora,
enquanto operário ele não pode existir humanamente, uma vez que o trabalho
assalariado acarreta a sua desumanização pela sua transformação em mercadoria.
Isso faz com que o operário seja reduzido a “sujeito físico”. Mesmo, porém, sendo
“sujeito físico” só pode manter-se – subsistir – como tal sendo operário.
1.2. A alienação na produção
Segundo Marx, a alienação com relação ao produto do trabalho é uma
dentre as demais alienações que decorrem e caracterizam o trabalho assalariado. Para ele, se o objeto se apresenta como algo estranho e hostil ao sujeito, o
próprio ato de produção se apresentará assim.
No entanto, a alienação não se manifesta só no resultado, senão que, além
disso, no ato da mesma produção, na atividade produtiva mesma.8
Ora, uma vez que o produto do trabalho deveria retornar ao operário
para que este não só obtivesse os meios de subsistência, mas, e principalmente,
pudesse construir e afirmar a sua humanidade, o ato que impossibilita tal construção e afirmação tem de ser necessariamente agente de alienação. O objeto
aparece, com relação à produção, como um produto passivo de uma alienação
ativa. Enquanto o objeto mostra-se como um produto estranho, o trabalho aparece como ação produtiva de tal objeto estranho. Consequentemente, tal ação
será igualmente estranha e hostil para o operário.
A atividade produtiva apresenta-se como totalmente independente do
operário. Faz com que este se aliene de si mesmo – autoalienação – ao transformar sua atividade em passividade, uma vez que, não lhe pertencendo o objeto
– produto – não lhe pertence o próprio trabalho. Por isso, o trabalho constitui-se
Id. ibidem, p. 70.
7
Id. ibidem, p. 71.
8
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como uma obrigação árdua que serve ao operário única e exclusivamente para a
obtenção do mínimo necessário para sua sobrevivência. Deixa então de satisfazer
sua necessidade humana de autoprodução.
O trabalho externo, o trabalho em que o homem aliena-se, é um trabalho
de auto-sacrifício, de mortificação. Em definitiva, a exterioridade do trabalho
para o operário mostra-se como algo que não é seu, senão de outro, que não
lhe pertence, e em que ele mesmo, no trabalho, não pertence a si mesmo, senão
que pertence a outro.9
O trabalho alienado anula o homem tanto no plano físico quanto no
espiritual. Faz com que suas funções propriamente humanas se convertam em
funções animais. Embora Marx considere comer, beber e procriar como funções
humanas, adverte que tomá-las como fundamentais ou determinantes seria
reduzir o homem ao estado animal, no qual tais funções representam o fim, o
objetivo, da existência.
No homem existe pelo menos uma função que se sobrepõe às funções
meramente animais. Tal função é o trabalho, que, por ser uma atividade livre e
criadora, elevaria o homem. Para que isso possa ocorrer seria necessário o reconhecimento daquele que produz naquilo que é produzido, bem como que a
atividade de produção de tal objeto fosse criadora. Ora, no trabalho alienado isso
não ocorre. O objeto não possibilita ao operário reconhecer-se no objeto, pois
que lhe é estranho. E, com relação à atividade produtiva, em vez de ser criadora
ela se torna castradora, pois, ao ser imposta ao operário, faz, como foi referido
anteriormente, de sua atividade um ato de passividade.
1.3. A alienação do ser do homem
O homem relaciona-se com a natureza de duas formas. Primeiro, enquanto
ser físico, relaciona-se com a natureza a fim de obter os meios necessários para
sua sobrevivência. Na segunda forma, a relação é estabelecida por meio da sua
atividade produtiva. O trabalho aparece, então, como um mediador entre o
homem e a natureza e, inclusive, entre o homem e o próprio homem. O homem
é um ser que faz parte da natureza, precisa desta tanto para sobreviver quanto
para se fazer ser, para se humanizar. Por isso, ao fazer parte da natureza como ser
físico e também espiritual, estabelece uma relação da natureza com ela mesma.
Tanto sua vida física quanto espiritual dependem e estão ligadas à natureza.
A humanização advém de sua atividade produtiva. O trabalho, enquanto
objetivação da natureza, faz com que o homem – ser consciente e livre – abarque
e reproduza toda a natureza. É propriamente esta capacidade de objetivar a natureza pela atividade produtiva que, demonstrando sua consciência e liberdade,
Id. ibidem, p. 71.
9
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Filosofia e Ética
constitui seu ser essencial. O homem aparece, então, como ser vivo e atual, ser
genérico. Como ser genérico, ele se manifesta justamente nesta relação em que
a natureza – ou todos os gêneros, inclusive o seu – se convertem em algo seu.
O homem é um ser genérico, não só porque tanto na prática como na
teoria converte em objeto seu o gênero, tanto o seu próprio como o das demais
coisas, senão que, além disso – e isto nada mais é que uma forma de expressar o
mesmo – porque relaciona-se consigo mesmo como com o gênero vivo e atual,
como um ser universal e por isso, livre.10
O trabalho é, para Marx, uma atividade vital. Tal atividade converte-se, no
homem, em atividade vital livre, ou seja, o homem faz “de sua própria atividade
vital o objeto de sua vontade e de sua consciência”. É pelo trabalho consciente
e livre que o homem se faz e, neste fazer, se eleva dos demais animais e se distingue da natureza em geral.
No sistema marxiano a espécie é determinada pelo tipo de atividade
vital que desempenha. No homem, tal atividade se manifesta como consciente
e livre. A consciência e a liberdade é que constituem o caráter de sua espécie,
seu caráter genérico. O homem é o único ser que tem consciência de pertencer
a uma espécie. Com isso se quer afirmar que a natureza humana – entendida
como seu ser essencial – é predominantemente social.
O homem vive da natureza. Tal viver é definido a partir da afirmação de
que a natureza constitui-se como corpo inorgânico do homem. A natureza, ao
propiciar as condições de existência física e, ao mesmo tempo, os instrumentos
da atividade vital ao homem, apresenta-se como seu corpo inorgânico. Com
isso possibilita ao homem sua existência física, seu desenvolvimento espiritual
e, inclusive, social.
Marx procura mostrar como, a partir do trabalho alienado, passam a
ocorrer transformações significativas nas relações existentes entre o homem e
a natureza, transformações estas que chegam a acarretar a alienação do próprio
ser do homem. Em um trabalho em que o produto – trabalho objetivado – não
retorna ao trabalhador, tem-se, como consequência, a alienação do homem
com relação à natureza e com relação a sua atividade vital. Ora, se à atividade
produtiva responsável pela mediação entre o homem e a natureza e o homem
e os outros homens se interpõe outra mediação, o homem, como consequência,
não só se aliena da natureza e dos outros homens, mas de si próprio enquanto
parte da natureza e enquanto homem entre os outros homens.
O trabalho alienado, 1) porque converte a natureza em uma coisa alheia
ao homem, e 2) porque aliena-se a si mesmo, sua própria função ativa, sua
atividade vital, faz do gênero algo alheio ao homem, faz que sua vida genérica
Id. ibidem, p. 72.
10
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se converta em meio de vida individual e em segundo lugar, converte a vida
individual em sua abstração, no fim da vida genérica, também sob sua forma
abstrata e alienada.11
O trabalho alienado acaba por anular a essência humana ao fazer com
que sua atividade, essencialmente social e real, se converta em individual e abstrata. A transformação da atividade produtiva – consciente, livre e social – em
atividade imposta e individual, tem como consequência a alienação do homem
com relação ao seu próprio ser. O que deveria torná-lo superior aos outros
animais, sua atividade vital consciente e livre, torna-o inferior, uma vez que lhe
são usurpadas as condições para exercer tal superioridade. O trabalho humano,
enquanto meio de sobrevivência física estritamente individual, é convertido em
trabalho animal.
1.4. Alienação do homem com relação a outro homem
Uma vez que o trabalho alienado representa uma alienação com relação ao
objeto, ao ato de produção e com relação à essência mesma do homem, seguese a alienação do homem com relação a outro homem. De fato, se ao operário
não é dado o produto de seu trabalho, este deve necessariamente pertencer a
outro homem. Ora, se o trabalho é uma propriedade essencialmente humana, seu
produto só pode pertencer ao homem. Sendo o operário privado do acesso ao
produto de seu trabalho e tendo este de pertencer a outro homem, pertencerá
a alguém que se apresentará ao operário como estranho.
A pertinência do produto do trabalho a um outro homem que não é o
operário faz com que a atividade produtiva, definida como autoconstrução, se
converta em autossacrifício para o trabalhador e em satisfação para o outro. A
imposição do trabalho, sem o retorno da produção, implica a desumanização.
O fato alienante nesse caso deve ser buscado na usurpação do homem sobre
o homem.
Se o produto do trabalho não pertence ao operário, se é frente a ele um
poder estranho, só pode explicar-se em caso de que pertença a outro homem
que não seja o operário. Se a atividade do operário é para ele um sofrimento,
necessariamente será um deleite e uma função vital para outro.12
O trabalhador, por conseguinte, tendo de entregar a sua produção a um
outro, entrega-se a si mesmo. Assim se manifesta a autoalienação do homem,
isto é, a alienação com relação a si mesmo e à natureza. Na vida prática, porém, o
trabalhador manifesta a autoalienação nas suas relações com os outros homens,
ou seja, quando se estabelecem as relações dos outros homens com relação à
Id. ibidem, p. 73.
11
Id. ibidem, p. 76.
12
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Filosofia e Ética
produção do trabalhador. Uma vez que um outro se apropria da produção, isso
acarreta a privação da própria realidade do trabalhador e, como consequência,
o homem perde sua essência e converte o seu trabalho em sacrifício.
A alienação do homem com relação aos outros homens é uma decorrência da alienação do objeto e da alienação da atividade produtiva. O produto
do trabalho que não retorna ao trabalhador fica nas mãos de outro. Com isso
formam-se duas classes antagônicas, uma que é despossuída do objeto produzido
e outra que se apossa da produção de outrem. Ambas as classes são, segundo
Marx, alienadas, só que sob circunstâncias diferentes. Certamente que uma das
classes será mais privilegiada do que a outra, visto que não lhe serão frustrados
os meios de sobrevivência.
Marx assinala algumas das características definidoras que distinguem o
operário e o proprietário com relação à alienação. As diferenças existentes entre
eles são que, primeiramente, para o operário há uma atividade alienada, enquanto
que para o proprietário há um estado alienado, que corresponde sempre à atividade alienada do operário. Enquanto que o primeiro, mesmo na atividade alienada
com relação à produção, apresenta um comportamento real e prático, o segundo
se apresenta a esta mesma produção com um comportamento teórico.
A alienação da atividade produtiva e a consequente alienação do trabalhador em relação a um outro que se apropria do seu trabalho dá origem à
propriedade privada. A propriedade, todavia, aparecerá, também, como meio
de alienação do trabalho, pois que, conceptualmente, a relação entre o trabalhador e seu trabalho implica a relação da produção com o dono do trabalho. O
desenvolvimento da propriedade privada se manifesta, então, duplamente: em
primeiro lugar, como produto do trabalho alienado e, em segundo, como meio
de alienação do trabalho.
A propriedade privada deriva, por análise, do conceito do trabalho alienado, ou seja, do homem alienado, do trabalho estranho, da vida estranha, do
homem estranhado.13
Não só a propriedade privada aparece como resultado do trabalho alienado, embora depois se converta em produtora deste, mas também o salário. Ora,
o salário não é mais do que a confirmação da usurpação do objeto produzido e
da transformação do homem em mercadoria.
A substituição destas relações apresenta-se, a Marx, somente a partir da
emancipação política do operário. Tal emancipação não se restringirá ao operário. Uma vez que a essência humana encontra-se desvirtuada da existência, a
emancipação política do operário poderá possibilitar a convergência de ambas,
pois significará a emancipação do próprio homem.
Id. ibidem, p. 77.
13
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CONCLUSÃO
O desequilíbrio entre a essência e a existência humana deve-se às formas
concretas do desenvolvimento do trabalho. Por um lado, o trabalho deveria propiciar a humanização do homem – e nisso consistiria sua essência; por outro, ele
acaba por coisificar e desumanizar o homem, como verificamos em sua existência
real. Por isso, a essência do trabalho encontra-se desvinculada de sua existência,
pois, ainda que a atividade produtiva consista na própria definição da essência
humana, no trabalho assalariado se converte em negação dessa essência.
A atividade produtiva aparece, historicamente, como atividade alienada.
A atividade produtiva realiza a mediação entre o homem e a natureza. Com
isso propicia, por um lado, a sobrevivência física do homem e, por outro, seu
desenvolvimento espiritual. Tal atividade é, para o homem, vital, só que uma
atividade vital consciente e livre. Justamente na consciência e liberdade com
que o homem desenvolve tal atividade é que ele encontra a autorrealização e,
consequentemente, autoprodução. Tal atividade aparece, porém, historicamente,
como atividade alienada.
A atividade produtiva alienada manifesta-se de quatro maneiras. Primeiramente, apresenta-se com relação ao produto do trabalho – trabalho objetivado
– que, não retornando ao operário, passa a se apresentar a este como estranho
e hostil. Nesse momento o operário é convertido em mercadoria, pois passa a
vender sua força de trabalho em troca de salário. Uma vez que o objeto lhe é
usurpado e se lhe apresenta como estranho, a própria atividade de produção
deste objeto encontra-se já como atividade alienada. A terceira forma de manifestação da alienação do trabalho é com relação ao próprio ser do homem.
