Universidade regional do noroeste do estado do rio grande do sul – unijuí vice-reitoria de graduação – vrg coordenadoria de educação a distância – CEaD Coleção Educação a Distância Série Livro-Texto Aloísio Ruedell Luis Alles Maciel Antoninho Vieira Valdir Graniel Kinn Vânia Lisa Fischer Cossetin (Organizadores) Filosofia e ética Condição humana II – René Magritte Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia. Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil 2014 2014, Editora Unijuí Rua do Comércio, 1364 98700-000 - Ijuí - RS - Brasil Fone: (0__55) 3332-0217 Fax: (0__55) 3332-0216 E-mail: [email protected] Http://www.editoraunijui.com.br Editor: Gilmar Antonio Bedin Editor-adjunto: Joel Corso Capa: Elias Ricardo Schüssler Designer Educacional: Jociane Dal Molin Berbaum Responsabilidade Editorial, Gráfica e Administrativa: Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil) Catalogação na Publicação: Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí F488 Filosofia e ética / Aloísio Ruedell (Org.) ... [et al.]. – Ijuí : Ed. Unijuí, 2014. – 184 p. – (Coleção educação a distância. Série livro-texto). ISBN 978-85-419-0100-0 1. Filosofia. 2. Ética. 3. Ensino. 4. Estratégia organizacional. I. Alles, Luis. II. Vieira, Maciel Antoninho. III. Kinn, Valdir Graniel. IV. Cossetin, Vânia Lisa Fischer. V. Título. VI. Série. CDU : 17 Sumário Conhecendo os professores................................................................................................................................................... 5 Apresentação...................................................................................................................................................................................... 9 UNIDADE 1 – REFLEXÃO FILOSÓFICA: RADICALIDADE, CRITICIDADE E TOTALIDADE..................................................11 Seção 1.1 – Do Mito ao Logos: A Gênese da Filosofia..............................................................................................................11 1.1.1 – O Mito: Base do Futuro Desabrochar da Filosofia...........................................................................................12 1.1.2 – Logos: A Emergência da Filosofia..........................................................................................................................15 Seção 1.2 – Do Mito à Filosofia Hermenêutica: Uma Discussão Sobre Hermenêutica e Finitude...........................16 Seção 1.3 – O que é Filosofia?...........................................................................................................................................................26 Seção 1.4 – Lógica e Racionalidade................................................................................................................................................31 1.4.1 – Entre a Dialética Platônica e a Analítica Aristotélica......................................................................................32 1.4.2 – Para que Lógica?..........................................................................................................................................................33 1.4.3 – O Problema da Argumentação..............................................................................................................................34 UNIDADE 2 – UNIVERSIDADE E CONHECIMENTO: O PAPEL FORMADOR DA FILOSOFIA.............................................39 Seção 2.1 – Filosofia e Ensino............................................................................................................................................................40 Seção 2.2 – Ciências Humanas: Contextualização Histórica e Teórica...............................................................................51 Seção 2.3 – Para que Filosofia?.........................................................................................................................................................55 2.3.1 – A Razão da Pergunta..................................................................................................................................................56 2.3.2 – As Pressuposições Filosóficas nas Ciências........................................................................................................56 2.3.3 – Filosofia Como “Arte do Bem-Viver”......................................................................................................................56 2.3.4 – A Atitude Filosófica: Perguntar...............................................................................................................................57 2.3.5 – A Reflexão Filosófica..................................................................................................................................................58 Seção 2.4 – Filosofia e Formação: O Perfil do Profissional Universitário...........................................................................59 2.4.1 – Idealizando o Profissional Contemporâneo......................................................................................................60 UNIDADE 3 – ÉTICA E AGIR HUMANO............................................................................................................................................65 Seção 3.1 – Introdução aos Estudos Antropológicos...............................................................................................................66 Seção 3.2 – O que é o Homem?........................................................................................................................................................75 Seção 3.3 – Ética a Partir dos Paradigmas.....................................................................................................................................93 3.3.1 – A História da Ética a Partir dos Paradigmas.......................................................................................................95 3.3.2 – Perspectivas Para a Ética........................................................................................................................................ 102 Seção 3.4 – Teorias Éticas................................................................................................................................................................. 104 3.4.1 – Correntes Filosóficas: Podemos Ser Livres?.................................................................................................... 105 3.4.1.1 – Liberdade e Determinismo.................................................................................................................. 105 3.4.1.2 – Racionalismo............................................................................................................................................ 106 3 3.4.1.3 – Fenomenologia....................................................................................................................................... 106 3.4.1.4 – Existencialismo........................................................................................................................................ 107 3.4.2 – A Diversidade das Teorias...................................................................................................................................... 107 3.4.2.1 – Ética Grega................................................................................................................................................ 107 3.4.2.2 – Ética Helenista.......................................................................................................................................... 108 3.4.2.3 – Ética Medieval.......................................................................................................................................... 108 3.4.2.4 – Ética do Dever.......................................................................................................................................... 108 3.4.2.5 – Ética Consequencialista........................................................................................................................ 109 3.4.2.5.1 – Ética Utilitarista................................................................................................................... 109 3.4.2.6 – Ética Nietzschiana................................................................................................................................... 109 3.4.2.7 – Ética do Discurso..................................................................................................................................... 110 Seção 3.5 – Responsabilidade Moral, Determinismo e Liberdade................................................................................... 111 3.5.1 – Ignorância e Responsabilidade Moral.............................................................................................................. 112 3.5.2 – Coação Externa e Responsabilidade Moral.................................................................................................... 113 3.5.3 – Coação Interna e Responsabilidade Moral..................................................................................................... 113 3.5.4 – Responsabilidade Moral e Liberdade............................................................................................................... 114 3.5.4.1 – O Determinismo Absoluto................................................................................................................... 115 3.5.4.2 – O Libertarismo......................................................................................................................................... 115 3.5.4.3 – Dialética Entre Liberdade e Necessidade....................................................................................... 116 Seção 3.6 – Considerações Sobre Ética, Política e Cidadania............................................................................................. 117 3.6.1 – Sobre Ética/Política.................................................................................................................................................. 118 3.6.2 – Reflexões Finais......................................................................................................................................................... 126 Seção 3.7 – A Estética e Suas Relações com o Feio................................................................................................................ 130 UNIDADE 4 – ÉTICA E CONTEMPORANEIDADE....................................................................................................................... 139 Seção 4.1 – Algumas Considerações Sobre o Trabalho Alienado em Marx.................................................................. 140 Seção 4.2 – Ética e Violência: A Ética Como Filosofia Primeira........................................................................................... 149 4.2.1 – A Filosofia Ocidental como Fomentadora da Violência e de Uma Vida Sem Sentido..................... 149 4.2.2 – A Lógica Dominadora da Filosofia Ocidental................................................................................................. 150 4.2.3 – A Filosofia da Alteridade e a Liberdade........................................................................................................... 151 4.2.4 – A Experiência Cognoscitiva e a Experiência Moral...................................................................................... 153 4.2.5 – A ética como Filosofia Primeira........................................................................................................................... 154 Seção 4.3 – Reflexões Acerca das Perspectivas para a Educação no Século 21: Uma Análise em Perspectiva Ético-Filosófica.................................................................................................... 157 4.3.1 – Ética, Conhecimento e Educação....................................................................................................................... 159 4.3.2 – Considerações Finais............................................................................................................................................... 165 Seção 4.4 – Ética, Comunicação e Novas Tecnologias.......................................................................................................... 169 4.4.1 – A Comunicação como Condição Humana e o Objeto Comunicação................................................... 170 4.4.2 – A Ética e a Comunicação na Contemporaneidade...................................................................................... 175 Conhecendo os Professores Aloísio Ruedell Possui Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1999). Atualmente é professor-adjunto da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Epistemologia e Filosofia da Linguagem, atuando principalmente nos seguintes temas: hermenêutica, interpretação, linguagem e subjetividade. Cândida de Oliveira É graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Unijuí, e mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É membro do Observatório da Ética Jornalística (ObjETHOS). Celso Eidt Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1986), Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1999) e Doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (2010). Atualmente é professor-adjunto da Universidade Federal da Fronteira Sul. Tem experiência na área de Filosofia. Julio César Burdzinsky Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1988), Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1995) e Doutorado em Filosofia pela PUC/RS (2004). Luis Alles Possui Graduação em Filosofia pelo Instituto Educacional Dom Bosco (1981), Graduação em Estudos Sociais pelo Instituto Educacional Dom Bosco (1981), Graduação em Teologia pela PUC/RS (1985), Especialização em Filosofia pela PUC/RS (1984) e Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1996). Atualmente é professor tempo parcial da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, atuando principalmente nos seguintes temas: religião, ensino, pastoral, Filosofia e formação humanística. 5 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Maciel Antoninho Vieira É Graduado em Filosofia e Estudos Sociais pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí –, mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM -. Professor do Departamento de Humanidades e Educação – DHE – da Unijuí desde 1996. Maristela Marasca Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1992) e Mestrado em Educação nas Ciências pela mesma instituição (2001). Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: teatro, dramaturgia, teatro brasileiro, teatro no RS e educação. Integrante do Grupo de Teatro A Turma do Dionísio desde 1988. Paulo Rudi Schneider Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1981), Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002) e Doutorado em Filosofia pela mesma Universidade (2005). Atualmente é professor da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, no Mestrado em Educação nas Ciências. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: Filosofia, verdade, metafísica, pensar e ser. Valdir Graniel Kinn É graduado em Filosofia e bacharel em Direito pela Unijuí, mestre em Filosofia (área de concentração em Ética e Filosofia Política) pela PUC/RS. Seus estudos estão voltados especialmente para análise política e conjuntural da sociedade e à ética contemporânea. É professor na Unijuí desde 1988, vinculado ao Departamento de Humanidades e Educação. Vânia Dutra de Azeredo Possui Graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1987), Mestrado em Filosofia pela mesma instituição (1996), Doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2003) e Pós-Doutorado pela Ecole Normale Supérieure Paris (2012). Atualmente é professora da PUCCampinas, membro do corpo editorial da Revista Reflexão, membro do corpo editorial da Revista Alamedas, membro do corpo editorial dos Cadernos Nietzsche, membro do corpo editorial da Humanidades em Revista, membro do corpo editorial da Revista Trágica e membro do corpo editorial da Philósophos (UFG) (Cessou em 2000. Cont. ISSN 1982-2928 Revista Philósophos). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Nietzsche, genealogia, moral. 6 EaD Filosofia e Ética Vânia L. F. Cossetin É graduada em Filosofia e Artes pela Unijuí, mestre e doutora em Filosofia pela PUC/RS. Seus estudos estão especialmente voltados para o problema da linguagem no sistema filosófico de Hegel e, atualmente, dedica-se também à investigação sobre o papel formador da escola de Ensino Médio. É líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar de Humanidades no Ensino Médio e participa como pesquisadora do Grupo de Pesquisa Linguagem, Hermenêutica e Justificação, da Unijuí, e do Grupo de Pesquisa Dialética, da Unisinos. Atualmente exerce atividade docente na Unijuí, na Faculdade América Latina e no Colégio Tiradentes, da Brigada Militar de Ijuí. 7 Apresentação Apresentamos aqui o livro Filosofia e Ética, publicado como material didático-pedagógico, da disciplina do mesmo nome, para os cursos de Graduação da Unijuí na modalidade a distância e presencial, na forma de Livro-Texto. A disciplina e o livro aqui apresentados situam-se num contexto em que diversas correntes filosóficas, seguindo a direção de Kant, propõem que a Filosofia seja, se não a instituidora de um “tribunal da razão”, ao menos uma “guardadora de lugar”, para que as ciências possam escapar aos limites cientificistas nos quais permanecem, via de regra, confinadas; propõem que a Filosofia também seja uma “intérprete” mediadora do espaço entre essas mesmas ciências e a linguagem cotidiana. Vivemos, além disso, hoje um momento de crise, em especial crise de referenciais: ausência de reflexão crítica acerca da consciência da inconsciência que permeia a existência humana. Nesse sentido, a Unijuí estabelece a disciplina Filosofia e Ética como um exercício crítico do pensar e do agir humanos. Na atual polêmica mundial acerca dos possíveis sentidos dos valores éticos, políticos, estéticos e epistemológicos, a Filosofia e a Ética têm um espaço a ocupar e muito a contribuir, pois giram em torno de problemas e conceitos criados no decorrer de sua longa história, os quais, por sua vez, geram discussões promissoras e criativas que, muitas vezes, desencadeiam ações e transformações. Por isso, permanecem atuais. Ademais, Filosofia e Ética, enquanto disciplina acadêmica, desenvolve as potencialidades que a caracterizam: capacidade de indagação e crítica; qualidades de sistematização e de fundamentação; rigor conceitual; combate a qualquer forma de dogmatismo e autoritarismo; disposição para levantar novas questões, para repensar, imaginar e construir conceitos, além da sua defesa radical da emancipação humana, do pensamento e da ação livres de qualquer forma de dominação. Um dos objetivos da formação acadêmico-profissional é a formação pluridimensional e democrática, capaz de oferecer aos estudantes a possibilidade de compreender a complexidade do mundo contemporâneo, suas múltiplas particularidades e especializações. Nesse mundo, que se manifesta quase sempre de forma fragmentada, o estudante não pode prescindir de um saber que opere por questionamentos, conceitos e categorias de pensamento, que busque articular o espaço-temporal e histórico-social em que se dá o pensamento e a experiência humanos. Como disciplina constitutiva da formação geral e humanista, considera-se que Filosofia e Ética pode viabilizar interfaces com os outros componentes para a compreensão do mundo da linguagem, das ciências, das técnicas, do mundo do trabalho e da política. 9 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin A disciplina Filosofia e Ética apresenta e tematiza o conceito de Filosofia enquanto exercício da reflexão crítica e a Ética enquanto investigação e debate acerca do agir humano. Considerando essa dupla composição da disciplina, o livro Filosofia e Ética consta de quatro unidades temáticas: 1 – Reflexão filosófica: criticidade, radicalidade e totalidade; 2 – Universidade e Conhecimento: o papel formador da Filosofia; 3 – Ética e o agir humano; 4 – Ética e contemporaneidade. Cada unidade consta, por sua vez, de diferentes textos, nos quais são tratados os principais temas que lhe dizem respeito. Além desses textos, porém, elaborados pelos professores, em cada unidade há ainda outro importante recurso didático: imagens, que dizem respeito aos temas tratados e que podem contribuir para o seu aprofundamento. Cada texto suscita, com certeza, uma série de questionamentos, mas não vamos adiantá-los aqui. Deixamos para a criatividade do professor e dos alunos a maneira de trabalhar os textos e sua relação com as imagens. Os organizadores 10 Unidade 1 REFLEXÃO FILOSÓFICA: Radicalidade, Criticidade E Totalidade OBJETIVOS DESTA UNIDADE • Compreender o processo de nascimento da Filosofia no universo do mundo grego antigo. • Refletir sobre a importância do mito no desenvolvimento da cultura e do mundo ocidental e a passagem deste para o conhecimento filosófico/racional. • Apresentar a importância do raciocínio lógico para o desenvolvimento das ciências ao longo da História e sua significação no âmbito da formação acadêmico/profissional. AS SEÇÕES DESTA UNIDADE Seção 1.1 – Do Mito ao Logos: a Gênese da Filosofia Seção 1.2 – Do Mito à Filosofia Hermenêutica: uma Discussão Sobre Hermenêutica e Finitude Seção 1.3 – O que é Filosofia? Seção 1.4 – Lógica e Racionalidade Seção 1.1 Do Mito ao Logos: a Gênese da Filosofia Maciel A. Vieira Vânia L. Fischer Cossetin Nosso olho nos faz participar do espetáculo das estrelas, do sol e da abóbada celeste. Este espetáculo nos incitou a estudar o universo inteiro. De lá nasce para nós a Filosofia, o mais precioso bem concedido pelos Deuses à raça dos mortais (Platão, Teeteto, 155d.). 11 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Conforme a história do pensamento ocidental, a Filosofia é uma invenção grega que ocorreu entre os séculos 6º e 7º a.C. e que promoveu a passagem do saber mítico (alegórico, poético) ao pensamento racional (logos), ou seja, a razão e a lógica tornaram-se pressupostos básicos para o pensar. Esta mudança, porém, não ocorreu de forma abrupta, mas em meio a um longo processo histórico. 1 1 1.1.1 – O Mito: Base do Futuro Desabrochar da Filosofia Antes da invenção do logos e do saber filosófico havia outro saber, um modo de pensar que dava conta dos problemas concretos do cotidiano da vida do homem grego: o mito. Afinal, porém, o que é o mito? Como é e para que serve? A primeira questão nos remete a uma definição. Para tanto é importante destacarmos a etimologia da palavra. Em grego, mito significa uma “fala que narra” a origem dos fenômenos, tanto naturais quanto humanos. Diferentemente do que se pensa, o mito não é uma lenda ou uma fantasia, mas ele surge como fruto do processo de compreensão da realidade, por isso podemos dizer que ele é verdadeiro. E se é uma fala, uma narrativa, quem é que o faz? É o poeta. Havia, basicamente, dois tipos de poetas: o aedo (um criador de poemas que também recitava de memória, recriava e transformava o verso ancestral) e o rapsodo (simples repetidor, declamador, de uma versão já fixada). Vale lembrar que quando o poeta recitava o poema, apresentava-o cantando, com acompanhamento de música e dança. Eram estratégias utilizadas para uma melhor e mais rápida apropriação dos mitos e de toda a tradição, que por muito tempo foi conservada e propagada oralmente. Com o advento da escrita, a tradição oral passou a ser fixada como um patrimônio comum de que o poeta seria o guardião. Exemplo deste patrimônio cultural são as poesias de Homero (a Ilíada e a Odisseia, século 9º a.C.) e de Hesíodo (a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias, 7º a.C.). A questão central, então, passou a ser sobre a credibilidade e a veracidade da narrativa do poeta. O que garante que ele diz a verdade? Caso o poeta fosse escolhido e inspirado pelos deuses e desse testemunho inquestionável sobre a origem de todas as coisas, como se dá a gestação das coisas e dos próprios deuses? Quem são os deuses? Crianças geopolíticas assistindo ao nascimento do novo homem – Salvador Dali. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia. 1 12 EaD Filosofia e Ética Para os gregos, tudo o que existe, fenômenos naturais e humanos, e mesmo os próprios deuses, é oriundo das relações sexuais entre eles. E os deuses, conforme Reale (1993), são forças naturais diluídas em formas humanas idealizadas: “Os deuses são homens amplificados e idealizados, são quantitativamente superiores a nós, mas não qualitativamente diferentes” (p. 21). Os fenômenos naturais, nesse sentido, são promovidos pelos deuses. Por exemplo: os trovões e raios são lançados por Zeus do Olimpo; as ondas do mar são levantadas pelo tridente de Poseidon; o Sol é carregado pelo carro de Apolo, etc. Também os fenômenos da vida individual e social do homem grego, o destino da cidade, das guerras, são todos concebidos pelos deuses e manipulados por eles. Tudo é divino, ou seja, tudo o que acontece é obra dos deuses. Afinal, qual é a função do mito na sociedade e na vida do homem grego? A função primordial do mito era responder a questões fundamentais como: Qual a origem de todas as coisas? O que significa o homem e qual a sua relação com o mundo natural e com o mundo humano? Nesse sentido, a narrativa explicava e significava a realidade, o modo de vida, a organização social, a conduta dos homens, os valores e normas, de modo que “os comportamentos e as atitudes que a sociedade quer preservar são condensados em paradigmas – exemplos idealizados e fixados em personagens – que os jovens devem incorporar” (Santos, 1985, p. 47). Dito de outro modo, os valores que a sociedade elegeu como os melhores a serem observados e vivenciados por todos os membros da sociedade estão expressos nos deuses, semideuses e heróis contados pelos poetas: “o ideal heróico, representado por um Aquiles, ou por um Ulisses, em múltiplas situações concretas, consubstancia um código de valores objetivos (...) constituindo-se como a norma, o exemplo, que todos os cidadãos devem imitar” (Santos, 1985, p. 47). Os mitos, portanto, carregam mensagens que se traduzem nos costumes e na tradição de uma sociedade. São formas de explicar um determinado modo de vida. A única forma, aliás, de pensar e de significar as relações do homem no mundo. Os mitos são modelos norteadores que ajudam a organizar e significar a vida das pessoas, por isso, no caso específico dos gregos, eles “desenvolvem e alicerçam, cada um a sua maneira, essa magistral lição de vida, fornecendo com isso à filosofia a própria base do seu futuro desabrochar” (Ferry, 2009, p. 22). O mito como fala, como narrativa concreta, portanto, serviu de base para a emergência de um novo modo de pensar, problematizador, conceitual e reflexivo: o filosófico. 1.1.2 – Logos: a Emergência da Filosofia O homem é um ser pensante e criativo e, enquanto tal, cria pensamentos. Pensamentos estes que irão fundar e desenvolver a civilização ocidental. Cria o mito e o logos: o primeiro se dá mediante figuras, imagens, fantasias; o segundo, 13 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin mediante a razão, produzindo conceitos. Isto explica por que se pode dizer que a Filosofia surgiu a partir da crítica e racionalização do mito: porque ela supera a crença mítica e coloca a razão e a lógica como pressupostos básicos para o pensar. A origem da Filosofia, portanto, está ligada à invenção do logos, razão pela qual ela pode ser concebida, inicialmente, como o exercício do logos. Etimologicamente, logos vem do grego legein, que significa “falar”, “reunir”. Na língua grega clássica, equivale à palavra, verbo, sentença, discurso, pensamento, inteligência, razão, definição. Antes de tudo, portanto, logos se define como fala, discurso, razão. Nesse sentido ele se opõe ao mito, que também é fala, mas uma “[...] fala que narra, que comunica por analogia entre situações narradas a experiência do narrador”, ao passo que logos “[...] significa fala que demonstra, que descreve o que ocorre às coisas em vista de suas próprias essências” (Cunha, 1992, p. 56). O surgimento do logos, então, inaugura uma nova fase de entendimento acerca da realidade: a possibilidade de analisar e interpretar o mundo para além dos fatos e das experiências, a fim de encontrar sua causa, seu princípio. O primeiro filósofo foi Tales de Mileto, que viveu entre o final do século 7º e início do século 6º a.C. Vale mencionar outros filósofos desse período que fizeram questionamentos semelhantes e deram respostas igualmente semelhantes, dentre eles: Anaxímenes, Anaximandro, Heráclito, Pitágoras, Parmênides, Empédocles, Anaxágoras, Demócrito. O problema fundamental que aproxima estes pensadores é a pergunta sobre a origem do mundo e as causas das transformações da natureza. Ou, ainda, a questão filosófica fundamental é cosmológica: Como surge o cosmos? Qual é seu princípio fundamental? Como ocorre sua geração? Desse momento em diante não é mais atribuída aos deuses a origem do cosmos e de todas as coisas, mas ao próprio homem, que o faz mediante o uso da razão. Os primeiros filósofos, portanto, forjaram uma ideia que é fundamental para explicar e significar o mundo e o próprio homem: elaboraram o conceito de Physis, ou seja, “a fonte original de tudo o que cresce”, a partir do qual as coisas emergem, brotam. Physis é o princípio unificador e organizador da diversidade dos seres e, segundo Aristóteles, Tales teria sido o primeiro filósofo a expressar aquilo que podemos denominar de pensamento racional: “tudo é água”. Eis a arché, o princípio de todas as coisas (Santos, 1985, p. 88). O modo de pensar, como exercício da razão (logos) dos primeiros filósofos, é uma reflexão acerca da origem, ordem e transformação da natureza e do ser humano. É um discurso que institui conceitualmente o princípio fundante que unifica e ordena a totalidade. O logos é constitutivo e possibilidade de entendimento da realidade. A ideia de um princípio fundante, de onde tudo nasce e para onde tudo volta, só é possível para o pensamento racional. Este elemento primordial, eterno e imperecível, é a própria natureza em transformação: “a natureza é mobilidade permanente (...). O movimento do mundo chama-se devir e o devir segue leis rigorosas que o pensamento conhece” (Chauí, 1994, p. 36). 14 EaD Filosofia e Ética Os filósofos pré-socráticos escolheram diferentes Physis para dizer qual era o princípio que estaria na origem da natureza e de seus movimentos. Além de Tales de Mileto, podemos ainda mencionar: Heráclito, cujo princípio era o fogo, o movimento; Pitágoras, que afirmava ser o número o princípio de todas as coisas; Leucipo e Demócrito, para quem o princípio era o átomo. O nascimento da Filosofia, portanto, pode ser entendido como um novo modo de pensar que se diferencia do mito, de uma visão de mundo única que se formou a partir de narrativas que eram transmitidas oralmente de geração para geração. A religião, portanto, era apresentada sem sistemas teóricos escritos, livros sagrados, sacerdotes, e aceita pela população que nela acreditava e a concebia como verdadeira. Mais tarde esta tradição oral foi sistematizada e escrita por Homero e Hesíodo. Por muito tempo o pensamento mítico foi suficiente para organizar, explicar e significar o mundo. À diferença do mito, porém, o pensamento filosófico, enquanto um pensar conceitual e reflexivo acerca da realidade, busca ordenar, explicar e significar a complexidade do cosmos e a diversidade dos seres mediante um discurso que justifique a sua existência. Por isso, filosofar significa buscar na multiplicidade um princípio (physis) único que seja a fonte de onde toda essa variedade emerge. Essa foi a grande tarefa realizada pelos primeiros filósofos. Sua intenção era buscar justamente na totalidade das coisas, na multiplicidade do mundo, uma unidade a ser conhecida e interpretada pela razão, sem, portanto, projetar temores e crenças, mas, conforme Platão, simplesmente pela capacidade de se espantar, que “é o começo da Filosofia”. Referências CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994. CUNHA, J. A. Filosofia: iniciação à investigação filosófica. Campinas: Atual Editora, 1992. FERRY, L. A sabedoria dos mitos gregos: aprender a viver II. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. REALE, G. História da Filosofia antiga. Trad. Marcelo Perini. São Paulo: Loyola, 1993. (Série História de Filosofia). SANTOS, J. T. Antes de Sócrates: introdução ao estudo da filosofia grega. Lisboa: Gradiva, 1985. 15 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Seção 1.2 Do Mito à Filosofia Hermenêutica: Uma Discussão Sobre Hermenêutica e Finitude Aloísio Ruedell O que está em questão não é o que fazemos, o que deveríamos fazer, mas o que nos acontece além do nosso querer e fazer (Gadamer, 2003, p. 14). 