O homem, devido à alienação do objeto e à alienação da atividade produtiva, acaba por alienar-se de si e dos outros homens. Efetivamente, o não retorno
da produção ao trabalhador quebra o vínculo do reconhecimento do homem
enquanto natureza. Com isso, ele não se reconhece no objeto, uma vez que este
objeto não lhe pertence mais. Consequentemente, deverá pertencer a um outro
homem que lhe aparece, então, como oposto. Esta oposição entre os homens,
definidora de oposição entre as classes, constitui a alienação do homem com
relação a outro homem.
Marx demonstra como, nas formas capitalistas de produção, efetua-se
a negação da essência humana pelo trabalho alienado. Por outro lado, revela,
também, a impossibilidade de romper com tais situações sem que se rompa
com todas as formas de relações provenientes do sistema capitalista. Somente
mediante a transformação das relações sociais, mormente das relações de produção, é que se poderia eliminar a alienação e enquadrar a essência humana na
sua existência concreta.
Referências
CALVEZ, Jean-Yves. O pensamento de Karl Marx. Porto: Tavares Martins, 1959.
Vol. 2.
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Filosofia e Ética
GIANOTTI, J. A. Origens da dialética do trabalho. 2. ed. Porto Alegre: LPM, 1985.
MARX, Karl. Manuscritos economico-filosóficos de 1844. Bogotá: Editorial Pluma,
1980.
MÉSZÁROS, István. Marx: a teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
URDAÑOZ, Teófilo. Historia de la Filosofía. Madrid: BAC, 1975. Vol. V.
VÁSQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
Seção 4.2
Ética e Violência: a Ética como Filosofia Primeira
Luis Alles
14
Este texto pretende mostrar uma crítica
feita ao pensamento ocidental, com base
na obra de Levinas. A Filosofia levinasiana procurou compreender o fenômeno
da violência enraizada em nossa cultura,
bem como a falta de sentido para a vida
humana. Propõe como possível superação desses problemas a colocação da
Ética como Filosofia Primeira.
14
4.2.1 – A Filosofia ocidental como fomentadora
da violência e de uma vida sem sentido
Levinas fez a experiência da guerra. Sentiu em sua própria carne as consequências nefastas da violência e da total insensibilidade que se estabeleceu
entre os seres humanos no período da Segunda Guerra Mundial. Nessa guerra
Levinas perdeu praticamente toda a família. Assim, essa experiência o impulsionou e motivou a buscar a compreensão da raiz de tanta violência e maldade.
Não só quis entender essa questão da violência e da insensibilidade humana,
mas também buscar criar uma reflexão que, pelo menos, sinalizasse uma saída
desse mundo caótico.
Junto dessa marca da violência o autor também percebe uma outra marca
muito forte na realidade humana moderna. É a falta de um sentido mais profundo para a vida humana. O viver, para muitos, tornou-se um pesadelo, ou uma
vida sem-sentido. Esse sem-sentido para a vida está vinculado ao sem-sentido
Fotografia – s/título – Kevin Carter. Fonte: http://farias.wordpress.com/2007/03/18/foto-de-kevin-carterem-1993.
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das coisas, do mundo. A falta de sentido para a vida significa que o homem se
desviou do caminho capaz de produzir um sentido satisfatório. Significa que o
homem se perdeu num certo labirinto, no qual o sentido atribuído à realidade
é inadequado por não produzir uma realização humana a contento dos nossos
maiores anseios.
Foram essas duas grandes marcas da realidade ocidental, a violência
e a falta de sentido para a vida que, fundamentalmente, motivaram Levinas a
buscar a compreensão das raízes desses problemas e, obviamente, apontar para
uma possível solução. Se a realidade traz essas marcas, certamente as grandes
concepções teórico-filosóficas contribuíram para esse modus vivendi caótico.
Daí a necessidade de uma leitura mais acurada e crítica, para descobrir em que
sentido a reflexão filosófica ou o pensamento ocidental contribuíram para a
geração da violência e da falta de sentido para a vida.
Levinas debruçou-se sobre a Filosofia tradicional para nela perscrutar
elementos que, se não são causa direta desse mundo indesejável, pelo menos
possibilitaram o surgimento dessa realidade. Assim sendo, o que move a reflexão
do autor é a convicção de que a Filosofia é um fator fundamental na construção da
vida dos povos e que durante 2.500 anos ela não conseguiu produzir alguns dos
frutos que a humanidade mais anseia: uma convivência pacífica e solidária.
O predomínio da guerra e da violência é sempre sinônimo de uma vida
sem-sentido. Somente uma relação pacífica e solidária entre as pessoas possibilitará a superação do caos da guerra e a instituição de uma vida com mais sentido.
Uma relação que coloque o outro como centro permitirá o descobrimento ou a
criação de um sentido mais profundo da vida humana, capaz de propiciar uma
realização humana mais satisfatória.
Em que, então, consiste a contribuição da Filosofia para a violência e
para a construção de uma sociedade caótica e sem-sentido? Para responder a
essa questão Levinas busca compreender o que é essencial no pensamento
ocidental. Analisando a Filosofia desde as suas origens gregas, percebe-se que a
questão central está voltada para o ser. A Filosofia quer encontrar uma unidade
na diversidade. Essa unidade é encontrada no ser. Por isso, em última instância,
filosofar é buscar a compreensão do ser. Para além do ser, nada pode-se pensar
ou dizer. Também nada de radicalmente novo poderá surgir. Tudo já está no ser.
O que for pensado ou dito, em última instância, vai ser sempre a repetição do
mesmo. Nesse sentido, a Filosofia como ontologia vai significar uma violência
engolidora da diversidade e da diferença. Só terá sentido o que se conformar
com a totalidade do ser.
4.2.2 – A lógica dominadora da Filosofia Ocidental
A lógica própria dessa tradição filosófica visa a reduzir tudo ao mesmo,
englobando tudo numa totalidade. Nessa lógica predomina o olhar que organiza
tudo em totalidade. A totalidade move-se no nível do visível. Nas palavras de
Levinas, “o visível forma uma totalidade ou tende a ela” (1977, p. 221).
150
EaD
Filosofia e Ética
“A visão é, de fato essencialmente uma adequação da exterioridade à
interioridade: a exterioridade funde-se na alma” (Levinas, 1977, p. 275). Nesse
sentido, parece que a Filosofia tradicional reduz a relação entre o mesmo e o
outro numa relação que se esgota no conhecimento em que o mesmo sempre
abarca o outro. Levinas (1977), no entanto, quer pensar o outro como revelação,
e enquanto tal ele não é abarcável pela compreensão do desvelamento.
A consequência de uma Filosofia como ontologia fundamental, ou ontologia da totalidade, está em possibilitar que alguém se coloque no centro dessa
totalidade e atribua um sentido a toda realidade circundante. Nesta realidade
serão abarcados também os outros sujeitos, como se fossem coisas que estão ali
para servirem a esse eu central. Como não existe um eu absoluto, que pudesse
ocupar o centro da totalidade, cada sujeito sente-se livre para buscar esse centro.
Cada ser humano tende, naturalmente, a compreender o ser com base em seus
interesses, enquadrando ali os outros sujeitos.
E estes, quando não se enquadrarem nessa totalidade de sentido, ou
serão marginalizados ou forçados a se adequarem. Nesta busca constante da
centralidade de um sujeito cognoscente instaura-se, quase sempre, uma relação
de competição e de superação do outro, e a dominação torna-se uma prática
rotineira e moralmente aceita.
Para Levinas, a racionalidade ocidental que procura englobar tudo na
totalidade caracteriza-se como uma violência. “Não há necessidade de provar
por meio de obscuros fragmentos de Heráclito que o ser se revela como guerra
ao pensamento filosófico” (Levinas, 1977, p. 9), argumenta o autor.
A face do ser que revela a guerra está presa ao conceito de totalidade e
domina a Filosofia ocidental. Dentro da totalidade, nas palavras de Levinas, “os
indivíduos reduzem-se aí a portadores de formas que os comandam sem eles
saberem” (1977, p. 10). Todo sentido é conferido a partir da totalidade. A ameaça
constante de guerra, ou a paz que assenta na guerra não devolvem aos indivíduos
a identidade perdida.
Na Filosofia tradicional a alteridade sempre foi pensada a partir da
totalidade. As tematizações que procuraram pensar a relação do eu com o
outro normalmente produziram uma síntese totalizadora, na qual a figura da
alteridade subsumia. A alteridade, portanto, não foi pensada suficientemente
na sua especificidade. E na medida em que a voracidade engolidora do mesmo
fazia desaparecer a singularidade do outro, gerava-se, necessariamente, uma
violência. Evitar esta violência contra a alteridade pareceu a Levinas uma questão
fundamental e uma lacuna a ser suprida pela reflexão filosófica.
4.2.3 – A Filosofia da Alteridade e a Liberdade
A chave da Filosofia de Levinas está no primado do outro em relação ao
mesmo. Nesse entendimento, a relação entre sujeitos é fundamentalmente uma
relação ética. E isto exigirá uma crítica à concepção tradicional da subjetividade
151
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e a elaboração de uma nova concepção de sujeito, principalmente no que diz
respeito ao outro. Assim, “a subjetividade não será determinada pelo ‘modus’ do
eu do conhecimento, mas antes, será ‘tocada’ ou ‘despertada’ pelo outro como
outro” (Pelizzoli, 1994, p. 51).
Não será, portando, um eu que definirá o sujeito a partir do seu conhecimento. A subjetividade não será o resultado de uma experiência cognoscitiva,
mas de uma experiência que brota de um desejo metafísico instigado pelo outro.
O outro me interpela e dele brota um apelo que me convida à generosidade.
A análise levinasiana da liberdade parte da intersubjetividade. Ali, eu
e outro são dois termos desiguais. Um é sempre transcendente em relação ao
outro, o que significa que a relação entre ambos não se dá numa totalidade.
Na dimensão cognoscitiva dá-se o domínio do sujeito sobre o objeto, pela sua
caracterização e classificação, no entanto o ser humano não se deixa enquadrar
numa tipologia classificatória.
Ele permanece estranho ao domínio do conhecimento, e essa estranheza é a sua liberdade. “Só os seres livres podem ser estranhos uns aos outros. A
liberdade que lhes é ‘comum’ é precisamente o que os separa” (Levinas, 1980, p.
60). Na relação do conhecimento o outro permanece livre dos enquadramentos
e generalizações que o conhecimento produz. Neste caso, ao se permitir que o
outro seja ele mesmo, ele nos aparece como estranho, como livre.
A liberdade acontece, propriamente, na relação do eu com o outro
como exterioridade. Esta se manifesta no rosto como bondade e resiste a toda
totalização no ser. Se a liberdade se desse fora dessa relação, então as relações
acabariam, pois cada um fechar-se-ia em si mesmo, ou dar-se-iam como dominação, na qual o outro passaria a participar da razão do mesmo que abarca tudo.
Ninguém olharia no rosto do outro.
O encontro com o outro põe em questão a minha liberdade. O rosto
do outro submete a minha liberdade ao julgamento. Assim, a justificação da
liberdade não se dá no campo do conhecimento, mas no campo da moral. “A
liberdade não se justifica na consciência da certeza, mas numa exigência infinita
em relação a si, na ultrapassagem de toda a boa consciência” (Levinas, 1980, p.
284).
Por isso, para Levinas (1980) o primado está no campo ético, que está para
além da visão e da certeza científicas, e se dá na relação com a exterioridade.
Nessa relação predomina a justiça que me julga. E a liberdade só tem sentido
quando se submete a esse julgamento que me coloca no patamar da inteira
responsabilidade que vem do apelo do outro que se manifesta como rosto.
Essa responsabilidade, à qual sou submetido, causa certa estranheza.
Surgem perguntas do tipo: Onde nasce a responsabilidade? Por que devo ser
responsável pelo outro? A partir do pensamento levinasiano extraímos alguns
indicativos que nos esclarecem essas questões. A presença do outro, no acolhimento, ajuda a me situar na presença da minha última realidade. Não que esta
realidade resulte do que o outro pensa a meu respeito, mas, a sua presença como
152
EaD
Filosofia e Ética
que me reconduz ao lugar próprio do meu ser. Neste momento me dou conta
que a minha realidade última consiste em servir ao outro, e que minha existência
começa, propriamente, com a presença do rosto do outro. Há uma abertura para
o outro que significa tornar-me atento, e “estar atento é reconhecer o domínio
do Outro, receber a sua ordem ou, mais exatamente, receber dele a ordem de
mandar” (Levinas, 1980, p. 160).
Assim, a minha existência só terá sentido na medida em que se realizar
no âmbito da responsabilidade para com o outro. A alteridade exige justiça, e
é neste sentido que a justiça é anterior à liberdade. Esta somente é concebível
dentro da responsabilidade perante o outro. Enquanto na visão tradicional a
liberdade é fundamento de tudo, para Levinas (1980) a liberdade só encontra o
seu fundamento na transcendência. Ali aparece o outro como rosto, que julga a
nossa liberdade. Diante do outro, que exige justiça, somos responsáveis. Somente
somos livres dentro dessa responsabilidade.
4.2.4 – A experiência cognoscitiva e a experiência moral
Para compreendermos melhor a novidade pretendida e buscada pela
Filosofia da alteridade, podemos fazer menção a duas experiências e a dois tipos
de relação: uma é a experiência cognoscitiva, elaboradora do conceito. Nela estou
só e a base última é a minha liberdade. A outra é a experiência moral. Aí a minha
liberdade é posta em questão. A moral, ou a justiça, significa o acolhimento do
outro. Acolher o outro é tornar-se responsável por ele, é submeter a própria liberdade a esta responsabilidade. É a experiência “esquecida” pela racionalidade
técnico-científica.
A Filosofia levinasiana preocupa-se em pensar uma subjetividade e uma
intersubjetividade que são anteriores à centralidade da consciência cognoscitiva.
Dessa forma, pretende-se entrar num âmbito pré-temático, num campo que é
anterior a toda e qualquer Filosofia. É o campo em que a subjetividade é constituída pela sensibilidade e a intersubjetividade acontece como recebimento.