2 Esta passagem de Gadamer fornece uma chave de leitura para seu livro Verdade e Método e, por extensão, para a discussão hermenêutica em geral, como foi desenvolvida ao longo do século 20, até os dias atuais. O que, pois, orienta o filósofo é a consciência histórica ou consciência das condições históricas nas quais toda compreensão humana está submetida, sob o regime da finitude. 2 Tem consciência de estar exposto à História e a sua ação, de tal forma que não pode objetivar essa ação sobre nós, porque isso faz parte de seu sentido enquanto fenômeno histórico. Essa forma de pensar, contudo, não é exclusividade de Gadamer. São atualmente muitos os autores que têm a mesma percepção, e o destaque está por conta de Martin Heidegger, com sua analítica do Dasein. O desenvolvimento de suas discussões, em Ser e Tempo, acabou produzindo o que se designa como pensamento da finitude (Stein, 1976, p. 76). É uma perspectiva de grande parte da Filosofia contemporânea, que se fortalece a partir dos, assim denominados, mestres da suspeita, como Nietzsche, Freud e Foucault, mas que, certamente, também tem legitimidade filosófica a partir de Kant, preocupado com os limites do conhecimento. O tema do presente ensaio surgiu desse contexto de discussão. Vinculase também ao projeto de pesquisa Interpretação e finitude, cujo propósito é refletir sobre os limites da linguagem e da interpretação, a partir do conceito de finitude. Considerando a centralidade desse conceito no atual cenário filosófico, Prometeu Acorrentado – Peter Paul Rubens. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia. 2 16 EaD Filosofia e Ética pretendemos examinar sucintamente como ele se configura na discussão hermenêutica. Para efeito de delimitação, sem fazer todo o percurso da história da hermenêutica, dirigiremos um olhar privilegiado a dois momentos, ao da Filosofia hermenêutica, marca característica da discussão atual, e o momento do mito, que eventualmente poderia ser designado como pré-história da hermenêutica. Iniciaremos a indagação por esse momento específico da história hermenêutica, que é o seu nascedouro na mitologia grega, de onde procedem a etimologia e o sentido originários do termo. Pretendemos examinar resumidamente o sentido e as consequências dos limites humanos, percebidos diante da narrativa do mito sobre Hermes, que medeia a comunicação entre os deuses e os homens. Isso permitirá, ao final, estabelecer uma diferença fundamental entre essa primeira percepção dos limites humanos, no contexto do mito, e o sentido desses limites na atual discussão sobre hermenêutica e finitude. O recurso ao mito não significa nenhuma concessão do rigor filosófico em favor de um pensamento mítico. Fazer referência a uma narrativa mítica não equivale a transformá-la em princípio da realidade. A Filosofia, entretanto, reconhece o teor do mito como genuinamente humano, e enquanto tal o assume em sua discussão. Sem se orientar por sua visão de mundo, nem por suas soluções, a Filosofia identifica no mito problemas e perguntas fundamentais da humanidade, que serão debatidos ao longo de toda a História da Filosofia, até os dias de hoje. Assim, a riqueza da moderna discussão hermenêutica esclarece-se, em grande parte, à luz do mito, no qual, pela primeira vez, a humanidade colocou o problema da compreensão e da interpretação. Personagens e funções na mitologia serão, posteriormente, fonte de conceitos e de discussões filosóficas. Embora criação da modernidade, a hermenêutica remete-nos, etimologicamente, ao mito de Hermes. Filho de Zeus e de Maia, Hermes era uma divindade complexa e imprevisível. Transgredia e, ao mesmo tempo, obedecia à ordem superior; era diurno e noturno. Acusado de mentiroso diante de Zeus, este o fez prometer que nunca mais faltaria com a verdade. Aceitou a cobrança do pai, mas acrescentando-lhe uma ressalva: que não estaria obrigado a dizer toda a verdade (Brandão, 2005, p. 193). Ou seja, ao mesmo tempo em que estaria obrigado a dizer a verdade, lhe assistiria o direito de reter parte dela. Com esse acordo, falar e reter, ocultar e desocultar a verdade seriam duas faces características da personalidade de Hermes. Trata-se de uma divindade que, em sua função paradoxal, representa, aqui, a personificação da própria linguagem, que, ao mesmo tempo, comunica e também se interpõe à comunicação. Não faltaram, na História, sonhadores de uma comunicação direta e perfeita entre as consciências, sem a mediação de palavras e discursos ou outros meios, que sempre são deficientes; ao mesmo tempo transmitem uma mensagem e também a retêm parcialmente, em virtude de sua opacidade. Após o giro linguístico, no entanto, é muito difícil que alguém 17 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin ainda pense em comunicar-se sem a linguagem. Como isso, afinal, seria possível, se todo o universo humano é linguisticamente concebido e mediado (Cf. Fehér in: Figal, p. 2000, p. 192), ou então, como afirma Gadamer: “ser que pode ser compreendido é linguagem” (1990, p. 478). Enfim, não resta outra alternativa: já somos ou estamos sempre na linguagem, e todas as tentativas de organização e comunicação terão sempre as marcas de seus benefícios e de seus limites, que são os limites da própria condição humana. O que, certamente, surpreende, é descobrir que esse problema já era tematizado em nosso passado mítico. Ao estabelecer a comunicação entre o mundo divino e o humano, Hermes, de alguma forma, traz e estabelece a linguagem, determinante para o desenvolvimento da humanidade. De origem divina, mas com afeição humana, gostava de estar entre os homens e com eles se comunicar. São suas relações com o mundo dos homens, um mundo por definição “aberto”, que está em permanente construção, isto é, sendo melhorado e superado. Os seus atributos primordiais – astúcia e inventividade, domínio sobre as trevas, interesse pela atividade dos homens, (...) – serão continuamente reinterpretados e acabarão por fazer de Hermes uma figura cada vez mais complexa, ao mesmo tempo que um deus civilizador, patrono das ciências e imagem exemplar das gnoses ocultas (Eliade apud Brandão, 2005, p. 196). Em uma negociação com Apolo, Hermes teria recebido um bastão de ouro e com ele a arte divinatória. Andava com extrema rapidez, com sandálias de ouro, e não se perdia à noite, porque conhecia muito bem o roteiro. Com esses atributos e por suas habilidades, mereceu o título de “deus mensageiro” ou “deus da comunicação”. Seu papel era anunciar, traduzir e explicar a mensagem divina ao nível da compreensão humana. Dessa tríplice tarefa mediadora de Hermes originaram-se três acepções de hermeneuein (= interpretar) consideradas na hermeneia (= hermenêutica) e, posteriormente, assimiladas na discussão hermenêutica. As habilidades linguísticas de Hermes, porém, não nos autorizam a lhe atribuir uma concepção instrumental da linguagem. Sua função comunicadora é mais da ordem do “ser” do que do “fazer”, lembrando a concepção hermenêutica de que “somos linguagem”. Sua missão, pois, consistia em colocar-se no meio de tudo o que acontecia, para levar a mensagem dos deuses para o horizonte da compreensão3 da linguagem humana. Ele mesmo, Hermes, deus presente entre os homens, era a própria mensagem divina. Mais do que mediar palavras Gadamer (1998, p.452) esclarece que o conceito de horizonte de compreensão refere-se ao âmbito de visão finita que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Por isso podemos falar de estreiteza e de abertura de novos horizontes. A elaboração da “situação hermenêutica” significa a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam perante a tradição. 3 18 EaD Filosofia e Ética divinas para uma linguagem humana, ele era a mediação ou linguagem efetiva, porque era um deus que se aproximou e se afeiçoou ao ser humano, encurtando a distância e manifestando o oculto. À semelhança de Hermes, que permitia a comunicação entre o mundo divino e o humano, a linguagem é condição de possibilidade de nossa comunicação. Não se pensa, porém, numa linguagem ideal, de caráter rigorosamente universal, como que pairando acima do cotidiano humano. Não há racionalidade e linguagem em estado puro. O homem sempre falou dentro da História, em determinado contexto sociocultural. No mais, a linguagem não fala por si, e um texto precisa ser anunciado (lido) e interpretado e, muitas vezes, traduzido para uma linguagem mais acessível. Enfim, só será compreendido na medida em que também for explicado o assunto ou o tema sobre o qual é construído. Não há mera compreensão da linguagem. Compreende-se a linguagem de um texto na medida em que também se compreende seu conteúdo, a mensagem que veicula. Ou ainda, não há mera compreensão da linguagem, porque esta nunca se dá como pura forma, mas já sempre marcada por um conteúdo cultural e conceitual. Na história do mito, por mais qualificada que fosse a mediação de Hermes, ela nunca podia trazer aos homens a própria mensagem divina, mas tão somente sua interpretação. Já era uma prefiguração do que se afirma atualmente em relação à leitura e à interpretação de um texto: por mais cuidadosa e rigorosa que seja a leitura, nunca será possível chegar à compreensão correta. Feitas todas as leituras e realizadas as interpretações possíveis, haverá, ao final, sempre uma interpretação do texto, e não o próprio texto ou este em si mesmo. O que era distância entre o mundo divino e o humano caracteriza-se, agora, como limites da comunicação entre os homens. Não há linguagem totalmente transparente, nem comunicação direta sem o recurso do meio linguístico. A emergência dessa discussão na História da Filosofia ainda é um acontecimento relativamente recente. Adquiriu vigor e caráter filosófico com a questão hermenêutica, no século 19, quando, com Schleiermacher, esta deixou de ser uma disciplina especial, indagando por um fundamento universal da compreensão. Na época, a pergunta hermenêutica surgia por uma demanda específica da exegese bíblica, mas foi ampliada e elaborada numa perspectiva universal e filosófica. Não foi simplesmente um texto bíblico, nem uma mensagem divina que desafiava a compreensão do filósofo. O que lhe suscitou a questão hermenêutica foi a consciência dos limites humanos em relação à compreensão e à interpretação em geral. Num mundo já secularizado, numa época pós-metafísica, tomou-se consciência do espaço propriamente humano. Sem referência a uma verdade absoluta e sem se reduzir a uma verdade empírica, eram, então, o sentido e o agir do homem que careciam de compreensão. 19 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Certamente já havia problemas de compreensão e de interpretação ao longo de toda História da Filosofia. Até a metade do século 18, porém, a interpretação, enquanto problema específico, não teve nenhuma importância autônoma nas formas do conhecimento relacionadas com a linguagem. Uma concepção lógico-semântica da linguagem garantia por sua clareza e transparência, reproduzindo com fidelidade os fatos do mundo. Um discurso gramaticalmente correto propiciava representações confiáveis da realidade. Gramática e razão, ambas universais, reproduziriam concretamente essa universalidade. “Compreender algo como algo significaria iluminar as expressões ditas ou escritas sob o ponto de vista do seu conteúdo racional, isto é, concebê-las como aquele universal que não pode cessar de ser em sua historicamente única situação de uso” (Frank, 2007, p. 80). Isso muda radicalmente com o Romantismo e, inclusive, em dois sentidos. Primeiro duvida-se da possibilidade de contar com uma razão supra-histórica, que, de antemão, corresponderia à realidade. Em consequência, a compreensão torna-se problema, porque não resulta mais de uma participação paritária dos interlocutores numa razão comum. Ela não se dá por si, mas, ao contrário, em cada caso precisa “ser querida e buscada” (Schleiermacher, 1990, p. 92). O desafio da hermenêutica, segundo Schleiermacher (2005, p. 87), está em compreender o outro, o diferente, e a rigor cada texto é outro e diferente, sempre carecendo de interpretação. Há uma peculiaridade no texto, porque a própria linguagem não existe num padrão rigorosamente universal, mas em sentidos sempre singularizados, em cada ato de uso. Ainda mais decisiva, para evidenciar os limites da condição humana, foi uma segunda mudança de paradigma, “a convicção de que aquilo que forma a dimensão básica da Filosofia não é alguma representação de objeto, mas a compreensão de sentido” (Frank, 2007, p. 81). A Filosofia antiga ocupava-se com o mundo como ele é, na perspectiva da ontologia; já a Filosofia moderna superou essa perspectiva com a teoria do conhecimento, com a convicção de que os objetos são mediados por representações subjetivas. A partir de Schleiermacher – afirma Frank (2007, p. 79) – aquilo que representamos de modo algum são objetos, mas fatos, e o que corresponde a estes são proposições ou juízos. Isso significa que o limite da atuação e da compreensão permanece no âmbito da linguagem: juízos referem-se tão somente a objetos já sempre interpretados desse ou daquele modo. É inegável que a hermenêutica, enquanto arte de compreensão e interpretação (Schleiermacher, 1990, p. 71), é produto da modernidade, mas é também sua superação. Seu desafio seria operar o giro transcendental no mundo do sentido, mas sem o rigor e o caráter absoluto do cogito cartesiano. A consciência de si, a partir da qual se estabelece, é uma consciência humilde, que percebe os limites da condição humana. É uma “consciência de finitude” (Schleiermacher, 1980, § 9) e de dependência, que não encontra em si mesma o seu fundamento, mas se percebe constituída por outrem. Este, afirma Frank, é o 20 EaD Filosofia e Ética mais alto grau de consciência, de quem percebe seus limites, porque já sempre relacionado e constituído com outro, constituindo a linguagem a forma dessa relação (1977, p. 115). Todas essas considerações não deixam dúvidas de que Schleiermacher já se situa no giro linguístico: todas as questões são colocadas e resolvidas no âmbito da linguagem, mas ainda não na radicalidade de Gadamer e de Heidegger. Ao demonstrar que a linguagem é o único acesso à realidade e condição de possibilidade para sua discussão, ele também admite seu caráter instrumental e representativo. Embora permaneça no âmbito da linguagem, ainda se orienta por um “pensamento ontológico, no qual se acredita que a verdade ou o verdadeiro tem um estatuto objetivo, cuja busca é árdua, mas não impossível; boas regras de procedimento e a destreza do intérprete podem conduzir a ela” (Ruedell, 2007, p. 23). Daí a preocupação metodológica por uma adequada e correta interpretação, que pudesse conduzir à verdade do texto. Mesmo, contudo, que isso mostre o quanto o autor ainda se situa no paradigma ontológico, este, entretanto, não deixa de apontar para sua fragilidade, ao afirmar que o ideal da compreensão perfeita é irrealizável. Somente pode ser alcançado por aproximação (Schleiermacher, 2005, p. 201). Chegando, porém, a Heidegger, na perspectiva da Filosofia hermenêutica, a discussão toma outra configuração. Se antes, com Schleiermacher, apesar dos limites da condição humana, não se deixava de perguntar pelo procedimento correto para chegar à verdade, agora já não há mais essa perspectiva. Inaugurase um novo modo de pensar, que vem se estabelecendo na medida em que os conceitos compreensão e interpretação, referidos ao mundo, passam a ter outro significado, ou seja, na medida em que a interpretação é “apenas interpretação”, em oposição ao saber da realidade (Scholtz, 1992-1993, p. 108). Já era esse o entendimento de Nietzsche ao afirmar que “o mundo se tornou mais uma vez ‘infinito’ para nós, porque ele contém em si a possibilidade de interpretações infinitas;” e “que não há fatos, mas apenas interpretações” (apud Scholtz, 1992/93, p. 108). A mesma concepção encontra-se também em Dilthey, ainda que não no sentido universal e radical de Nietzsche. Para ele, somente “a religião, a arte e a metafísica fornecem ‘interpretações do mundo’” (Scholtz, 1992/93, p. 108), complementando, nesse sentido, as ciências da natureza. Enquanto estas analisam e desenvolvem as relações universais de estados de coisas isolados, aquelas expressam o significado e o sentido do todo. Umas conhecem e outras compreendem. Ao admitir que foi dessa concepção de interpretação que brotou a Filosofia hermenêutica, podemos dizer que ela surgiu da crise da concepção tradicional de verdade e de ciência. Em Kant encontra-se a base teórica desse acontecimento: a destruição da ontologia tradicional e a redução do mundo ao mundo fenomênico. Em vez da realidade, que era objeto da ontologia, dispõe-se sempre mais de visões de mundo, tradições e convenções, que, numa linguagem pré-científica, 21 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin sempre articulam e interpretam o mundo. As interpretações são aquilo que sempre se interpõe entre o mundo e as ciências, e estas, por sua vez, assentamse sobre aquelas e as desenvolvem, sem o saber; sem saber que “compreender o mundo é mais amplo e mais fundamental do que conhecer cientificamente a natureza e que a formação do conceito das ciências da natureza está baseada numa atitude diante do mundo, já linguisticamente articulada” (Scholtz, 1992/93, p. 109-110). O filósofo hermeneuta tem consciência de que vive num mundo já sempre interpretado e compreendido, e de que suas interpretações podem ser as mais diversas. Há, por conseguinte, uma relação estreita entre Filosofia hermenêutica e consciência histórica, no sentido em que Nietzsche falava em “filosofar histórico” e Yorck von Wartenburg referia-se à “historização do filosofar” (Scholtz, 1992/93, p. 110-111). Não há dúvidas de que, na origem da Filosofia hermenêutica, encontra-se a consciência do caráter histórico da Filosofia e das Ciências. Todas têm pressuposições históricas e contingentes. Diante disso, impõe-se a pergunta sobre a tarefa da Filosofia. O que lhe restaria a fazer, a não ser constituir-se em reflexão ou interpretação da historicidade, da historicidade do ser humano e de suas interpretações do mundo? Nessa direção, dentre os diversos níveis de reflexão possível, Heidegger pergunta pelo fundamento ou vertente dessa história, concentrando-se no caráter histórico do ser humano, aquele que produz as interpretações do mundo. Isso de tal maneira que, com sua analítica do Dasein, a afirmação de que “tudo é interpretação” perde o sentido negativo da perspectiva ontológica, de impedir o acesso à realidade. Ao contrário disso, essa expressão recebe agora um sentido positivo. Se tudo é interpretação, isso se deve à liberdade e à capacidade interpretativa do homem, fonte de todas as interpretações. Sem o amparo de uma base metafísica, mas também sem a rigidez de uma estrutura ontoteológica coercitiva, abre-se um espaço propriamente humano, de atuação livre e responsável do homem, apenas limitado pelas condições e condicionamentos de sua própria natureza. Se na tradição o homem era entendido como aquele que pensa e conhece, “hoje ele se compreende como aquele que compreende e se explica como aquele que interpreta” (Scholtz, 1992/93, p.113). Compreensão e interpretação deixam de ser exclusividade de uma ciência especial, como a hermenêutica técnica, e se constituem numa dimensão essencial da vida humana. Com esse reconhecimento, compreende-se melhor porque “ser que pode ser compreendido é linguagem” (Gadamer, 1990, p. 478) e que todos os fatos já estão sempre interpretados, mas ainda sempre abertos para novas interpretações. Enfim, não há dúvidas, para Heidegger, de que Filosofia é, antes de mais nada, hermenêutica. Todas as considerações permitem reconhecê-la como Filosofia primeira. 22 EaD Filosofia e Ética Na complexidade de sua função mediadora, entre o mundo divino e o humano, Hermes não só representava uma presença amiga dos deuses, mas também evidenciava a diferença abissal entre os dois mundos e mantinha os homens numa situação de eterna imperfeição e inferioridade. Por melhor que fosse o mensageiro e o tradutor, a compreensão humana nunca seria perfeita e Hermes nunca iria conseguir que os homens ascendessem ao nível da divindade. Por isso, além da explicação etimológica do termo hermenêutica, a referência à mitologia grega fornece a matriz ou a fonte alimentadora da história do pensamento ocidental, enquanto pensamento metafísico. O conhecimento depende da luz, da iluminação divina. Desde a identidade parmenídica entre ser e pensar até a unidade entre ser e pensar como autoconsciência em Hegel, o ser e a verdade são colocados no horizonte da transparência e da identidade. Deus é a total transparência, a luz em sua plenitude, como identidade consigo mesmo, e, por isso, é a verdade e o ser por excelência, a noesis noeseos (Stein, 2001, p. 21). Deus é fundamento do ser e da verdade, mas, sobretudo, é arquétipo de todo conhecimento perfeito. Na perspectiva do mito, a reflexão filosófica será sempre medida por aquilo que a excede, referida ao modelo divino. Essa relação desigual entre divindade e humanidade e a tendência de comparação entre os dois mundos têm propiciado ao homem uma experiência frustrante ou meramente negativa dos limites de sua condição. Hermes, mais do que um socorro amigo, tem-se transformado num peso imobilizador, porque o homem permaneceria sempre imperfeito e ignorante. Somente no mundo divino poderia haver perfeição de ser e a luz do verdadeiro conhecimento. Esqueceu-se, entretanto, por muito tempo, de perguntar por que a condição humana sempre aponta para além de si mesma. Omitiu-se o fato de que a busca do ilimitado é, precisamente, a afirmação do limite, de que a necessidade do horizonte infinito é uma imposição da radical finitude. Ou seja, não se tomou suficientemente a sério a finitude como o chão de toda experiência de ser. Somente com Heidegger acontecerá essa virada, em que uma nova concepção de finitude passará a orientar a maior parte das discussões filosóficas. Em Gadamer, o conceito de finitude perpassa toda sua obra e constitui-se em sua chave de leitura. O que orienta o filósofo é a Wirkungsgeschichtlichesbewusstsein, a consciência histórica ou consciência das condições históricas às quais toda compreensão humana está submetida, sob o regime da finitude. Tem consciência de estar exposto à História e a sua ação, de tal forma que não pode objetivar essa ação sobre nós, porque isso faz parte de seu sentido enquanto fenômeno histórico. Por isso, “o que está em questão não é o que fazemos, o que deveríamos fazer, mas o que nos acontece além do nosso querer e fazer” (Gadamer, 2003, p. 14). Heidegger, entretanto, permanece o referencial mais importante para esse debate. A partir da analítica do Dasein, em Ser e Tempo, desenvolveram-se discussões que produziram o que se designa como pensamento da finitude (Stein, 23 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin 1976, p. 76). É uma perspectiva de grande parte da Filosofia contemporânea, que se fortalece a partir dos, assim denominados, mestres da suspeita, como Nietzsche, Freud e Foucault, mas que, certamente, tem legitimidade filosófica de Kant, preocupado com os limites do conhecimento. Com a recorrência ao mito foi possível constatar como o tema da finitude já esteve sempre presente, desde os tempos mais remotos do pensamento ocidental. Hoje, entretanto, mais do que um tema ou uma questão a ser discutida, a finitude tornou-se uma perspectiva da Filosofia, podendo-se falar em giro da finitude, assim como em outro sentido se fala em giro linguístico. É uma visão de mundo e um modo de fazer Filosofia que parte dos estreitos limites da condição humana, sem, contudo, ater-se ao seu sentido negativo. Consideram-se mais as potencialidades humanas e as reais possibilidades de sua realização. O pensamento da finitude entende-se como pensamento da liberdade e da realização humanas, em oposição a um pensamento metafísico que se afirma como Filosofia primeira, “condenando o homem a depender de uma estrutura ontoteológica sobre a qual não possui poder algum de ação” (Stein, 1976, p. 18). A rigidez dessa metafísica clássica “reduz o homem à imobilidade e ao silêncio diante de questões fundamentais” (1976, p. 18). Em seu lugar postula-se, hoje, uma ontologia da finitude, representando o lado heterodoxo da tradição metafísica. A ontologia da finitude procura superar ou transformar a metafísica a partir de dentro, ou seja, libertar temas e virtualidades sufocados pelo totalitarismo ontoteológico da metafísica. A afirmação da finitude é a tentativa de destacar a historicidade, em face de uma ontologia estática, onde não há propriamente lugar para o movimento; pois, tudo está ancorado e fixado num mundo ordenado (quando não pré-ordenado), onde a liberdade humana está sempre ameaçada por uma ordem sem alternativas (Stein, 1976, p. 19). Assim como toda Filosofia traz atualmente a marca da finitude, mais ainda reconhece-se isso da hermenêutica, que emerge, precisamente, desse terreno movediço e flexível das condições humanas. É, pois, num mundo secularizado, numa época pós-metafísica, que a hermenêutica efetivamente se estabelece como questão filosófica. Constituída nas condições humanas do discurso e da linguagem, ela ocupa um lugar incômodo entre as verdades empíricas das Ciências e a verdade absoluta da metafísica. Não contando mais com esses apoios, a pergunta e a discussão hermenêuticas voltam-se ao sentido e ao agir humanos, que carecem de compreensão. Ao se situar nesse nível, humano e finito, afirma Ernildo Stein, “a hermenêutica é, de alguma maneira, a consagração da finitude” (1996, p. 45). Há, porém, uma grande diferença desse conceito em relação à experiência de finitude vivenciada no mito. Neste, a relação desigual entre o divino e o humano e a tendência de comparação entre os dois mundos têm propiciado uma experiência frustrante ou meramente negativa dos limites da condição humana, uma condição de eterna imperfeição. Agora, porém, sem esse termo de comparação, a finitude 24 EaD Filosofia e Ética designa o espaço propriamente humano, com as condições e limites que lhe são inerentes, mas, sobretudo, designa o espaço da liberdade e da realização humanas, e a interpretação sinaliza a ocupação deste espaço. Referências BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega – II. Petrópolis: Vozes, 2005. FIGAL, G. et al. (Hrsg.). Hermeneutische Wege: Hans-Georg Gadamer zum Hundersten. Tübingen: Mohr Siebeck, 2000. FRANK, Manfred. Das individuelle Allgemeine: Textstrukturierung und –interpretation nach Schleiermacher. Frankfurt a. Main: Suhrkamp, 1977. ______. A reivindicação de “universalidade” da hermenêutica. Humanidades em Revista. Ijuí, v. 4, n. 5, p. 79-103, dez. 2007. GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode; Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. 6. Aufl. In: GADAMER, Hans-Georg. Gesammelte Werke-1; Hermeneutik I. Tübingen: Mohr, 1990. ______. 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Porto Alegre: Edipucrs, 1996. Seção 1.3 O Que é Filosofia? 4 Paulo Rudi Schneider 5 5 A Filosofia pode ser descrita como a atividade perguntadora: – O que é? – E, em decorrência, surgem com tal atividade as perguntas: – Quando é? – Onde é? – Como é? – Por que é? – Para que é? – Para quem é? Filosofia é, portanto, a atividade de quem quer saber. 1) Quem quer saber. Querer significa a procura pela efetuação de um projeto; implica o desejo de presentificar uma situação em que se esteja satisfeito; busca a consumação daquilo que no presente é percebido como falta, como não cumprido e como necessidade de satisfação. Querer implica interessar-se, ir ao encontro, estar a caminho, tender, procurar, sair da situação em que se está Texto publicado em primeira versão em: Schneider, Paulo Rudi (Org.). Introdução à Filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí, 1995. p. 32-37. 4 O pensador – Auguste Rodin. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia. 5 26 EaD Filosofia e Ética e andar na direção de algum tempo e de algum lugar, angustiar-se e pôr-se em movimento. Querer significa que não se está satisfeito com aquilo que se é e com tudo que está posto como realidade, e então, procura-se a mudança andando na direção que o projeto indica, construindo pela movimentação e pela mudança, incluindo e incorporando caminhos. Querer significa o impulso em direção daquilo que se ama, e, por isso, a situação de amante, ou amador. A palavra filos, que provém do grego, significa exatamente isso: ser amante, amigo, querer mudar a si e as circunstâncias movimentando-se direcionadamente, amadoristicamente e ciente do processo ou caminho em que se está. Ser amador implica concessão de imperfeição e predisposição para perceber, crescer e movimentar-se, pois existe a clareza de que na processualidade do caminhar em direção de algo não se pode contar com a tranquilidade da pretensa perfeição do profissional. Ser amador quer dizer que se sabe que se está no meio do caminho e, no caso da Filosofia, esse caminho chama-se saber (sofia). 2) Quem quer saber. O que é o saber? É um estado de coisas? Há um saber supremo a alcançar, além do qual não há mais saber? Há um saber absoluto a ser conquistado que daria condições de não saber mais adiante? O supremo saber seria, então, não mais saber? – A Filosofia não se define pela sabedoria absoluta, pois não representa a fixidez de um caminho que chegou a seu fim. O saber relativo à Filosofia é o próprio saber construir o caminho, e saber construir o caminho de si e de tudo que foi posto como realidade é difícil. O querer o saber é a procura pela ciência da construção, de modo que o saber possa ser a indicação para a construção certa. Querer e saber estão irremediavelmente ligados, aliás como na palavra Filosofia: a sabedoria não se conquista como coisa que se quis e que agora poderia ser mantida e manipulada indefinidamente, pois quando se para de querer saber, não se sabe mais. Quando pretensamente se alcança o saber, não se sabe mais. Numa época em que muitos se chamavam de sabedores, de sábios, de sofhoi (plural de sophós, sábio), Pitágoras, quando perguntado sobre o que era, respondeu: “Sou um amante do saber (Philosophos)”. O filósofo é um amante do saber; alguém que quer saber, e não um sábio. Filosofia é a atividade de quem quer saber. Em outra época em que muitos chamam-se de sabedores, em que parece que há muita ciência absolutamente certa, muito conhecimento e muito especialista, Bertrand Russel aposta e diz: “A filosofia origina-se de uma tentativa obstinada de atingir o conhecimento real. Aquilo que passa por conhecimento, na vida comum, padece de três defeitos: é convencido, incerto, e em si mesmo contraditório. O primeiro passo rumo à filosofia consiste em nos tornarmos conscientes de tais defeitos, não a fim de repousar, satisfeitos, no ceticismo indolente, mas para substituí-lo por uma aperfeiçoada espécie de conhecimento que será experimental, preciso e autoconsciente. Naturalmente desejamos atribuir outra qualidade ao nosso conhecimento: a compreensão. Desejamos que a área do nosso conhecimento seja a mais ampla possível”. 27 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin 3) Quem quer saber. Quem, isto é, o sujeito define-se pelo querer e pelo saber: querer não existe sem quem queira e saber não existe sem quem saiba e, por outro lado, não existe quem, o sujeito, sem o querer e o saber. Quem é definido pelo movimento, pela procura, e pela angústia da insatisfação do que é, e, além disso, indica a direção do movimento e do querer: é quem quer saber, isto é, o filósofo, cuja atividade de querer e de saber é Filosofia. Filosofia, sendo querer e saber de quem se define por esta atividade, poderá gerar as perguntas: Quando? Onde? Por quê? Para quê? Na Filosofia embarca-se para navegar e o navegador é seu próprio timoneiro, a sua própria direção, o seu próprio ser. A atividade de querer e de saber, que é Filosofia, é, ao mesmo tempo, transformação consciente do mundo, da vida e da sociedade, pois querendo e sabendo a Filosofia transparece no agir ao construir nova direção inscrevendo novo sentido no mundo. O que já foi construído e o que já foi inscrito aí está para que se possa querer e saber, movimentar-se e construir a direção. Karel Kosik diz: “Neste sentido, a realidade humana não é apenas a produção do novo, mas também reprodução (crítica e dialética) do passado”. E ainda: “A filosofia materialista sustenta que o homem, sobre o fundamento da práxis e na práxis como processo ontocriativo, cria também a capacidade de penetrar historicamente por trás de si, e, por conseguinte, de estar aberto para o ser em geral”. A procura do saber que define o filósofo traduz-se, em outros termos, pela busca por visibilidade da totalidade: a infinita variedade que se percebe deve ter relação entre si, deve possibilitar alguma orientação e deve conceder a explicação de sua existência. Desta forma a pergunta filosófica constantemente tematiza o já explicado, o existente posto como realidade, a estrutura fixada como solução definitiva e a repetir o seu mando, a sua validez e o seu poder de imanência absoluta. A Filosofia como amor ao saber é a identificação da imanência posta e, por isso, ao mesmo tempo, a ânsia de transcendê-la, de negá-la, de colocá-la em novos termos, enfim, de sair da imediatez da inconsciência imanentista. Filosofia como amor ao saber, como saída da imanência e como possibilidade de novo sentido, só pode efetuar-se no pressuposto da reflexão racional, na confiança na racionalidade, na acentuação e na afirmação do exercício autônomo da racionalidade, bem como na desconfiança de qualquer processualidade reveladora extrarracional, no descrédito da imanência que se tornou transcendência imposta, fixa, imóvel, realidade fantasmática positivamente desvinculada do saber que o homem institui em forma de significados de totalidade. 