Nesse nível podemos propriamente pensar a ética. No entendimento de Levinas
(1980), a ética torna-se a Filosofia primeira, porque assenta numa subjetividade
que se constitui como abertura e acolhimento do outro, e se efetiva numa responsabilidade infinita em relação ao outro. Uma vez assentada a relação nesse
comprometimento com a alteridade, pode-se partir para a segunda Filosofia que
foi desenvolvida pela tradição ocidental. O compromisso com o outro dá uma
nova direção para a consciência teórica na busca da compreensão e elaboração
do significado e do sentido da realidade na qual estamos imersos.
Nesta relação entre dois sujeitos que se mantêm exteriores um ao outro,
torna-se possível um verdadeiro diálogo e uma eficaz relação intersubjetiva,
pois cada um coloca-se como abertura para acolher o que vem do outro. Há ali
uma relação que coloca num primeiro plano a consciência moral. Nesse plano,
em que o outro é sempre anterior e exterior ao eu, o eu torna-se submisso no
sentido de acolher o que o outro oferta. O eu como consciência teórica que
153
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
busca o saber para dominar o que me cerca, passa para segundo plano. No
primeiro plano haverá a possibilidade de uma relação em que a linguagem será
portadora de um sentido mais originário da vida dos seres humanos. É a linguagem do campo pré-temático, pois acontece no olhar do outro, a partir do rosto
do outro. É a linguagem do infinito que não se deixa enquadrar na linguagem
lógico-compreensiva da racionalidade do mesmo.
Filosofia, na sua origem terminológica grega, quer significar amigo da
sabedoria, amor ao saber. O que é mesmo o saber? Nas palavras de Levinas, “a
crítica ou a filosofia é a essência do saber. Mas o peculiar do saber não reside na
sua possibilidade de ir para um objeto, movimento pelo qual se aparenta aos
outros atos. O seu privilégio consiste em pôr-se em questão, em penetrar aquém
da sua própria condição” (Levinas, 1977, p. 72).
E nesse movimento da busca de um fundamento que justifique a liberdade, a Filosofia depara-se com o “Outro que se apresenta como Outrem” (1977,
p. 73). Dessa forma o saber deixa de ser um poder que domina o ser pela compreensão e passa a ser acolhimento do outro. O acolhimento ao outro torna-se
uma exigência ética que deve ser a preocupação primeira da Filosofia. É nesse
sentido que Levinas pode subverter a ordem dos termos e encontrar um novo
sentido para a Filosofia. Ao invés de amor à sabedoria, Filosofia deveria ser, pelo
menos numa primeira instância, sabedoria do amor. Somente uma Filosofia com
esta pretensão poderá efetivamente enriquecer o sentido da vida humana e
apontar para uma possível superação das marcas caóticas resultantes da violência
presente em nossa sociedade.
4.2.5 – A ética como Filosofia Primeira
Segundo Levinas (1993), a ontologia é dogmática e a ética é crítica. O
dogmatismo ontológico nasce da concepção do sujeito cognoscente como
sendo livre diante do objeto cognoscível. Essa liberdade do sujeito é de tal modo
que subjuga e até mesmo aniquila a identidade do objeto. Como a ontologia
significa a inteligência dos seres, ela legitima a postura do sujeito que aniquila
o outro a ponto de identificá-lo consigo mesmo. Já na ética essa liberdade do
sujeito cognoscente é questionada, o que confere à ética uma dimensão crítica. No âmbito da ética nós temos em primeiro lugar o encontro de dois entes
humanos. É a experiência do face a face que é anterior a qualquer tematização.
Nessa relação o outro se apresenta numa amplitude tal que sempre extrapolará
a pretensão do sujeito cognoscível. A razão tematizadora nunca abarcará a totalidade do outro. Nesse sentido o outro sempre permanecerá instância crítica
dessa pretensão ontológica.
A questão fundamental que se coloca nesse momento é a compreensão
da relação do eu com o outro. Qual é propriamente a base dessa relação e por
que essa relação é ética? Por que essa relação não é possível numa ontologia
absoluta?
154
EaD
Filosofia e Ética
Começamos pela última questão: a crítica de Levinas à ontologia pelo fato
de esta impossibilitar a ética. A ética não é possível porque o eu é colocado no
centro. E o eu é colocado no centro porque é a partir dele que se quer compreender o ser. O eu é a referência central para a qual tudo o mais está voltado. O
outro está incluído nesse “tudo o mais”. O eu passa então a querer compreender
o outro. E o outro torna-se compreensível na medida em que se deixa reduzir à
mesmidade. O que for diferente a essa mesmidade não é compreendido, não é
dominado, é marginalizado. Essa centralidade e superioridade do eu em relação
ao outro impossibilita uma autêntica relação. O outro deve ser compreendido
e, mais do que isso, deve estar a serviço dos interesses do eu. O ser pretendido
pelo eu é o único ser admissível.
A partir dessa visão ontológica a relação entre o eu e o outro sempre estará
comprometida. O outro necessariamente sofrerá a violência do enquadramento
nos interesses do eu. O eu que pensa o ser do outro compromete a relação por
impedir que o outro permaneça na alteridade. Nessa relação a ética torna-se
inviável. Deve-se buscar, por isso, um sentido mais legítimo da relação entre o
eu e o outro. Afinal, por que o eu busca o outro para estabelecer uma relação?
Segundo Levinas, o eu não busca o outro porque está farto e enfastiado
de si mesmo. Nem busca o outro como uma mônada fechada que quer passar
uns bons momentos com outra mônada fechada. Também o eu não busca o
outro para compreendê-lo nem para formar com ele uma comunhão. Se assim
fosse, destruiria a alteridade do outro. A relação com o outro é estabelecida em
níveis mais profundos e originários. Somente nesses níveis é possível falar de
uma relação ética.
Afinal, o que mesmo move o eu em direção a esse outro? O eu busca o
outro porque todas as relações que reduzem tudo a mesmidade não satisfazem.
O outro então é buscado por um desejo metafísico. O desejo vem do outro e
está para além da satisfação própria do mundo da corporeidade. O eu voltado
sobre si mesmo (eu-mim-mesmo), saturado das coisas desse mundo, mas não
plenamente satisfeito, agora pode abrir-se ao outro metafísico. Isso, porém, não
significa que essa abertura ao desejo do outro só acontece após uma saturação
não satisfatória desse mundo. Significa que mesmo tendo usufruído de tudo que
esse mundo oferece ao eu, este ainda não se sente realizado.
Assim, o desejo que vem do outro pode explodir essa mesmidade do eu.
Explodir aqui significa a possibilidade de uma abertura do eu ao outro sem querer
reduzir o outro ao esquema da mesmidade. Significa abrir a possibilidade de uma
verdadeira relação do eu com o outro. Verdadeira porque o eu não se enche do
outro e nem impede que o outro permaneça plena alteridade. Nessa relação o
outro, como exterioridade, não pode ser incluído na identificação do eu. O rosto
do outro fala por si e recorda as obrigações do eu. O olhar estampado no rosto
do outro torna-se um juiz a condenar as arbitrariedades do eu.
155
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
O rosto do outro desperta a vergonha e a culpabilidade. Vergonha da
ingênua liberdade individual e culpa de um mundo egoísta que pretende dominar tudo a seu favor. Dessa forma a relação do face a face torna-se a relação
mais originária e é uma experiência ética que pode contribuir na superação da
violência e na criação de um mundo com mais sentido.
Referências
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Levinas. São Paulo: Loyola, 1997.
COSTA, Márcio Luis. Levinas: uma introdução. Petrópolis: Vozes, 2000.
LEVINAS, Emmanuel. Da existência ao existente. São Paulo: Papirus, 1998.
______. De outro modo que ser, o más allá de la esencia. Introdução de Antonio
Pintor-Ramos. Salamanca: Sígueme, 1987.
______. Ética e infinito: diálogos com Philippe Nemo, Lisboa: 70, 1982.
______. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993.
______. Totalidad e infinito: ensayo sobre la exterioridad. Introdución de Daniel
E. Guillot. Salamanca: Sígueme, 1977.
______. Totalidade e infinito. Lisboa: 70, 1980.
PELIZZOLI, Marcelo Luiz. A relação ao outro em Husserl e Levinas. Porto Alegre:
Edipucrs, 1994.
SOUZA, Ricardo Timm de. Totalidade & desagregação: sobre as fronteiras do
pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: Edipucrs, 1996.
______. Sujeito, ética e história. Porto Alegre: Edipucrs, 1999.
SUSIN, Luiz Carlos. Levinas: a ética e a ótica. In: STEIN, Ernildo; DE BONI, Luís Alberto (Orgs.). Dialética e Liberdade (Festschrift em homenagem a Carlos R. Cirne
Lima). Petrópolis: Vozes, 1993.
______. O homem messiânico: uma introdução ao pensamento de Emmanuel
Levinas. Porto Alegre; Petrópolis: Vozes, 1984.
156
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Filosofia e Ética
Seção 4.3
Reflexões Acerca das Perspectivas para a Educação no
Século 21: Uma Análise em Perspectiva Ético-Filosófica
Valdir Graniel Kinn
O homem não é nada além daquilo que a educação faz dele (Kant).
15
Ao olhar/refletir retrospectivamente
para a História da humanidade, em especial na sua vertente ocidental a partir do projeto de mundo moderno, no
que concerne à educação desenvolvida ao longo desse período, é possível
afirmar que, sob vários e significativos
aspectos, a mesma falhou.
15
Falhou não só nos processos educacionais, mas, e principalmente, falhou
no projeto emancipatório humano que foi gestado na modernidade. Sobre essas
dimensões, reflete M. Gadotti:
No início deste século, H. G. Wells dizia que “a História da Humanidade é cada
vez mais a disputa de uma corrida entre a educação e a catástrofe”. A julgar
pelas duas grandes guerras que marcaram a “História da Humanidade”, na primeira metade do século XX, a catástrofe venceu. No início dos anos 50, dizia-se
que só havia uma alternativa: “socialismo ou barbárie” (Cornelius Castoriadis),
mas chegou-se ao final do século com a derrocada do socialismo burocrático
de tipo soviético e enfraquecimento da ética socialista. E mais: pela primeira
vez na história da humanidade, não por efeito de armas nucleares, mas pelo
descontrole da produção industrial, pode-se destruir toda a vida do planeta.
Mais do que a solidariedade, estamos vendo crescer a competitividade. Venceu
a barbárie, de novo? (2000, p. 3).
Os processos educacionais institucionalizados – nas escolas, universidades etc. – não foram capazes de dar vida aos principais institutos/princípios
alicerçadores do projeto da modernidade. Um projeto que propugnava o esclarecimento e a emancipação humana como condição necessária para uma vida
de plenitude e dignidade.
É importante frisar que as referências norteadoras deste trabalho não
buscam trilhar os (des)caminhos teóricos das diferentes propostas didático/
pedagógicas que se apresentaram ao longo deste período histórico. Sem desme-
Fotografia de Sebastião Salgado. Disponível em: <http://www.agenciaatr.com/sebastiao-salgadodesigualdade-em-preto-e-branco/>.
15
157
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Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
recer e/ou menosprezar as leituras e contribuições produzidas pelos pedagogos
e suas pedagogias, busca-se, neste estudo, um olhar a partir das possibilidades
teórico-metodológicas engendradas pela Filosofia, em especial, a perspectiva16
crítica/histórica/política das dimensões éticas da educação. Neste sentido, não há
como escapar, mesmo que de forma abreviada e quem sabe superficial, da análise
histórica/filosófica das questões éticas que envolvem o processo de educação
e construção do conhecimento. Isso porque somos herdeiros de uma tradição
que nos informa e conforma em sucessivas reconstruções a que necessitamos
estar atentos para superá-las à busca de respostas aos desafios sempre novos
dos tempos mudados (Marques, 1993).
Assim como não se pretende uma análise didático-pedagógica, a
presente reflexão também não tem o objetivo de ser um tratado sobre ética e
educação; ao contrário, o que se deseja é levantar e problematizar alguns elementos que possam nos auxiliar e/ou indicar caminhos no exercício de busca
por compreensão desta complexa e vasta temática. Neste sentido, dois princípios
básicos podem, preliminarmente, ser anunciados. Em primeiro lugar, a necessária
indissociabilidade entre educação e ética,17 compreendendo, assim, a ação educativa, antes de tudo, como uma ação ética. Em segundo lugar, a constatação de
que a análise das questões que envolvem o processo ético/educativo não pode
estar desarticulada da realidade social, política, econômica e cultural vigente em
nosso mundo presente. Presentidade esta marcada pelo sentimento generalizado
de crise e perplexidade, carente de paradigmas e referenciais capazes de serem
alavancadores de novos projetos de sociabilidade humana e da própria educação
como parte constitutiva dessa realidade. Conforme afirma Gadotti:
É um tempo de expectativas, de perplexidade e da crise de concepções e paradigmas não apenas porque inicia-se um novo milênio, época de balanço e
de reflexão, época em que o imaginário parece ter um peso maior. (...). É um
momento novo e rico de possibilidades. Por isso, não se pode falar do futuro
da educação sem certa dose de cautela. (...). A perplexidade e a crise de paradigmas não podem se constituir num álibi para o imobilismo (2000, p. 3).