4) Quem quer saber. Quem quer saber é o filósofo. A negação ou quem não quer saber, o que seria? Heráclito de Éfeso, com a sua constante preocupação pedagógica em relação à Filosofia, expressou-se da seguinte forma sobre essa questão: “Os asnos prefeririam a palha ao ouro”. A preferência pela palha por parte do asno significa o sucumbir ante a pura necessidade intestina, a segurança do condicionamento inconsciente e a busca do convencional, do normal e do fixamente instituído como significado. Além 28 EaD Filosofia e Ética disso, quem assim não quer saber, tem a si mesmo como resultado instituído por si próprio, restando apenas a satisfação mastigativa e repetitiva da palha ordinária e rotineira da vida: O asno sempre foi, é, e será asno, Pois todo o asno é rotineiro, Costumeiro puxador de carroça. Acostumado, O asno sente-se vivo, existindo Ao puxar a carroça instituída. E, no fim da vida, moído a pancada, Rejeitado e consumido, Sente-se condenado e expulso Da vida, instituída a carroça. E pensa, então, como carroça instituída: - Que vida, que sorte; A carroça é a vida E eu, longe dela, a morte Sem perceber que a carroça é o asno, e que o asno é a carroça; Que a carroça que é vida É o asno instituído. 5) Quem quer saber é qualquer um que queira saber. O poeta Bertolt Brecht dá um exemplo: PERGUNTAS DE UM TRABALHADOR QUE LÊ Quem construiu Tebas, aquela das sete portas? Nos livros figuram apenas nomes de reis. Arrastaram eles, por acaso, os blocos de pedra? E Babilônia, mil vezes destruída, Quem voltou a levantá-la outras tantas vezes? Aqueles que edificaram a dourada Lima, em que casas viviam? Aonde foram, na noite em que foi terminada a grande muralha, os seus pedreiros? Cheia de arcos triunfais está Roma, a grande. Seus Cézares Sobre quem triunfaram? Bizâncio, Tantas vezes cantada, para seus habitantes Teria apenas palácios? Até na legendária Atlântida, na noite em que o mar a tragou, Os que se afogavam pediam, clamando, Ajuda aos seus escravos. 29 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin O jovem Alexandre conquistou a Índia. Ele sozinho? Cézar venceu os gauleses. Não levava um cozinheiro sequer? Felipe II chorou ao saber sua frota afundada. Não chorou ninguém mais? Frederico da Prússia venceu a guerra dos Trinta Anos. Quem a venceu também? Um triunfo em cada página. Quem preparava os festins? Um grande homem a cada dez anos. Quem pagava os gastos? Para tantas histórias Tantas perguntas! 6) O que é Filosofia? O Tema Fundamental da Filosofia é a Razão I. A Filosofia expressa-se na busca da compreensão da totalidade do diverso percebido, por meio de um princípio unificador, mesmo que este seja entendido como pura processualidade. II.A Filosofia expressa-se como atividade especulativa na busca e na análise dos pressupostos que pretendem fundamentar a imediatidade da vida. III. A Filosofia expressa-se como atividade promotora do estabelecimento de relações entre todas as áreas do saber, em busca de uma possível visibilidade do todo pressuposto. IV. A Filosofia expressa-se como atividade reflexiva na intenção de acompanhar pela compreensão toda a produção cultural humana. V.A Filosofia expressa-se como atividade interlocutora do conhecimento estabelecido em forma de ciência tematizando a sua fundamentação, a sua justificação e o seu exercício como efetividade. VI. A Filosofia é o estado de admiração ante o enigma do presente a ser desvendado por interpretação possível do passado e por necessária existência de projeto em relação ao futuro. VII. A Filosofia expressa-se como atividade identificadora da imanência posta num exercício de processualidade reveladora extrarracional a tornar-se transcendência positiva, fixa e fantasmática, e, por isso, como acentuação e afirmação do exercício autônomo da racionalidade em que há a possibilidade da instituição coletiva e argumentativa de novo saber em forma de significados de totalidade. 30 EaD Filosofia e Ética INDICAÇÕES PARA LEITURA BORNHEIM, Gerd A. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Editora Cultrix, 1998. HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990. JASPERS, Karl. Iniciação filosófica. Lisboa: Guimarães Editora, 1987. KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. RUSSEL, Bertrand. Fundamentos de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. VÁRIOS AUTORES. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Edições Loyola, 1999. Seção 1.4 Lógica e Racionalidade Vânia L. F. Cossetin Frequentemente usamos a expressão “é lógico”, como se quiséssemos indicar algo evidente, a conclusão de um raciocínio implícito e coerente. Em boa medida, esta expressão faz parte de uma tradição de pensamento que se origina na Filosofia grega, quando os filósofos indagavam se a palavra lógos – linguagem, discurso, pensamento, conhecimento – obedecia a regras, normas, princípios e critérios para seu uso e funcionamento. 6 6 Nesse contexto, dois importantes filósofos devem ser mencionados: Heráclito, para quem tudo flui, somente a mudança é real e a permanência é ilusória (“Nunca nos banhamos no mesmo rio; somos e não somos”); e Parmênides, para quem a identidade e a permanência são reais e a mudança, ilusória (“Somente o ser é; o não-ser não é”). Para o primeiro, o mundo está em permanente transformação, cujo ordenamento racional é possível justamente pela harmonia dos O sono da razão produz monstros – Goya. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia. 6 31 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin contrários, muito embora nossa experiência sensorial perceba o mundo como se fosse estável. Para o segundo, o mundo é imutável, imperecível e ausente de contradições, sendo a mudança, o devir, algo impensável e indizível, razão pela qual o pensamento e a linguagem só são possíveis porque das coisas conservamos a sua identidade e permanência, pois, caso se tornasse contrária a si mesma, deixaria de ser. Eis o problema sobre o qual a Filosofia tem se debruçado em busca de solução ao longo de sua História: se Heráclito tem razão, o pensamento é pura fluidez e a verdade a eterna contradição dos seres em mutação; se Parmênides tem razão, o mundo heraclítico não tem sentido algum, tampouco pode ser conhecido. A busca dessa solução resultou no surgimento de duas disciplinas filosóficas: a lógica e a metafísica. Em seu apogeu, a Filosofia clássica oferece as duas soluções mais importantes para o problema da contradição e da identidade: a dialética e a lógica. 1.4.1 – Entre a Dialética Platônica e a Analítica Aristotélica Platão admitiu o pensamento de Heráclito sobre a constante mudança do mundo sensível, mas também aceitou a ideia parmenídica de que este mundo sensível é apenas aparência, cópia do mundo verdadeiro, ou seja, das essências imutáveis, sem contradições: o mundo inteligível. A pergunta que se formula aqui é a seguinte: como passar do mundo sensível ao inteligível? Platão dá a resposta: pelo método dialético, ou seja, pelo diálogo, pelo discurso compartilhado por dois interlocutores, cujas opiniões estão em oposição, e pela discussão o argumentador procura superar essa contradição e chegar a uma ideia aceita por ambos. Aristóteles, por sua vez, segue uma via diferente daquela escolhida por Platão. Considera desnecessário separar a realidade da aparência em dois mundos distintos, pois há um único mundo no qual existem essêncais e aparências. O equívoco de Heráclito, para ele, foi supor que a mudança se realiza sob a forma da contradição, pois a mudança ou transformação é a maneira pela qual as coisas realizam todas as potencialidades contidas em sua essência. Assim, quando a semente se transforma em árvore, nenhuma delas torna-se contrária a si mesma, mas desenvolve uma potencialidade definida pela identidade própria de sua essência. Cabe à Filosofia buscar responder: como e por que, sem mudarem de essência, as coisas se transformam? Como e por que há seres imutáveis? Se, por um lado, Parmênides tem razão ao defender que o pensamento e a linguagem exigem a identidade, por outro Heráclito também tem razão ao afirmar que as cosias mudam. Ambas existem, portanto, sem que seja preciso cindir a realidade em dois mundos, à maneira platônica. Por isso, Aristóteles considera que a 32 EaD Filosofia e Ética dialética não é um procedimento seguro para o pensamento e a linguagem da Filosofia e da Ciência, pois parte de meras opiniões contrárias cuja escolha de uma delas não garante que se tenha chegado à essência da coisa investigada. Para Aristóteles, à Filosofia e à Ciência interessa a demonstração ou a prova de uma verdade. Por isso ele criou a Lógica: enquanto a dialética platônica é um modo de pensar e conhecer que opera com os conteúdos do pensamento e do discurso, a Lógica é um instrumento para o exercício do pensamento e da linguagem que oferece procedimentos que conduzem a um conhecimento universal e necessário, cujo ponto de partida não são opiniões contrárias, mas princípios, regras e leis necessários e universais do pensamento. 1.4.2 – Para que Lógica? Somos seres de linguagem. Tal é a importância da linguagem na vida humana. A linguagem é o meio pelo qual o homem se expressa e expressa o mundo que o circunda. E isto nós fazemos mediante a arte, os gestos, as sentenças. Os inúmeros modos possíveis de expressão linguística são diferenciáveis pela atribuição de regras e ordenamentos aos quais são submetidas. No mundo acadêmico assumimos algumas regras que definem a linguagem apropriada para este meio, reconhecidamente denominadas de sentenças, argumentos, proposições, proferimentos, enunciados. Estas regras buscam identificar se há ou não rigor na fundamentação e demonstração dos discursos neste âmbito exigido. Como, porém, certificarmo-nos se de fato este ou aquele discurso consegue alcançar tal fundamentção ou demonstração coerentemente? A Lógica, nesse sentido, desempenha um papel muito importante, não apenas na Filosofia, mas na construção de todo conhecimento que se pretenda verdadeiro, ou ao menos, sustentável, qual seja: ajudar a analisar a própria estrutura formal e expressiva do conhecimento, de como pode ser bem estruturado e, assim, bem compreendido. Se por um lado todo conhecimento se sustenta mediante argumentos, nem todo argumento pode ser considerado. É preciso que seja um bom argumento, e para que seja bom é necessário que seja válido. Exemplo disso é o silogismo aristotélico: Todo homem é mortal. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal. Ou seja, a conclusão deve ser uma consequência necessária das premissas, não pode informar algo que não esteja contido nelas. Nesse sentido, a Lógica é justamente esta área do saber que ajuda a determinar se um argumento é ou não válido, desempenhando, assim, dois papéis no conhecimento: clarifica o pensamento e ajuda a evitar erros de raciocínio, devido à posição crítica que sempre assume diante de problemas, teorias e argumentos. 33 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin A isso chamamos de pensamento consequente: o pensamento fundamentado, baseado em razões, cujas consequências são corretamente retiradas das razões em que se baseia. Diante disso, podemos tomar consciência das diversas formas pelas quais corremos o risco de errar enquanto pensamos, ajudando-nos a apenas aceitar nossas ideias e argumentos se e somente se foram submetidos à reflexão. Exemplo disso encontramos na frase, hoje equivocadamente repetida: “Todas as verdades são relativas”. Sem qualquer instrução lógica, esta frase apresenta um problema fundamental: trata-se de uma ideia que se autorrefuta, pois se todas as verdades são relativas, também esta é uma verdade relativa, de modo que uma determinada comunidade, em uma determinada circunstância, pode ou não concebê-la como falsa. Dito de outro modo: se é verdade que todas as verdades são relativas, é igualmente falso, em algumas circunstâncias, que todas as verdades sejam relativas. Esse exemplo mostra, apesar de nosso vasto conhecimento e informação, como facilmente podemos nos apoiar em argumentos extremamente frágeis, iludidos de que o conhecimento pouco tem a ver com a forma de sua expressão, quando, ao contrário, a credibilidade de um saber é correlata à coerência de sua exposição e justificação. 1.4.3 – O Problema da Argumentação Argumento é um conjunto de proposições (asserções sobre o mundo, independe da língua na qual é expressa) ou um conjunto de sentenças (sequência gramatical de palavras de uma língua pela qual transmitimos informações). A Lógica, como um todo, interessa-se por proposições (muito embora a Lógica formal se interesse pelas sentenças, ou seja, pelo aspecto formal dos argumentos, sobre os quais só se pode dizer se são válidas ou não válidas). Com relação à primeira definição, podemos afirmar que um argumento, ainda que formado por sentenças, sempre é apresentado em um certo contexto e expressa, ao menos, uma única proposição (Ex.: “Está chovendo”, pode ser uma abreviatura de “está chovendo no centro da cidade de Ijuí, às 8 horas do dia 20 de junho de 2013”); além disso, é importante destacar que mesmo não se interessando pelo poder de persuasão dos argumentos, mas pela relação entre evidências e conclusão, a Lógica mantém um compromisso com o saber científico, com a construção de conhecimentos seguros. Por isso é que o primeiro grande objetivo de um argumento é o de convencer e produzir novos conhecimentos. Estes argumentos podem ser de dois tipos: dedutivos e indutivos. Argumentos dedutivos Tais argumentos tiveram sua origem na Geometria. Por trabalhar com a determinação de proposições gerais sobre espécies de coisas individuais (por ex., linha AB, apesar de se referir a uma linha em particular, subentende todas 34 EaD Filosofia e Ética as linhas em uma determinada condição), a Geometria é o primeiro ramo do conhecimento que surge como teoria dedutiva e, desde os gregos, considerada como paradigma para a construção de tais teorias. Os egípcios, por exemplo, já procuravam calcular o volume da base de uma pirâmide, só que o faziam apoiados num estudo empírico. Os gregos, por sua vez, substituíram este procedimento por uma ciência demonstrativa e a priori. Antes, palavras como círculo tinham sentido porque se referiam a certos esquemas perceptivos, de modo que quando um grego diz que “um círculo é o lugar geométrico dos pontos equidistantes de um ponto dado” está usando a palavra círculo num novo contexto, desvinculado da experiência do caso particular. Nesse sentido, Tales foi o primeiro a demonstrar um teorema de Geometria e Pitágoras a desenvolver um estudo sistemático, no qual a Geometria passa a ser uma ciência, exclusivamente dedutiva: certas proposições têm de ser tomadas como verdadeiras sem demonstração e todas as outras proposições tem de ser derivadas formalmente destas e independentes do tópico particular em questão. Já para Aristóteles, um argumento dedutivo é uma inferência que vai dos princípios para uma consequência logicamente necessária. É o silogismo: a ligação de dois termos por meio de um terceiro, cuja relação é necessária, ou seja, a conclusão é imposta. Se, por um lado, porém, a dedução é um modelo rigoroso, por outro tende a surgir como algo estéril, porque não apresenta nada de novo daquilo que já estava nas premissas, apenas organiza o conhecimento. Por isso a validade dos argumentos dedutivos é determinada pela forma lógica e não pelo conteúdo, ela depende apenas da relação entre premissas e conclusão: a conclusão precisa ser V se as premissas forem V, não pode haver, por exemplo, premissas V e conclusão F. Esta regra é aplicada à forma do argumento para identificar a sua validade ou não validade. Ex.: a) Todos os G são H Todos os F são G Todos os F são H. b) Todos os gatos têm asas Todos os pássaros são gatos Todos os pássaros têm asas. No silogismo não é preciso saber o que os enunciados significam, nem cogitar sua V ou F: se a forma lógica é seguida, o argumento é válido. Um argumento de forma não válida é uma falácia: um argumento que não respeita a forma lógica. Argumentos indutivos São aqueles que, a partir de dados singulares enumerados, levam à inferência de uma verdade universal. Chega-se à conclusão a partir dos dados particulares, de modo que o conteúdo da conclusão acaba excedendo o das premissas. O argumento indutivo sacrifica o caráter de necessidade dos argumentos dedutivos, porque um argumento indutivo e correto pode admitir uma conclusão falsa, ainda que as suas premissas sejam verdadeiras. É considerado correto se pertence a uma classe em que a maioria dos argumentos de premissas V tem 35 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin conclusões V e é falaz quando as premissas não sustentam a conclusão. Assim, é importante que haja uma enumeração suficiente para que se possa passar mais seguramente do particular para o geral. Neste argumento está sempre suposta uma probabilidade, por isso é um raciocínio associado às descobertas, a novas formas de compreender o mundo. É muito fecunda nas ciências experimentais. Ex.: Todos os grãos da amostra observada são do tipo A. Todos os grãos do barril são do tipo A. Falácias: argumentos de forma não válidas Lemos e ouvimos muitas coisas, a todo momento. Muitas vezes, porém, estes discursos são ardilosos, enganadores, falsos, embora não pareçam. Trata-se da falácia: um tipo de argumento que parece correto, mas, na realidade, não é. As falácias podem ser classificas em 11 tipos: a) Apelo à força: consiste em ameaçar com consequências desagradáveis se não for aceita ou acatada a proposição apresentada. Ex.: Você deve se enquadrar nas novas normas do setor. Ou quer perder o emprego? b) Apelo à misericórdia: consiste em apelar à piedade, ao estado ou virtudes do autor. Ex.: Ele não pode ser condenado: é bom pai de família, contribuiu com a escola, com a igreja, etc. c) Apelo ao povo: consiste em sustentar uma proposição por ser defendida pela população ou parte dela. Sugere que quanto maior o número de pessoas que defende uma idéia, mais verdadeira ou correta ela é. Incluem-se aqui os boatos, o “ouvi falar”, o “dizem”, o “sabe-se que”. Ex: Dizem que um disco voador caiu em Minas Gerais. d) Apelo à autoridade: consiste em citar uma autoridade (muitas vezes não qualificada) para sustentar uma opinião. Ex: O melhor antigripal é Benegripe, porque Pelé toma (ou diz tomar) Benegripe quando está gripado. e) Generalização apressada: trata-se de tirar uma conclusão com base em dados ou em evidências insuficientes. Dito de outro modo, trata-se de julgar todo um universo com base numa amostragem reduzida. Ex: Todo político é corrupto. f) Ataque à pessoa ou argumento contra o homem: consiste em atacar, em desmoralizar a pessoa e não seus argumentos. Ex.: Não deem ouvidos ao que ele diz: ele é um beberrão, bate na mulher e tem amantes (uma variação deste argumento é o “tu quoque” (tu também): consiste em atribuir o fato a quem faz a acusação. Ex: alguém lhe acusa de algo, e você diz: “tu também”! Isso, evidentemente, não prova nada). 36 EaD Filosofia e Ética g) Redução ao absurdo: consiste em tirar de uma proposição uma série de fatos ou consequências que podem ou não ocorrer. É um raciocínio levado indevidamente às últimas consequências. Ex.: Mãe, cuidado com o Joãozinho. Hoje, na escolinha, ele deu um beijo na testa de Mariazinha. Amanhã, estará beijando o rosto. Depois... Quando crescer, vai agarrar todas as meninas. h) Falsa analogia: consiste em comparar objetos ou situações que não são comparáveis entre si, ou transferir um resultado de uma situação para outra. Ex: Tomei mata-cura e fiquei bom. Tome você também. i) Ônus da prova: consiste em transferir ao ouvinte o ônus de provar um enunciado. Ex: Se você não acredita em Deus, como pode explicar a ordem que há no universo? j) Apelo à ignorância: consiste em concluir que algo é verdadeiro por não ter sido provado que é falso, ou que algo é falso por não ter sido provado que é verdadeiro. Ex: Ninguém provou que Deus existe. Logo, Deus não existe (não há evidências de que os discos voadores não estejam visitando a Terra; portanto, eles existem). k) Questão complexa: consiste em apresentar duas proposições conectadas como se fossem uma única proposição, pressupondo-se que já se tenha dado uma resposta a uma pergunta anterior. Ex: Você já abandonou seus maus hábitos? Referências ARISTÓTELES. Organon I, II, III, IV, V. Lisboa: Guimarães Editores, 1985. COPI, I. M. Introdução à lógica. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978. KNEALE, M.; KNEALE, W. O desenvolvimento da lógica. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1962. MORTARI, C. Introdução à lógica. São Paulo: Editora da Unesp, 2001. SALMON, W. Lógica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1981. 37 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Síntese da Unidade 1 Nesta Unidade estudamos, em primeiro lugar, a origem da Filosofia na Grécia, entre os séculos 6º e 7º a.C., quando e onde se promoveu a passagem do saber mítico (alegórico, poético) ao pensamento racional. O mito, ao mesmo tempo em que ele foi superado, também serviu de ponto de partida para a Filosofia. A razão e a Lógica tornaram-se, então, pressupostos básicos para o pensar. Na segunda seção estudamos sobre a hermenêutica, que trata do modo peculiar de como o homem compreende e interpreta um texto e a própria realidade, a partir da linguagem e dando destaque positivo à condição humana e limitada da compreensão. O tema foi desenvolvido utilizando-se de uma comparação entre o atual estado de discussão da hermenêutica com o mito de Hermes, em que, curiosamente, já se levantou a questão da compreensão e da comunicação pela linguagem. Em terceiro lugar estudamos o que é Filosofia. Mais do que um conhecimento elaborado, entendemos que ela é uma busca incessante pelo saber. Revela isso no seu modo de agir, perguntando. Perguntar ou questionar é a principal característica da Filosofia. Pode-se afirmar que a Filosofia é uma atividade perguntadora. Na quarta seção estudamos a Lógica, que faz parte da Filosofia, e com ela surgiu. Com o estudo desse tema se esclareceu que o pensamento racional, filosófico, segue determinadas regras. Há um certo padrão de pensamento e conhecimento humanos. Toda linguagem ou discurso orienta-se necessariamente por princípios ou critérios de uso ou funcionamento, sob pena de permanecer sem sentido e ininteligível. 38 Unidade 2 UNIVERSIDADE E CONHECIMENTO: O Papel Formador da Filosofia OBJETIVOS DESTA UNIDADE • Compreender que os conceitos de Filosofia e ensino estão intimamente associados desde o início da sua História e que a origem da Filosofia deu-se como exercício de um método cujos participantes estavam implicados pelo diálogo. • Perceber a implicação entre a História das Ciências Humanas e a trajetória da cultura, da tradição, da educação e do ensino no mundo ocidental e que a concepção moderna de Ciência, o seu conteúdo qualificativo de humana(s), remete à Antiguidade Clássica. • Entender a importância, a função e a utilidade da Filosofia. • Refletir sobre o papel da universidade na formação profissional enquanto constituidora de um sujeito capaz de apreender e reelaborar criticamente os conhecimentos, a cultura, os valores e a sociedade. A SEÇÃO DESTA UNIDADE Seção 2.1 – Filosofia e Ensino Seção 2.2 – Ciências Humanas: Contextualização Histórica e Teórica Seção 2.3 – Para que Filosofia? Seção 2.4 – Filosofia e Formação: o Perfil do Profissional Universitário 39 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Seção 2.1 Filosofia e Ensino Paulo Rudi Schneider Dificilmente poder-se-á deixar de associar os conceitos de Filosofia e ensino. Desde o início da sua história no Ocidente a Filosofia deu-se como exercício de um método em que todos os dialogantes estavam implicados pela simples participação na conversação. 1 1 A suposição de um método, seja maiêutica, dialética, análise, crítica, hermenêutica ou meramente exposição, sempre compromete o pretenso ensinante com os efeitos da sua participação direta, efetiva e incontornável no exercício em que está ocupado com outros supostos ensinados. A Filosofia como sistema a ser somente ensinado para fins de uso estratégico e eficiente nas diversas perspectivas da vida invariavelmente significou traição ao seu conceito e, por isso, também o seu próprio esmaecimento e esquecimento merecido. Ela não é um conteúdo que se possa aprender definitivamente como dado científico para posterior utilização tecnicista em determinado setor da vida, mas uma constante tarefa por cumprir. O professor de Filosofia como mero apresentador e repassador de conteúdos culturais, científicos, ou até filosóficos seria, nessa acepção, ao contrário de Sócrates, o verdadeiro personagem ocupado em corromper a juventude do mundo, mesmo que não fosse condenado oficialmente a beber cicuta com os seus semelhantes e comparsas, que hoje chamam-se multidão nas mais diversas áreas do saber. É conhecida a opinião de Immanuel Kant sobre esse assunto, ou seja, de que não há como aprender Filosofia, mas somente aprender a filosofar, posto que ela não existe enquanto ultimada, definitiva e universalmente válida (Eisler, 1984, p. 418). Por outro lado, a reflexão sobre a relação da Filosofia com o ensino traz de imediato a questão da “Darstellung”, da apresentação necessária do que já foi pensado para que se pense adiante. A apresentação enquanto tal é inevitavelmente posterior ao pensamento, uma vez que este vai pelos caminhos do Alegoria da Caverna. Disponível em: <http://www.estudopratico.com.br/mito-da-caverna-de-platao>. Acesso em: dez. 2013. 1 40 EaD Filosofia e Ética desvio, da busca tateante e do ensaio, enquanto que a apresentação mesma tem conotações retórico-pedagógicas por motivos da sua intenção inerente de exposição pública clara e compreensível. A apresentação expositora de um conteúdo filosófico objetivado em conhecimento suposto certamente corre o perigo de deixar de ser Filosofia para transverter-se em mero discurso de convencimento e arregimentação de quadrilha ou seita, caso houver esquecimento do método filosófico que se intenta exercitar. A própria apresentação expositora de um conteúdo pensado, portanto, pode e, quem sabe, deve ter a tranquilidade de um desenho público que em seu desenvolvimento transforma-se em filosofar no sentido de Kant. Apresentam-se os resultados da certeza provisória à qual se chegou com a possível descrição de dúvidas e dívidas em forma de recordação do que aconteceu pelo método ensaístico próprio do pensamento. O caminho de elucidação da relação entre a Filosofia e o ensino depende, de qualquer forma, do que se entende pelo próprio conceito de Filosofia, bem como de História da Filosofia, Filosofia da história, teoria do conhecimento, Filosofia da Linguagem, etc. O que é que une tudo isso? De que espécie de exercício se trata? Qual o método ou processo que deve ser instituído? Sabe-se que é sempre perigoso decidir-se à definição apressada do que seja Filosofia depois de Sócrates, com o seu método de maiêutica, ter indicado ser quase impossível a separarão entre definição filosófica, pedagogia processual em que a mesma se dá e a simultânea instituição comprometida de formas de dizer e de ação. Mesmo assim, não há como fugir da raia e mostrar a que se veio no que se chama vida, em cujo cenário se está a compreender algo e a querer compreender as razões disso, o que, por sua vez, é um jeito típico de ser. De acordo com esse jeito, há que certamente lembrar os pré-socráticos que com a sua sequência de sugestões sobre o que se possa indicar como a arché fundante e relacionadora de todo o devir levam-nos a crer que a Filosofia, desde o seu início na Grécia, seja primordialmente um diálogo sobre como se poderá entender justificadamente o que se está a perceber. Há um estado de coisas que se percebe e que é explicado e organizado de determinada maneira. Saber viver organizadamente conforme um determinado estado de coisas costumeiramente se reputou como sendo sabedoria na História da humanidade. A sofia/sabedoria já sempre remete ao viver de acordo com um estado de coisas em operação e que é acionada por determinados critérios, modelos e valores, os quais em grande parte permanecem inconscientes na operação imediata, mas que são capazes de formar consenso a ponto de legitimar os julgamentos sobre o que acontece. Por que não deixar tudo exatamente assim como está sendo julgado? Por que os pré-socráticos inauguraram a pergunta pela relação e pelos critérios de julgamento da sabedoria costumeira? Porque a pergunta e o interesse sobre Sofia e com isso a instituição do exercício da Filo-sofia. 41 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin A pergunta é historicamente pertinaz, tanto que a temos como herança até hoje, só que acrescida de um tom acusador por parte dos sábios construtores do status quo contemporâneo, mas de novo assumida carinhosamente angustiada e transfigurada pelo filósofo de hoje, ou seja, assim: “Por que perguntar pela pergunta”? A própria fixação das dúvidas, das perguntas e das tentativas de resposta já apresentadas na História da Filosofia, por sua vez, também se tornaram Sofia que instiga à nova investigação e pesquisa filosófica. Quer se queira ou não, o interesse e a pergunta pela sophia atual não foi esquecida e marca a sua presença, apesar de tudo o que foi construído como ciência em todas as áreas, como tecnologia a favorecer comodidades gerais e como administração organicamente planificada e controlada do desejo de ser feliz. Quer se queira ou não, a pergunta filosófica surge em todos os níveis educacionais e nos mais diversos setores em meio às tentativas de organização cultural via estética, comunicação dirigida e indústria do lazer e do prazer. A pergunta toma a forma do que se chama de crise de legitimidade. A atualidade sempre nos remete a uma pré-história, com a qual o nosso presente ainda tem muito que se preocupar: senão todos, pelo menos a maioria dos problemas que hoje nos afligem em todas as áreas estão profundamente relacionados com o nosso enraizamento no passado. O apelo de perguntas não respondidas, problemas não resolvidos e erros não solucionados têm a capacidade de nos inquietar suficientemente para nos pôr agudamente em questão, em forma de crise de sentido na política, na economia, na ciência, na tecnologia e na cultura em geral. A administração meramente das crises na política, ciência e cultura não tem a capacidade de abordar mais profundamente a questão do sentido: é conhecido o fato de que nessas áreas os problemas são visualizados enquanto apenas administrativos e, então, pertencentes somente à área da ação estratégica, já pressupondo, por isso, o que deva ser consensualmente estabelecido. O descompasso torna-se evidente, pois tal consenso pressuposto não existe e, então, instala-se por todos os lados uma crise de legitimação: não há consenso visível e em seu lugar toma assento o comando da vida uma maquinaria com toda a sua burocracia administrativa obsoleta, desagradável e injustificável. A política, a administração, a cultura, os processos econômicos parecem fugir do controle possível de uma arregimentação coletiva e consensual e tudo isso é visto e percebido por todos os participantes da sociedade como destino fatal inimigo, incompreensível e destrutivo. Kafka que o diga (Frank, 1982, p. 9 et seq.) A crise de legitimidade cultural também não se deixa debelar pelo recurso geral ao mito do Direito, à formulação geral de leis e ações de mágica administrativa, que já sempre pressupõem diálogos feitos, consensos já estabelecidos e falta de apenas aplicação lógico-operatória e interpretativa do já resolvido. 