No que respeita ao termo perspectiva, são fundamentais as observações de M. Gadotti (2000, p. 3-4),
quando afirma: “A palavra ‘perspectiva’ vem do latim tardio ‘perspectivus’, que deriva de dois verbos:
perspecto, que significa ‘olhar até o fim, examinar atentamente’; e perspicio, que significa ‘olhar através,
ver bem, olhar atentamente, examinar com cuidado, reconhecer claramente’ (...). A palavra ‘perspectiva’
é rica de significações. Segundo o Dicionário de filosofia, do filósofo italiano Nicola Abbagnano (2000),
perspectiva seria ‘uma antecipação qualquer do futuro: projeto, esperança, ideal, ilusão, utopia. O termo
exprime o mesmo conceito de possibilidade, mas de um ponto de vista mais genérico e que menos
compromete, dado que podem aparecer como perspectivas coisas que não têm suficiente consistência
para serem possibilidades autênticas’. (...) Perspectiva significa ao mesmo tempo enfoque, quando se fala,
por exemplo, em perspectiva política, e possibilidade, crença em acontecimentos considerados prováveis
e bons. Falar em perspectivas é falar de esperança no futuro.”
16
Ao referirmos ao conceito de ética, é importante salientar que não se trata de um conjunto de normas e
valores predeterminados e não se pode confundi-lo com a própria moralidade vigente. Na perspectiva em
que se está trabalhando, ética assume uma dimensão de reflexão e busca por esclarecimento acerca das
origens e princípios norteadores da moralidade vigente e que se fazem notar nos processos de educação.
Cabe aqui reproduzir as palavras M. Marques: “Os valores éticos que regem a vida humana em sociedade
não se admitem mais eternos, desde sempre estabelecidos ou decretados, nem buscados como ideal do
sábio eqüidistante dos extremos. Não basta a ética da compaixão, sem a ética baseada numa pretensa lei
natural ou em algo situado além da intersubjetividade humana. A ética só se estabelece no entendimento
por todos partilhado através da linguagem da argumentação em que todos ouvem a todos” (2000, p. 15).
17
158
EaD
Filosofia e Ética
Tendo presente esta complexa realidade e, em conformidade com a
perspectiva apresentada por Gadotti, faz-se necessário um exercício constante
e crítico no sentido de compreender as origens e os fundamentos teóricos que
vigoram e são determinantes neste processo.
O processo de globalização tecnológica – tecnociência – é um modelo
de conhecimento que traz consigo a ideia e/ou promessa de um progresso
contínuo e infindável que, necessariamente, deverá construir as soluções para
todos os nossos problemas e assim, saciar os inesgotáveis desejos e necessidades
produzidas pelo homem no mundo moderno e contemporâneo. Esta promessa
já se mostrou irrealizável e com consequências nefastas para o universo humano
e ambiental, obrigando-nos, portanto, a um repensar ético/educativo.
Faz-se necessário, também, desenvolver uma compreensão teórico/crítica sobre os saberes científicos envolvidos nas práticas tecnológicas do mundo
contemporâneo. Nesse sentido, é preciso tematizar as especificidades do conhecimento científico, transformado em razão instrumental, como forma de saber,
como relação de poder e de controle ideológico na cultura da modernidade.
Essa nova realidade centrada na tecnociência afeta diretamente as condições
para o refletir ético/educativo, revelando-nos a defasagem e incapacidade das
perspectivas teóricas tradicionais em construir respostas e propostas capazes
de perspectivar novos caminhos e uma nova consciência em termos éticos/
educacionais.
4.3.1 – Ética, conhecimento e educação
A análise das questões relativas à ética e à educação exige-nos uma análise
anterior e mais ampla do próprio processo constitutivo do conhecimento, em
especial, daquele engendrado pelo projeto da modernidade. Neste sentido, de
forma preliminar, é possível afirmar que a realidade ética/educacional não está
dissociada das demais dimensões da realidade (social, política, cultural e econômica) em que estamos inseridos e, portanto, encontra-se também em situação
de crise. A questão que precisa ser tematizada e (re)elaborada diz respeito à
dimensão desta crise. O que é mesmo que está em crise?
As questões anteriormente levantadas remetem-nos à análise e descrição
do projeto do mundo moderno, em especial de sua dimensão do conhecimento e
da Ciência e o modo como estas refletem nas dimensões éticas/educacionais.
Ao buscar compreender e reconstituir as características fundamentais
do projeto desencadeador e articulador do mundo moderno, percebemos que
este se alicerça a partir de um grupo de grandes conceitos/paradigmas, transformados em “crenças” orientadoras e definidoras das ações dos sujeitos e de suas
concepções de mundo e de humano. Conforme afirma Kujawski em sua obra A
crise do século XX, a modernidade é permeada pelo utopismo e pela crença no
progresso. Segundo o autor:
159
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Razão e racionalismo são formas de radicalismo ideológico, ou seja, de utopismo. O utopismo, ou culto da utopia, exige: a) que a realidade seja transformável
pelo homem; b) que a transformação se dê sempre para melhor; c) que o “melhor”, o grau ótimo de transformação, esteja situado em futuro sempre mais à
frente e sempre por atingir; d) que a realidade presente não tenha valor em si,
mas valha, unicamente, como degrau para o estágio superior seguinte. (...) A
crença no progresso descongela a utopia de sua abstração contemplativa e a
transforma em processo, (...). O progresso atualiza toda aquela imensa riqueza
latente prometida pelo alvorecer da modernidade (1991, p. 21).
Estas são, sem maiores polêmicas, algumas das características centrais do
projeto moderno. “A modernidade (...) condensa sua essência na utopia arquetípica do paraíso terrestre, do céu na terra. Modernidade é utopia (...)” (Kujawski,
1991, p. 21).
Ainda segundo esta mesma perspectiva, o utopismo penetra todas as
dimensões do pensamento e da ação na modernidade. No texto que segue, o
autor reforça ainda mais esta perspectiva:
A razão, tal como a concebe o racionalismo, é pura utopia, ao supor que a
realidade se estrutura more geométrico, como um relógio cósmico regulado
a priori pela razão pura. A ciência moderna é utopismo, na medida em que
se propõe o conhecimento definitivo da natureza em suas leis imutáveis. A
técnica é utopismo ao querer levar aos últimos efeitos o domínio da realidade, ignorando que esta é irredutível à técnica. A política moderna foi toda
dominada pela utopia, primeiro ao enunciar a liberdade e a igualdade para
todos os homens [...]; A arte foi utopizante em seu empenho de revolucionar
o mundo e o homem por intermédio da estética [...]. Por último, a indústria, o
comércio e a publicidade encampam a utopia ao nível mais rasteiro e banalizante, procurando absorver o homem na bolha tépida e macia do conforto
onde ele se sente mais protegido e feliz que no ventre materno (Kujawski,
1991, p. 20-21).
De forma breve e muito genérica, esta pode ser uma descrição/compreensão possível do projeto de mundo engendrado pela modernidade. No mundo
contemporâneo, vivemos ainda as consequências e os prolongamentos deste
projeto tão vigoroso e avassalador. Vivemos não mais o projeto moderno, mas sim
sua crise, sua desarticulação e possível naufrágio: “[...] perdemos os padrões de
pensamento e ação da modernidade e ainda não encontramos seus substitutos
equivalentes para estabilizar e organizar efetivamente a nossa vida” (Kujawski,
1991, p. 28). Este é um momento histórico que nos determina e empurra em
direção à busca da construção e efetivação de um novo projeto de mundo.
Diante desta realidade, é preciso reinventar inúmeras dimensões e convicções do humano. Com a ética e a educação não é diferente. O projeto ético/
educacional hegemônico da modernidade tornou-se, também, esclerosado e
insuficiente para o momento de crise em que nos encontramos. Sobre as dimensões desta crise e o vácuo ético daí oriundo, M. Oliveira afirma:
160
EaD
Filosofia e Ética
A crise ecológica, o perigo de proliferação de novas guerras no planeta, o
problema do reconhecimento dos direitos das minorias e das relações internacionais, da fome e da miséria no mundo, manifestaram a urgência de uma
reflexão ética abrangente. A nova reestruturação das relações globais e da crise
ecológica, determinada pelos problemas oriundos da sociedade industrial e
da crise do tipo de racionalidade cientificista, que tornou-se hegemônica no
mundo moderno, fez ressurgir o problema da justificação filosófica das normas
fundamentais da ação humana. Se há algo que caracteriza de forma incisiva
o mundo atual é, sem dúvida, a desproporção entre a velocidade absurda
do progresso científico-tecnológico e o vácuo ético que se formou a partir
da negação dos sistemas tradicionais de valores. (...) Além disso, a ética tem
dificuldades de legitimação diante de uma sociedade marcada pelo individualismo, onde as pessoas aparecem encerradas no círculo infinito de seus
próprios interesses e impulsos e a vida social não passa de uma associação
mecânica de indivíduos perseguindo fins individuais (2000, p.7).
Esta situação, além de suscitar questões de ordem ética, remete-nos à busca de alternativas em torno de um projeto educacional capaz de contribuir para
a rearticulação desta realidade, permitindo, assim, que a promessa de liberdade
e emancipação humanas, presente no projeto original da modernidade, possa
enraizar-se no cotidiano, constituindo-se em solo fértil à educação enquanto
autorrealização e autoconhecimento humanos.
Afinal, “o homem, um ser a caminho de si mesmo, é uma busca de liberdade, ou seja, ele é uma opção, que se radica numa interpretação da totalidade
do real. A educação é precisamente o processo através do qual o homem toma
consciência desta totalidade como condição de possibilidade de sua autorealização como homem” (Oliveira apud Ahlert, 1999, p. 17). O que percebemos,
contudo, no cotidiano da nossa sociedade, tanto na economia, na produção
do conhecimento e no processo educacional, é algo muito distinto e contrário
desta perspectiva.
Ao analisarmos, retrospectivamente, as consequências e/ou resultados em
termos sociais, econômicos e ético/educacionais produzidos pela modernidade,
percebemos que o projeto emancipatório humano, que impulsionou sua gênese
e dinâmica original, não se realizou. Pelo contrário,
[...] a modernidade construiu sociedades complexas no mundo ocidental,
erigidas sobre a razão instrumental, o que permitiu o desenvolvimento de
técnicas cada vez mais sofisticadas para o desenvolvimento das forças produtivas, do controle sobre a natureza e da sua transformação. Seu pilar filosófico,
seguindo a máxima de Descartes (“Penso logo existo”), desestruturou o pensamento comunitário coletivo e centralizou a vida humana no indivíduo, na
capacidade de cada um construir sua própria felicidade. Gerou uma sociedade
essencialmente individualista (Ahlert, 1999, p. 106).
Neste contexto, a educação deixou de ser espaço de diálogo – aberto,
crítico e (re)construtivo – em busca do esclarecimento emancipatório, passando
a desempenhar um papel puramente estratégico, orientado aos interesses he161
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
gemônicos do capital e do chamado “livre mercado”. Assim, educação torna-se
sinônimo de preparação técnica – para o trabalho, vestibular, mercado, etc. – sem
o necessário compromisso com os interesses sociais e políticos da coletividade.
A vida, os interesses, a política, a cultura de forma geral e, consequentemente,
o próprio processo de educação, passam a ser mercantilizados e submetidos
às regras do “deus” mercado. Tudo vira mercadoria que pode ser comprada e
vendida no mercado global.
Trata-se de mais um processo de coisificação do mundo humano, em que
a racionalidade técnica penetra todas as dimensões da vida e da sociedade. É o
processo de colonização do mundo da vida, nas palavras de J. Habermas (1984).
É preciso, portanto, desenvolver uma compreensão ética/teórica essencialmente
crítica acerca dos saberes técnico-científicos envolvidos nas práticas tecnológicas
do mundo contemporâneo. Esta crítica ética/teórica faz-se necessária, uma vez
que, no universo da “civilização tecno-científico-industrial”, a técnica deixa de ser
considerada um instrumento e/ou meio para a realização de algo (fins) e passa
a se determinar como fim em si, o que nos coloca na iminente possibilidade de
uma catástrofe universal. O agir humano passa a ser determinado e delimitado
segundo os interesses da razão técnico-instrumental. A ética perde espaço e deixa
de ser relevante enquanto elemento orientador e articulador da ação humana.
A práxis deixa de ser ética e se faz única e exclusivamente técnica, o que
significa dizer que toda a organização social é, hoje, entendida como essencialmente aética. O triunfo exclusivo da racionalidade tecnológica significa
uma atrofia fundamental da dimensão ética da vida. A esfera do prático se
identifica agora com a esfera do técnico: trata-se da mais radical cientifização
da vida humana, que se traduz no ideal da tecnificação plena, o que iria significar que os mecanismos de regulação da vida dos homens poderiam garantir
a realização e a consecução de determinados fins sistêmicos, que conduzem
a um processo de autoconservação, o que significa dizer a eliminação do
homem. Quanto menos o homem pensa, menos exerce sua capacidade de
reflexão crítica, tanto melhor o sistema funciona, conserva-se e se reproduz
(Oliveira, 1995, p. 90).
Como já afirmamos anteriormente, a razão técnico-instrumental penetra
todas as dimensões da vida e das instituições do universo humano, transformando e reduzindo a problemática humana a questões de ordem técnica/científica.
Presenciamos um processo de endeusamento e mitificação da Ciência e da técnica, fazendo desaparecer o lugar e o significado da reflexão ética abrangente.
“Isto significa, em última análise, a eliminação pura e simples da ética: as questões
que dizem respeito à convivência humana são apenas problemas técnico-sociais
ou sócio-psicológicos” (Oliveira, 1995, p. 92).
O processo de educação enquanto parte constitutiva desta realidade
acaba por corroborar e reproduzir este modo de pensar e agir. A educação também se tecnifica, preocupando-se, única e exclusivamente, com a preparação
em termos de racionalidade técnica-instrumental, sem maiores compromissos
com a formação dos sujeitos no que concerne à razão ético-emancipatória. Neste
162
EaD
Filosofia e Ética
sentido, a educação também vive um processo de profunda crise. Nas palavras
de Ahlert, “(...) a crise da modernidade é também a crise da educação, pois forma sujeitos fragmentados e transmite conteúdos prontos e acabados (...). Não
permite, pois, aos sujeitos a construção de rupturas capazes de emancipações
e liberdades coletivas” (1999, p. 130).
Para que aconteça a ruptura com esta realidade e a educação possa se
constituir em processo ético-emancipatório, precisamos mudar a lógica de
construção do conhecimento. É preciso desatrelar o processo de conhecer e de
educar das demandas puramente técnicas e econômicas que imperam na lógica do modelo capitalista – excludente social e economicamente para a grande
maioria e concentrador, do ponto de vista econômico e técnico-científico, para a
grande minoria – vigente no mundo contemporâneo. Precisamos instaurar uma
nova lógica de construção do conhecimento e do fazer educação. Uma lógica
que compreenda o saber, o conhecer e o fazer educação enquanto criação,
alternativa, transformação e esperança.
Nesta busca pela constituição de uma nova realidade em termos de conhecimento e educação numa perspectiva ético-emancipatória, cumpre papel
fundamental o conceito de pesquisa. Neste sentido, a pesquisa deve ser vista
como processo social que perpassa toda a atividade de educar e deve penetrar
na medula dos professores e dos educandos. Sem a presença da atividade de
pesquisa não há como falar em educação ética/emancipatória. A pesquisa, tomada como processo social em forma de diálogo inteligente com a realidade
e, integrante do cotidiano, deve ser um princípio fundante da ação educativa/
ética (Demo, 1990, p. 36-37). Sobre o conceito de pesquisa é extremamente
esclarecedora e instigante a concepção defendida por Pedro Demo:
Pesquisar, assim, é sempre também dialogar, no sentido específico de produzir
conhecimento do outro para si, e de si para o outro, dentro de contexto comunicativo nunca de todo devassável e que sempre pode ir a pique. Pesquisa
passa a ser, ao mesmo tempo, método de comunicação, pois é mister construir
de modo conveniente a comunicação cabível e adequada, e conteúdo da
comunicação, se for produtiva. Quem pesquisa tem o que comunicar. Quem
não pesquisa apenas reproduz ou apenas escuta. Quem pesquisa é capaz de
produzir instrumentos e procedimentos de comunicação. Quem não pesquisa
assiste à comunicação dos outros (1990, p. 39).
A educação, enquanto permeada pelo processo de pesquisa, pode ser
compreendida como um processo constante de diálogo em busca do esclarecimento e da emancipação. O fenômeno do diálogo, entretanto, não pode ser
compreendido como mera transmissão de conhecimentos prontos e acabados.
Ele não pode ser confundido com as relações tradicionais entre professor e aluno, em que o professor supostamente ensina e o aluno supostamente aprende.
Assim:
163
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Diálogo é fala contrária entre atores que se encontram e se defrontam. Somente pessoas emancipadas podem de verdade dialogar, porque têm com
que contribuir. Somente quem é criativo tem o que propor e contrapor. Um
ser social emancipado nunca entra no diálogo para somente escutar e seguir,
mas para demarcar espaço próprio, a partir do qual compreende o do outro
e com ele se compõe ou se defronta (Demo, 1990, p. 37).
Educar torna-se, assim, um processo aberto e indeterminado, no qual
professores e educandos interagem dialogicamente na busca, não da simples
transmissão e reprodução dos conhecimentos já instituídos e predeterminados
(como os conteúdos mínimos), mas querendo sempre dialogar em busca da
mudança e da construção do senso de alternativa, em que a esperança deve
prevalecer e não se deixar sucumbir ante o primeiro fracasso. Educação, assim
compreendida, torna-se diálogo emancipatório que não se desenraiza do contexto dos interesses sociais, políticos e culturais dos sujeitos que dela participam.
Eis aí uma dimensão significativa da ética e da educação.
O conhecer e o próprio conhecimento, quando pensados a partir da
dimensão ético-educativa, transformam-se radicalmente. Na visão de Marques,
“[...] conhecer não é mais dobrar-se ao que está posto no mundo, nem produzir
cada qual seu próprio mundo, mas é entenderem-se os homens sobre si mesmos
e sobre seus mundos.” (2000, p. 14). Conhecer, no contexto da ética e educação,
não pode ser confundido com mera imitação e reprodução do conhecimento
já posto e acabado. Educar e conhecer não pode se limitar à lógica da transmissão e repetição, na qual os lugares teóricos/políticos/sociais já estão, sempre,
predeterminados.
No processo ético-educativo a preocupação central deve ser com a
construção social do conhecimento, pois, como já foi demonstrado, no mundo
moderno e contemporâneo o conhecimento e sua reprodutibilidade estão,
sempre, determinados pelos interesses técnico-econômicos. Assim, toda forma
de conhecimento torna-se uma forma de poder. Poder a ser acionado/utilizado
como um vetor para o desenvolvimento da liberdade e emancipação humana
ou para a repressão. Neste caso, ter ou não ter acesso ao conhecimento pode
significar, também, ter ou não ter acesso à vida.
O conhecimento, no âmbito ético-educacional, não deve, sob hipótese
alguma, ser vetor de repressão e violência. Deste modo, o saber e a educação, para
se constituírem eticamente, precisam estar comprometidos com a promoção da
liberdade e da autonomia dos sujeitos. Para tal, a construção do conhecimento
deve priorizar, sempre, a pergunta e não apenas a busca por respostas. Afinal, a
pergunta abre possibilidades, enquanto a resposta tende a fechá-las e encerrálas. A educação, enquanto exercício instigador e promotor da pergunta rompe
com o atrelamento do pensar e do conhecer às demandas puramente técnicas
e econômicas. Educar deixa de ser, apenas, instrução e/ou preparação para algo
já predeterminado, podendo, assim, instaurar-se como espaço de promoção e
construção de conhecimento, sempre aberto e renovável.
164
EaD
Filosofia e Ética
Vale, então, rever o conceito de aprendizagem, relacionado ao de ensinar,
sempre restritos os dois a posições receptivo-domesticadoras. Educação
aparece decaída na condição de instrução, informação, reprodução, quando
deveria aparecer como ambiência de instrumentação criativa, em contexto
emancipatório. O que conta aí é aprender a criar (Demo, 1990, p. 18).
Quem aprende algo fica restrito a isso que aprendeu. Quem aprende a
aprender, a criar, está apto a aprender qualquer coisa. Educar eticamente significa,
assim, proporcionar as condições para um aprendizado em sentido criativo.
4.3.2 – Considerações Finais
No exercício cotidiano do fazer educação é visível, em nossas instituições
escolares e universitárias, uma espécie de adestramento estético-perceptivo. No
geral, as escolas e universidades transformaram-se em repassadoras de conhecimentos e saberes selecionados e acabados. Em certa medida, este processo de
repasse de conhecimentos é necessário, porém insuficiente. Necessário à medida
que somos sujeitos histórico-culturais e, como tais, resultado, também, deste
processo que determina nossa percepção acerca do mundo. Assim, o passado,
a História, não é algo morto: ele está vivo em nós, uma vez que somos, também,
consequência dele. Insuficiente, posto que o simples repasse de conhecimentos
torna-se conservador e obstaculizador da crítica e da transformação da realidade
e do próprio saber.
Por meio do estudo e da análise crítica da História podemos compreender
como as forças culturais, sociais, políticas e econômicas moldaram os processos
que contribuíram para edificar a educação, tal como a conhecemos hoje. Os nossos métodos e teorias pedagógico-educacionais e, de fato, nós mesmos, somos
resultado de forças e tradições que se desenvolveram ao longo da História. Se
não tivermos consciência dessa realidade, ter-nos-emos cortados de nossas raízes
e impossibilitados da crítica esclarecedora e reconstrutiva. Produzir esta análise
teórica/reconstrutiva, porém, é apenas a primeira parte deste processo, amplo
e intrincado, de pensar a educação em sentido ético-emancipatório.
Como vimos ao longo da argumentação, o processo de atrelamento do
conhecimento e da educação aos interesses puramente científicos/técnicos/
econômicos leva à expulsão e/ou ao alijamento da ética da ação educativa e
das próprias relações sociais, enquanto produtoras do conhecimento. “Assim, a
educação é desligada das questões éticas e vem servindo à formação de um ser
humano máquina, tecnificado, instrumentalizado, isto é, mão-de-obra e ‘cérebrode-obra’” (Ahlert, 1999, p. 165).
Uma outra consequência advinda deste processo repercute, incisivamente,
no modo como se processa a construção do conhecimento: a má articulação, em
termos do saber e da cultura, pode levar a sérias patologias. Uma das grandes
questões a serem discutidas, do ponto de vista ético/educacional, é a que se refere
165
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
às patologias do saber. Na realidade contemporânea, vivemos e produzimos um
saber “doente”. Enfermidade manifestada, por exemplo, na ingenuidade científica
que afirma que quanto mais a Ciência é técnica, necessariamente é melhor.
Na modernidade, o advento da guerra, enquanto aplicação de aparatos
técnico-científicos, é algo exemplar para demonstrar a ingenuidade e insuficiência desta crença na ideia de que a Ciência e a técnica poderiam levar-nos à
solução de todos os problemas. A modernidade sustentou o sonho impossível
de que, por meio da Ciência e da técnica, poderíamos criar o paraíso terrestre.
A guerra, a fome, as profundas desigualdades sociais/econômicas, assim
como o processo de exploração e degradação dos recursos naturais, que hoje
nos levam à iminência de uma catástrofe ecológica em âmbito planetário, são
elementos suficientes para demonstrar o modo como se utilizou aquilo que,
supostamente, havia de melhor: Ciência e técnica, para matar e destruir. A crença
no progresso, enquanto elemento impulsionador do desenvolvimento científicotecnológico, se não estiver amparada numa dimensão ético-emancipatória, pode
se tornar uma arma mortal para a própria humanidade.
Diante desta realidade, precisamos reconstituir as bases teóricas/políticas
do projeto ético vigente no mundo contemporâneo. Faz-se necessária a instituição de uma espécie de “tratado tecnológico ético”. Neste sentido, é válido sempre
lembrar que não se trata de um discurso contra a Ciência e a tecnologia, mas
contra o modo indiscriminado e irresponsável como estas têm sido utilizadas.
O que se intenta é rediscutir o lugar e o papel da Ciência e da técnica no
universo do mundo humano, indicando a necessidade de se rever o antropocentrismo absoluto vigente na ética e na racionalidade técnica contemporânea
que, simplesmente, ignora a vulnerabilidade da natureza e as necessidades mais
prementes da grande maioria da humanidade. Precisamos de um projeto ético/
político/educacional, capaz de instituir limites ao utopismo desenvolvimentista
tecnológico, uma espécie de mandado de cautela, visando à preservação da
autonomia e da liberdade humanas, tão perseguidas ao longo da História.
Este processo de renovação e atualização do estatuto ético/político/educativo busca priorizar a revitalização das relações entre teoria e prática, dando
ênfase ao caráter interdisciplinar que deve se fazer presente na constituição dos
projetos e processos educacionais. O que se deseja como resultado deste processo é uma ética e uma educação orientadas para o social, diretamente imbricadas
às ações e aos interesses dos diversos grupos sociais existentes. Uma ética e uma
educação que, acima de tudo, propugnem pela paz e pela liberdade humanas.
Devem os valores éticos, sempre de novo, ser consensualmente construídos nos pressupostos comunicativos da universalidade em que todos os
possivelmente envolvidos possam participar e tomar posição com argumentos
fundamentados na justeza e na transparência deles. A capacidade das decisões
existenciais e das escolhas sensatas supõe a vontade a cada momento determi166
EaD
Filosofia e Ética
nada por valores racionalmente fundamentados no universalismo do respeito
igual em relação a todos e da solidariedade com tudo o que tenha o semblante
humano (Marques, 2000, p. 15).
A reflexão, o (re)exame, o diálogo crítico sobre todas estas questões que
envolvem a realidade contemporânea é tarefa primeira e fundamental da ética
e da educação. No cotidiano educacional, estamos habituados a pensar mimeticamente – por repetição. Tendemos a realizar uma flexão normalizante do
raciocínio e do pensamento vigentes e, desse modo, limitamos a ação educativa
a um processo repetitivo de repasse de conhecimentos e valores já prontos e
acabados.
A fragmentação exacerbada do conhecimento é, hoje, uma das grandes
patologias do saber e da educação. Este processo, no âmbito do sistema educacional, está tornando-o autista, pois cada área do saber fecha-se em torno de
si mesma, na ilusão da autossuficiência. A ética, ao contrário, é a insistência do
reconhecimento de um suposto universal ao qual todos nós pertencemos.
Neste sentido, a ética na educação exige-nos um exercício dialogante
entre as diversas áreas do conhecimento, visando ao rompimento com o processo de mera flexão mental, repetição e repasse de saber, permitindo-nos ver
que existe muito a produzir e criar. Ética na educação significa, assim, dar novos
sentidos, ressignificar o existente em termos de conhecimento e de valores. É a
tentativa dialogante de romper com o autismo teórico instituído, em termos de
conhecimento e educação.
Uma perspectiva ética/emancipatória/educacional pressupõe o diálogo
franco e aberto entre as diferentes áreas do saber, em que ninguém, de antemão,
possui a verdade e as respostas. Caso contrário não existirá diálogo, somente
retórica em busca de mero convencimento e de colonização. A educação deve
ter como tarefa e princípio as funções de promover e incentivar esse processo
de diálogo em busca de emancipação e esclarecimento. A educação deve ser
promotora do questionamento e da reflexão crítica para que a repetição não se
instale como definitiva.