42 EaD Filosofia e Ética As religiões com o seu viés dogmático missionário muitas vezes apenas sofisticam o processo quando tentam exorcizar os problemas da humanidade com implantes doutrinários e falsa mística. A arte, por sua vez, parece perderse definhando na satisfação de se ver reconhecida como atividade meramente contestatória de algumas facetas da sociedade, ou como recurso pedagógico em favor da continuidade de modelos educacionais e sociais, a respeito dos quais infelizmente não se sente obrigatoriamente encorajada a assumir alguma postura mais reflexiva. O embretamento e o encarrilhamento da vida nos valores e critérios consagrados e atuantes no presente parecem ser fortes demais para merecer qualquer tipo de reflexão cuidadosa, uma vez que em grande parte, com toda a sua competência, a ciência e a tecnologia de todas as áreas do saber estão entusiasticamente comprometidos com eles. Mesmo assim a crise de legitimidade instala-se e se expressa por insatisfação indefinível generalizada, violência em suas mais diversas formas, religiões a assumir a forma do espetáculo massificado, movimentos de formação de seitas de cunho milenarista e, entre outras mais, a perda de sentido na atividade de quase todo o sistema educacional: a atividade educacional no ensino, na pesquisa e na extensão acontece a reboque de toda a maquinaria já sem legitimidade consensual geral. Já o poeta Hölderlin dizia que os deuses nos abandonaram e que estamos ao léu. Paradigmática é a sua loucura após a sua grandiosa produção poética. Um dos seus diagnósticos iniciais a respeito da modernidade foi o de que os deuses de uma nova legitimação coletiva e consensual geral deverão ser descobertos e instituídos. Em outras palavras, os deuses nos abandonaram, estão escondidos, invisíveis e permanecem não reconhecidos para que pudesse acontecer a sua entronização e consequente discussão sobre o alcance e legitimidade de seus poderes. Para a sua descoberta seria preciso a instituição da Filosofia poética ou da poesia filosófica, em todo o caso do exercício filosófico de acordo com os ensinamentos da sacerdotisa Diótima, iniciadora de Sócrates nos segredos do amor à Filosofia (Hölderlin, Bd II, 1995, p. 7 et seq.). O tempo atual estaria, portanto, numa situação de credulidade inconsciente nos deuses que desconhece e ao mesmo tempo, por isso mesmo, a afirmar incredulidade e consciência absoluta de si. Walter Benjamin tem uma frase excelente para circunscrever tal situação: “Desconfiamos daqueles que recebem o estado de embriaguês de um espírito a quem não servem. Estes são incrédulos” (Benjamin, 1991, Band I, p. 47). Aliás, o mesmo autor expressa com uma frase lapidar a enorme dificuldade de visualizar pela reflexão filosófica o que desde sempre nos inquieta: “Nunca, jamais, vimos o local da luta silenciosa que o Eu encetou contra os pais” (Benjamin, 1991, Bd II, p. 91). Ainda estamos a ver continuamente apenas as sombras no fundo da caverna platônica, amarrados e impossibilitados de ver os modelos que prefiguram a atividade teórico-compreensiva e a ação que nos definem. O pior aspecto da 43 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin situação de fixação confiante no trabalho explicativo de sombras é a crença de que todos os modelos estão elucidados em forma de representação clara, distinta e científica a ocorrerem numa parede lógico-objetiva. Tal clareza de visão redundaria em suprema sabedoria e tornaria supérflua a atividade filosófica no ensino. Trata-se da recusa em perceber a crise de legitimidade e a tentativa de continuar apenas acionando todos os comandos dos aspectos da maquinaria operatória já sem legitimação. A Filosofia enquanto exercício no seu ensino e na sua relação com o ensino em geral dá-se como insistente e angustiante procura pelos modelos que a distância e de maneira encoberta nos comandam, e a sua descoberta institui o verdadeiro diálogo sobre as questões da legitimação quanto a um consenso possível em todas as áreas. Ela vai em busca das redes que invisivelmente nos enredam e nos manipulam a distância e, proximamente por demais, amarramnos para que permaneçamos fixamente o que somos e vejamos estaticamente o que vemos como sabedoria funcional. Assim, o filósofo em exercício de ensino, seja professor ou aluno, não pode ser apenas sábio, porque a sua inevitável função é a investigação dos bonecos que comandam todo o processo funcional do ser. A investigação como procura dos vestígios dos bonecos paradigmáticos que projetam as suas sombras no fundo da caverna humana não é feita para liquidá-los, mas para reconhecê-los em nossa atividade de já aceitação submissa para que, pelo menos inicialmente, sejamos apresentados. O que chamamos de paradigma, modelo, configuração ou rede é o motivo da fixidez costumeira erigida pela anuência às razões de uma ficção esquecidas na inconsciência, uma vez que estamos encantados em nosso trabalho supostamente criativo de fazer tal fantasma funcionar como máquina em operação lógica competente e supostamente fundamentada por argumentos objetivos. A lembrança de formas de conversação talvez elucide melhor a relação fundamental entre filosofia e ensino: a conversação discursiva sofística e o diálogo socrático. A conversação sofística dá-se o direito a uma construção discursiva absolutizante a partir da decisão por algum ponto de partida, mas esquecida de que se trata de criação. Procura remover rapidamente todas as contradições internas e rebater todos os ataques externos que pudessem pôr em perigo qualquer uma das partes do edifício em construção. Os meios para tanto são o convencimento, a sedução, a propaganda, a retórica e todo o caráter missionário capaz de liquidar com resistências e demover de desvios construtivos tortuosos. Costumeiramente nos deparamos com essa vontade discursivo-construtiva em amplos setores da Igreja, do Direito, da Economia e do comércio, na exigência de assunção incondicional de direcionamento partidário na política, em todos os sistemas de poder já instalados como excelência de perspectiva cultural, e na linguagem sistematizada ou em processo de sistematização a arvorar-se como única possível pelo fato de se imaginar possuidora de todas as credenciais filosófico-científicas. A atitude filosófica correspondente a este viés vai desde o 44 EaD Filosofia e Ética fanatismo patético na formação de feudos filosófico-eclesiáticos fechados, com rituais característicos e liturgia decorada à exaustão, até o esnobismo hilariante da burocracia teórica na administração de imaginadas luzes filosóficas que se pretende ter alcançado por meio de títulos, a respeito do que se pode dizer com Fernando Pessoa: “Tudo, menos o ridículo” (Pessoa, 1999, p. 338 et seq.). Por outro lado, a conversação discursiva sofística tem como perspectiva positiva a necessária autoapresentação (Selbstdarstellung) inevitável da opinião que se tem e que se há de defender até certo ponto obedecendo aos ditames da verdade adequativa e não, portanto, como sendo ela verdade objetiva absoluta a ser defendida com unhas e dentes e desvinculada do que, no exato momento, se é. A opinião que se tem e que se apresenta como de cunho objetivo externo é, no entanto, uma Selbstdarstellung que se há de assumir, já na consciência de que não existe outro jeito de se apresentar qualquer opinião numa interlocução a não ser em forma de discurso com pretensões de validade objetiva. A característica principal sempre subjacente ao diálogo socrático-filosófico é a ALETEIA2 como verdade mais original, o desesquecer intermitente, que é a constante tentativa de perceber de onde, com que e como se tem e se é aquilo que se tem e mesmo se é. Percebemo-nos a ter opiniões, certezas científicas aparentemente fundamentadas de forma absoluta e estamos a fluir de cá para lá a desaguar-nos numa construção coletiva que de um lado parece erguer-se com segurança até aos céus, mas, de outro, já é a própria dispersão em milhares de fragmentos de linguagem desconectados entre si. A Filosofia em seu exercício relacionado com o ensino é, então, amante do discurso, de qualquer discurso: mesmo o seu próprio discurso aguça-lhe a curiosidade e a admiração de que tenha vindo a ser. É como quem diz: “Vamos ver se o santo não tem pés de barro”; pois o discurso, uma vez proferido aos quatro ventos, tem o péssimo costume de geralmente exigir anuência por unanimidade, esquecido que está de que o seu ponto de partida é hipotético, de que o início absoluto é somente uma ficção útil. O discurso tende a esquecer que o início é apenas uma simulação do tipo “vamos imaginar como se fosse” para ver no que dá; é ficção invisível para possível explicação das definições confusas de que somos feitos no fluxo do ser. É claro que muitas ficções durante séculos cumpriram o papel de realidade suprema a operar como explicação absoluta da vida. Trata-se de configurações de conceitos, por exemplo, posando de modelos eternos, capazes de fazer suar sangue de líderes melancolicamente arrependidos pelo que fizeram no exercício da liderança, e de justificar assassinatos em massa nas fogueiras medievais, em convulsões sociais completamente estabanadas e, de maneira mais sofisticada, em promover a crença no destino progressista que estaria a exigir os sacrifícios da miséria, da fome e da morte. O exercício filosófico parece levar-nos a obedecer ao milenar e necessário instinto de caça ao deslocar o nosso interesse por uma presa imediata que capturamos e cultivamos regularmente pelos meios convencionais para as armadilhas às quais somos levados e presos aos seus comandos: queremos pelo menos Palavra grega onde “LETE” significa esquecimento e “A” negação, então, não esquecimento ou desesquecer. 2 45 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin ver e conhecer de que material são feitas. Na medida em que visualizamos os deuses por descoberta, porém, estamos a oficializá-los objetivamente e, já para isso, quem sabe, nesse mesmo passo outros estão a armar as suas armadilhas e redes sem que possamos perceber. Talvez seja esse um dos sentidos possíveis da intuição de Nietzsche fixada na expressão “eterno retorno”, para a qual já foram ensaiadas tantas interpretações. A Filosofia em sua relação com o ensino é o eterno retorno, ou seja, a inevitabilidade do engajamento numa lógica construtiva tentando a objetivação de uma fundamentação absoluta do que se está a dizer para logo retornar à condição de desesquecimento, para o dar-se conta de que o que acontece é a ocorrência do ser como compreensão em que todo o construído representa somente a ponta de um iceberg, mas que também tudo isso já é também explicação impositivo-edificante e novo retorno: construir em direção ao passado e ao futuro num presente sempre finito. O eterno retorno é o jeito de ser da Filosofia a expressar-se construindo e vendo-se a assumir a construção como o seu próprio ser: explicações fundamentantes são destruídas pelo novo que aparece como nova intuição acontecente do ser a coagular-se, por sua vez, esclerosar-se, fixar-se como merecedora de nova destruição, ou evolução, ou ruptura, ou desconstrução, ou interpretação. O exercício filosófico no ensino alerta para o fato de que qualquer explicação, mesmo em pleno sucesso operatório, necessita do acompanhamento dialógico-filosófico como cuidado em sua construção progressiva. O eterno retorno da Filosofia enquanto ensino é qual oscilação entre construção e destruição do construído, é passagem de uma constelação de conceitos para outra ainda vindoura, é o que erige o estatuto do “entre” para mediar hermeneuticamente a possibilidade por vir. Embarcado completamente em compreensão ôntica seja qual for, o homem necessita do exercício filosófico no ensino para desembarcar e limpar a mente obnubilada, desestabilizar-se, levantar as tendas, queimar navios, mudar o linguajar cotidiano que o escraviza numa rede compreensiva em que foi capturado. O acontecer do eterno retorno é o que em última instância suscita e institui o pasmo, a admiração e a pergunta por justificação do que foi construído compreensivamente até agora e que está a funcionar em operações em grande parte suspeitas, mas sempre certamente alguma vez edificadas logicamente por processos discursivos. A petulância filosófica exercita-se no âmbito da possibilidade constante de afastamento das execuções operatórias em funcionamento competente. Querer distanciar-se de si num gesto de intenção metafísica, além de todo o comprometimento já acontecente, abstraindo por negação as dívidas que tornaram possível tal atitude, é o pecado original da Filosofia. Ela deve tudo o que é à própria tradição atuantemente presente no sistema educacional, tanto que, para poder ser, necessita de tudo o que foi instaurado enquanto retórica científico-tecnológica e cultural prática e socialmente concreta, o que perfaz a sua condição de possibilidade mais fundamental. Assim, o eterno retorno inter46 EaD Filosofia e Ética pretado como quase-método em execução no ensino capacita a Filosofia para um diálogo profícuo com todas as áreas do saber de retórica já estabelecida. A Filosofia, portanto, é capaz de interferir praticamente no percurso de um sistema educacional em construção, na medida em que participa do diálogo sobre o que possa ser a relação entre o conhecimento e a reflexão nos mais diversos campos do saber e a aprendizagem. A inevitável e necessária apresentação discursiva da Filosofia no ensino universitário pode centrar-se numa justificativa humanista que intenta a relação entre todos os saberes para favorecer a construção de um projeto de sociedade comum e consensual, portanto, nos seguintes termos: Na universidade, a concepção de um conhecimento tendente à articulação dominadora de um sujeito sobre determinado objeto poderá ser redirecionada, pela aprendizagem, para um exercício de reavaliação do seu conteúdo já produzido e, por isso, já em operação na tradição, e da forma metódica que o instaurou. Supõe-se, assim, a informação correta de conteúdos e formas em operação em cada área da tradição sistematizada em saber, mas agora acrescida do exercício da hermenêutica e da reflexão crítica e dialética, visando a relações e compromissos com os interesses fundamentais da sociedade humana como um todo. A sociedade, reificada pela funcionalidade imediatamente utilitária e na qual a concretude histórica das pessoas e das coisas é substituída pela sua redução a objetos intercambiáveis entre si qual mercadoria de troca, tem na aprendizagem universitária, enquanto insistente tematização do conhecimento já instituído e por instituir, a possibilidade de vislumbrar o caminho da emancipação das garras da mera razão instrumental na qual se enredou no decorrer dos séculos. O sistema mental de produção e repetição de conhecimentos pelo esquema de separação em termos de sujeito e objeto poderá ser reconstruído e incorporado em nova feitura compreensiva, qual seja, a promoção da intersubjetividade (intertextualidade) em que se acentua o centramento do conhecimento, agora relacionado com a ética reflexiva, na linguagem pragmática como ação de permanente comunicação dialogante sobre os interesses de todos para a construção respeitosa da vontade coletiva. A retórica de todas as ciências como conhecimento sistematizado, voltada ao reexame dos fundamentos de seu exercício, implicação e sentido na história da humanidade é o que se quer. A fragmentação disciplinar, resultado de paradigma de conhecimento a ser superado devido às patologias a que deu origem, e resultante dos processos internos de análises formalmente diferentes, não pode levar ao esquecimento de que cada conhecimento assim sistematizado em ciência está a se debruçar sobre, a se envolver e contribuir com a construção da mesma realidade, bem como não pode autoalienar-se, imaginando-se capaz de se desvencilhar e fugir das determinações do todo social em que tem a sua origem e em que deve justificar o sentido da sua atividade. “Na facilidade com que o espírito se satisfaz, pode-se medir a extensão da sua perda” (Hegel, 1970). 47 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin A apresentação discursiva da Filosofia no ensino universitário de um modo mais abrangente pode motivar-se e justificar-se pela pergunta por relação entre os conceitos de ética, conhecimento e cidadania. Uma sugestão possível é o que segue: “Para a compreensão cabal do conceito de cidadania considera-se inicialmente o gesto teórico mais fundamental do Ocidente, ou seja, a concepção de arché em Anaxágoras (500 a.C.). Incorporando esforços teóricos de filósofos pré-socráticos e arriscando novas soluções para a relação entre o todo e a parte, o grande pensador propôs a ideia de uma totalidade que até hoje perfaz o pano de fundo, bem como o ideal da atividade pensante sobre teoria e prática do Ocidente, nos seguintes termos: a ) Fazemos parte de um universo em contínua e infinita transformação. b) Universo infinito em possibilidades sob o ponto de vista do macrocosmo sem limite de amplitude. c) Universo infinito em possibilidades sob o ponto de vista do microcosmo sem limite em pequenez. d) Universo infinito em elementos em transformações infinitas. e) Universo sem espaço vazio, em multicausalidade e ação recíproca. f ) Universo em que cada partícula tem notícia da totalidade e a representa sob seu ponto de vista. g) Universo em que há sempre a possibilidade de visibilidade e transparência total entre tudo e todos, os quais assim estão na situação de Cidadãos do Universo. h) Quem comanda o processo de notícia mútua é o nous, que significa a imediatidade da Inteligência, do Espírito Universal, da Mente, que é a força, a dinâmica da própria informação de todos em relação a todos em participação. i) Corpo e mente estão, assim, em consonância imediata com a totalidade do universo. Os herdeiros dessa ideia no mundo grego foram, entre outros, os sofistas Sócrates, Platão e Aristóteles. Na modernidade e contemporaneidade vislumbramos a continuidade da Filosofia anaxagórica, principalmente em Leibnitz, Kant, Hegel, Nietzsche, Benjamin e Heidegger, além de ainda em toda a atividade científica. Platão, por exemplo, descreve em A República o diálogo em exercício e efetivação da ideia de universo de Anaxágoras no que concerne à construção do Estado (Polis), que na conceituação latina é Res Publica, ou seja, Coisa Pública em construção transparente de vida em comum e conhecimento em todos os sentidos. Os compromissos centrais de Platão expressos em A República são: – A procura por visibilidade de todos por todos e verdade constante pela recordação de supostos das opiniões e práticas capazes de contribuir na construção do Estado. 48 EaD Filosofia e Ética – A responsabilidade de todos por todos em termos de fala e ação. – A consideração e consciência de dependência. – A produção participativa da transparência. Arte, educação, conhecimento, Filosofia, amor, paixão, religião, mitos, classes e grupos sociais, entre outros, são descritos em diálogo público. Trata-se da ideia de construção da Polis por meio do diálogo em que todas as abordagens e apresentação de conteúdos são política, isso é, participação vital, inerente, efetiva e inequívoca. Trata-se da construção da cidade e todos os assuntos são sobre cidadania, isto é: – A participação ativa na discussão e decisões que direcionam o todo da sociedade, e a forma é a visibilidade em processo de diálogo público na praça. – A ideia de produzir o amanhã de acordo com a totalidade das possibilidades em consonância com o todo do universo. A concepção de universo de Anaxágoras ainda hoje baliza os discursos que intentam a construção da nação, pois também o Brasil intitula-se República (Coisa Publica em construção). Por isso é preciso perguntar até que ponto na educação e na Universidade brasileira optamos teórica, política e administrativamente pela formação e informação construtiva de todos para todos, ou pela sistemática e estratégica desinformação das grandes massas para a construção do poder próprio de determinados grupos? O conhecimento como saber formalizado em sistemas teóricos nas mais diversas áreas e capaz de operações práticas, que interferem na natureza, na sociedade e na compreensão valorativa do indivíduo, é necessariamente limitado se comparado à totalidade das experiências humanas. Toda a formalização científica paga o preço da sua coesão interna autorreferencial com a limitação de sua compreensão e com a aplicabilidade a um campo necessariamente restrito. É invisível articulação de sentido, tendo na linguagem a sua expressão e na prática científica e tecnológica a possibilidade de sua execução operatória concreta. Na inter-relação ou acentuação fragmentada dos conhecimentos formalizados, no re-exame constante ou aceitação passiva dos seus princípios e no esquecimento ou no combate de suas intenções doutrinárias e absolutistas que se gestam os resultados das suas aplicações e aproveitamentos nos setores do real. O sistema educacional como um todo propõe-se repassar de forma organizada às novas gerações o conhecimento já produzido pela humanidade na História. A informação sobre o repasse de teorias e práticas para a manutenção ou o desenvolvimento da sociedade, para a saúde ou para a doença do corpo social em suas atividades de produção e criação de relações entre as pessoas, para a felicidade ou para a desgraça da humanidade, é a tarefa precípua das instituições formativas. O sistema educacional é a mais importante instância legitimadora das sendas e descaminhos da tradição e tradução dos conhecimentos já produzidos. Reconhecendo ou não a sua atuação e responsabilidade pelo status quo, os resultados são assustadores. 49 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Cada vez mais a sociedade humana depende do conhecimento formalizado em forma de ciência e tecnologia em todas as áreas: cultura, lazer, saúde, transportes, agropecuária, energia, arte, indústria bélica. A própria vida humana depende de toda a produção científica já existente, tanto que a sua repentina exclusão significaria a morte de um número incalculável de pessoas. Por outro lado, a sua atual manutenção em processo de desenvolvimento crescente também representa a morte de milhares de seres humanos. Resultados desastrosos são visíveis nas patologias da natureza, vítima de exploração delirante da ação instrumental veiculada por conhecimentos científicos e tecnológicos esquecidos de sua origem, função e sentido; também na sociedade em termos de sofrimento incalculável por miséria, fome, injustiça doenças e desesperança; igualmente na loucura potencialmente assassina dos indivíduos alienados em desesperadas certezas em forma de reducionismos absolutizados. A teia invisível da compreensão por meio de conhecimentos formalizados é constantemente tecida pelo sistema educacional. Veneno ou remédio? Aprimora-se em velocidade de repasse legitimante do agenciamento da morte e da desgraça ou assume o combate à alienação feliz por inconsciência já nas suas próprias fileiras? A moralidade está sempre em execução prática em todas as áreas da atividade humana e diferenciadamente em todos os grupos e classes sociais. Moral é o status quo, seja qual for. Refletir sobre os fundamentos e valores do status quo instaura a atividade ética, hoje facilitada pela velocidade e aceleração das informações por meio das inovações na técnica computacional. A possibilidade de informação de todos para todos favorece a participação reflexiva de cada um sobre os princípios, valores e critérios já em agenciamento efetivo na produção do real. Os supostos, as intenções e a função de todos os conhecimentos formalizados e atuantes operatoriamente na sociedade podem ser mais bem elucidados e avaliados. Cidadania, conhecimento e ética estão profundamente relacionados sob o pano de fundo da participação universal. A própria ética é o processo filosófico na educação e na cultura. A cidadania é a assunção da ética como participação e consciência da necessidade de reflexão sobre as mais diversas totalidades formalizadas e reducionistas. O conhecimento por si só e sem o sentido da relação universal pode ser um grande acúmulo de esquecimento automatizado e extremamente perigoso a explodir em forma de bomba atômica, injustiça, sofrimento e burrice geral. “Não há cidadania sem Ética reflexivo-filosófica sobre o que somos em conhecimento automatizado. O pensar-se e o pensar mais profundo sobre a participação na construção da nação e do universo é a característica éticofilosófica” (Schneider, 2000, p. 3 et seq.). Referências BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch Wissenschafft, 1991. 50 EaD Filosofia e Ética FRANK, Manfred. Der Kommende Gott. Vorlesungen über die Neue Mytologie. Frankfurt am Main: Edition Suhrkamp, 1982. HEGEL, G. W. F. Werke. In: 20 Bd. Frankfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch Wissenschaft, 1970. HÖLDERLIN, Friedrich. Sämtliche Werke und Briefe 1-4. Berlin: Aufbau – Verlag, 1995. EISLER, R. Kant Lexikon: Hildersheim-Zürich-New York: Georg Olms Verlag, 1984. NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe. In: 15 Bd. Berlin: Deutscher Taschenbuch Verlag de Gruyter, 1988. PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. São Paulo: Companhia da Letras, 1999. SCHNEIDER, Paulo Rudi. (Org.) Introdução à Filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí, 1996. ______. O pensar e o pensar-se na universidade. In: Rufino, Solange (Org.). Cadernos de Seminário/Curso Especial. Ijuí: Ed. Unijuí, 2000. Seção 2.2 Ciências Humanas: Contextualização Histórica e Teórica Aloísio Ruedell A história das Ciências Humanas confunde-se com a trajetória da cultura, da tradição, da educação e do ensino no mundo ocidental. Ainda que a concepção moderna de ciência seja relativamente recente, o seu conteúdo qualificativo de humana(s) remete à Antiguidade clássica. 2 3 Falava-se então em humanidades (humanitas), designando com esse termo os cursos ou estudos que visavam ao cultivo e ao desenvolvimento do especificamente humano. Por muito tempo, o termo humanidades designava o estudo do Latim e do Grego – línguas que tiveram papel decisivo nos percursos da civilização ocidental. Hoje o termo é empregado em sentido mais amplo, mas sem coincidir com humanista da época da Renascença. O movimento do humanismo A torre de babel – Peter Bruegel. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia. 3 51 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin renascentista refere-se, com esse termo, não apenas às Ciências Humanas, mas também às Ciências da Natureza, porque nenhuma delas é alheia ao homem. Não só a busca de textos clássicos de literatura, sua leitura ou proclamação são tidas como humanistas, mas também o desenvolvimento das emergentes Ciências da Natureza. Umas e outras são expressão e cultivo da humanidade. São um meio de o homem tomar consciência de sua grandeza e dignidade, afirmando-se como sujeito consciente e benemérito de todas as Ciências e artes da época. Transpondo essa concepção para os dias de hoje, todas as Ciências e a própria tecnologia integrariam as humanidades. E este seria certamente o sentido originário de toda e qualquer ciência que se estabelecesse: estar a serviço da humanidade, ser um meio para a vida e a realização humanas. É nesta direção que S. P. Rouanet define atualmente o termo humanidades como [...] as disciplinas que contribuem para a formação (Bildung) do homem, independentemente de qualquer finalidade utilitária, isto é, que não tenham necessariamente como objetivo transmitir um saber científico ou uma competência prática, mas estruturar uma personalidade segundo uma certa paidea, vale dizer, um ideal civilizatório e uma normatividade inscrita na tradição, ou simplesmente proporcionar um prazer lúdico.4 O que hoje se designa por Ciências Humanas esclarece-se, de alguma forma, por essa definição de humanidades. Ainda mais esclarecedora, contudo, é a sua vinculação com a discussão de Wilhelm Dilthey (1883) sobre as ciências do espírito, posteriormente retomada por H. G. Gadamer (1960), em Verdade e Método. É a partir dessa discussão, visando à fundamentação das ciências do espírito, que efetivamente se estabelecem as Ciências Humanas. A discussão emerge precisamente num contexto em que se impõe um pragmatismo positivista e instrumental, presente nas Ciências da Natureza. Dilthey (1883), influenciado e desafiado por esse contexto, propugna pela autonomia das ciências do espírito, dotando-as de uma metodologia e epistemologia próprias, tão respeitáveis quanto as das Ciências da Natureza. Propõe, nesse sentido, uma distinção entre explicar e compreender ou explicação e compreensão, explicação da natureza e compreensão da História; a explicação como metodologia própria das Ciências da Natureza e a compreensão como distintivo das ciências do espírito ou Ciências Humanas. Enquanto as Ciências explicativas buscam determinar as condições causais de um fenômeno por meio da observação e da quantificação, as ciências compreensivas visam à apreensão das significações intencionais das atividades históricas concretas do homem. Em boa medida, essa oposição entre Ciências explicativas e compreensivas equivale à oposição entre o mundo psíquico e o mundo físico. Ou seja, na compreensão, a atenção volta-se, sobretudo, para o caráter particular ou singular dos fatos históricos, que, por sua vez, remete à singularidade do indivíduo. Rouanet, S. P. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 309. 4 52 EaD Filosofia e Ética O problema da compreensão, em verdade, já pode ser identificado antes de Dilthey, como é o caso de Friedrich Schleiermacher.5 É a partir do primeiro, entretanto, que a compreensão passa a figurar regularmente no núcleo de grandes obras do século 20, como em: Ser e Tempo, de Martin Heidegger,6 Verdade e Método, de Hans-Georg Gadamer,7 Do texto à ação, de Paul Ricoeur,8 dentre outros. Essa afirmativa, entretanto, não inclui que todas as discussões hodiernas sobre esse tema sigam se orientando pela distinção diltheyana entre explicar e compreender. Já Gadamer inicia Verdade e Método criticando a fragilidade do empreendimento de Dilthey.9 Sua convicção é a de que toda a reflexão das ciências do espírito, desenvolvida desde o seu estabelecimento, está ainda totalmente dominada pelo modelo das Ciências da Natureza. Segundo ele, até Dilthey as ciências do espírito simplesmente se estabeleceram em analogia com as Ciências da Natureza, portanto sob o seu paradigma, validando-se pelo método descritivo e indutivo. Uma concepção adequada do objeto das ciências do espírito, no entanto, argumenta Gadamer (1960), requer outra metodologia. O método indutivo seria insuficiente ou inadequado, porque o conhecimento histórico não pretende reduzir o fenômeno concreto como caso de uma regra geral, e o individual não se limita a ser confirmação de uma regularidade, a partir da qual seria possível fazer predições. Mesmo Dilthey, escreve Gadamer (1960), por mais que ele defenda uma autonomia epistemológica das ciências do espírito, não tem um método próprio para elas. Hoje, a par da crítica de Gadamer (1960), há, sem dúvida, outras objeções à proposta metodológica diferenciada de Dilthey. Mesmo que se reconheça a legitimidade da distinção entre explicar e compreender, questiona-se o caráter excludente que Dilthey conferira originalmente a um e a outro procedimento metodológico. Sem negar que para as ciências do espírito cabe, fundamentalmente, uma metodologia compreensiva, e para as Ciências da Natureza uma explicativa, entende-se, de modo geral, que também as ciências do espírito, para poderem ser compreendidas, requerem algumas explicações. Da mesma forma que as Ciências da Natureza não se explicam devidamente sem que haja também o concurso da compreensão. A discussão permanece aberta, apontando para diversas direções, inclusive para a superação da distinção entre o humano e o natural, em virtude de uma base biológica mais fundamental. Diversas e importantes discussões, entretanto, vêm a favorecer a fecundidade da distinção metodológica de Dilthey, Cf. Schleiermacher, F. D. E. Hermeneutik und Kritik; mit einem Anhang sprachphilosophischer Texte Schleiermachers. Hrsg. von Manfred Frank. 4. Aufl., Frankfurt: Suhrkamp, 1990, p. 8-9. 5 Heidegger, Martin. Sein und Zeit 17. Aufl. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1993. A primeira edição da obra é de 1926. 6 Gadamer, Hans-Georg. Wahrheit und Methode 1. Grundzüge einer philosophischer Hermeneutik. 6. Aufl., Tübingen: Mohr, 1990. A primeira edição foi em 1960. 7 Ricoeur, Paul. Du texte à l’action; Essais d’herméneutique, II. Paris: Du Seuil, 1986. 8 Gadamer, Hans-Georg. Wahrheit und Methode 1. Grundzüge einer philosophischer Hermeneutik. 