Por fim, é fundamental que se insista na perspectiva que compreende a
ação ético/educativa como dimensão fundamental e estruturante da existência
humana. Não há como abdicar e/ou negligenciar desta ação. Nas sociedades
contemporâneas é de fundamental importância a existência de educadores
comprometidos com os interesses e necessidades coletivas que transcendam o
formalmente instituído – os conteúdos mínimos, a pura e simples exigência de
preparação para o mercado, a repetição e perpetuação dos valores e máximas
que sustentam o modelo social/econômico vigente, a submissão aos interesses
de uma minoria dirigente que enaltece ao extremo as dimensões do individualismo e competitividade, em detrimento das dimensões de solidariedade e
ajuda mútua.
167
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
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168
EaD
Filosofia e Ética
Seção 4.4
Ética, Comunicação e Novas Tecnologias
Cândida de Oliveira
18
18
19
A relação entre ética e comunicação é
discutida desde a Antiguidade grega,19
mas é no mundo moderno que o tema
passa a ter maior relevância, tendo
em vista o papel que os processos
comunicacionais, especialmente o
Jornalismo, passa a desempenhar no
estabelecimento tanto de normas
que passaram a reger a modernidade
quanto de ações e discursos adequados a essas mesmas normas.
As transformações nas cidades e na própria sociedade civil – como os
movimentos sociais, políticos e culturais que ocorreram do século 16 até o século 18, que impulsionaram o surgimento dos Estados democráticos e fizeram
ascender uma nova classe social que passou a constituir o que Habermas (1984)
denominou como nova esfera pública burguesa – foram, em grande medida,
estimuladas pela imprensa que se desenvolveu sob a influência do liberalismo,
vinculada à ideia de democracia e aos ideais do Iluminismo.
Diante disso, as primeiras formulações a respeito da relação ética-comunicação ancoram-se na visão antropocêntrica que marca as inúmeras doutrinas
éticas dominantes até o século 19, muito especialmente a ética de Kant, centrada
na razão universal.20 Só recentemente, todavia, as discussões sobre questões
ético-morais – relativas à ordem do dever, de caráter essencialmente prático e
que dizem respeito às relações sociais, coletivas e/ou individuais, bem como à
vida das instituições, abrem-se à perspectiva comunicacional (Esteves, 2003).
Tais reflexões, para além da retomada da ética moderna e sua incidência
na comunicação e no Jornalismo, buscam aproximações entre os processos
comunicacionais atuais e as correntes da ética contemporânea.
A arte da conversa. René Magritte (1950). Disponível em: <http://www.abcgallery.com/M/magritte/
magritte58.html>.
18
Entre os gregos, destaca-se o pensamento de Aristóteles, visto que foi o primeiro a sistematizar o estudo
da retórica compreendendo-a como a arte da persuasão. Esse filósofo buscou determinar as normas
e regras práticas baseadas no ethos (dimensão na qual estaria inserido o sentido de ética), no pathos
(emoção) e no logos (razão), de modo a gerar um discurso exitoso – persuasivo – em termos políticos e
sociais.
19
Para Kant, o homem como sujeito moral pertence ao mundo da liberdade sendo, portanto, ativo, criador
e está no centro tanto do conhecimento quanto da moral. Tais pressupostos levam Kant a formular, no
terreno da ética, o imperativo categórico da lei universal que deve ser condicionada à consciência moral
do homem como fim e não como meio (Vásquez, 1996).
20
169
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Nesse sentido, as discussões sobre a ética da comunicação levam em
conta um conjunto de pressupostos teóricos e práticos de momentos históricos
distintos. Por essa razão, conforma afirma Esteves (2003), não se pode considerar
a ética da comunicação uma teoria absoluta da ética, como se pudesse dar conta
do problema ético ao longo de toda a História humana. Trata-se de formulações
que se debruçam sobre questões que surgem nos processos da comunicação, de
modo geral e cotidiano, e que permeiam a prática jornalística de forma singular,
tanto que hoje se discute a existência de uma ética jornalística.
Nessa perspectiva, para falar da ética da comunicação é necessário,
primeiro, que se entenda o fenômeno da comunicação, especialmente seus
fundamentos filosóficos. De modo sistemático e teórico, a comunicação é um
campo de conhecimento acadêmico que estuda os processos comunicacionais
da sociedade, abrangendo diversas modalidades de comunicação, entre elas
o Jornalismo. Compreender o horizonte filosófico da comunicação, todavia, é
reconhecer que se trata de um fenômeno predominantemente humano, e condição imprescindível para o desenvolvimento da pessoa humana. Além disso, é
preciso compreender a comunicação no contexto contemporâneo.
Não há dúvidas de que a comunicação assume um papel determinante
e central na configuração da sociedade contemporânea, tendo em vista os meios
de comunicação e novas tecnologias e redes digitais de comunicação e informação que se encontram hoje disponíveis. Conforme sinaliza Gomes (1997, p.
9), “é impossível compreender a realidade, a dimensão humana e a própria vida
sem um adequado entendimento do que seja o fenômeno da comunicação e
de como ele se estrutura”. Tais mecanismos constituem a relação básica para as
trocas simbólicas que visam à compreensão dos fenômenos e transformações
sociais.
Muito em razão disso, há um retorno da reflexão da ética e da moral em
vários setores da vida social, que readquire nos últimos tempos uma extraordinária atualidade. Na comunicação, esses esforços teóricos representam a busca
pela compreensão das dimensões éticas na comunicação com a esperança de se
redefinir valores e normas que sejam aceitos e possam servir de referência para
a condução das atividades inerentes ao campo comunicacional.
4.4.1 – A comunicação como condição humana
e o objeto comunicação
Como um fenômeno humano, a comunicação supõe consciência e se
desenvolve a partir da linguagem compartilhada, tornando-se assim um fenômeno social com características, valores e dinâmicas específicas que abarcam
diferentes maneiras de comunicar. Como surge da necessidade do ser humano
de se relacionar, a comunicação envolve mais de uma pessoa, mas não se reduz
170
EaD
Filosofia e Ética
ao modelo que, por muito tempo, foi utilizado para conceituar a comunicação.21
Sabe-se, hoje, que a comunicação não se limita à transferência de informações
para a relação entre pessoas, como se isoladas de seu contexto sociocultural.
Como bem lembra Gomes (1997), no processo comunicacional tanto o
emissor quanto o receptor não podem ser entendidos como indivíduos isolados
e abstratos, mas como unidades referenciais singulares que estabelecem uma
interação social, dotados de espaços, preconceitos e preconcebidos próprios.
A produção de significado, desse modo, não é apenas tarefa do emissor, mas
também do receptor.
Da mesma forma, a linguagem que é codificada e decodificada no
processo comunicacional deve ser considerada de acordo com o complexo fenômeno da cultura ao qual é integrada e que sintetiza toda a atividade em que
o homem age como ser para os outros e para si. Conforme explica o autor,
a comunicação, ao mesmo tempo em que é fruto das pessoas, é também
a condição que possibilita a realização do homem. Ele é comunicação e se
constitui na e pela comunicação. Desse modo, quando se examina e se analisa a comunicação, toca-se no que de mais profundo existe no ser humano
(Gomes, 1997, p. 19).
Para Martino (2001), a comunicação humana na sua acepção mais
fundamental designa o processo de compartilhar um mesmo objeto de consciência, isto é, exprime uma relação entre consciências na qual está implicada a
intervenção sociocultural e histórica de cada ser que estabelece essa relação e
da sociedade em geral.
Nesse sentido, a comunicação é processo simbólico de apreensão do
mundo, dos outros e de si mesmo, vinculando-se diretamente à vida social ao
nível do quadro social da interação, que dá forma à ação ética e aos comportamentos morais:
[...] a responsabilidade assumida por cada indivíduo tem origem no quadro
de uma intersubjectividade comunicacional, no intercâmbio de formas significantes (linguísticas ou de outro gênero) entre os agentes sociais, através
das quais se tornam visíveis as suas convicções, os seus sentimentos e as suas
paixões (Esteves, 2003, p. 15).
A abertura ao outro pressupõe uma exigência intersubjetiva, valorizando-se assim as relações humanas. A comunicação assume, nesse processo, uma
exigência moral e uma pretensão ética para justificação dos fatos e também dos
comportamentos. E isso ocorre a partir do questionamento racional de problemas
Faz-se referência, aqui, à concepção de Lasswell que acaba por reduzir a comunicação humana a um
modelo mecânico, derivado da cibernética, de transferência de informações unilateral, isto é, de fontes
ativas a receptores passivos, pelo intercâmbio de símbolos por meio de canais/meios. (Gomes, 1997).
21
171
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cotidianos próprios do universo comunicacional. Desse modo, no exercício da
razão prática, a comunicação humana poderia ser considerada ela própria uma
dimensão da ética.
De acordo com Gomes (1997), a ideia de intersubjetividade e de valorização das relações sociais representa o último de três momentos fundamentais
para o desenvolvimento da consciência crítica – o momento do objeto, o do
sujeito e o do social – nos quais as quatro relações fundamentais do ser humano
– consigo mesmo, com os outros, com a natureza e com o transcendente – terão
uma configuração específica. O autor destaca que é no último momento que a
comunicação atinge seu ponto máximo, de modo que, no mundo contemporâneo, o objeto comunicação ganha espaço e força, devendo ser levado em conta
por todos aqueles que buscam compreender o mundo presente.
Para além das preocupações sobre a comunicação como inter-relacionamento humano, o contexto atual provoca inúmeras indagações sobre a
possibilidade de uma efetiva comunicação entre as pessoas e também sobre as
consequências das tecnologias avançadas de comunicação e informação sobre
a vida dessas mesmas pessoas. Isso porque, conforme as palavras de Gomes
(1997, p. 24):
A par das tecnologias e possibilidades cada vez maiores de comunicação,
a sociedade humana vive momento de incomunicação, com movimentos
sempre maiores de voltar-se para dentro de si, de encaramujar-se. Afirma-se
não só o individualismo, mas também a prescindência do outro. As pessoas
cercam-se de grades, fogem dos outros, refluem para dentro de si e de suas
fortalezas. [...] Como as ruas e as cidades se tornam perigosas, há um refluxo
para o interior dos lares. Falta a comunicação interpessoal e aumenta o consumo dos meios de comunicação, cada vez mais adaptados às necessidades
das pessoas. [...] na medida em que aumenta o consumo de informação de
dados, diminui a intercomunicação pessoal.
Tal conjuntura social e do universo comunicacional colocam em discussão, cada vez mais, a comunicação como objeto de estudo teórico e epistemológico a fim de se compreender as transformações que ocorrem na sociedade
e no mundo contemporâneo. Sobre isso, Vera França (2001) afirma que a modernidade problematizou e complexificou o desenvolvimento da comunicação,
promovendo o surgimento de múltiplas formas e modulações para sua realização. Assim sendo, ainda que exista desde os primeiros agrupamentos humanos,
constituindo-se como o embrião da vida social e das trocas simbólicas, é a partir
da modernidade que a comunicação ganha o status de campo de conhecimento,
sendo pensada a partir de várias perspectivas e correntes teóricas, promovendo
também a abertura para se pensar a ética da comunicação. A partir disso, além
de abranger um elenco de práticas distintas, a comunicação também adquire
uma dimensão conceitual, consistindo numa maneira de conceber tais práticas
e conhecê-las. Deste modo,
172
EaD
Filosofia e Ética
[...] o objeto da comunicação não são os objetos “comunicativos” do mundo,
mas uma forma de identificá-los, de falar deles – ou de construí-los conceitualmente. [...] quando se pergunta pelo objeto da comunicação, não nos referimos
a objetos disponíveis no mundo, mas àqueles que a comunicação, enquanto
conceito, constrói, aponta, deixa ver (França, 2001, p. 42).
Isso mostra que a modernidade transformou a comunicação em
problema, no sentido de questionar suas práticas até então percebidas como
naturalizadas. O desenvolvimento das práticas, juntamente com os meios de
comunicação e dos espaços acadêmicos, motivou o homem a conhecer melhor
o objeto comunicação e, a partir disso, estudos e teorias foram e continuam
sendo criadas, cada vez mais, tanto para complementar a formação, aperfeiçoar e reformular as práticas comunicacionais, quanto para refletir e entender as
transformações que ocorrem nas sociedades. E, embora o quadro das teorias da
comunicação seja, ainda hoje, plural e fragmentado, as diversas correntes teóricas
que o compõem também possibilitam o pensar sobre a ética da comunicação.
Assim, os primeiros estudos e teorias voltaram-se para os meios de
comunicação de massa, especialmente para seus efeitos e funções, potencialidades e alcances, ligados a motivações de ordem política e econômica. De 1930
até o contexto da guerra fria, especialmente nos Estados Unidos, estimulou-se
o investimento em pesquisas sobre o comportamento das audiências e para
aperfeiçoamento das técnicas de intervenção e persuasão, uma vez que a propaganda era amplamente utilizada como mecanismos de controle e manipulação
político-ideológica. Desenvolveu-se nesse período a concepção da comunicação
como um processo de transmissão – criada por H. Lassewell – que tem como objetivo a persuasão, concepção esta que marcou, de forma douradora, os estudos
posteriores da comunicação (França, 2001).
Contrapondo-se a essa perspectiva pragmática e positivista norteamericana, desenvolveu-se na Europa, no final dos anos 30 do século passado, a
Teoria Crítica ou Escola de Frankfurt, a qual promoveu uma crítica à mercantilização da cultura e à manipulação ideológica operada pelos meios de comunicação
de massa, tidos como conhecimento aparente e não verdadeiro. Para os frankfurtianos da primeira geração – especialmente Horkheimer, Adorno e Marcuse
– as potencialidades humanas são neutralizadas pela racionalidade tecnológica,
que alimenta os meios de comunicação de massa tornando-os instrumentos de
dominação, alienação do ser humano e ordenação social pelo consumo.