6. Aufl., Tübingen: Mohr, 1990. p. 9 et seq. 9 53 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin reconhecendo que há dois procedimentos metodológicos possíveis e necessários: explicativo e compreensivo. Em Jürgen Habermas, por exemplo, isso é possível a partir de sua distinção fundamental entre razão instrumental e razão comunicativa, residindo a primeira na explorabilidade técnica e vinculando-se a segunda ao interesse prático da comunicação inter-humana.10 São duas perspectivas distintas, das quais a primeira opera prioritariamente nas ciências da Natureza e a outra mais nas Ciências Humanas. De modo semelhante, encontra-se em Heidegger (1993) a distinção entre logos apofântico e logos hermenêutico, designando, pelo primeiro, o caráter instrumental e a racionalidade das Ciências positivas e, pelo último, a racionalidade das Ciências interpretativas, como as humanas em geral. Sem que se chegue, nessa discussão, a uma unidade conceitual, identificase, em todos os autores, um ponto de convergência, qual seja, o reconhecimento de um campo temático distinto para as Ciências Humanas, requerendo, consequentemente, uma abordagem metodológica igualmente distinta. Trata-se, no mais, de um campo do saber que marcou o estatuto das instituições universitárias desde a sua origem. Ainda que, com o desdobramento da História, houvesse mudança na configuração das universidades, a mudança ocorreu geralmente mais no sentido da inovação e consolidação de novos campos de saber do que da supressão ou superação de algum. Isso de tal maneira que, nas assim denominadas humanidades ou Ciências Humanas, sempre se colocassem novas possibilidades e determinações de objetos de investigação, com referência a campos tradicionais já consolidados. Nessas novas configurações de objetos, faz hoje sentido um conjunto de questões e de expectativas designadas por termos tais como interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, formação geral, formação humanística, transversalidade, multidisciplinaridade. Em todo o contexto dos saberes tradicionais das Ciências histórico-hermenêuticas, das Ciências Sociais e das Ciências empírico-analíticas e nas tendências de multiplicação das especializações e de novas articulações, não se produziram discursos que negassem os planos das referências e das possíveis interlocuções entre os saberes tradicionais e os novos. Aliás, toda a tradição é uma tradição que se afirma em todos os campos do saber pelo reconhecimento ou pela inovação que recorre ao pretensamente superado ou ultrapassado para se expor. Um dos desafios das Ciências Humanas é a atualização do passado e a apresentação de novos saberes com o recurso da tradição. Referências GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode – 1. Grundzüge einer philosophischer Hermeneutik. 6. Aufl., Tübingen: Mohr, 1990. Primeira edição 1960. Ricoeur, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. p. 121-122. Cf. também Habermas, Jürgen. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L&PM, 1987. 10 54 EaD Filosofia e Ética HABERMAS, Jürgen. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L&PM, 1987. HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit 17. Aufl. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1993. Primeira edição 1926. RICOEUR, Paul. Du texte à l’action: Essais d’herméneutique, II. Paris: Du Seuil, 1986. ______. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. p. 121122. ROUANET, S. P. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 309. SCHLEIERMACHER, F. D. E. Hermeneutik und Kritik: mit einem Anhang sprachphilosophischer Texte Schleiermachers. Hrsg. von Manfred Frank. 4. Aufl., Frankfurt: Suhrkamp, 1990. p. 8-9. Seção 2.3 Para que Filosofia?11 Aloísio Ruedell 11 Somos, muitas vezes, questionados em nossas aulas: para que Filosofia? É, sem dúvida, uma pergunta interessante. 12 De outro lado, porém, causa-nos surpresa porque não vemos e nem vimos ninguém perguntar: para que Matemática ou Física? Para que Geografia ou Geologia? Para que História ou Sociologia? Para que Biologia ou Psicologia? Para que Astronomia ou Química? Para que Pintura, Literatura, Música ou Dança? Todos, entretanto, acham muito natural perguntar: para que Filosofia? O que nos sugere isso? Existe uma explicação para essas atitudes diferenciadas em relação à Filosofia e às demais disciplinas? Vejamos algumas considerações! Reelaboração de parte do texto que consta em: Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. 6. ed. São Paulo: Ática, 2010. p. 9-14. 11 Escola de Atenas – Rafael. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia. 12 55 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin 2.3.1 – A Razão da Pergunta Perguntar pela utilidade da Filosofia geralmente esconde ou supõe uma resposta irônica, conhecida de muitos estudantes: “A Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Em outras palavras: “A Filosofia não serve para nada”. Chama-se, por isso, de “filósofo” alguém distraído, que está com a cabeça no mundo da lua, pensando e falando coisas que ninguém consegue entender e que são totalmente inúteis. A pergunta “para que Filosofia?” tem, contudo, sua razão de ser. Tem a ver com a cultura e o tipo de sociedade em que vivemos. Estamos numa cultura e numa sociedade em que só se considera como legítimo, com direito a existir, aquilo que tiver alguma finalidade prática bem visível e de utilidade imediata. Por isso, é compreensível que ninguém pergunte: para que as Ciências? Todos imaginam “ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação científica à realidade” (Chauí, 1991, p. 13). De modo semelhante, todos também imaginam ver a utilidade nas artes. De um lado, há a compra e a venda das obras de arte, com impacto importante na economia. De outro lado, no entanto, a cultura também “vê os artistas como gênios que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade” (Chauí, 1991, p. 13). Enquanto isso, ninguém consegue ver para que serviria a Filosofia. E, se ninguém consegue ver a utilidade da Filosofia, isso significa que não serve para nada. 2.3.2 – As Pressuposições Filosóficas nas Ciências Quem não consegue ver para que servirá a Filosofia, de modo geral também não percebe quanto as Ciências estão ligadas à Filosofia. As Ciências, pois, pretendem ser conhecimento verdadeiro, obtido mediante procedimentos rigorosos do pensamento; pretendem agir sobre a realidade, utilizando-se de instrumentos e objetos técnicos; pretendem progredir no conhecimento, corrigindo-o e aumentando-o. Ora, todas essas pretensões pressupõem que as Ciências acreditam na verdade, em procedimentos corretos, na racionalidade dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados. E tudo isso não é Ciência, mas são questões filosóficas. A Ciência, portanto, pressupõe a Filosofia. O cientista parte de questões filosóficas, como de questões já resolvidas, e é a Filosofia que as formula e busca suas respostas. O trabalho das Ciências pressupõe o trabalho da Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. Como, porém, só os cientistas e os filósofos sabem isso, o senso comum continua com a ideia de que a Filosofia não serve para nada. 2.3.3 – Filosofia Como “Arte do Bem-Viver” Abandonando, de momento, a preocupação com a utilidade da Filosofia, podemos concordar parcialmente com aqueles que consideram que ela de fato não serviria para nada, se “servir” fosse entendido como “possibilidade de fazer 56 EaD Filosofia e Ética usos técnicos dos produtos filosóficos ou dar-lhes utilidade econômica” (Chauí, 1991, p. 13), visando à obtenção de lucros. Para eles, inclusive, a Filosofia nada tem a ver com Ciência e Tecnologia. Quem pensa dessa forma considera que o foco principal da Filosofia não estaria nos conhecimentos (que ficariam para as Ciências), nem em suas aplicações (reservadas para a tecnologia), e sim no ensinamento moral ou ético. Nessa perspectiva, “a Filosofia seria a arte do bem-viver”. “Estudando as paixões e os vícios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões, ensinando-nos a viver de modo honesto e justo” (Chauí, 1991, p. 13) em relação aos outros, a Filosofia teria a incumbência de ensinar a virtude, que é o princípio do bem-viver. Essa noção de Filosofia, entretanto, ainda não resolve a nossa questão, pois, mesmo que admitamos que a Filosofia seja arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, ela continua fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas: O que é o homem? O que é a vontade? O que é a paixão? O que é a razão? O que é o vício? O que é a virtude? O que é a liberdade? Como nos tornamos livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade e a virtude são valores para os seres humanos? O que é um valor? Por que avaliamos os sentimentos e as ações humanas? (Chauí, 1991, p. 14). Mesmo que disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento da realidade, nem o conhecimento de nossa capacidade para conhecer, ou que afirmássemos que o objeto da Filosofia é apenas a vida moral ou ética, o estilo e a atitude filosófica permaneceriam os mesmos, ou seja, permaneceriam as perguntas filosóficas: O quê? Por quê? Como? Por isso, mais do que os objetos da Filosofia, convém ressaltar a atitude filosófica. 2.3.4 – A Atitude Filosófica: Perguntar O que identifica a Filosofia é sua atitude de constante questionamento, de indagação, independentemente do conteúdo investigado. Inicia-se dirigindo suas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que com ele mantemos. Neste primeiro momento há basicamente três tipos de pergunta: O quê? Como? e Por quê? Ao perguntar o que é (a coisa, a ideia, o valor), a Filosofia pergunta pela realidade ou pela natureza e qual a significação de alguma coisa, independentemente do que seja. Quando pergunta como (a coisa, a ideia ou o valor) é, a Filosofia quer saber da estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa, uma ideia ou um valor. Por fim, ao perguntar por que a coisa, a ideia ou o valor existe e é como é, a Filosofia indaga pela origem ou pela causa de uma coisa (de uma ideia, de um valor). 57 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin A atitude filosófica inicia-se com essas indagações, dirigindo-as ao mundo que nos rodeia e às relações que com ele mantemos. Aos poucos, porém, vai descobrindo que essas questões referem-se a nossa capacidade de conhecer e de pensar. Por isso, também aos poucos, as perguntas da Filosofia dirigem-se ao próprio pensamento: “o que é pensar?”, “como é pensar?”, “por que há o pensar?” A Filosofia torna-se, dessa maneira, pensamento interrogando-se a si mesmo. Realiza-se como reflexão, ato de se voltar sobre si mesmo. 2.3.5 – A Reflexão Filosófica A reflexão significa o movimento de volta sobre si mesmo. É o movimento pelo qual o pensamento se volta para si, interrogando-se a si mesmo. É uma reflexão radical, porque o pensamento, voltando-se sobre si, quer conhecer a si mesmo, perguntando como é possível o próprio pensamento. Não somos, porém, apenas seres pensantes. Também agimos no mundo, relacionamo-nos com os outros, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações por meio de linguagem, gestos e ações. Também essas relações são incluídas na reflexão filosófica, as relações com a realidade circundante, aquilo que dizemos e fazemos. A reflexão filosófica, mais uma vez, é organizada em torno de perguntas. Destacam-se três conjuntos de perguntas ou questões. 1. “Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos?” (Chauí, 1991, p. 14). Isso quer dizer, quais os motivos, razões ou causas de nosso pensar, dizer e fazer? 2. A segunda pergunta é sobre o que. O que, efetivamente, queremos pensar quando pensamos, dizer quando falamos e fazer quando agimos? É a pergunta pelo conteúdo ou pelo sentido do que pensamos, dizemos e fazemos. 3. Por fim, pergunta-se para quê? “Para quê pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos”? (Chauí, 1991, p. 14). É a pergunta pela intenção ou finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos. Referências CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 6. ed. São Paulo: Ática, 1991. p. 9-14. 58 EaD Filosofia e Ética Seção 2.4 Filosofia e Formação: o Perfil do Profissional Universitário Vânia L. F. Cossetin 12 Historicamente a visão prática profissionalizante definiu o perfil da formação universitária brasileira, cuja origem decorre do assim chamado modelo napoleônico, surgido a partir das faculdades de Direito, Medicina e Engenharia, no início do século 19. Tais cursos visavam, prioritariamente, à preparação de profissionais aptos a atender às demandas para a formação do quadro de funcionários do Império, quais sejam: médicos para enfrentar as doenças tropicais e engenheiros para superar os obstáculos da natureza hostil (Goergen, 2010). 13 Não é de se estranhar, portanto, que um pensamento excessivamente pragmático tenha marcado e, continue marcando, a formação universitária brasileira. Seu objetivo ainda está voltado para a preparação de mão de obra técnica, supostamente competente para atender à demanda do mercado de trabalho, substituindo sua função pedagógica, de formação integral e humanista, pelo mero treinamento de habilidades técnicas com vistas ao desempenho de tarefas operacionais. O problema é que o ensino superior parece ter se esquecido de que a formação profissional supõe a própria existência, ou seja, a vida e o cuidado para com ela, o que implica, justamente, uma formação que considere a multifacetada dimensão do humano. Indubitavelmente, num contexto em que há carência de profissionais aptos para atender a certas atividades técnicas no âmbito do trabalho, é compreensível a expectativa dos acadêmicos de se qualificar pela aquisição de conhecimentos e habilidades técnicas, como se o sucesso profissional pudesse ser encontrado única e exclusivamente no conhecimento técnico especializado. Eis o engodo da formação superior: cria-se uma falsa dependência do indivíduo à lei imposta pelo sistema mercadológico. Em boa medida, tal imposição mostra-se já na infância, quando é perguntado à criança o que deseja ser quando crescer Relatividade – Escher. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia. 13 59 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin e, imediatamente, tem sua resposta refutada caso não se enquadre naquelas áreas de grande demanda profissional ou ilusório status social – não por acaso: Direito, Medicina e Engenharia. E, assim, aquilo que ingenuamente tem-se denominado de movimento natural do suposto progresso histórico-social, não passa de uma forma vil (mascarada por uma equivocada “liberdade de escolha”) de negociar os sonhos, a realização pessoal, as tendências, as vocações, para preencher as vagas do sistema ou atingir ascensão social. A profissionalização, a habilitação profissionalizante, consequentemente a inserção das pessoas no mercado de trabalho é, indubitavelmente, relevante. O problema está na concepção meramente tecnicista dessa formação, como se a atuação do profissional não implicasse também o conhecimento sobre a complexidade humana para a qual está inexoravelmente voltado; como se o conhecimento científico não tivesse, também, a potencialidade de intervir e modificar, inclusive, a própria natureza da técnica e de apreender e reelaborar criticamente a cultura, os valores, a sociedade. Como, no entanto, grande parte dos acadêmicos busca exclusivamente a formação técnica profissional, tudo o que ultrapassar estas fronteiras tende a ser considerado supérfluo. A pergunta, então, não pode deixar de ser feita: quais são, ou deveriam ser, os objetivos do Ensino Superior com respeito à formação profissional? De que profissional o nosso mundo carece? Qual o seu perfil? Quais as suas atribuições? E mais: se a universidade se entrega à mera transmissão de saberes, ou àquilo que Coelho (2006) denomina de um “supermercado do conhecimento” (p. 43), no qual o conhecimento se transveste de produto e se banaliza na repetição irrefletida de seus especialistas, o que podemos esperar das ações e seus efeitos produzidos pelo egresso universitário? Ou seja, quando o conhecimento torna-se certeza inabalável a ser reproduzida e proferida, a que instituição caberia a promoção da construção criativa de novos saberes, a crítica, a dúvida, a suspeita dos saberes já formulados e em aplicação irresponsável, a inovação desmedida e inconsequente, enfim, a reflexão sobre a própria condição e futuro da humanidade? Se o Ensino Superior não o fizer, quem irá fazê-lo? 2.4.1 – Idealizando o Profissional Contemporâneo Apesar da aparente reclusão das pesquisas científicas, tudo o que é pesquisado, pensado, criado, tem direta ou indiretamente repercussão na vida concreta das pessoas. Concretude esta na qual estamos inevitavelmente jogados, mas cuja fatalidade biológica, química, física, procuramos transcender pelo exercício da liberdade, própria da condição humana. Levar em consideração a integralidade desta condição existencial e histórica do homem impõe-se como necessária à formação profissional universitária. E o que isso quer dizer? Ora, a Filosofia, desde os gregos, tem se preocupado com a formação integral humanista, pela consideração da cultura com princípio formativo e norteado por um 60 EaD Filosofia e Ética ideal de homem, de humanidade, pensado em sua integralidade corpórea e espiritual, e mais: num esforço grandioso de justificação última da comunidade e individualidade humana (Jeager, 1995, p. 3-10). Isto conduz à reflexão sobre a ambiguidade, determinação e transcendência implícita a sua condição; na tematização dos valores que perpassam a ação humana em sua história e na discussão crítica do conhecimento, especialmente pela identificação das ideologias. Ou seja, o profissional contemporâneo não pode voltar-se apenas aos interesses científico/epistêmicos, mas também, e, sobretudo, aos culturais e ético/políticos. 1. O aspecto epistêmico da formação: trata-se do domínio das ferramentas investigativas de construção do conhecimento, o estudo metódico e sistemático, as regras do saber e a manipulação da realidade natural, pela superação da padronização e estímulo da criatividade e do espírito inventivo, numa tentativa de superação da falsa divisão entre teoria e prática. O profissional contemporâneo precisa saber traduzir os conhecimentos mediante a indagação, a análise, a problematização acerca da sociedade, da política, da economia, das práticas sociais e culturais, colocando-se como protagonista diante das novas situações postas por estes campos. Situações estas hoje especialmente colocadas pela fragmentação e pelo impacto das novas tecnologias que acabam interferindo profundamente nas relações socioculturais, pelo que dele é exigido a superação do preconceito ingênuo diante destas tecnologias e a avaliação crítica do seu papel nos processos histórico-sociais. 2. Cultural: o profissional, aqui considerado, deve conceber o conhecimento e a própria formação enquanto processo de humanização, como aquele sujeito que está em permanente e ininterrupto processo, que não está pronto. Sua tarefa é compreender a sociedade, sua gênese e sua transformação, além dos múltiplos fatores que nela intervêm, como produtos da ação humana. Nisso, compreende a si mesmo como agente social e, sobretudo, a produção das instituições sociais, políticas e econômicas no seio do processo histórico. 3. Ético/político: do profissional contemporâneo espera-se que supere os conhecimentos meramente mecânicos e autônomos, desprovidos de identidade e de sentido. Ou seja, o comprometimento com a construção de uma sociedade solidária por meio da ação cooperativa e não individualista, com a responsabilidade ética, tanto em âmbito social quanto ambiental, tanto com seu tempo quanto com gerações futuras. Os fundamentos e as justificativas do agir profissional, portanto, enquanto a sua questão ética fundamental é perguntar se cada ato concreto seu contribui para a melhoria das condições de vida do seu entorno, da manutenção ou resgate da dignidade humana. Concluindo... A formação profissional universitária é complexa. Não pode ser reduzida apenas ao repasse de informações e ao treinamento para o desenvolvimento de habilidades técnicas, ou seja, sua formação não pode ser simplesmente es61 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin pecializada e profissionalizante, que “(...) apenas o treina para executar tarefas específicas, com a habilidade e a competência necessárias a uma sociedade mercantil, ou para um estreito mercado de trabalho” (Pereira, 2007, p. 9). A formação universitária, ao contrário, deve ajudar o acadêmico a transcender esta visão positivista ingênua de uma razão instrumental, ajudando a construir, neste futuro profissional, a postura da dúvida, da suspeita, da crítica, da imaginação, com vistas à promoção de um efetivo enlace entre o saber, a reflexão e a ação, pois, apesar de a construção do conhecimento não ser unidirecional, e tampouco ingênua, tudo o que é elaborado, tanto teórica quanto tecnicamente, torna-se o modo pelo qual a vida pode ser pensada e orientada, não, porém, sem que este sujeito que articula o conhecimento seja consciente e responsável tanto pelos saberes técnico-científicos quanto pelas metodologias mediante as quais eles são construídos, bem como pela possibilidade de sua aplicação. Isso porque profissional algum é apenas um técnico. Antes, ele é um existente, uma subjetividade resultante de um determinado processo históricosocial e que busca respostas para a dinamicidade e concretude da vida, para a efemeridade dos processos e conhecimentos técnicos que não podem mais ser compreendidos mediante uma receita. Ou seja, a ciência realiza diagnósticos, previsões, soluções, mas não pergunta pelo sentido da vida. É por essa razão que a formação universitária, além de adotar componentes cujos conteúdos forneçam as informações e conhecimentos relativos aos objetos e fenômenos de cada área em estudo, precisa também, e, sobretudo, garantir momentos distintos de reflexão sobre o papel ético-político dos futuros profissionais e de que forma pretendem atuar e intervir na sociedade na qual se inserem. Se este não for o objetivo primeiro da formação superior, e consequentemente, a postura do profissional egresso, então devemos nos perguntar sobre a finalidade do conhecimento científico e se o sentido da formação profissional não se esvazia por completo. Referências COELHO, Ildeu M. Universidade e formação de professores. In: GUIMARÃES, Valter S. (Org.). Formar para o mercado ou para a autonomia? O papel da universidade. Campinas: Papirus, 2006. GOERGEN, Pedro. Formação superior: entre o mercado e a cidadania. In: PEREIRA, Elisabete M. A. (Org.). Universidade e currículo: perspectivas de educação geral. Campinas: Mercado de Letras, 2010. p. 17-40. JAEGER, Werner. Paideia: formação do homem grego. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. PEREIRA, Elisabete M. A. (Org.). Universidade e educação geral: para além da especialização. Campinas: Alínea, 2007. 62 EaD Filosofia e Ética Síntese da Unidade 2 Nesta Unidade estudamos que: • O conhecimento por si só e sem o sentido da relação pode ser um grande acúmulo de esquecimento automatizado e extremamente perigoso, por isso a reflexão profunda sobre a participação na construção do mundo é a característica ético-filosófica fundamental. • Um dos desafios das Ciências Humanas é a atualização do passado e a apresentação de novos saberes com o recurso da tradição. • A reflexão filosófica é organizada em torno de três perguntas: 1. Quais os motivos, as razões ou as causas de nosso pensar, dizer e fazer? 2. Qual o conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos e fazemos? 3. Qual a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos? • A formação universitária, além de adotar componentes cujos conteúdos forneçam as informações e conhecimentos relativos aos objetos e fenômenos de cada área em estudo, precisa também, e, sobretudo, garantir momentos distintos de reflexão sobre o papel ético-político dos futuros profissionais e de que forma pretendem atuar e intervir na sociedade na qual se inserem. 63 Unidade 3 ÉTICA E AGIR HUMANO OBJETIVOS DESTA UNIDADE • Apresentar o caráter histórico da antropologia filosófica discutindo as principais visões de homem e de mundo já elaboradas. • Analisar e comparar as definições de homem defendidas desde Sócrates até Marx. • Distinguir os conceitos de ética, moral e deontologia e como tais conceitos foram sendo paradigmaticamente pensados ao longo da História. • Apresentar as principais teorias éticas desde os gregos até a contemporaneidade. • Refletir sobre as concepções de responsabilidade moral, determinismo e liberdade. • Debater sobre as dimensões e a fundamentação da ética na política. • Tematizar os conceitos de belo e feio e sua relação com a ética. AS SEÇÕES DESTA UNIDADE Seção 3.1 – Introdução aos Estudos Antropológicos Seção 3.2 – O que é o Homem? Seção 3.3 – Ética a Partir dos Paradigmas Seção 3.4 – Teorias Éticas Seção 3.5 – Responsabilidade Moral, Determinismo E Liberdade Seção 3.6 – Considerações Sobre Ética, Política e Cidadania Seção 3.7 – A Estética e Suas Relações Com o Feio 65 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Seção 3.1 Introdução aos Estudos Antropológicos1 Julio César Burdzinsky 2 3.1.1 – O QUE É ANTROPOLOGIA 2 A disciplina que se dedica ao estudo do homem recebe o nome de An- tropologia. Como tantas outras palavras da língua portuguesa “Antropologia” tem, também, raízes etimológicas em duas palavras gregas que significam, respectivamente, “homem” e “discurso” ou “estudo”. Assim, a Antropologia pode ser entendida como discurso ou estudo sobre o homem. Esta definição, entretanto, é muito insuficiente porque um “estudo sobre o homem” pode se apresentar sob várias formas completamente diferenciadas e, historicamente, foi exatamente isto o que aconteceu. Assim podemos ter, por exemplo, uma Antropologia biológica cujo objeto de estudo será, justamente, o homem enquanto entidade biológica situada entre as demais espécies animais. A Medicina, tal como a conhecemos tradicionalmente, ocupa-se deste aspecto do estudo sobre o homem. Também o estudo de fósseis de homens pré-históricos, antecessores do Homo Sapiens, assume uma direção semelhante e se dedica a investigar as várias diferenças entre os distintos estágios do desenvolvimento biológico humano ao longo da evolução natural. A Antropologia também pode, por outro lado, ocupar-se das diferentes formas de civilização que os seres humanos constituíram em diferentes pontos do tempo e do espaço buscando, assim, identificar os fatores culturais e sociais que aí se revelam. Temos, então, a “Antropologia Cultural” que, por sua vez, diferenciase em várias escolas que seguem diferentes caminhos de pesquisa privilegiando ora um, ora outro aspecto de uma determinada sociedade. Há, ainda, um terceiro sentido em que podemos entender o termo Antropologia, qual seja, um estudo do homem que busca investigá-lo não apenas como um ser biológico ou cultural mas, antes, como aquele específico tipo de ser que se pergunta pelo seu próprio ser: é a esta que denominamos de Antropologia filosófica e que aqui nos interessa mais diretamente. Definir de uma forma Texto publicado em primeira versão em: Schneider, Paulo Rudi (Org.). Introdução à Filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí, 1995. p. 108-119. 1 Fotografia – As meninas lobo. Fonte: <http://novaemoderna.blogspot.com.br/2011/03/estranha-lendade-amala-e-kamala-as.html>. 2 66 EaD Filosofia e Ética mais clara o que podemos entender por Antropologia filosófica é uma tarefa extremamente difícil, uma vez que essa explicação pressupõe, evidentemente, uma elucidação do conceito de Filosofia o que, por si só, não é nada simples. Não obstante, é possível darmos algumas indicações gerais que possam situar o lugar que ocupa a Antropologia filosófica no universo da própria Filosofia e do conhecimento humano como um todo. 3.1.2 – A Antropologia Filosófica ontem e hoje Referimos anteriormente que podemos entender a Antropologia filosófica como uma disciplina que toma por objeto de estudo o homem mesmo enquanto aquele que se propõe objetos de estudo. Isto, porém, é ainda um tanto vago e, desde esta definição, podemos situar a Antropologia filosófica como um pequeno e particular campo da Filosofia até como a sua totalidade. Na verdade, o espaço que a Antropologia filosófica ocupou dentro da Filosofia variou, historicamente, de um extremo a outro. A perspectiva predominante contemporaneamente, porém, é a de que o estudo antropológico é a primeira e mesmo a mais importante parte da Filosofia, embora a Filosofia não possa se resumir a ele. Esta é, aliás, a perspectiva deste nosso curso: o estudo filosófico do homem – e a extensão e o significado deste estudo é algo que deverá tornar-se evidente ao longo do próprio curso – como parte inicial e principal do estudo filosófico. Vejamos em que ponto nos encontramos agora: começamos afirmando que a Antropologia é o estudo do homem e prosseguimos mostrando que esse estudo poderia assumir diferentes perspectivas – o biológico-científico, o cultural ou o filosófico. Finalmente, ocupando-nos dessa última vimos a dimensão que o estudo antropológico ocupa na Filosofia. Precisamos agora, após termos esclarecido essas considerações preliminares, ocupar-nos com a realização de um estudo introdutório de Antropologia filosófica, isto é, vamos investigar desde o ponto de vista de alguns tipos básicos as diferentes formas pelas quais, ao longo da História, o homem viu a si mesmo e sua relação com o mundo. 3.1.3 – Visões do Homem e do seu mundo Nosso primeiro pressuposto básico é o seguinte: a Antropologia tem um caráter histórico, ou seja, a perspectiva que o homem tem de si próprio não é sempre a mesma ao longo do tempo. Ou ainda: a forma segundo a qual o homem encara suas relações com outros homens (relações sociais), sua relação com o mundo (cosmovisão) e, por meio destas, suas relações consigo mesmo, difere conforme a época histórica sobre a qual nos detemos. Esse pressuposto traz, como decorrência, duas consequências imediatas: em primeiro lugar deve ficar claro que a visão de Antropologia e de homem que estamos articulando aqui é, exatamente, a nossa visão, isto é, a perspectiva contemporânea, a qual se caracteriza entre outras coisas como sendo uma perspectiva historicista. Em segundo lugar precisamos não apenas relativizar nossa própria perspectiva antropológica, 67 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin mas devemos, ainda, situá-la enquanto resultado de um processo histórico ao longo do qual várias perspectivas diferentes a antecederam e, em boa parte, a determinaram. O que tentaremos fazer aqui é expor da forma mais simplificada possível os “modelos” básicos de homem e mundo que se sucederam na história e a razão dessa sucessão. 3.1.3.1 – A Mitologia A espécie humana surge como tal na superfície da Terra a cerca de um ou dois milhões de anos. A “baixa” pré-História, conhecida como período paleolítico ou “idade de pedra lascada”, alcança cerca de 10 mil anos atrás, enquanto a era neolítica ou “idade da pedra polida” não remonta a mais de 5 mil anos. As primeiras civilizações humanas conhecidas e o consequente início da época propriamente histórica se dá por volta de 3.000 a.C. na Mesopotâmia, Egito, China e Índia. Todas essas civilizações são-nos, entretanto, muito distanciadas não apenas histórica, mas também culturalmente. Muito mais próximo do que podemos denominar genericamente de “cultura ocidental” encontramos o mundo grego clássico, matriz distante mas sólida da nossa civilização e que já foi chamado de “infância da humanidade”. Pode-se afirmar que a civilização grega iniciou a formar-se em cerca de 1.500 a.C., mas só atingiu seu apogeu dez séculos mais tarde. Por volta dessa época estabeleceu-se a democracia ateniense, a arte grega atingiu os píncaros de seu desenvolvimento e a Filosofia nasceu e se desenvolveu rapidamente. Antes disso, porém, predominava uma forma muito distinta de compreensão do homem e do mundo: é o que conhecemos por mitologia. Duas grandes obras restam-nos desse período, as quais traçam um painel do mundo grego de então, dando-nos informações preciosas sobre sua moral, religião, etc. São a Ilíada e a Odisséia, obras cuja autoria é lendariamente atribuída a um poeta cego que teria vivido por volta do século 8º a.C., chamado Homero. É mais provável, entretanto, que tais obras constituam-se de um conjunto de várias lendas diversas que foram reunidas formando então o conjunto que conhecemos. Estas obras são os documentos principais a serem pesquisados na investigação dessa longínqua época da História. A pergunta que então nos interessa colocar aqui é a seguinte: Que concepção de homem encontramos ali? Para responder a isso devemos, primeiro, vislumbrar o mundo da época: tecnologicamente falando ele é, naturalmente, extremamente rudimentar. A origem dos fenômenos naturais é então explicada de uma forma obviamente diferente daquela que caracteriza uma sociedade moderna. O modelo para explicação desses fenômenos é, em primeiro lugar, os fenômenos do mundo social. Assim, por exemplo, se a ordem de uma comunidade é mantida pelo poder exercido pelo seu líder supõe-se, igualmente, um governante – de muito superior poder, é claro – deve também responder pela ordem do mundo da natureza. Por extensão, são explicados da mesma forma fatos singulares como a chuva e a reprodução. Se o Sol percorre um determinado trecho do céu num 68 EaD Filosofia e Ética movimento regular que se sucede dia após dia isso ocorre porque um deus assim o conduz; se uma colheita é prejudicada pela irregularidade das chuvas, se os animais rareiam em um determinado campo de caça, é porque a divindade responsável pelo ordenamento desses processos naturais está “irritada” contra os homens que deles dependem. Daí então a necessidade de oferecer sacrifícios como meio de reconquistar a simpatia divina. Num mundo assim concebido inexiste uma diferenciação clara entre o mundo dos fenômenos naturais e a esfera dos acontecimentos propriamente humanos ou sociais, dado que o mundo como uma totalidade é visto como uma projeção daquilo que é especificamente humano. Os próprios deuses têm as mesmas qualidades e defeitos de qualquer homem comum, diferenciando-se destes em apenas dois sentidos: primeiro, essas qualidades e defeitos ocorrem num grau muito maior, pois os deuses são mais poderosos que os humanos; segundo, os deuses são imortais. Além disso, sendo o comércio uma das formas básicas de relação entre os homens – e devemos lembrar aqui que os gregos eram um povo de comerciantes –, é o comércio também a forma básica de relação entre homens e deuses: os homens oferecem sacrifícios aos deuses e esperam destes, em retribuição, favores. Como consequência dessa visão do mundo, encontramos aqui a ausência de uma efetiva preocupação com a “natureza humana”, uma vez que essa natureza mesma não é diferenciada de forma clara. Pelo contrário, “homem” e “mundo” surgem aqui como dois elementos que se interpenetram a tal ponto que se tornam praticamente indistinguíveis. Essa indistinção e a consequente despreocupação de qualquer estudo que poderíamos denominar “antropológico” prosseguiria ainda, como veremos a seguir, no momento seguinte da história do pensamento grego, ainda que sobre bases completamente diferentes. 3.1.3.2 – Os primeiros pensadores É a partir do século 6º a.C. que surge na Grécia aqueles que chamamos de primeiros filósofos. Falar acerca deles nos permite, ao mesmo tempo, formularmos uma primeira visão geral do que chamamos de Filosofia. Desses primeiros pensadores não temos, em geral, mais do que pequenos fragmentos resgatados de obras de pensadores bem posteriores. No caso de Tales de Mileto, considerado o primeiro filósofo, não temos sequer uma linha de seus escritos, tendo sido perdido então, qualquer registro direto do seu pensamento. As únicas notícias que temos de Tales nos chegam por meio de comentários indiretos de pensadores que são bem posteriores a ele. Desse pouco que sabemos podemos, entretanto, reconstituir aquela que teria sido a ideia central do pensamento de Tales e que pode ser resumida na seguinte afirmação: “Tudo é água.” 69 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Nesta pequena frase encontramos de uma forma bastante clara dois elementos que são essenciais para o pensamento filosófico e cuja caracterização se torna ainda mais evidente se posta sob o pano de fundo das perspectivas mitológicas. Senão vejamos: o pensamento mitológico típico, como vimos muito resumidamente, surge como uma tentativa de explicação dos fatos do mundo mediante a atribuição da autoria desses fatos a entidades divinas moldadas à semelhança do homem. Enquanto isso a tentativa de explicação de Tales vai numa direção em tudo diferente. Primeiro, porém, esclareçamos: ao afirmar “Tudo é água” Tales pretende expor uma concepção segundo a qual todas as coisas do mundo – minerais, vegetais e animais, incluindo-se aí, naturalmente, o próprio homem – são formadas e, portanto, tem seu princípio fundamental na água. Como Tales supusesse que poderia ocorrer essa constituição de tudo o que encontramos no mundo a partir desse simples elemento, isso é algo que infelizmente não sabemos. O que precisa ficar bastante claro, porém, é que existe uma radical diferença entre essa tentativa de explicação e aquelas anteriores. Já não vemos mais aqui qualquer referência a uma divindade que seria a responsável pela manutenção do mundo, muito menos a uma divindade com quaisquer características humanas. Pelo contrário, estamos agora como que no polo oposto da explicação mitológica: se então os fenômenos naturais eram explicados a partir de uma projeção sobre eles dos processos do mundo social, agora as realidades do mundo social devem ser como que derivadas a partir de uma explicação cosmológica que, no caso de Tales, tem como princípio a água. Outros pensadores que lhe seguem proporão diferentes princípios; em todos eles, porém, essa tentativa de explicação se caracteriza, primeiro, por uma pretensão de abarcar a totalidade das coisas do mundo. Assim, a explicação de Tales, por exemplo, pretende não apenas explicar alguns fatos isolados do mundo, mas a totalidade deles. Em segundo lugar, temos ali uma busca de unidade, ou seja: buscar um princípio (seja este concebido como “água” ou de qualquer outra forma) implica que não apenas se quer explicar de uma forma genérica todas as coisas do mundo – sob um certo aspecto o pensamento mitológico já fazia isso –, mas, também, que se quer explicar tudo isso a partir de um princípio simples e único. Assim, por mais ingênua que a proposta de Tales possa soar aos ouvidos modernos, devemos ter claro que com ela se inaugura aquela forma de pensamento que nos acostumamos a denominar de racional. 3.1.3.3 – Sócrates Mais de um século depois de Tales de Mileto vamos encontrar na cidade grega de Atenas Sócrates, provavelmente o mais famoso nome não apenas da cultura grega, mas de toda a Filosofia. Tal como ocorre em relação a Tales, não temos nenhum registro escrito das doutrinas que Sócrates professava. Os motivos, porém, são bastante diferentes. Enquanto os escritos de Tales simplesmente perderam-se em algum ponto da História, de Sócrates não herdamos obra alguma porque este durante toda a sua vida recusou-se a registrar por escrito seus pensamentos, entre outros motivos, por desconfiar seriamente da validade filosófica 70 EaD Filosofia e Ética da palavra escrita. Ao invés disso, preferia sempre a utilização da conversação, do diálogo, da palavra viva e dinâmica. Em compensação, a figura e os ensinamentos de Sócrates foram brilhantemente descritos por um dos seus discípulos, o qual veio a se tornar tão famoso quanto o seu mestre: Platão. Este guardou de Sócrates a paixão pela dinâmica do diálogo mas, por outro lado, não quis renunciar a escrever suas obras. Procurou, então, um meio-termo; como resultado, praticamente todos os seus textos foram redigidos na forma de diálogos. Em muitos desses diálogos Platão fez de Sócrates o interlocutor principal e são eles que nos indicam o sentido e a dimensão do trabalho de Sócrates. E isso ocorre de uma forma tão profunda, aliás, que é muitas vezes impossível distinguir onde termina a contribuição histórica real de Sócrates e onde começa a de Platão. De toda forma, é certo que, com Sócrates, começa propriamente a Antropologia. O homem em suas muitas faces foi sempre o único interesse de Sócrates. Ali, então, já aparecem claramente diferenciados o reino de fenômenos naturais e a dimensão dos fenômenos humanos – onde encontramos o interesse de Sócrates. Lembremos que nem entre os pensadores da época mitológica, nem entre os primeiros filósofos essa diferença estava suficientemente clara. Na mitologia, o mundo natural se apresentava, de certa forma, como uma mera extensão do mundo humano, sendo governado por leis idênticas. Para os primeiros filósofos o homem é quase uma decorrência – ela mesma natural – do mundo natural; encontrada a chave de explicação do cosmos, o homem estaria imediatamente explicado. Em Sócrates a diferença que vai da explicação de um fenômeno natural, por exemplo, a chuva, até a investigação de questões especificamente humanas, como a Justiça, é evidente. Sócrates parece preocupar-se exclusivamente com questões desse último tipo. Platão também dedicou-se preferencialmente à investigação dessa dimensão, embora tenha escrito também textos nos quais se dedica a investigar questões cosmológicas. Aristóteles, o terceiro grande nome da Filosofia clássica grega e que foi aluno de Platão, se dedicará com igual intensidade seja ao estudo da natureza, seja ao estudo de temas como a ética e a política. Voltemos, porém, a Sócrates. Não é suficiente afirmar que o interesse de Sócrates é um interesse antropológico. O que realmente preocupa a Sócrates é a dimensão moral do homem. As questões que ele está sempre a colocar são do seguinte tipo: Que é a justiça? Que é a virtude? Que é o bem? A todos os pretensos sábios de sua época Sócrates dirigia estas questões. Atenção, porém, Sócrates formulava estas questões num sentido filosófico, o que implica, lembremo-nos, uma ideia de totalidade e uma ideia de unidade. Assim, se à pergunta “O que é a justiça?” alguém dá como resposta “pagar as dívidas devidas” Sócrates retrucaria, por exemplo, que “punir os malfeitores” é também um ato justo. Isso significa que a resposta à pergunta pela natureza da justiça deve abranger a todos os casos em que a justiça está em questão. Ainda mais: se a mesma questão fosse respondida da seguinte forma: “Justiça é pagar as dívidas devidas e punir os malfeitores”, com certeza isto ainda não satisfaria a Sócrates. A pergunta que ele imediatamente dirigiria a seu interlocutor seria algo do tipo: “Falas em pagar as dívidas devidas e punir os mal71 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin feitores; dize-me então o que há de comum entre esses dois atos tão diferentes entre si que permite identificar a ambos como atos de justiça.” Assim fica claro que uma resposta filosófica à questão “O que é a justiça” deve responder a duas exigências básicas: deve abranger a totalidade das coisas consideradas justas e deve, ainda, encontrar a razão de sua unidade. Há ainda um elemento que devemos considerar em relação ao mundo grego. É aí que nasce a forma de governo que denominamos democracia. São os gregos, também, os primeiros a se dedicarem de forma intensa, profunda e sistemática ao estudo da política. É do grego Aristóteles a clássica definição do homem como um “animal político”. Nesta afirmação múltiplas implicações estão imbricadas e, sobretudo, esta: o homem só se realiza plenamente e só pode ser compreendido de forma perfeita quando está inserido numa determinada sociedade. É ainda Aristóteles que afirma que um ser que não vive em sociedade é “uma besta ou um deus”, argumentando com isto que o viver em sociedade é uma característica essencial do homem e aqueles seres que vivem em condições diferentes estão acima ou abaixo da condição humana e, de qualquer forma, fora dela. Isto significa, finalmente, que a relação dos homens com a comunidade em que vivem é uma relação muito íntima; um homem faz parte de uma comunidade da mesma forma que um órgão faz parte de um corpo, isto é, é inseparável e incompreensível sem a referência à totalidade da qual faz parte. Assim a concepção grega de homem estará sempre ligada a uma compreensão do homem como parte de uma estrutura política que, afinal define esse homem. 3.1.3.4 – A Cristandade Nessa nossa rápida visão histórico-antropológica, daremos agora um salto de dez séculos para mergulharmos nesse período histórico que encontramos denominado nos livros de Idade Média e que abrange um período de cerca de mil anos, indo desde a invasão de Roma pelos bárbaros até o início do Renascimento italiano. A Idade Média é representada, muitas vezes, como um período no qual a História paralisou ou desandou e a cultura desapareceu. Costuma-se chamar esse período, às vezes, de “Idade das Trevas”. É bom, pois, que se diga logo que nada disso é verdade. O que ocorreu, mais simplesmente, é que com a queda de Roma, terminou o ciclo dos grandes impérios ocidentais, sendo estes substituídos por uma infinidade de pequenos reinos independentes política e economicamente. Com isto, é claro, a comunicação entre pontos diversos do mundo europeu tornou-se mais difícil, e as atividades em geral sofreram uma espécie de desaceleração. O comércio tornou-se obviamente muito mais difícil, pois não era raro que tais pequenas unidades políticas entrassem em conflito pelos mais diversos motivos; além disso, o trânsito através deles deveria pagar tributo a qualquer duque ou barão pelas terras de quem esse trânsito se efetuasse. Com isso, a base econômica predominante passou a ser a agricultura praticada de forma independente por cada reino ou feudo. Com uma tal desestruturação 72 EaD Filosofia e Ética poder-se-ia esperar logicamente que a própria cultura como um todo e o tesouro espiritual da humanidade até então acumulado fosse fragmentado, dispersado e, afinal, perdido. Isso, entretanto, não ocorreu por pelo menos dois bons motivos: em primeiro lugar, porque, como já afirmamos anteriormente, a desestruturação social e política não foi tão completa como se pretende algumas vezes; em segundo lugar – e fundamentalmente – porque nesse período existia uma grande e poderosa instituição que ligava sub-repticiamente boa parte da Europa de então. Essa instituição tinha forças suficientes para manter um certo nível de organização e um trânsito cultural relativamente ordenado no meio do caos que então se instalava na Europa. Referimo-nos, é claro, à Igreja cristã. Em mosteiros, conventos, abadias e outros tantos centros de devoção religiosa, bibliotecas contendo muitas obras da Antiguidade foram preservadas da aniquilação e do esquecimento absoluto. Além disso, muitos dos grandes religiosos medievais, alguns dos quais foram mais tarde santificados pela Igreja foram também grandes pensadores e eruditos. De um modo geral os pensadores cristãos não produziram obras que introduzissem novidades radicais em relação ao que os grandes pensadores gregos já haviam feito; limitaram-se, via de regra, a um trabalho de interpretação dos autores clássicos. Os maiores entre os filósofos medievais tomaram a si uma tarefa que consideravam fundamental: adaptar a Filosofia clássica – primeiro Platão, depois Aristóteles – aos limites e às necessidades teóricas da teologia cristã. Nem só a repensar os autores antigos, no entanto, dedicaram-se os autores medievais. Ocorre que, com o advento da religião cristã, uma nova dimensão do homem passou a ser tomada como essencial e, com isso, passou a receber a atenção de vários pensadores. Se os antigos se interessavam expressamente pela dimensão política e social do homem, vislumbrando-o como “cidadão” e interessando-se, então, basicamente pelo comportamento moral do homem na cidade, aos cristãos interessava uma dimensão mais oculta e subjetiva da alma humana: algo que denominaríamos de “interioridade”. Isso ocorre na medida em que noções como a de “pecado” ou “fé” fazem referência a uma dimensão do espírito humano que se constitui numa espécie de “foro íntimo”, dimensão esta que os antigos não viam como um problema a ser resolvido, uma vez que toda a questão espiritual se colocava imediatamente como um problema moral a ser equacionado em parâmetros políticos. É nesse ponto que encontramos uma das grandes fontes de originalidade do pensamento medieval. O homem já não é mais entendido unicamente desde o ponto de vista político, enquanto cidadão, mas é visto, também, como membro de uma comunidade celestial de almas. Assim, podemos resumir da seguinte forma o que se passa nesse período: a herança filosófica da Antiguidade é preservada, retomada e adaptada ao universo cristão ao mesmo tempo, recebe um impulso na direção da interioridade. Devemos ter cuidado, entretanto, em não confundirmos interioridade com individualidade. Lembremo-nos de que a religião cristã propõe uma alma imortal indissoluvelmente ligada a Deus. O grau de originalidade que pode ser assumido deve restringir-se a uma interpretação das escrituras e dos autores consagrados pela Igreja. Recordemo-nos, ainda, que a imensa maioria trabalhadora da época está ligada economicamente a terra na qual trabalha e por meio dela ligado 73 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin politicamente ao senhor feudal ao qual deve obediência. Vemos então que os homens de então eram duplamente dependentes: seu corpo pertencia ao seu senhor, em defesa do qual tinham a obrigação de entregar a própria vida; sua alma pertencia a Deus e à Igreja. Noções que hoje nos são comuns, como as de “liberdade” e “individualidade”, eram então completamente estranhas; seu surgimento na História está ligado a uma revolução de vastas proporções que nos levou ao período histórico que denominamos de Modernidade. 3.1.3.5 – A Modernidade No início do século 16 uma série de mudanças de grande porte ocorreu no mundo europeu. Tais mudanças afetaram todos os campos: a moral, a religião, a arte, a ciência, a Filosofia, a economia, a política. Todas estas mudanças estão, naturalmente, interligadas. São, entretanto, conhecidas por diferentes nomes. Assim, as mudanças profundas na estrutura religiosa iniciadas nos estados germânicos são conhecidas por Reforma Protestante e a reação a estas mudanças deu origem à Contrarreforma Católica. A grande impulsão que conheceram as artes, notadamente na Itália, são identificadas como Renascimento. Na Economia, o capitalismo deu seus primeiros passos, enquanto a descoberta e colonização da América dá origem ao sistema comercial do Mercantilismo. A ciência, tal como a entendemos, dá seus primeiros passos com Bacon e se afirma definitivamente com Newton. Na política assistimos à decadência do feudalismo e à ascensão dos primeiros Estados nacionais. A Filosofia liberta-se enfim do jugo do cristianismo que a utilizara durante mil anos como serva. O Discurso do Método de Descartes é um brado contra toda submissão à tradição e ao respeito sagrado que sempre cercara os textos de autores consagrados pela Igreja, como Aristóteles. Abrem-se as portas para a originalidade e a palavra de ordem passa a ser o “Ousa Saber!” Toda essa série de mudanças implicou uma profunda e ampla caracterização da natureza humana. É nesse momento histórico que surgem as noções de “indivíduo” e de “sujeito”. A primeira dessas encontra lugar desde que, com o fim do sistema feudal e da vinculação direta do homem a terra na qual ele trabalha, tem início um processo de independentização dos homens dos fortes laços que os ligavam aos senhores feudais. Ao mesmo tempo, com a perda do poder de influência da Igreja, a noção de “comunidade”, tão presente em toda a Idade Média, é substituída pelo espírito de competitividade e de valorização do empreendimento individual típicos do período inicial do capitalismo. Todos estes fatores conduzem à formação de um novo homem. Este tem uma noção totalmente nova acerca do mundo, de sua relação com este e com os demais homens. Este novo caráter ficará mais claro se notarmos que é a esta época que remonta à criação da “História” como disciplina e perspectiva de estudo do homem. Lembramos que, em toda a Antiguidade sempre houve uma total falta de perspectiva histórica, essa noção que hoje nos é tão comum. Estamos acostumados a representar a nossa sociedade e nosso modo de vida como um 74 EaD Filosofia e Ética período particular de uma longa série de mudanças levadas a cabo pela humanidade ao longo do tempo. Ora, esta visão encontra sua origem exatamente no início da época moderna. Com a perspectiva histórica, dois elementos centrais foram incorporados na visão que o homem tem de si mesmo e de seu mundo: em primeiro lugar, aprendemos a relativizar a própria sociedade e sua época; com isto reconheceu-se que os valores morais e os costumes os quais estamos acostumados a considerar como normais não são absolutos, mas devem ser colocados em seu devido lugar. Em segundo lugar, ao mesmo tempo em que isto ficou claro, isto é, em que ficou evidente que o mundo se transforma ao longo do tempo, ficou igualmente evidente que é o próprio homem o agente dessa mudança, o sujeito responsável por essa transformação. Toda essa série de mudanças a que aqui fizemos menção moldaram o homem moderno e o mundo que conhecemos. A ciência, a visão histórica, as artes e a moral tais como as conhecemos, foi aí que receberam a direção que hoje em dia apresentam. O caminho que conduziu desse direcionamento inicial até os dias de hoje não foi, entretanto, sem acidentes ou equívocos. Esta, porém, já é uma outra história. Seção 3.2 O que é o Homem?3 Celso Eidt 4 SÓCRATES 4 É durante a crise ateniense da segunda metade do século 5º a.C. e em meio ao movimento sofista que surge a figura de Sócrates, um dos expoentes da Filosofia clássica. Texto publicado em primeira versão em: Schneider, Paulo Rudi (Org.). Introdução à Filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí, 1995. p. 120-140. 3 Retirantes – Cândido Portinari. Fonte: <http://www.proa.org/exhibiciones/pasadas/portinari/salas/ portinari_retirantes.html>. 4 75 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Segundo Werner Jaeger, “Sócrates proclama o evangelho do domínio do homem sobre si próprio e da “autarquia” da personalidade moral”.5 A ideia da personalidade moral, introduzida por Sócrates, é certamente a base da ética e do Direito da civilização ocidental. A interioridade (alma = sopro de vida) passa a ser a verdadeira dimensão por onde se manifesta a grandeza humana. A interioridade converte-se em esfera definidora da ação humana conforme a virtude e baseada nos valores do justo e injusto. O indivíduo é valorizado a partir do preceito délfico do “conhece-te a ti mesmo”. O conhecimento da interioridade é a condição da verdadeira sabedoria e esta leva à verdadeira virtude. O desenvolvimento das faculdades intelectuais como condição para a vida virtuosa é um ponto chave para a compreensão do homem grego. A virtude grega tem na sabedoria da “alma” sua base de ser. Neste sentido Werner Jaeger pôde identificar em Sócrates uma personalidade cujas atitudes estão acima de seus ensinamentos.6 Agnes Heller na mesma ótica, considera que “Os ensinamentos e a vida de Sócrates são uma só coisa”.7 PLATÃO O homem para Platão, é essencialmente alma8 e a política é a arte por meio da qual a alma chega a sua realização. A atividade humana se ordena a partir da realidade do mundo das ideias. O mundo das ideias, ao qual a alma é congênita, explica no homem a vida da alma, na sua condição terrena. Isto se deve ao fato de a alma permanecer ligada ao mundo das ideias pela reminiscência. A alma é complexa e se estrutura em três dimensões: a dimensão racional, a irascível e a volitiva, e cada uma dessas partes é regida por sua virtude própria. A virtude da parte racional da alma é a sabedoria, da parte irascível a coragem e a parte volitiva a moderação. Os três graus da alma encontram-se, por natureza, nos homens em dimensões diferentes. Há aquela classe de homens que personificam o desejo. São as almas inquietas e ávidas que buscam bens materiais; cobiçam luxo e prazeres. São as chamadas almas de bronze a cujos portadores Platão atribui na República a tarefa de prover as necessidades materiais de todos os membros. Platão também concebe uma classe de homens que nascem com a parte irascível da alma mais desenvolvida. São homens que se caracterizam pelo sentimento de coragem e que buscam acima de tudo a vitória na luta. Sua alma de prata os Jeager, Werner. Paidéia, p. 353. 5 Jeager, Werner. Paidéia, p. 317. 6 Heller, Agnes. Aristoteles y el mundo antigo. Barcelona: Ed. Península, 1983. p. 38. 7 “... alam significa, para os gregos, vitalidade, e o homem participa da vitalidade, vive a partir dela. Nesse sentido, o homem é alma a medida que participa de uma vitalidade que o transcende” (Oliveira, Manfredo A. de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993). 8 76 EaD Filosofia e Ética torna mais lutadores que ambiciosos. Orgulham-se mais do poder do que das posses. A essa classe de homens Platão atribui, na República, a tarefa da guarda, da segurança de toda comunidade humana. Há, enfim, os homens com alma de ouro. Estes se caracterizam pelo poder da razão, do pensamento e da sabedoria. Seu papel consiste em governar a República. Assim percebemos que Platão estrutura a República com base na estrutura da alma humana. Em certo sentido o homem é “... uma micro-pólis e a pólis um macro-homem, enquanto realização e atualização de suas potencialidades”.9 O Estado é o que é porque seus cidadãos são o que são. O Estado, a pólis, é constituída segundo a natureza humana. Quando os homens melhoram, a pólis se aperfeiçoa. Entre as várias artes que Platão perspectiva na República política é a arte por excelência. A política é a arte por excelência porque é autoprodutora do homem. Se a característica das demais artes é produzir um determinado bem, uma obra, a arte política tem a característica de fazer coincidir a virtude do desempenho com a virtude da obra. A arte política é assim a arte suprema, porque se utiliza de todas as demais artes e lhes serve, ao mesmo tempo, de fundamento avaliativo. A arte política visa ao bem enquanto tal. O bem enquanto tal só pode ser captado pela atividade racional que é a atividade da reflexão filosófica. Assim Platão atribui a melhor arte – a política – ao melhor homem, que é o filósofo. O propósito é claro: alcançar a harmonia e a justiça. A razão possibilita ao homem perceber o mundo de forma ordenada e justa. A política tem como função organizar a vida humana com normas racionais e justas. A tarefa de ordenar a cidade com base na justiça cabe ao filósofo precisamente porque este tem a propriedade de se elevar acima do mundo das formas sensíveis e contemplar pelo uso do logos, o mundo das ideias, que é o mundo essencial do qual toda forma sensível é uma cópia perfeita. Platão observa que a alma conhece as ideias no mundo transcendente antes do nascimento e que conhecimento efetivo da realidade não é, portanto, senão uma reminiscência do que a alma tem visto antes de seu nascimento. Atribuir a atividade política enquanto atividade humana por excelência, aos homens sábios, não é um acaso; há, em Platão, uma preocupação básica em unir o saber e a política. Converter os governos em filósofos ou elevar os filósofos ao governo, esta é a perspectiva de Platão. Na base desta pretensão temos uma concepção de sabedoria, comum aos pensadores gregos. Ser sábio é ser bom; ou seja, a sabedoria da alma leva à virtude. Oliveira, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. p. 49. 9 77 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Como a atividade política, que é a arte do filósofo rei, pode ser justa? A justiça consiste em organizar a vida política da melhor maneira possível, de forma que cada homem ocupe na sociedade o lugar que lhe compete por natureza. A justiça está ligada à igualdade, mas os homens são diferentes por natureza com base em suas próprias almas. Logo, justiça significa possibilitar o desenvolvimento das capacidades do indivíduo de maneira proporcional ao desenvolvimento das capacidades dos outros. ARISTÓTELES Segundo Lima Vaz: O centro da concepção Aristotélica de homem é a physis, mas animada pelo dinamismo teleológico da forma que lhe é iminente, o que como forma ou eidos é o seu núcleo inteligível.10 Aristóteles situa na natureza o telos, que é o fim do ser e do agir do homem que Platão situava no mundo das ideias. Enquanto portador de alma, o homem é um ser natural, mas é mais que um ser meramente natural; ele se distingue dos outros seres da natureza em virtude da razão. A racionalidade é o elemento que diferencia e peculiariza o homem. O logos proporciona ao homem a capacidade de falar e discorrer, o que lhe permite entrar em relação com outros homens e instaurar a comunidade política. O homem tem em comum com os animais a voz e esta pode indicar os sentimentos de dor e prazer; mas a fala é peculiar ao homem. A fala possibilita ao homem indicar o conveniente e o inconveniente e estabelecer o justo e o injusto. Nas palavras do próprio Aristóteles: A característica específica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade.11 O homem, pelas qualidades morais que lhe são peculiares, tem a capacidade de se constituir enquanto ser político. O homem é, por natureza, um animal político, dirá Aristóteles (Zôon politikón). Como animal político apenas a vida política (bios politikós) expressa a plenitude do ser do homem. A natureza de qualquer ser revela-se quando o mesmo chegar ao grau final de seu desenvolvimento. Vaz, Henrique C. L. Antropologia filosófica I. p. 39. 10 Aristóteles. A política. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 15. 11 78 EaD Filosofia e Ética Assim a comunidade política não é uma invenção arbitrária ou artificial que rompe com a natureza humana, mas, ao contrário, é a plenificação do animal político. A cidade, ou comunidade política, resulta da continuidade natural da comunidade familiar e do povoado, que são pré-políticos e unicamente com base nas necessidades diárias. A cidade tem como tarefa não apenas assegurar a vida de seus membros, mas igualmente lhes proporcionar uma vida melhor. Uma vida melhor que a cidade possibilita por ser o estágio final da comunidade humana e enquanto tal ser autossuficiente. O indivíduo humano, quando tomado isoladamente, não é autossuficiente, ele apenas encontra resposta para sua condição de animal social na pólis, para a qual naturalmente se sente impulsionado. Enquanto parte, o indivíduo se completa como um todo na vida social que a comunidade política garante. A comunidade política, como autossuficiente, tem precedência sobre as partes. Não existem, na concepção aristotélica de homem, interesses privados colocados acima dos interesses coletivos. A comunidade e suas finalidades estão acima dos indivíduos e seus interesses. Do ponto de vista ético a comunidade política, mais do que qualquer comunidade, visa ao bem: o bem consiste em ordená-la segundo a justiça. A justiça é a base da sociedade, e quando aplicada garante a ordem e a felicidade da comunidade humana. Aristóteles assegura que “A felicidade é o melhor, mais belo e mais agradável dos bens...”12 Há uma relação direta entre ético e político também em Aristóteles, de forma que o pensamento grego, distinto do pensamento político moderno, opera com paradigma próprio. Ética e política são assim, para Aristóteles, como tinham sido para Sócrates e Platão, e assim eles se fazem intérpretes de uma das características mais profundas do homem grego – o campo por excelência onde se manifesta a finalidade do homem coroada pelo exercício da razão ou definida pela 13 primazia do logos. HOMEM MEDIEVAL O período conhecido como Idade Média operou profundas mudanças em todas as dimensões da vida humana. Tanto a vida econômico-social quanto a produção e a vivência cultural diferenciam-se essencialmente da sociedade grega. Na base do pensar e agir do homem da sociedade medieval situa-se a doutrina do cristianismo, ou a concepção cristã de mundo; esta ocupa gradativamente todas as dimensões da existência humana. Aristóteles. Ética e Nicômacos. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2005. p. 27. 12 Vaz, Henrique C. L. Antropologia filosófica I. p. 42. 13 79 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin No campo da Filosofia Santo Agostinho revela-se a primeira expressão da nova concepção de mundo do homem. A concepção agostiniana é resultado da retomada e reinterpretação das ideias de Platão a partir da ótica dos escritos bíblicos e da teoria da criação. O fundamento da concepção de homem em Santo Agostinho é a tese de que o homem foi criado por um ser poderoso, mantendo com este uma relação essencial, fundada na existência paradisíaca. Com Adão, porém, o homem rompeu a relação com a essência divina. O homem decaiu. A queda trouxe como uma de suas consequências o obscurecimento do poder original da razão humana. O homem, com a razão obscurecida, não mais encontra, com as próprias forças, o caminho de retorno à unidade perdida. Apenas a graça divina pode reconduzir o homem a sua essência primeira. O homem, concebido como ser depravado, já não é sujeito de seu próprio destino, mas este depende de uma graça especial da divindade. O percurso da vida do cristão resume-se na vivência em busca da unidade original, que só será alcançada após a morte, quando então a alma, já sem o cárcere do corpo, retorna à essência divina. Esta concepção mitológica de homem e de mundo interfere diretamente no valor que se atribui à existência humana. A vida humana perde o valor e o sentido em si para se converter num meio, que tem sua finalidade fora da vida real. O homem cristão volta-se ao mito da divindade e vive em função desta ilusão, crendo alcançar, por meio de uma vida abnegada e servil, a prometida graça de uma vida eterna, num mundo paradisíaco transcendente. Como o destino e o fim último da vida humana é o mundo transcendente, tudo que é terreno e humano é valorizado apenas na medida em que venera seu “criador” ou se volta à glorificação de Sua obra. Deus sendo tudo, o homem só pode ser o nada. As atividades humanas em geral, como o trabalho, a política, a arte, a Filosofia, etc., voltam-se a Deus e convertem-se em servos da teologia. A Bíblia passa a ser o grande livro da verdade, diante do qual os filósofos e teólogos cristãos se ajoelham para que o saber lhes seja revelado. A inversão operada na concepção de mundo e de homem trouxe como consequência uma paralisação no progresso humano em geral. O homem e a sociedade avançam a passos lentos. A Idade Média é conhecida como período histórico pouco fértil para o desenvolvimento cultural da humanidade. É um período obscuro e nebuloso, bem distinto da vitalidade e luminosidade da cultura clássica. O HOMEM DO RENASCIMENTO As bases da sociedade cristã-feudal começaram a ser abaladas pelo movimento social global conhecido como Renascimento. O Renascimento (período histórico que abrange os séculos 14, 15 e 16, principalmente na Itália) é o primeiro passo de um processo histórico longo e que opera profundas mudanças em todas as esferas da sociedade. 