Gomes (1997, p. 43-49) explica que para essa corrente teórica, a comunicação só adquire sentido quando entendida como processo social, sendo
alcançada quando se torna práxis social. Por isso, os estudiosos focaram os
fenômenos comunicacionais e a produção da cultura no contexto das práticas
sociais cotidianas, e compreenderam que as práticas vigentes provocavam uma
unidimensionalidade do ser humano, obstáculo quase que instransponível para
uma efetiva comunicação. Tal crítica, embora resulte numa análise da comuni173
EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
cação extremamente negativa, buscava negar a situação vigente, afirmando a
necessidade de um novo modo pluridimensional para as relações humanas e
comunicação.
No final dos anos 70 do século 20, a ética retorna ao espaço público
de forma geral, fazendo-se presente em discursos políticos e midiáticos, bem
como na cena acadêmico-teórica, fazendo surgir novos estudos sobre o objeto
comunicação e a relação comunicação-ética. Destaca-se, nesse último universo,
o pensamento latino-americano de tradição marxista que, atravessado por um
profundo sentimento crítico e anti-imperialista, propõe um novo modelo e uma
nova prática comunicativa – a comunicação horizontal, ou participativa. De
acordo com França (2001), tal proposta para uma nova ordem comunicacional é
acompanhada das lutas, em vários países, pela constituição de políticas nacionais
de comunicação e pela democratização dos meios.
Destaca-se também, nessa época, o pensamento de Habermas, pesquisador da segunda geração da Escola de Frankfurt, que desenvolveu uma proposta
de comunidade comunicativa centralizando nela a linguagem – entendida como
essência da interação humana e social – e o tema dos atos comunicativos. Em
seus estudos, de acordo com Gomes (1997, p. 49-52), Habermas problematizou
desde a ideologia até a comunicação nas sociedades nas quais impera o capitalismo monopolista e observou que o contexto do discurso é o lugar em que
se produzem os atos linguísticos que demarcam o mundo das significações,
concebendo depois disso a Teoria da Ação Comunicativa. Sua teoria representa
uma nova maneira de articular e fundamentar uma concepção mais ampla de
racionalidade, a partir da qual ele buscou estabelecer uma pragmática universal
e uma fundamentação para uma ética discursiva.
Concebendo a linguagem como fundamento de tudo, Habermas faz a
distinção entre ação instrumental (ou técnica) – que se institucionaliza no sistema econômico e no político – e a ação comunicativa – que é própria do mundo
vivido, entendendo que ambas as dimensões compõem as sociedades de forma
simultânea e são interpenetrados, isto é, dependem um do outro. O problema,
em sua ótica, é que nas sociedades modernas e contemporâneas a ação técnica
passou a ser predominante a ponto de invadir o espaço da ação comunicativa,
extinguindo-a ou expulsando-a de seu ambiente natural. Desta forma,
[...] Habermas advoga a descolonização do mundo vivido e a restauração dos
pressupostos da ação comunicativa: sociabilidade, espontaneidade, solidariedade e cooperação. Embora não despreze a ação instrumental, ele defende
uma hierarquia que privilegia a ação comunicativa (1997, p. 53).
[...] para Habermas é a competência da fala do sujeito que lhe permite relacionar-se com os outros e com o mundo. Os valores a serem afirmados, as normas
a serem cumpridas e elaboradas estão sujeitos à competência argumentativa.
Tudo deve ser discutido pelo grupo, pela comunidade, buscando-se o consenso. Por isso, denuncia o colonialismo e as patologias da modernidade, que
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Filosofia e Ética
impedem a intersubjetividade e banem a ação comunicativa do seu habitat
natural. A solução é reafirmar a importância da ação comunicativa mediada
pela linguagem (Gomes, 1997, p. 54).
A partir disso, Habermas estabelece as regras discursivas básicas que devem ser observadas para que se possa examinar a validade das argumentações
presentes na fala cotidiana, isto é, a veracidade das afirmações sobre o ser e a
validade do dever-ser. Dentre essas regras figuram os critérios para os participantes do discurso, os mesmos direitos para todos e uma comunicação que seja
livre, sem violência ou coação. Nesse sentido, “[...] a ética discursiva de Habermas
não diz como agir, mas apenas como justificar, dialogicamente, as implicações
das ações em contextos sociais já conhecidos” (Gomes, 1997, p. 57), situando a
questão da moralidade numa etapa anterior à ação. Com isso, a moralidade resulta
da interação linguística argumentativa, isto é, o agir moral e humano encontra-se
fundamentado na comunicação efetiva que possui condições para sua realização
mediante da linguagem. Na teoria de Habermas, portanto, as normas éticas são
consideradas, ao mesmo tempo, normas pragmáticas e condições fundamentais
dos atos sociais básicos, que são os que se inserem no “agir comunicacional”.
O final do século 20 é marcado por uma reconfiguração do quadro de
teorias, evidenciando perspectivas mais propriamente comunicativas. Essas
mudanças são resultado dos reordenamentos vividos pela sociedade devido à revolução provocada pelo advento da Internet e novas tecnologias de comunicação
e informação, que incluem alterações no campo dos valores, das representações
e na configuração das relações e formas de sociabilidade (França, 2001).
4.4.2 – A ética e a comunicação na contemporaneidade
Na conjuntura do mundo contemporâneo discute-se que a dinâmica da
constituição da exigência da ética e das normas morais pela via da intersubjetividade fica comprometida. Esteves (2003) chama a atenção para o fato de que,
nas sociedades modernas e complexas, há um esvaziamento e desarticulação
da razão prática devido a uma racionalidade tecnocrática e instrumental que
se faz hegemônica, o que estaria na origem dos principais problemas éticos do
presente. Alinhado ao pensamento de Habermas, Esteves compreende que a
atividade instrumental intensa e amplamente generalizada, impulsionadora do
progresso, tende a se desconectar das exigências ético-morais acabando, no
limite, por remover a normatividade própria das relações humanas.
Segundo este autor, isso resulta de uma objetivação generalizada do social,
que é levada a efeito pela tecnocracia, processo este que pode ser traduzido na
“desproblematização” profunda das relações dos agentes sociais com os valores,
e pelo instrumentalismo que afeta também a normal estruturação do universo
ético-moral à medida que subverte a relação dos sujeitos com valores e quadros
normativos. Neste último caso, os valores e normas são adequados, de forma
ilegítima, às exigências de afirmação pessoal, interesse próprio do sucesso e do
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poder, resultando assim na perversão da razão prática e consequente abolição
dos quadros morais e exigências éticas. Deste modo, o estado hipertrófico da
racionalidade técnica, conforme as palavras de Esteves (2003, p. 20):
Deixa de ser possível fazer valer uma exigência normativa aos actos congruentes e cada ser humano vê-se incapacitado de orientar a sua acção
no mundo tendo em conta os outros homens: pela via tecnologizante, a
intersubjectividade dilui-se na objectividade da “solução eficaz”, pela via
estratégico-utilitarista, a intersubjectividade é erradicada pela prossecução
unilateral do êxito e do sucesso.
A partir disso, pode-se inferir a existência de uma subversão da ética,
processo este que não é alheio à comunicação. Pelo contrário, atinge o âmago
do processo comunicacional, incidindo na estrutura da comunicação típica da
sociedade atual: uma comunicação midiatizada resultante da intervenção dos
múltiplos dispositivos técnicos e digitais que temos a nossa disposição. A origem
do mal-estar ético que atinge a sociedade atual, segundo Esteves, estaria situada
da desvinculação entre as midiatizações simbólicas postas em cena pelos meios
de comunicação e modernos dispositivos técnicos e uma verdadeira comunicação humana.
Esse contexto predominantemente comunicacional revela, nesse sentido,
que os meios de comunicação se apresentam hoje “[...] como grandes catalisadores do debate ético: os seus profissionais, o seu funcionamento, organização
e performances são objecto de discussão e avaliação sistemática em termos
morais” (Esteves, 2003, p. 21).
Não há dúvida de que os meios de comunicação e, mais recentemente,
as novas tecnologias digitais de comunicação e informação, possuem um papel
central nas sociedades contemporâneas. Os modernos dispositivos tecnológicos de mediação simbólica e atividades comunicacionais, especialmente o
Jornalismo, adquirem importância vital para a organização da vida coletiva. Os
fluxos de conteúdos simbólicos atingem e, de certa maneira, conformam, todos
os setores da vida social: a política, a economia, a cultura, o espaço público e o
privado e suas inter-relações, as relações sociais e a constituição da própria subjetividade individual e realidade social. Essa conformação, em grande medida,
depende de quem controla as informações que circulam no espaço público
contemporâneo.
Conforme afirmam Guareschi et al. (2000, p. 44), controlar o fluxo de
informações que circulam numa dada sociedade é, de certa maneira, “atuar
diretamente sobre a forma como os indivíduos representam a si mesmos e, em
seu grupo social, as relações e as condições de vida a que estão submetidos.” Na
sociedade contemporânea, portanto, a informação constitui-se como um bem
social, elemento constitutivo dos sujeitos e da vida humana, fundamental para
a estruturação das sociedades, e o controle dos meios de comunicação torna-se
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Filosofia e Ética
instrumento de poder, pois quem os controla é quem define, em grande medida, práticas materiais, formas e sentido de categorias como tempo e espaço, e
também as regras e valores sociais.
Especialmente o Jornalismo, devido à sua natureza histórica e socialmente
legitimada e seu caráter de referencialidade em relação aos fatos de interesse
público, permanece como mediação fundamental do espaço público, fazendo
circular informações sobre temas considerados relevantes para a sociedade nesse
lugar de visibilidade e também essencial para a vida democrática.
Nesse sentido, no contexto contemporâneo, o Jornalismo adquire papel
fundamental no processo comunicacional, à medida que sua função é informar
a sociedade contribuindo para a construção da democracia e da cidadania. Essa
função social, entretanto, tende a ficar comprometida à medida que empresas
jornalísticas e jornalistas se submetem a outros interesses – privados (políticos
ou econômicos) – que não os relativos ao interesse público e finalidade do
Jornalismo, que é prezar pelo direito à informação e liberdade de expressão,
baseando-se em critérios de verdade e objetividade, entre outros princípios e
valores que, historicamente, fundamentam a atividade e que, portanto, devem
(ou deveriam) nortear o exercício profissional. 22
É preciso lembrar, entretanto, que as novas tecnologias de comunicação
e informação produzem intensas transformações na dinâmica comunicacional e
uma nova realidade a partir da qual são configurados problemas éticos inéditos
para a sociedade. A crescente inovação tecnológica e digital facilita a troca e os
fluxos de informações de uma forma jamais vista, possibilitando a um público
amplo o acesso a fontes de informação e a técnicas de produção e divulgação
de conteúdos, provocando a perda do controle tradicionalmente exercido pelo
Jornalismo sobre aquilo que deveria ou poderia ser tornado público.
Desde seu surgimento, no limiar da modernidade, quando novas vozes forjando novas relações sociais
de poder e de trocas simbólicas desencadearam um alargamento de ações e expressões que antes eram
restritas ao espaço privado, o Jornalismo – a partir dos primeiros jornais que alimentavam as discussões
nos salões e cafés europeus – constituiu-se como instrumentos para o exercício crítico da razão, da
consciência humana, pelo coletivo da sociedade. Já no contexto moderno, a imprensa passou a ser vista
como “um dos instrumentos da expressão dessa consciência” (Cornu, 1994, p. 149), o que ajudou a estimular
a afirmação e o fortalecimento da expressão das liberdades de opinião e de imprensa. Ela se instituiu,
historicamente, como a grande mediadora da opinião pública, estabelecendo-se como uma instituição
representativa do interesse público e do direito à informação (Sousa, 2008). Ao assumir um lugar central
nas lutas em prol do regime democrático e partilhando de toda uma mesma história contra a censura e
a favor das liberdades (Traquina, 2005), o Jornalismo é publicamente legitimado pela sociedade. Por isso,
a liberdade é atribuída à prática e instituição jornalística, constituindo, juntamente com outros valores e
princípios – forjados no contexto revolucionário do Iluminismo –, o alicerce ético-moral do Jornalismo.
O ideal de esclarecimento dos cidadãos a partir de uma atitude racional e crítica voltada à construção
de uma nova realidade, bem como a condição de pensar por si próprio com coragem e liberdade, eram
os ideais defendidos no contexto das revoluções liberais, momento no qual foram forjados também os
valores de justiça, soberania e os direitos e liberdades do homem como princípios sagrados. A verdade
da informação, enquanto um “direito do público” (Cornu, 1994), e os valores de liberdade e de justiça
constituem os princípios fundamentais do Jornalismo, configurando a missão intrínseca da imprensa,
sustentam até hoje sua base ética e deontológica.
22
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Se, por um lado, as possibilidades de transmissão instantânea facilitam
as trocas comunicacionais tornando-as mais horizontais, por outro, conforme
sinaliza Moretzsohn (2009), fazem prevalecer uma excitação permanente que
acaba, na maioria das vezes, sendo canalizada para atividades que alimentam a
indústria do entretenimento – uma das mais lucrativas da atualidade.
As chamadas novas mídias e redes sociais digitais, que surgem com a Internet, estimulam a participação e produção/compartilhamento de informações
instantâneas sem limites, além de outras situações que não apenas reabrem as
discussões clássicas sobre a ética, como também criam novos dilemas éticos para
as atividades comunicacionais, especialmente para o Jornalismo, uma vez que
[...] derrubou a demarcação entre comunicação pessoal e coletiva e, portanto, entre os conceitos de público e privado; derrubou a demarcação entre
meio de informação e mercado, já que num site você se informa sobre uma
mercadoria e, ao mesmo tempo, efetiva a transação comercial; derrubou a
demarcação entre as várias linguagens da comunicação, assim como entre os
vários suportes. Seus conteúdos são os mais arbitrários possíveis e, por meio
da facilidade de copiar, ela destruiu na prática o conceito de direito autoral
e da própria autoria. Com isso, abriu caminho a problemas de autenticidade
e veracidade da informação, credibilidade do meio e responsabilidade pelas
mensagens (Kucinski, 2005, p. 81-82).
Diante disso, a discussão sobre a ética adquire importância fundamental
e deve tratar sobre a questão dos limites, para além do Jornalismo. Não basta a
defesa dos direitos que fundamentam as práticas comunicacionais e, inclusive,
as lutas que buscam a democratização da comunicação e dos meios, posto que,
conforme afirma Kucinski (2005, p. 86), “Na internet, mais do que em outros meios,
se materializa hoje o paradoxo ético criado pela falência dos valores surgidos no
iluminismo e não preenchidos pela ética da pós-modernidade.”
Da mesma forma, o discurso sobre a ação dos profissionais dos meios de
comunicação deve ser complexificado e não confinado na perspectiva deontologizante, para utilizar a expressão de Esteves (2003). Segundo esse autor,
a deontologia tem um sentido lato de estudo ou conhecimento do dever, mas
a sua utilização mais comum hoje em dia remete para um significado mais
restrito: o conjunto das regras concernentes à realização de diferentes actividades profissionais. Isto significa, na prática, que este tipo de deontologia(s)
só remotamente configura quadros simbólicos de verdadeiro raciocínio ético:
as preocupações profissionais e corporativas sobrepõem-se em geral ao imperativo dos interesses colectivos.
Assim encarada, a deontologia constitui uma peça-chave da ideologia do
“profissionalismo” – especialmente activa, entre as modernas actividades de
comunicação, no meio jornalístico. O seu discurso de superfície assume a intencionalidade ética de projectar os media como instrumentos fundamentais
da democracia – com base na função informativa e num conjunto de valores de
referência (neutralidade, verdade, objectividade, distanciamento, etc.). Mas a
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Filosofia e Ética
grande ilusão desta ideologia está na crença profunda de que os jornalistas, só
por si e sem qualquer mudança estrutural mais profunda, podem condicionar
decisivamente o funcionamento democrático dos media (p. 21-22).
Por isso, quando se fala em ética da comunicação ou do Jornalismo, isto
não se resume a uma tarefa tão simples. Na maioria das vezes e para muitas
pessoas, a ética é compreendida como algo muito complexo, que não pode se
efetivar na prática diária; outras vezes, ela é confundida com a moral ou com a
deontologia.23 Conforme escreve Karam (2004), muitos empresários, profissionais do mercado e até estudantes e professores da área de Comunicação e do
Jornalismo entendem a ética como uma característica inerente à pessoa, algo
que deve ser atestado mediante comprovação de um componente biológico e
genético, hereditário, tal como uma “virtude genética”.
A ética também chega a ser tratada como uma formação moral genérica (necessária a todo e qualquer profissional), o que acaba por descartar os
fundamentos e princípios que são próprios da ação comunicacional e trazendo
problemas concretos, como a ideia de que uma ética da Comunicação ou do Jornalismo seja capaz de dar respostas de como proceder no cotidiano da profissão.
A ética, porém, não pode ser reduzida a um conjunto de normas e prescrições,
ela ultrapassa esse entendimento.
Nesse sentido, para Karam (2004, p. 120), as discussões sobre a ética no
Jornalismo precisam ultrapassar o senso comum: precisam contemplar “estudos
específicos sobre a ética jornalística e a base epistemológica em que se apóia”.
Isso envolve o conjunto de dilemas com os quais os profissionais jornalistas se
defrontam todos os dias, critérios que embasam suas escolhas. Envolve também
História, além de estudos de ética aplicados às profissões, cujo processo requer
“saltar da ética para a deontologia e desta para aquela, num processo permanente
e num quadro de referenciais jornalísticos históricos e relacionados à importância
social da atividade” (Id., ibidem). São vários os temas que perpassam esses estudos específicos, mas o que importa é que eles estão sempre ligados aos códigos
deontológicos (normalmente chamados éticos), pois esse é um reconhecimento,
segundo Karam, de que o Jornalismo possui determinados procedimentos que,
construídos ao longo da História, formam o patrimônio profissional e social da
atividade, ou o que se pode chamar de “ethos jornalístico”.
Conforme destaca Bucci (2000, p. 206), a existência de códigos deontológicos, fechados em si mesmos, não garantem uma conduta ética, mas deve-se
ter em mente que “a validade dos códigos de ética está no compromisso prévio
que eles contêm, e no acúmulo de sabedoria ética que representam”.
Entende-se por deontologia as normas e códigos de conduta específicos para qualquer atividade
profissional, que orientam como a mesma deve ser exercida, bem como que princípios devem regê-la.
Trata-se, assim, de uma moral específica para profissões.
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A necessidade da discussão ética adquire relevância fundamental quando
se trata de conferir qualidade ao Jornalismo, pois “a imprensa é a materialização
de uma relação de confiança e o que sedimenta a confiança é uma prática ética”
(Bucci, 2000, p. 46).
Conforme explica Bucci (p. 51-52), o Jornalismo se define “por uma ética,
uma ética baseada no combate à mentira ou, noutra perspectiva, na busca da
verdade dos fatos – não da verdade metafísica, nem da verdade religiosa, muito
menos da verdade científica, mas simplesmente da verdade dos fatos”. A verdade
dos fatos, conforme argumenta o autor, não exige um relato perfeitamente objetivo, neutro e imparcial, porque é sempre uma versão dos fatos. Não podendo
oferecer a verdade dos fatos, o que a imprensa deve proporcionar é confiabilidade. Uma postura arrogante, assertiva, que se recusa a dialogar, chamada pelo
autor de síndrome da autossuficiência ética, em nada contribui para construir
uma relação de confiança com o público.
E o elo de confiança só é possível desde que o trabalho realizado pelos
profissionais e empresas atenda aos parâmetros de qualidade jornalística, objetivo este que pode ser alcançado pelo atendimento aos preceitos erigidos a
partir da ética. Isso porque a ética jornalística não está dissociada de aspectos
técnicos da profissão (Christofoletti, 2008), ou seja, as exigências assentadas
a partir da reflexão ética podem aprimorar a qualidade do Jornalismo. As habilidades requeridas aos jornalistas – domínio específico de equipamentos e
linguagens – e os modos pelos quais estes estabelecem relação com os outros
agentes, estão estreitamente vinculados à conduta ética desses profissionais e
aos valores e comprometimentos que orientam o Jornalismo. Conforme afirma
Bucci (2000, p. 50): “Se a informação tem qualidade, ela necessariamente foi
apurada e editada com ética. Se a ética foi atropelada, a informação resultará
tecnicamente débil.”
Além disso, a dimensão da ética contribui para a busca pela consolidação de contornos e limites da profissão e pela regulamentação da atuação de
jornalistas e veículos de imprensa. Uma vez nítidos esses contornos e marcos
regulatórios é possível definir a qualidade de um trabalho jornalístico e, desse
modo, ser estabelecida uma relação de confiança entre público e mídia, uma vez
que o Jornalismo volta-se para questões sociais:
A escolha técnica é também moral e vice-versa. Por isso, é na especificidade
da temática ética que se dá a ponte para a universalidade das questões sociais.
Esta é a razão de existir códigos que, em última instância, revelam as bases
teóricas e os marcos teleológicos os quais se busca em uma profissão, na
sociedade ou em todo o sistema midiático (Karam, 2004, p. 129).
Além disso, é preciso fazer uma distinção entre ética e legislação, dado
que, segundo Gomes (1997), essa confusão sempre aparece quando se pretende
discutir questões éticas e deontológicas. O autor afirma que, enquanto a legisla180
EaD
Filosofia e Ética
ção situa-se no âmbito do Direito Positivo, estabelecendo normas de conduta, a
ética tem um caráter mais geral e discute, assim, os princípios morais, podendo
debater, inclusive, a legislação.
Os códigos deontológicos, deste modo, não podem ser deixados apenas
para aqueles que cumprem determinada função. No caso do Jornalismo, Gomes
refere-se à necessidade de que as normas éticas que norteiam essa profissão
sejam também discutidas pelo público, que é primeiramente afetado pelos
desvios morais do jornalista. Esses desvios de conduta, segundo o autor, afetam
ainda o funcionamento da democracia. Uma concepção que pode ser mais bem
entendida se tomarmos a comunicação como uma parte fundamental da vida
dos indivíduos, como um direito de ser.
No entendimento de Gomes (1997, p. 76), “é a partir de uma comunicação
adequada que se pode desenvolver uma sociedade sadia, livre e soberana. O
pressuposto da democracia é a possibilidade.” Ainda nesse sentido, este autor
defende que se a comunicação não se estabelece de forma livre, ela coloca em
risco a constituição da sociedade. “Defender a vida social é defender o estabelecimento de uma comunicação que possa ser acessível a todos, onde a verdade
e a liberdade sejam o apanágio” (Gomes, 1997, p. 77).
Ainda de acordo com o autor, a sociedade evolui da afirmação da liberdade de expressão para o direito à informação. Isso significa que, mais do que ter
direito a expressar livremente suas ideias e emoções, os sujeitos têm direito de
serem informados sobre o que se passa no interior da sociedade, uma vez que
o conhecimento pleno sobre o que acontece nas instituições sociais é condição
básica para o exercício da cidadania. Outro ponto fundamental para a ética da
comunicação, na visão de Gomes (1997), é a dimensão da opinião pública. Segundo ele, a liberdade de expressão é o ponto crucial para a formação da opinião
pública, o que dá a todos o direito de expressar opiniões e ideias e confrontá-las
com as demais.
Nesta mesma perspectiva Kosovski defende:
A liberdade de expressão é, antes de mais nada, um direito político e o primeiro
a ser abolido pelos governos totalitários que se querem proteger da vigilância
dos cidadãos informados. Temos de preservá-la e protegê-la contra seus próprios eventuais abusos. O freio para os abusos é a valorização de princípios
éticos, fundados em valores universais consensualmente aceitos. Um desses
valores e princípios é o respeito à cidadania (1995, p. 34).
Tais concepções contribuem para que a informação deixe de ser compreendida apenas como uma mercadoria e passe a ser percebida, fundamentalmente, como um bem social. Assim, os meios de Comunicação transcendem
sua condição de indústria e passam a ser um serviço público. Neste sentido, a
dimensão ética e a conduta moral com a qual norteiam seu trabalho deve ser o
bem comum, devendo, inclusive, prestar contas à sociedade sobre aquilo que
fazem.
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Gomes (1997) alerta que, mesmo com a constituição de normas específicas para a atividade profissional do jornalista, ou do comunicador de modo
geral, muitas práticas denunciam que há um descompasso entre a realidade e
o dever-ser da comunicação. Elementos como a apresentação parcial de uma
verdade, o sensacionalismo, os vazios sugestivos, os rumores sem base, entre
outros, demonstram que a sociedade não tem bem atendida a sua necessidade
de informação, que está muito mais relacionada à dimensão econômica e aos
interesses particulares.
O mesmo autor argumenta, entretanto, que o problema da ética da comunicação está centrado naquilo que fundamenta o problema ético de qualquer
indivíduo. Por mais que existam códigos deontológicos, que dão autonomia aos
profissionais diante das pressões externas (forças econômicas e políticas) e que
permitem a discussão das normais morais dos profissionais, a questão só estará
realmente solucionada quando a ética deixar de ser uma imposição e passar a
se tornar um princípio universal.
Em outras palavras, não é o enrijecimento das leis e do aparato repressivo
que tornará qualquer profissional ou cidadão mais ético, mas sim o amadurecimento da sociedade e a conscientização sobre os processos que dela fazem
parte; quando os sujeitos forem capazes de, com autonomia, definir a própria
consciência do que é ético ou não. No caso do Jornalismo, quando for compreendido que a informação é um direito, fundamentado na dignidade humana do
bem comum. Para tanto, devem trabalhar as instituições de ensino que formam
e qualificam os profissionais. Às vezes, muito preocupadas com a técnica, as universidades acabam por deixar de lado a formação humana e cidadã dos sujeitos
para que possam ser cada vez mais éticos. Nesse ponto, a própria comunicação
também tem muito a contribuir.
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EaD
Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin
Síntese da Unidade 4
Nesta Unidade estudamos inicialmente:
As implicações ético/sociais do fenômeno do trabalho alienado presente na sociedade moderna
e contemporânea, elaboradas pelo pensador
Karl Marx.
Na segunda seção estudamos o fenômeno da
violência e suas repercussões éticas por meio das
contribuições teóricas do filósofo Levinas. Buscouse compreender como o fenômeno da violência
enraizou-se em nossa cultura, desconstituindo
os sentidos da própria vida e a necessidade de
retomarmos a ética como Filosofia primeira.
Em terceiro lugar, analisamos retrospectivamente
a história da cultura e da educação desenvolvidas
a partir do mundo moderno e a insuficiência destes processos para dar efetividade ao projeto de
emancipação humano. Verificamos o atrelamento
dos processos constitutivos do conhecimento
e da educação aos interesses do mercado e da
acumulação capitalista e a sua desconexão com
as dimensões éticas emancipatórias.
Na quarta seção discutimos as relações entre a
ética e o fenômeno da comunicação considerando-o, de um lado, ação essencialmente humana
e, de outro, objeto de estudo e campo de atuação
profissional. Analisamos, a partir de uma abordagem histórica, a aproximação/incorporação da
ética à prática comunicacional, especialmente
no âmbito do Jornalismo, e as implicações éticas nos fluxos informacionais contemporâneos
decorrentes das transformações provocadas
pelas novas tecnologias digitais de comunicação
e informação.
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