80 EaD Filosofia e Ética O Renascimento, portanto, não se caracteriza apenas como movimento cultural, artístico-filosófico, como geralmente se pensa; o seu conceito ... significa um processo social total, estendendo-se da esfera social e econômica onde a estrutura básica da sociedade foi afetada até ao domínio da cultura, envolvendo a vida de todos os dias e as maneiras de pensar, as práticas morais e os ideais éticos cotidianos, as formas de consciência religiosa, a arte e a ciência.14 No campo econômico-social o Renascimento pode ser definido como a aurora do capitalismo, cujos primeiros passos se deram no próprio seio do mundo feudal. Pela produção econômica os homens buscam alcançar a riqueza material. As manufaturas aumentam a produção, o comércio se amplia e novas relações humanas se estabelecem. As primeiras formas de forças produtivas capitalistas e das relações sociais burguesas surgiram a partir do desenvolvimento imanente do feudalismo; à medida que gradualmente corroíam e dissolviam este último, os homens encontraram-se muito simplesmente numa nova situação, em que eram forçados a atuar, sentir o pensar sobre o mundo e sobre si próprios de maneira diferente da habitual nas comunidades dadas naturalmente, característica do sistema dos domínios feudais.15 A maneira de viver do homem renascentista revela uma gradual dissolução dos laços naturais que ligavam os homens à família, à tradição, à comunidade, à estrutura social global, que lhes conferiam um lugar predeterminado e fixo na sociedade. A hierarquia e a estabilidade social aos poucos foram dissolvidas, o que proporcionou a abertura de espaços novos em que as relações sociais se tornaram mais fluidas. Sem uma ligação natural com a comunidade e sem uma existência definida por laços de sangue, tradição ou posição social, o indivíduo encontra o espaço social dinâmico a partir do qual pode desenvolver suas potencialidades. O indivíduo passa a escolher seu próprio destino dentro de uma dinâmica social com possibilidade quase infinita. O Renascimento cria, portanto, o conceito de homem dinâmico. O indivíduo passa a ter a sua própria história de desenvolvimento pessoal, tal como a sociedade adquire também a sua história de desenvolvimento. A identidade contraditória do indivíduo e da sociedade surge em todas as categorias fundamentais. A relação entre o indivíduo e a situação torna-se fluída.16 Heller, Agnes. O homem do renascimento. São Paulo: Presença, 1982. p. 9. 14 Idem, ibidem. p. 12. 15 Idem, ibidem. p. 9. 16 81 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin No campo da Filosofia há, de um lado, um retorno aos clássicos da cultura greco-romana, e de outro lado, um retorno do homem a si e a sua realidade social. O retorno aos clássicos e a sua releitura se fez acompanhar de um espírito crítico em relação à interpretação que a tradição oficial fizera das mesmas e impusera às universidades. O retorno do homem a si se fez acompanhar de um gradual afastamento da concepção cristã de homem. Este renasce como centro de preocupação, como objeto de interesse filosófico, científico, político, artístico, etc. Este passa a compreender como ser racional que dispõe de todas as condições para construir seu próprio destino. Ou seja, no lugar do artífice transcendente que conduz a vida humana, o homem cobra a si mesmo como artífice. Diante da concepção cristã do homem como ser decaído e degenerado, o Renascimento coloca a ideia de dignidade do homem. Mirandola escreve um discurso sobre a dignidade humana no qual considera o homem o espetáculo mais maravilhoso do universo. O homem, criado pela divindade como “ótimo artífice”, foi constituído por uma natureza indefinida. Ao homem não foi concedido nenhum lugar em especial, não foi imposta nenhuma tarefa específica, precisamente para que pudesse obter tudo com base no próprio querer, na decisão livre. Dispondo das “sementes de toda a espécie dos germens de toda a vida”17 o homem pode cultivá-las e fazer crescer conforme sua livre decisão. Assim, a dignidade do homem é tamanha que este se assemelha muito mais à divindade do que à besta, desde que desenvolva a razão filosófica e por meio desta investigue as causas dos processos da natureza, bem como os fundamentos do universo e do homem. O homem do Renascimento toma consciência do seu poder criativo e autocriativo. Ficino escreve: Quem pode negar que o homem possui quase o mesmo gênio do criador dos céus? E quem pode negar que o homem também poderia criar de algum modo os céus, se pudesse obter os instrumentos e o material celeste, dado que mesmo hoje ele os cria, embora com um material diferente, mas com uma ordem bastante semelhante?18 Também Nicolau Maquiavel concebe o homem em sua grandeza e excelência terrena, repleta de potencialidades e capacidade criativa. Na potencialidade do homem existe tudo, à sua própria maneira. Na humanidade tudo é humano – tal como no universo tudo se desenvolve universalmente. O mundo existe aqui como um mundo humano... Nada impõe limites à atividade criativa da humanidade, exceto a própria humanidade.19 Maquiavel apud Heller. Idem, ibidem. p. 44. 17 Ficino, apud Heller, idem, ibidem. p. 67-68. 18 Heller, Agnes. O homem do renascimento. São Paulo: Presença, 1982. p. 355. 19 82 EaD Filosofia e Ética Giordano Bruno, um dos mais entusiasmados defensores dos novos tempos e, em especial, da descoberta de Copérnico, não se assusta diante das dificuldades que o avanço da ciência traz ao homem. Porque o homem é um ser infinito, é uma ofensa à Causa Infinita pensar o homem como limitado. O homem tem o poder não apenas de trabalhar de acordo com a ordem normal da natureza, mas inclusive de ultrapassar as leis naturais criando uma nova natureza. A propensão das capacidades intelectuais cria dificuldades e necessidades sociais, mas estas igualmente estimulam a mente humana. Os homens inventaram os ramos da indústria e descobriram as artes, até que hoje, sob o aguilhão da necessidade, invenções cada vez mais prodigiosas saem dia-a-dia da profundidade da mente humana ... Não nos admiremos com as injustiças e iniquidades que cresceram lado a lado com as aspirações do homem ao bem...20 O novo discurso da grandeza e da dignidade do homem típico da Filosofia humanista do Renascimento entra em conflito com a tradição escolástica, como mostra a seguinte polêmica entre Manetti e o Papa Inocêncio III. Inocêncio III em seu livro Da Miséria da Vida Humana assim se dirige ao humanista Manetti: Tu, homem, andas pesquisando ervas e árvores; estas produzem flores, folhas e frutos, e tu produzes lêndeas, piolhos e vermes; daquelas brotam azeite, vinho e bálsamo; do teu corpo, catarro, urina e excremento”. Manetti, por sua vez, responde da seguinte forma a Inocêncio III. Os frutos do homem não são constituídos por essas matérias sujas, mas pelas obras de sua inteligência e de sua criação criadora, para as quais ele nasceu como integrador e aperfeiçoador da natureza, através de suas artes e inventos. Nossas, quer dizer, humanas, são todas as casas, os castelos, as cidades, os edifícios da terra. Nossas, as pinturas, as esculturas, a sabedoria. Nossos, finalmente, os mecanismos admiráveis e quase incríveis que a energia, o esforço e o engenho humano (dir-se-ia, antes, divino) conseguiram produzir e construir por sua singular e extraordinária indústria.21 A exaltação da grandeza humana certamente foi um dos traços mais significativos da cultura renascentista em ruptura com a concepção cristã medieval de homem. O mesmo movimento cultural que louva a grandeza humana, no entanto, descobre com Copérnico a insignificância do homem diante do universo. Com a descoberta do heliocentrismo a Terra deixa de ser pensada como centro fixo do mundo, rodeado pelo céu coberto de luzes celestes. Descartes e sua concepção de homem. p. 17. 20 Idem, ibidem. p. 17-18. 21 83 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin A consciência da pequenez humana diante da amplitude do cosmos pode ser identificada na seguinte citação de Montaigne: Quem o autoriza a pensar que o movimento admirável da abóbada celeste, a luz eterna dessas tochas girando majestosamente sobre suas cabeças, as flutuações comoventes do mar de horizontes infinitos, foram criados e continuam a existir unicamente para sua comodidade e serviço? Será possível imaginar algo mais ridículo do que essa miserável criatura, que nem sequer é dona de si mesma, que está exposta a todos os desastres e se proclama senhora do universo? Se não lhe pode conhecer ao menos uma pequena parcela, como há de dirigir o todo?22 Cabe ainda ressaltar que o Renascimento como “aurora do capitalismo”, mereceu igualmente críticas de ordem econômico-social. Os novos tempos gestaram novas relações na esfera coletiva e social, repleta de contradições. A propriedade privada começou a se afirmar e a dinamizar a vida humana. A acumulação de capital e a exploração do trabalho revelam uma nova realidade que causa profunda impressão nos cérebros mais sensíveis à problemática humana. É o caso de Thomas Morus, que com sua Utopia perspectiva um ideal de sociedade plenamente harmonizada. Na Utopia Morus tece críticas duras à realidade da sociedade inglesa da época e aponta um modelo social perfeito em que todas as carências humanas possam ser satisfeitas. Na Utopia de Morus a perspectiva humana máxima é a liberdade; esta é resultado de uma vida produtiva limitada a seis horas de trabalho diário e conforme a inclinação pessoal, em consonância com um vasto tempo dedicado ao descanso. Da mesma forma Campanella responde à problemática do homem da época. Após articular e organizar uma sublevação com o propósito de libertar a Itália do domínio espanhol, Campanella é encarcerado e na prisão escreve a Cidade do Sol. Trata-se de uma sociedade ideal, fundada na prosperidade e na unidade do gênero humano. Na cidade ideal de Campanella a propriedade privada é eliminada e submetida à utilidade coletiva. Os homens trabalham quatro horas diárias e depois se dedicam à arte e às Ciências buscando aplicá-las a todas as finalidades, ou seja, em Campanella há uma preocupação em promover o desenvolvimento global do homem, num momento histórico em que a fragmentação começa a se impor. DESCARTES As reflexões sobre o homem moderno e sua nova realidade encontram no próprio fundador da Filosofia moderna seus primeiros traços básicos. Montaigne. Ensaios. Livro II. Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2005. p. 182. 22 84 EaD Filosofia e Ética Descartes é conhecido como o fundador do racionalismo, movimento filosófico que aposta na razão humana. A razão confere grandeza e dignidade ao homem. O homem é senhor e possuidor da natureza, pode conhecê-la e transformá-la. É a subjetividade, o eu que determina o outro-de-si, faz dele objeto seu. Segundo Lima Vaz, a concepção racionalista de homem se sustenta em duas linhas básicas: a) a subjetividade do espírito como res-cogitans e a consciência-de-si; b) a exterioridade (concebida mecanisticamente) do corpo com relação ao espírito.23 O espírito separa-se do corpo precisamente para melhor conhecer e se apropriar do mundo. O corpo humano está integrado como res-extensa ao universo máquina. O corpo assemelha-se a uma máquina, em que as funções seguem as disposições dos órgãos como o faz o relógio ou qualquer autômato. A máquina corpo encontra o princípio de seu movimento no próprio sangue e nos “... espíritos agitados pelo calor do fogo que queima continuamente em seu coração...”24 O corpo humano, na concepção cartesiana, assemelha-se a um modelo técnico caracterizado externamente pela cor e pela configuração dos membros e internamente pelas peças que são necessárias para pô-lo em movimento, fazê-lo alimentar-se e respirar. Assim como a máquina é autônoma e se move a si mesma, também o corpo o é. O corpo é perfeitamente explicável a partir do paradigma do físico. O corpo humano é integrado no conjunto dos artefatos e das máquinas e só a presença do espírito, manifestando-se sobretudo na linguagem, separa o homem do animal máquina.25 O espírito, res-cogitans, é explicado a partir de uma concepção metafísica, sustentado pelo método que propõe regras para a direção do espírito. O espírito manifesta sua existência na evidência do cogito. O cogito inaugura uma nova relação do espírito com o mundo. O homem é senhor e possuidor da natureza. A razão interpreta-se agora como capacidade do homem, que assim se torna sujeito, de impor-se ao mundo e manipulá-lo.26 O pensar enquanto fundador do sujeito, todavia, é produto da dúvida. A dúvida cartesiana quer evitar precipitações e se precaver dos enganos. Os sentidos podem enganar. As razões dos outros muitas vezes enganam. Tudo é duvidoso. Em meio a dúvida geral surge a primeira certeza: quem duvida está pensando e quem pensa existe. Vaz, Henrique C. L. Antropologia filosófica I. p. 82. 23 Marques, Jordino. Descartes e sua concepção de homem. p. 45. 24 Vaz, Henrique C. L. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1993. p. 84. 25 Oliveira, Manfredo A. Ética e sociabilidade. p. 130. 26 85 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Eu penso, eu existo é a proposição primeira e mais certa que se apresenta àquele que conduz por ordem seus pensamentos.27 Assim, pela certeza do cogito ergo sum Descartes afirma o homem como sujeito, como artífice de sua própria história. A realidade humana se afirma enquanto subjetividade criadora do ser. HOBBES Thomas Hobbes, filósofo empirista inglês e contemporâneo da Revolução Burguesa na Inglaterra instaura um novo paradigma de natureza humana, completamente oposta à concepção aristotélica do homem. Para Hobbes o homem é mau por natureza. “O homem é o lobo do homem: que por natureza se encontra em estado de guerra onde a luta é de todos contra todos”. O paradigma hobbesiano de homem nega a socialidade enquanto traço natural do homem. O homem é movido pelo egoísmo que consiste em um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder que só termina com a morte. O ponto de partida da concepção de homem em Hobbes é a igualdade. A igualdade se dá pelo desejo de lutar pela conservação da própria vida e causar um ao outro o maior dano possível, que é a morte. Os homens com forças e capacidades iguais lutam pela preservação da própria vida e o fazem numa relação de confronto, que resulta na guerra e destruição do outro. A vida humana tornase embrutecida, solitária e curta; o estado de natureza encontra-se ameaçado, colocando em risco a sobrevivência da espécie humana. Diante da ameaça da destruição, o instinto de conservação apóia-se na razão humana, que por sua vez pode levar à paz. A paz resulta da instauração de um contrato, que consiste numa transferência mútua de direitos, firmados pelo pacto de cumprir as cláusulas do contrato. O pacto introduz, portanto, o homem numa ordem moral, que se funda na máxima de que ninguém faça aos outros o que não gostaria que não lhe fizessem. O pacto social que Hobbes propõe não é, portanto, produto de uma sociabilidade natural dos homens; o pacto da convivência pacífica é muito mais uma resposta da razão para garantir a sobrevivência e conservação da espécie humana. Apenas a ameaça à conservação da vida leva o homem a fundar a sociedade. Logo, a socialidade não é consequência natural do dever do ser humano, mas sim uma instituição artificial que se impõe ao homem como medida necessária à convivência. Descartes apud Marques. Descartes e sua concepção de homem. São Paulo: Loyola, 1993. p. 76. 27 86 EaD Filosofia e Ética Os críticos de Hobbes em geral entendem sua concepção de homem como expressão do nascente indivíduo burguês, o tipo de homem que goza de plena autonomia e liberdade na esfera civil. O indivíduo burguês – o novo rico em confronto com outros ricos – começa a construir sua propriedade com o desenvolvimento da indústria e do comércio e vem conquistando seu espaço no mercado. A sociedade civil na qual se desenvolvem as relações econômicas e sociais, em que a competição é a alma que anima, é concebida por Hobbes como a “guerra de todos contra todos”. O pacto social que Hobbes perspectiva no Leviatã não torna os homens sociáveis, mas apenas os articula com base num poder maior, forte o suficiente para garantir a conservação da espécie humana. ROUSSEAU Embora partindo de ideias do homem em estado de natureza, Rousseau não partilha da tese de que a natureza humana é má ou egoísta. Os homens não são inimigos por natureza, mas são naturalmente bondosos. Na base do conflito humano, quando este acontece, situa-se a propriedade privada; esta é a fonte geradora de atritos entre os homens. Se há um estado de guerra, este é produto da relação entre as coisas e não entre os homens. Como em estado de natureza não há propriedade privada, a guerra originada pela propriedade também não reflete o estado de natureza. Rousseau define a guerra como uma relação de Estado a Estado, na qual os homens particulares tornam-se inimigos apenas por acidente. Com essa ideia Rousseau se contrapõe às concepções que defendem de alguma forma o direito à escravidão. Em nenhum momento o escravo pode ser produto da guerra, porque esta não é uma relação de homem a homem. A guerra não concede nenhum direito que não seja necessário a seus fins, e os fins nunca são particulares; logo, para os particulares nenhuma consequência pode resultar após o fim da guerra da qual participam. Em Rousseau o homem é definido como livre e igual por natureza. Renunciar à liberdade equivale a renunciar à própria condição de homem. O princípio da liberdade é inalineável; a norma o imperativo da ação. O homem que Rousseau define como livre e igual por natureza, porém, revela-se numa existência bastante distante da natural. “O homem nasce livre e por toda parte encontra-se a ferros”.28 Se Rousseau confessa ignorar a origem da mudança que trouxe a desigualdade, confessa igualmente que tem meios para resolver o problema. A questão a que Rousseau se propõe é exatamente estabelecer os princípios a partir dos quais o homem possa sair do estado natural, que é sem restrição, para o estado civil, fundado no pacto contratual, sem perder a liberdade que lhé é inata. Rousseau. Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 22. 28 87 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin No capítulo VI do livro I do Contrato Social Rousseau parte da suposição de que a conservação humana corre risco: Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir e o gênero humano, se não mudasse de modo de vida, pereceria.29 A saída para a sobrevivência humana passa a ser perspectivada a partir da agregação de forças individuais que operam em harmonia sem destruir a liberdade individual, mas ao contrário, transformando-a de natural para convencional. O contrato consiste precisamente em encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes.30 As possíveis desigualdades e injustiças dos cidadãos são evitadas pela alienação dos associados de seus direitos em benefício de toda comunidade. Logo, o cidadão obedece à vontade geral e não aos interesses de algum grupo particular. Ao conceber o homem como ser de natureza livre e igualitária, Rousseau se contrapõe diretamente às concepções tradicionais da sociedade feudal que partia da ideia de uma natureza humana diferenciada hierarquicamente e a fazia valer em todas as esferas da sociedade. A concepção de homem livre e igual por natureza desenvolvida no campo filosófico somava-se aos anseios das novas forças sociais em ascensão, na nascente sociedade industrial e naqueles que se sentiam discriminados na velha sociedade. Todos os excluídos do mundo feudal – fundado na compartimentação humana – encontravam nos ideais da liberdade e da igualdade humana uma força espiritual para levar a termo seu projeto de sociedade. Apenas a aceitação da ideia de liberdade e igualdade como naturais ao homem podia legitimar a livre produção e circulação de mercadorias e a liberdade e igualdade de organização e participação política. Rousseau torna-se certamente um precursor e ideólogo fundamental da nova época; época em que a sociedade moderna vem se afirmando e rompe com a sociedade feudal; época que encontra na Revolução Francesa sua expressão máxima. Idem, ibidem. p. 31. 29 Idem, ibidem. p. 32. 30 88 EaD Filosofia e Ética MARX O princípio a partir do qual Marx explicita o ser e o devir do homem é a processualidade do ser natural. O homem é um ser natural, isto é, pertence à natureza. Enquanto ser natural está dotado de forças e necessidades naturais e as realiza na sua relação com a natureza. O homem, contudo, não é apenas um ser natural biológico; ele é natural e humano. A dimensão humana surge e se explicita a partir do intercâmbio entre o homem e a natureza. A relação entre o homem e a natureza é mediada pela atividade vital consciente, que é o trabalho. O salto de qualidade de um mero ser natural para um ser natural humano se dá, portanto, pelo surgimento da atividade subjetiva, o que possibilita ao homem agir com prévia – ideação. Pelo trabalho o homem transforma o ser da natureza, isto é, dá forma humana a objetos naturais. A atividade animal é instintiva porque o animal é determinado geneticamente; o homem age com projetos que ele constrói primeiro no plano mental e depois efetiva na prática. Isto significa que o homem antecipa na mente os resultados a serem alcançados pelo seu agir prático. Pela atividade vital consciente o homem não apenas transforma o mundo objetivo, mas igualmente transforma seu próprio ser, sua subjetividade. O trabalho, neste sentido, processa uma dupla transformação: o mundo natural é transformado em mundo humano, isto é, os objetos e seres naturais adquirem qualidade distinta do seu mero ser natural na medida em que são transformados em valores de uso. A natureza é humanizada pelo trabalho. Por outro lado, o homem transforma a si mesmo, o seu ser biológico, o seu próprio mundo é autotransformado. O homem continuamente reordena a sua forma de pensar, sentir e agir, ou seja, o totalidade do homem está em contínuo processo de transformação. Pelo processo de autoconstrução o homem instaura seu próprio mundo, cria uma espécie de “segunda natureza”, enquanto o mundo no qual o animal vive não se distingue da natureza. O homem só consegue explicitar os seus poderes específicos pela ação coletiva dos homens. A atividade humana é exercida socialmente. O homem é um ser social. Não é uma suposição artificial que o homem estabeleça relações sociais ao produzir sua própria vida. A produção e o intercâmbio humano exigem a cooperação social. Quanto mais o homem se desenvolve, mais complexifica suas relações com os outros homens. É na relação com os seres do mesmo gênero que o homem alcança sua verdadeira humanidade. O homem é um ser próprio. Isto significa que o pensar e o agir do homem não são atos isolados, mas são antes manifestações individuais dentro de uma realidade social construída historicamente. O desenvolvimento do ser humano revela que nem a natureza objetiva e nem a natureza subjetiva se apresentam imediatamente ao homem de forma adequada. Toda a história humana é um processo movido por coerência. O homem, ao satisfazer suas necessidades físicas e mentais, cria novas necessidades. 89 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Ele nunca supera suas necessidades biológicas, como comer, beber, procriar, etc., mas as humaniza, isto é, as satisfaz não de forma apenas instintiva, mas socialmente. Não apenas o ser biológico do homem se humaniza, mas o seu verdadeiro ser se explicita pela produção e reprodução social, em que o novo é o traço diferenciador. O animal permanece preso às necessidades biológicas e estas lhe bastam. A caracterização básica da reprodução do mundo animal é a permanência do mesmo, ao passo que a reprodução humana é um constante empreendimento do novo. Se o homem é resultado de sua própria atividade e se esta se exerce tanto sobre o mundo externo quanto sobre a natureza subjetiva, como perspectivar a liberdade humana? A liberdade é uma das questões centrais da reflexão filosófica marxiana, voltada à problemática humana. A liberdade dependeria da ampliação do conhecimento e da transformação da natureza pelo homem? É possível perspectivar a liberdade para os indivíduos humanos aos quais não está garantido o atendimento das necessidades básicas? Quanto menor o desenvolvimento da sociedade humana, mais as leis dos poderes naturais podem interferir e até se impor à vida. O desenvolvimento do ser humano se dá precisamente na direção da superação das “barreiras naturais”. O homem, ao aumentar seu saber, amplia a capacidade de transformar e humanizar a natureza. O processo de transformação e humanização da natureza pelo homem parece ser um dos caminhos pelo qual ele alcança a maioridade, isto é, põe-se como sujeito do devir. A realidade social, no entanto, demonstra que o mundo construído pela atividade humana revela contradições profundas que se chocam com a grandeza e capacidade transformadora do homem. As contradições na sociedade do capital afetam profundamente a existência humana, colocando classes inteiras de homens na mais completa miséria econômica e cultural. Nós, a seguir, destacaremos algumas contradições que desumanizam o homem em meio ao processo humanizador. Trata-se das várias formas de alienação humana. Uma primeira característica da alienação humana na sociedade capitalista consiste no fato de tanto os meios de produção quanto os meios de subsistência se encontrarem privatizados. A maioria dos homens carentes de propriedade precisam vender sua força de trabalho para realizar a produção e assim obter os meios de vida. Isto significa que na sociedade capitalista a força de trabalho converte-se em mercadoria. O capitalista, que detém os meios de produção e os meios de subsistência, isto é, as condições objetivas do trabalho, compra no mercado a força de trabalho viva para realizar a produção. O produto do trabalho pertence ao capitalista, que o converte em capital. Do outro lado da sociedade o homem que vendeu sua força de trabalho pelos meios de subsistência se reproduz enquanto tal. 90 EaD Filosofia e Ética A relação capitalista da produção, que aparentemente parece livre, não passa de uma relação servil. Uma relação servil em que o trabalho está subordinado ao capital e o sujeito humano aos objetos por ele produzidos. O domínio do capital sobre o trabalho converte o produtor real em meio de produção de riqueza e esta não lhe pertence, mas lhe aparece como riqueza estranha. Quanto mais o trabalhador produz, mais objetos contrapõem-se a ele com poder hostil, os quais não lhe pertencem, mas o subordinam. Uma segunda característica da alienação na sociedade capitalista está ligada à própria atividade produtiva do homem. Como a riqueza resultante da atividade produtiva não pertence ao trabalhador, mas se contrapõe a ele como riqueza estranha e que o domina, a própria atividade vital do homem surge como uma atividade estranha. O estranhamento também resulta do fato de não ser o homem que emprega os meios de produção, mas os meios de produção empregarem o homem. Isto significa que as condições objetivas do trabalho dominam a atividade subjetiva. Quando o trabalhador chega à fábrica, defrontase com os meios de produção como uma força estranha que dele independe e que o domina. Um meio pelo qual a atividade vital do homem se converte em atividade estranha é a própria divisão do trabalho. Pela divisão do trabalho a atividade humana transforma-se em atividade maquinal, unilateral; uma atividade separada do pensamento e idêntica ao agir animal. Esta atividade maquinal não oferece satisfação ao trabalhador, mas, ao contrário, o trabalho lhe aparece como atividade estranha, que não o realiza, mas que o nega, desgasta suas energias físicas e mentais. O trabalhador que vende sua força de trabalho por um salário não se afirma no trabalho, não desenvolve livremente suas energias físicas e mentais, mas as esgota. O trabalhador se sente em si, livre, fora do trabalho, e quando trabalha sente-se estranho, fora de si. A seguir descreveremos, de forma abreviada, algumas características da problemática do dinheiro na sociedade em que a produção de mercadorias torna-se a forma predominante da produção. Marx, nos Manuscritos EconômicoFilosóficos submete a uma crítica profunda o poder de alienação do dinheiro. Na sociedade burguesa a produção social é regulada mediante a troca dos produtos do trabalho com base na lei do valor, isto é, segundo o tempo socialmente necessário à produção da mercadoria. O produto do trabalho, portanto, converte-a em mercadoria e uma determinada mercadoria converte-se em dinheiro que nesta qualidade possui o poder de mediar todas as trocas. Assim, não são os seres humanos que regulam diretamente a produção, mas esta é regulada por uma coisa material, pelo dinheiro. Pelas características que a produção e a troca adquirem na sociedade capitalista, o dinheiro torna-se a atividade mediadora, o movimento mediador pelo qual os produtos dos homens se completam. Nas palavras de Marx: 91 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin O dinheiro, enquanto possui a propriedade de comprar tudo, enquanto possui a propriedade de comprar todos os objetos, é, pois, o objeto por excelência. A universalidade de sua qualidade é a onipotência de sua essência, ele vale, pois, como ser onipotente (...). O dinheiro é o proxeneta entre a necessidade e o objeto, entre a vida e os meios do homem.31 O dinheiro é a forma efetiva e universal pela qual as relações sociais se estabelecem na sociedade burguesa. Entre o indivíduo e a sociedade, entre a necessidade e o objeto coloca-se o poder do dinheiro. O dinheiro, segundo Marx, é o laço de todos os laços, o verdadeiro meio de união e separação da sociedade. Na sociedade burguesa o dinheiro transforma-se no ser todo poderoso. Como o dinheiro é a forma universal da existência da riqueza é também o modo geral pelo qual existem as potencialidades humanas. Desta forma, as qualidades do próprio homem encontram-se alienadas no dinheiro. O poder do dinheiro transfere-se ao seu possuidor.32 O estranhamento social pelo dinheiro reside, portanto, no fato de o homem estar subordinado ao poder da coisa. O objeto domina o homem e regula seu ser. O homem torna-se escravo do objeto, da coisa, porque quanto menos a possui mais dela necessita e isto porque no mundo do capital o dinheiro possui qualidades universais. Aquilo que mediante o dinheiro é para mim, o que posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Minha força é tão grande quanto a força do dinheiro. As qualidades do dinheiro – qualidades e forças essenciais – são minhas, de seu possuidor. O que eu sou e o que eu posso não são determinados de modo algum por minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar a mais bela mulher. Assim sendo, não sou feio, pois o efeito da feiúra, sua força afugentadora, é aniquilado pelo dinheiro. Segundo minha individualidade sou inválido, mas o dinheiro me proporciona 24 pés, portanto não sou inválido; sou um homem mau, sem honra, sem caráter e sem espírito, mas o dinheiro é honrado e, portanto, também o seu possuidor. O dinheiro é o bem supremo, logo, é bom o seu possuidor; o dinheiro poupa-me além disso o trabalho de ser desonesto, logo, presume-se que sou honesto; sou estúpido, mas o dinheiro é o espírito real de todas as coisas, como poderia seu possuidor ser um estúpido? Além disso, seu possuidor pode comprar as pessoas inteligentes e quem tem o poder sobre os inteligentes não é mais inteligente do que o inteligente? Eu, que mediante o dinheiro posso tudo o que o coração humano aspira, não possuo todas as capacidades humanas? Não transforma meu dinheiro, então, todas as minhas incapacidades em seu contrário? Marx. Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2005. p. 29. 31 Idem, ibidem. p. 30. 32 92 EaD Filosofia e Ética Se tenho vocação para estudar, mas não tenho dinheiro para isso, não tenho nenhuma vocação (isto é, nenhuma vocação efetiva, verdadeira) para estudar. Ao contrário, se realmente não tenho vocação alguma para estudar, mas tenho a vontade e o dinheiro, tenho para isso uma vocação efetiva. Seção 3.3 Ética a Partir dos Paradigmas Luis Alles 33 Podemos afirmar que no mundo da Filosofia, de um modo geral, a ética é vista como o conjunto de ideias que orientam a humanidade na busca de uma convivência satisfatória. Todos os seres humanos desejam encontrar um modo de vida que lhes satisfaça o anseio natural de estar de bem com os semelhantes. Todos, em princípio, querem viver uma vida boa. 33 Nesta perspectiva, a ética passa a ser entendida como um conjunto de normas e princípios a partir dos quais os homens procuram distinguir o bem do mal, o certo do errado, o justo do injusto, para melhor poderem conviver em sociedade. Nesses termos, a ética regulamenta as ações do convívio humano. Pode-se, contudo, também destacar que a ética é o conjunto de conhecimentos e teorias, expressos em princípios e normas, de que se serve a vontade humana para bem conduzir as suas ações. Essas ações voltam-se para a sobrevivência e a realização do ser humano como ser complexo dotado de razão, sentimentos e emoções. Assim, a ética visa a tornar a vida relacional possível e quer ajudar as pessoas na sua realização. A ética passa a ser a mediação necessária para que a humanidade possa aproximar-se da utopia sonhada em termos de convivência. a) Distinção entre deontologia, moral e ética: deontologia vem do grego déontos, “dever” e lógos, “discurso”. É um tratado, um conjunto de deveres, princípios e normas adotados por um determinado grupo profissional. Já a palavra moral O grito – Edvard Munch. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia. 33 93 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin tem sua origem no latim. Ela provém dos termos mos ou mores que significam os usos e costumes de um povo. Também podem significar um conjunto de regras adquiridas pelo hábito. Já a palavra ética tem a sua origem na palavra grega ethos e significa o modo de ser, caráter adquirido. Os três termos, em sua origem etimológica, expressam uma forma de comportamento adquirido. Daí porque muitas vezes não se faz distinção entre moral e ética. Nesse nosso texto seguiremos essa compreensão, no entanto é bom termos presente também a distinção que muitos pensadores fazem e que está bastante presente em nosso meio. Para estes, a moral é o conjunto de normas que regulamentam as ações no convívio social. É a prática consagrada pelo costume, pelo hábito. É a cultura vigente que norteia e delimita as ações. Age moralmente quem segue os princípios estabelecidos tacitamente. A ética, por sua vez, é a reflexão dessa prática moral. É a discussão, o debate em torno das práticas consagradas pelo costume ou que estão sendo instituídas como formas corretas de vida moral. Sob esta ótica, a ética passa a ser um estudo metódico em torno de um objeto específico. A ética será, então, uma ciência cujo objeto é a moral. É a ciência que estuda e analisa o comportamento habitual do modo de vida do dia a dia das pessoas. Nesse sentido, a ética não é normativa como a moral, mas apenas discute o sentido de determinada prática moral. Esta discussão pode resultar numa interferência nas normas morais na medida em que a reflexão evidencia a necessidade de uma mudança do comportamento vigente. Para que tal mudança aconteça é preciso que as pessoas passem, gradualmente, a assumir um novo comportamento. b) Quando nasceu a ética? A ética nasceu no momento em que duas ou mais pessoas decidiram viver em grupo. No momento em que o homem tomou esta decisão percebeu imediatamente que a vida grupal só seria viável mediante uma regulamentação dos comportamentos e das ações. A vida solitária é sempre sem ética, mas como o homem é praticamente impensável fora de uma sociedade, a ética tornou-se imprescindível. Assim, a ética surge nas sociedades mais primitivas, antecedendo as normas jurídicas. Estas apenas aparecem com o nascimento da sociedade civil, quando a moral tornara-se insuficiente para garantir a boa convivência. c) Qual é a base da ética? A partir da própria definição terminológica pode-se afirmar que a base da ética é sempre a cultura, o hábito, o modus vivendi de um grupo. Esse modus vivendi começa de uma forma bem simples, com poucas orientações e restrições. Na medida em que a vida de um grupo ou um povo vai-se prolongando, também a complexidade vai aumentando, exigindo cada vez mais princípios que possam salvaguardar a dignidade humana e a felicidade de viver. O modus vivendi vai sendo construído a partir da visão de mundo e de homem que o grupo ou o povo vai constituindo. Esta visão de mundo (cosmovisão), somada à visão de homem, é que irá formar uma visão ampla de toda realidade que chamaremos de paradigma. O paradigma é construído lentamente pela História da humanidade. É um modelo de compreensão do mundo das coisas e da vida e servirá de fundamento para nortear as ações 94 EaD Filosofia e Ética humanas. Assim, a partir de cada paradigma vai-se constituindo uma ética. Isso significa que a ética é, propriamente, o resultado da cosmovisão e da visão de homem. Quando lançamos um olhar sobre a História da humanidade percebemos que, inicialmente, a cosmovisão é fortemente influenciada pela fantasia e pelo temor do homem diante das “forças divinas” ou “cósmicas”. A ética é, assim, o resultado das exigências atribuídas aos seres ou forças invisíveis que, de certa forma, nos controlam. Aos poucos essa visão vai-se modificando e o homem, de simples criatura subserviente, vai-se tornando senhor do seu destino. Daí em diante o homem passa a ser senhor do mundo e das próprias ações. A ética, resultante dessa visão, caracterizar-se-á pela busca da satisfação das vontades individuais que, na maioria das vezes, estão voltadas apenas para os interesses próprios de cada homem. É o início da modernidade que vai produzir reflexos negativos que hoje amargamos e que, pela reflexão e discussão, procuramos superar. d) Quais são os grandes paradigmas? Até aqui temos defendido a hipótese de que a ética resulta da visão de mundo e de homem que a humanidade constrói. Se a nossa hipótese estiver correta perguntamo-nos: Quais são os grandes paradigmas que a humanidade produziu e que sustentaram historicamente a ética? Entendemos que podemos dividir a História da humanidade em quatro grandes paradigmas, com o quarto deles ainda em fase de estruturação, visto que a nossa época é de crise. A crise que hoje vivenciamos configura-se nos seguintes termos: já sabemos que o que está aí, não queremos. De certa forma também já sabemos o que queremos. Não sabemos, porém, qual é o ideal de homem e de ética que devemos perseguir para que possamos superar o que consideramos negativo no atual modelo. Os paradigmas, historicamente consagrados, são os seguintes: o mitológico, o da objetividade e o da subjetividade. O paradigma da intersubjetividade nos parece ser o que está em construção. Esses paradigmas são os grandes pilares que serviram e servem de fundamento da ética. Na nossa análise iremos caracterizar cada paradigma pela sua cosmovisão e visão antropológica. Depois procuraremos entender a ética que decorre de cada paradigma. Em seguida apontaremos para alguns elementos responsáveis pela crise de cada paradigma e a consequente necessidade de gestar um novo modelo. 3.3.1 – A História da Ética a Partir dos Paradigmas a) 1º Paradigma: Mitológico Período que antecede a Filosofia. Cosmovisão: A concepção mitológica é a que forma o primeiro paradigma do qual temos conhecimento. É o período dos povos mais antigos até o século 7º a.C. Segundo essa concepção, a Terra é o centro de tudo. O mundo todo, que 95 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin gira em torno da Terra, está prenhe de deuses, de espíritos que controlam o universo todo. Tudo está animado e é determinado por estes seres sobrenaturais. O universo parece muito pequeno. Ele se reduz ao Sol, à Lua, algumas estrelas e à Terra, que é central e é a porção maior. Para além desses elementos há somente os deuses (ou espíritos) responsáveis por tudo o que acontece. Nesse sentido, o Universo comandado por esses seres é muito terrível. Parece que a natureza, como um todo, por meio de suas forças, conspira contra o homem. São os animais, com as suas especialidades de defesa e ataque que atemorizam os homens. São os fenômenos naturais como as tempestades, vulcões ou terremotos que levam o homem a concluir sobre sua pequenez e fragilidade. Antropologia: O homem está profundamente imerso nesse universo e é apenas uma peça a mais no conjunto das coisas que existem. O homem não se reconhece como um ser importante, um ser que fosse superior aos demais animais. Pelo contrário, quase sempre o homem se julgou um ser inferior, merecedor de comiseração. Na sua vida miserável, o melhor a fazer era entregar-se ao destino incontrolável. Afinal, o homem era apenas um reflexo da vontade e da ação dos deuses. Se os deuses brigavam, os homens também entravam em guerra. Se os deuses faziam a paz, os homens faziam o mesmo. Se os deuses quisessem eliminar alguém ou alguns, realizavam seu intento por meio de raios ou outras forças cósmicas. Com base nessa concepção o homem sentia-se profundamente dominado pelas forças dos deuses ou espíritos, sobre os quais não tinha poder. O máximo que o homem podia fazer era implorar pela benevolência dos deuses ou espíritos, o que fazia por meio de ritos e orações. Ética: O ideal ético que brota desse paradigma é de que o homem deve viver conforme os limites impostos pelos deuses. Como tudo já está predestinado, a melhor maneira de o homem viver neste mundo está na resignação diante do que lhe fora reservado. É salutar ao homem não se revoltar contra o que o destino já lhe traçou. A submissão à vontade dos deuses é que se recomenda. Para saber da vontade dos deuses os povos criaram as suas lendas, os seus mitos. Nesse período predomina a emoção, o sentimento colado intimamente à atividade do dia a dia. O homem não toma distância das coisas ou de sua realidade. Sente-se como que um prolongamento da natureza, que nem sempre lhe é favorável. Crise: O homem é um eterno insaciável. Por isso, aos poucos e naturalmente o mito, que era a fonte de explicação de tudo e de acomodação do homem diante das incertezas, num dado momento vai-se esgotando. O homem não mais se satisfazia com o que o mito significava e representava para ele. Nascia assim, aos poucos, uma nova visão de mundo e das coisas, que teria por base não mais o sentimento e a emoção, mas a razão. b) 2º Paradigma: da Objetividade Vai do início da Filosofia até a época moderna. É também chamado de período da Razão Clássica. 96 EaD Filosofia e Ética Cosmovisão: O mundo, aos poucos, “tornava-se” mais ameno. O homem já não se sentia mais um refém dos espíritos que estariam animando o universo. Agora o universo passou a ser visto como algo que é comandado pela Razão Universal, que escapa aos nossos olhos. É uma Razão que comanda tudo e somente é compreensível aos olhos da inteligência. Na Idade Média esta Razão é substituída pelo Deus único do povo hebreu, encarnado na pessoa de Jesus Cristo. O universo, nesse segundo paradigma, já não é mais tão assustador quanto no paradigma anterior, no entanto permaneceu ainda o geocentrismo. Quanto aos deuses, estes deram lugar à Razão Universal ou ao Deus único dos cristãos. Este universo, porém, na sua aparência, não é confiável. O verdadeiro mundo não podia resumir-se àquilo que os nossos sentidos atestavam. O mundo, pela sua pluralidade e mutabilidade, parecia muito caótico. Por isso, entendia-se que, para além desse mundo, deveria existir um outro mundo constituído por uma ordem OBJETIVA, perfeita, eterna e imutável. Este outro mundo seria o verdadeiro e devia ser buscado pelos homens mediante o uso da inteligência racional, ou então pela fé, como se propunha na Idade Média. Essa ordem objetiva, portanto, eterna e perfeita, características fundamentais da verdade, não dependia dos homens, mas, os homens poderiam alcançar este mundo mediante o conhecimento que resultava do esforço intelectual ou da vivência da fé. Antropologia: Nesse novo paradigma o homem é visto como um ser livre, mas apenas em parte. No fim de tudo, predomina o destino, por maior que seja o esforço do homem. O homem, contudo, não mais se sujeita às explicações oriundas dos mitos, no entanto continua sujeito ao Logos (Razão Universal) ou à Providência Divina. O que é que distingue o período medieval em relação à época antiga? Na época antiga tudo se ordena, em último caso, à razão objetiva. A liberdade humana necessariamente desemboca no destino. Na época medieval esse Logos universal é substituído por Deus. Ali não se fala mais em destino, mas tudo acaba na Providência Divina. Como surge esse novo paradigma da objetividade? O mito chega a um momento de saturação. A explicação da realidade com base na emoção e no sentimento parecia carecer de fundamento. Busca-se então uma explicação que visa a ser racional, objetiva e lógica, mas tem sempre como pressuposto a existência de uma ordem objetiva, eterna e imutável. Por isso a verdade também é eterna, objetiva e imutável. E ao homem cabe a tarefa de compreender essa ordem. Quanto mais o homem souber dessa ordem, mais livre será. O mal não é nada mais, em última instância, do que a ignorância. O homem nunca age contrário ao bem. Ele faz o mal achando que é o bem. Com essa visão de homem já temos um indicativo do que será a ética. Ética: Nesse contexto, ética significa buscar sempre mais a sabedoria. Sócrates entende que o conhecimento se iguala à ação. O nosso agir depende exclusivamente do conhecimento que temos. E o conhecimento não é algo pronto. Ninguém é possuidor do conhecimento perfeito. Por isso, o constante 97 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin debate e a incessante investigação são exigências da moral para que possamos atingir a melhor maneira de viver na pólis. A razão especulativa e discursiva é que torna os homens aptos para viverem moralmente em sociedade. Aristóteles também defende que é uma obrigação moral do homem buscar o saber teórico. Isto porque somente o saber teórico, que é livre, poderá satisfazer a sede natural que o homem tem de saber. E o saber nos leva à virtude. A virtude, segundo Aristóteles, está sempre no meio de dois extremos. O mal está nos excessos por falta ou demasia. Somente o saber é que nos poderá aproximar desse meiotermo. Assim, a moral resulta do uso correto da razão que está na investigação constante do que é e do que deva ser. O cristianismo não foge dessa visão objetiva, porém a verdade que o homem busca está em Deus. E os meios pelos quais ela é atingida estão na fé e na razão, privilegiando, de modo geral, mais a primeira. Além disso, o cristianismo traz um elemento novo que é a questão da liberdade e da igualdade. O Deus criador, segundo os cristãos, fez o homem livre para que ele possa fazer da sua vida o que quiser. O homem poderá optar por Deus, o que será a sua felicidade, ou contra Deus, o que será a sua perdição. Temos aqui, de certa forma, a superação da ideia do destino próprio da visão grega. No lugar do destino, contudo, o cristão apresenta a ideia da Divina Providência. Dessa forma a liberdade é entendida dentro de uma submissão a essa Divina Providência. Crise: Esse paradigma entra em crise quando o homem começa a perceber que essa ordem objetiva, eterna e imutável, não é tão objetiva, eterna e imutável. O homem dá-se conta de que não existe uma razão que possa elucidar toda essa ordem. Durante 2 mil anos o homem tentou compreender essa ordem, porém nunca conseguiu realizar a contento essa pretensão. Por isso, aos poucos nasce a compreensão de que a realidade toda só tem o seu sentido e o seu ser a partir do sujeito. Ou melhor, essa ordem toda é sempre construção que passa pela razão humana. É o homem que vai dizer o que é eterno, o que é imutável. c) 3º Paradigma: da Subjetividade Início: século 16 com Descartes. Razão moderna. Dali em diante, até hoje, o homem, como sujeito, está colocado no centro. Cosmovisão: O universo tem as suas leis e a sua trajetória própria, mas a sua existência só tem sentido na medida em que está aí para servir ao homem. O universo deixou de ser um elemento estranho. O homem não só pode, como deve dominá-lo. A Terra não é mais o centro de tudo. É o fim do geocentrismo e o começo do heliocentrismo. É também o início de uma compreensão de que o conhecimento deve gerar uma dominação sempre mais acelerada sobre o universo. Com essa cosmovisão desencadeia-se um processo de visão científica, baseada no método experimental, que repudia as humanidades e incentiva uma progressiva valorização da técnica que deve proporcionar um domínio 98 EaD Filosofia e Ética e um controle sempre maior sobre a natureza. É o princípio da fragmentação do saber e da exagerada valorização da especialização em detrimento de uma visão holística. Antropologia: O homem é o Sujeito, é o Senhor. Não existe mais Deus. Deus está morto. As Ciências, baseadas na razão e no método experimental, dão sinais de que resolverão todos os problemas humanos, até mesmo a morte. Instaura-se aos poucos a razão instrumental, ou seja, a razão a serviço da produção científico-tecnológica. E tudo terá sentido, na medida em que estiver servindo aos interesses do homem. Dessa forma, aos poucos o homem vai sentindo as “vantagens” desse seu domínio sobre a natureza e cada vez mais vai cedendo à ideia da “lei” do menor esforço possível. A técnica facilita a vida de tal modo que, somando à possibilidade do lucro, a busca da inovação tecnológica tornase uma obsessão. Nesse período o homem passa a não mais aceitar a concepção de que exista uma ordem objetiva, eterna imutável. A verdade deixa de ser algo absoluto que está para além do homem. A verdade agora passa a depender do sujeito que se sente cada vez mais livre e senhor de tudo, porém o sujeito aos poucos vai ser apenas aquele que tem poder. Os demais serão “objetos” que lutarão competitivamente para conseguirem a sua emancipação, que será cada vez mais difícil. Ética: É bom aquilo que satisfaz ou que vem ao encontro dos desejos do homem. O sujeito é que determina o bom. E o bom depende das circunstâncias atuais e dos interesses momentâneos. O que importa é o momento e a vontade de cada um. E cada um quer exercitar sempre mais a sua liberdade e o seu poder. No final, bom é aquele que consegue vencer. É, no fundo, a reabilitação da moral da selva em tempos modernos. Crise: A absolutização da subjetividade conduz ao relativismo. Isso significa o fim da ética, pois tudo se torna relativo ao indivíduo que oscila conforme a sua vontade. Para compreendermos melhor essa crise apresentaremos três características que consideramos fundamentais na elucidação do relativismo. 1º: Cada um é dono absoluto de si. Cada um tem uma vontade própria, que é a fonte da verdade. O ser humano pensa que ali está a sua realização, independente da realização ou felicidade alheia. A sociedade de consumo, mediante a publicidade, cria falsas necessidades, que se transformam em interesses particulares dos indivíduos, ou seja, o indivíduo tem desejos, vontades, que, na verdade, foram criados por quem quer vender. O indivíduo, porém, considera, falsamente, que esses desejos, essas vontades, são o resultado de sua liberdade. O homem pensa que ele mesmo criou ou engendrou em si essas necessidades. Uma vez “possuído” por esses desejos, o homem, que é dono absoluto de si, faz o possível para satisfazer esses desejos, ou necessidades, pensando que assim há de se realizar, mesmo que para isso precise destruir a natureza e até mesmo coisificar o outro. 99 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin 2º: O homem está diante do problema criado pela assim chamada razão instrumental (razão que está em função da produção técnica). Essa razão é responsável pela geração dos avanços no campo da informática, da robótica, da biogenética, etc. Sem dúvida, são avanços importantes para a humanidade. Só que esses avanços também, cada vez mais, excluem as pessoas do meio social. Isso mais uma vez nos revela a dimensão paradoxal da vida humana: o homem é o Senhor do Mundo, mas cada vez mais sente-se esmagado por forças incontroláveis. O homem é o Senhor da natureza; mas a natureza, desrespeitada e destruída aos poucos, também vai matando o homem. O homem é o Senhor da bomba atômica; mas ela só foi criada para destruir esse mesmo homem. O homem é o Senhor da informática, da robótica e da biogenética; mas tudo isso transforma, muitas vezes, o homem num “sobrante”. O homem é o Senhor do mercado; mas agora é o mercado que vai decidir se haverá emprego ou desemprego, quem tem direito de sobreviver ou não. Normalmente a humanidade tentou encobrir essa ambiguidade, fazendo prevalecer o lado dos poderosos como algo necessário, algo que brota da fatalidade. E a ideologia encarregou-se de mostrar que nada pode ser feito contra essa fatalidade. 3º: O problema do novo como critério de verdade. Esse problema decorre do cientificismo-tecnicista. Os avanços rapidíssimos no campo tecnológico levaram o homem da cultura atual a entender que a verdade acompanha o que existe de mais novo. Cada modelo novo que se cria parece ser melhor e, como tal, mais verdadeiro que o anterior. Qual é a consequência desse tipo de visão da realidade? É que essa concepção da realidade leva o homem a uma atitude de espera e consequente acomodação. O que será que vão inventar daqui a pouco? O que “eles” vão criar para que os problemas sejam resolvidos? E enquanto a solução não vem, o homem se refugia nas drogas, no prazer a qualquer custo ou nos jogos de azar, ou se lança em qualquer subterfúgio com a intenção de encontrar a solução para seus problemas. O resultado disso é o aumento do número de crimes, assaltos, estupros, violência e, por fim, uma vida sem sentido. d) 4º Paradigma: da Intersubjetividade Comunicativa É o paradigma que está em construção e está apontando para novas perspectivas. É uma proposta neo moderna. Cosmovisão: O homem já não mais se coloca como Senhor da Natureza. Ele vai tomando consciência da imensidão do universo e reconhecendo que sabe muito pouco sobre tudo o que está aí. Ao mesmo tempo, cada vez mais o homem cria a consciência de que a natureza precisa ser preservada e que desse cuidado resulta a garantia de escaparmos de um desastre ecológico. Neste sentido, preservar a natureza é preservar a própria vida. 100 EaD Filosofia e Ética Antropologia: No paradigma da subjetividade predominou a razão técnica. Pensava-se que a racionalidade instrumental era a dimensão mais importante do ser humano e que ela, quando desenvolvida, daria conta de todas as limitações e insuficiências do homem. Como já vimos, porém, essa racionalidade entrou em crise por representar, mais do que uma solução para os problemas do homem, uma ameaça para a vida como um todo. Por isso, na nova perspectiva que estamos gestando, a razão técnica precisa ser controlada pela razão comunicativa. O novo paradigma não vem para suplantar os anteriores. Apenas se fará uma releitura de tudo o que já é passado, no sentido de apresentar a realidade sob um novo enfoque, o que nos dará uma nova compreensão de tudo o que está aí. No paradigma da razão instrumental o homem entendeu que fundamentalmente possuía uma razão para produzir instrumentos. Essa razão começou a se desenvolver a partir do momento em que o macaco usou um osso apropriado para bater na cabeça do seu adversário. Esse desenvolvimento culminou, por enquanto, no seu aspecto mais negativo, que foi a produção e o lançamento da bomba atômica. No novo paradigma entende-se que a racionalidade fundamental do homem não está na produção de instrumentos, mas na capacidade que o homem tem de se entender com outro homem em vista a um determinado fim. Assim, a racionalidade fundamental se constituirá pela produção do entendimento entre os homens em torno de seus mundos. É importante ressaltar que dessa nova visão da racionalidade decorre uma nova compreensão do que seja a produção do conhecimento científico. Científico será o resultado do entendimento que os homens construírem em torno do mundo objetivo e social. Desse modo, algo será aceito como verdadeiro quando fundado numa discussão e num discurso argumentativo realizado pelos integrantes da comunidade. Essa verdade, assim constituída, será sempre provisória, pois novos elementos poderão, futuramente, integrar o discurso que colocará a comunidade diante de uma nova situação. Para que esse paradigma possa dar uma nova resposta aos anseios humanos é preciso que se estabeleça algo parecido com uma comunidade ideal de fala. Isto significa que os integrantes da comunidade devem ter a pretensão de serem entendidos; devem dizer o que realmente pensam e devem estar abertos ao novo. Ética: A ética se dará no mundo social e no mundo subjetivo. Ela se constituirá a partir do entendimento que se produzirá em torno dos diversos temas morais. E cada discurso, marcado pela pretensão de validade, buscará um sentido para um determinado tema em que a questão básica será a justiça. Por exemplo: “O homem tem direito à vida”. Cada discurso em torno do tema terá como objetivo a validade e buscará, não a verdade, mas a justiça. E o resultado dessa discussão não se dará por um “democratismo”, mas deverá se aproximar 101 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin ao máximo do consenso. Assim, a ética será uma construção coletiva na qual deverá predominar a discussão argumentativa com base na busca sincera de um entendimento consensual. 3.3.2 – Perspectivas Para a Ética Talvez o que mais atrapalha nesse novo paradigma seja a possibilidade real da produção do consenso. O consenso será possível mediante a constituição da comunidade ideal de fala. E para que esta seja possível é preciso construir uma cultura na qual, de certa forma, se priorizem os seguintes elementos: igualdade, responsabilidade e dedicação. a) IGUALDADE – Superação da mentalidade hierárquica. Desde as épocas mais remotas o homem tem tido uma mentalidade hierárquica. E até hoje idolatramos os que sabem um pouco mais, ou quem tem um pouco mais, pois são um pouco “melhores”. Ex.: respeitamos profundamente alguém que é da “elite”, ou seja, aquele que é considerado um dos melhores, seja no campo do esporte, da intelectualidade, da arte, da economia, da política ou de qualquer outro campo. Respeitamos e admiramos. E esses que estão “acima” fazem de tudo para que essa diferença seja mantida e até aumentada. Então, o que normalmente acontece é que nós nos digladiamos em busca de posições privilegiadas. Aquele que se sente lisonjeado, ou sente os privilégios de ser “importante”, faz de tudo para garantir essa posição. O que está mais abaixo, luta ou sonha em um dia também chegar no lugar daqueles que estão “acima”. Normalmente, porém, tudo permanece no sonho. Na verdade, diante dos problemas que os homens enfrentam, diante da imensidão do mundo desconhecido, todos nós somos pequenos e, nessa pequenez, somos iguais. Lembramos Hobbes que, no século 17, defendeu a tese de que todos somos iguais por natureza, e que as diferenças de um em relação ao outro, quando tomamos o conjunto da sociedade, nada significam. Até mesmo porque, por melhor que seja alguém, de longe é portador da solução dos problemas da humanidade. Como exemplo disso podemos lembrar os maiores cientistas, filósofos, economistas e sociólogos que a humanidade já produziu, e veremos que até hoje ninguém foi capaz de solucionar os nossos problemas. Os seus estudos e as suas descobertas ajudaram em muito a vida do homem, mas também as suas soluções foram e são portadoras de inúmeras dificuldades para a organização do homem na sociedade. Com isso queremos destacar que esses “grandes homens” não são semideuses. Eles são seres humanos e, como seres humanos devem ser respeitados, mas não mais do que qualquer outro ser humano. Eles não são merecedores de privilégios que os coloquem num nível supra-humano. Por isso, enquanto não cultivarmos uma mentalidade igualitária, cada vez mais teremos uma elite privilegiada e uma massa desqualificada e marginalizada, o que impossibilita a aproximação de uma verdadeira comunidade. 102 EaD Filosofia e Ética b) RESPONSABILIDADE – Não devemos culpar os outros pelos nossos atos. Vivemos num período em que precisamos aprender a não culpar os outros pelos nossos atos. Se queremos um mundo moralmente melhor torna-se imprescindível o aprendizado da responsabilidade. Parece que já se tornou hábito a autojustificação dos próprios atos. Já na Bíblia lemos que Adão e Eva justificaram os seus atos culpando terceiros pelo que fizeram. Esse processo de justificação tornou-se tão vil que atualmente temos uma tendência de inocentar até os maiores criminosos, alegando que os seus atos são uma decorrência de forças que independem da vontade da pessoa. Até mesmo no nível mais pessoal encontramos um esforço para justificar o que se é. Se alguém pergunta: Por que você é assim? A resposta surge de imediato: – Ah, eu sou assim por causa da minha natureza ou por causa dos meus pais, dos meus irmãos, dos vizinhos, dos professores, da comunidade ... Assim, o passado é só desculpas. Na verdade, a ação do homem é uma ação livre (salvo em caso de coação interna ou externa) e, por isso, o homem é sempre responsável por sua ação. Na medida em que o homem não assume a sua responsabilidade, nós estamos matando a ética, qualquer que ela seja. A autojustificativa representa o fim da ética. É sempre um agir de má-fé. E a má-fé é uma mentira que impossibilita o verdadeiro sentido da liberdade humana e da consequente responsabilidade. c) SUPERAÇÃO DA “LEI” DO MENOR ESFORÇO Podemos afirmar que a tendência ao menor esforço possível já é uma lei plenamente encarnada. O maior esforço que o homem faz parece que está em descobrir uma maneira de fazer as coisas sem esforço ou com o menor esforço possível. Essa é uma inclinação, talvez até natural, do ser humano, no entanto a razão instrumental fomentou essa tendência ao máximo sem perguntar pelas consequências disso para a vida das pessoas em sociedade. É dentro disso que propomos a superação da lei do menor esforço. Partimos do pressuposto de que o homem só se realiza, se humaniza, pela sua ação. E toda ação significa enfrentamento, superação de dificuldades e obstáculos. É uma ilusão encontrar a realização humana fora do empenho, da dedicação, da participação efetiva. E a tendência atual é a de “formarmos” as novas gerações com um perfil de quem recebe tudo pronto. E a maioria, que não tem acesso ao que é produzido, também é “formada” dentro do espírito de acomodação e não participação. Assim, tanto os que têm acesso aos resultados da razão instrumental quanto os que estão excluídos, são animados por um espírito de acomodação e entrega à “lei do menor esforço”. 103 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin O que queremos destacar com tudo isso é que só há realização humana quando houver uma participação efetiva e com responsabilidade de todos na construção da sociedade que queremos para todos. Pensamos que esses três elementos são fundamentais para podermos falar de uma ética que torna a vida humana menos trágica. Outros grandes desafios, contudo, se nos apresentam, por exemplo: Como conciliar a liberdade individual com a universalidade da lei? Como ir ao encontro dos interesses pessoais sem ferir a necessária ordem exigida pela convivência social? Como definir o meio-termo entre o particular e o universal? Como fugir do objetivismo e do subjetivismo? Parece que a saída para essas questões está na educação que deverá engendrar uma nova cosmovisão e principalmente uma nova visão antropológica. A ética será, então, uma decorrência natural dessas novas visões. Seção 3.4 Teorias Éticas Vânia L. F. Cossetin 34 A vida coletiva só foi possível porque o ser humano passou a estabelecer regras a fim de organizar as relações entre os indivíduos. Sem estas normas seria impossível a convivência em grupo. 34 Segundo o antropólogo Lévi-Strauss (2000), a passagem da natureza à cultura foi produzida pela instauração da lei, pela proibição do incesto, mediante a qual se estabeleceram as relações de parentesco e de aliança e o mundo humano, simbólico, foi construído. Essa orientação normativa da conduta, no entanto, é exterior ao indivíduo, de modo que a adequação ou não à norma estabelecida, bem como a variação de tempo e lugar, é que acaba definindo se o ato é moral ou imoral. A moral, porém, não é apenas um conjunto de regras impostas aos indivíduos, mas a livre e consciente adesão a elas, razão pela qual um ato só pode ser considerado moral se passar pela aceitação da norma, ou seja, não é verdadeiramente moral o ato que for cumprido ou não mediante ameaça de A morte de Sócrates – Jacques-Louis David. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia. 34 104 EaD Filosofia e Ética sanções. O que não significa que uma norma não possa ser questionada, mas também não pode ser persistentemente interrogada, porque isto pode levar à destruição da moral. Segundo Gianotti, a flexibilidade existe, porém não pode levar a um relativismo em todas as formas de conduta: Os direitos do homem, tais como em geral têm sido enunciado a partir do século XVIII, estipulam condições mínimas do exercício da moralidade. Por certo, cada um não deixará de aferrar-se à sua moral; deve, entretanto, aprender a conviver com outras, reconhecer a unilateralidade de seu ponto de vista. E com isso está obedecendo à sua própria moral de uma maneira especialíssima, tomando os imperativos categóricos dela como um momento particular do exercício humano de julgar moralmente. Desse modo, a moral do bandido e a do ladrão tornam-se repreensíveis do ponto de vista da moralidade pública, pois violam o princípio da tolerância e atingem direitos humanos fundamentais (1992, p. 245). Para ser moral um ato deve ser livre, consciente, intencional e responsável. Isso cria um compromisso de reciprocidade e compromisso com a comunidade. O sujeito, assim, deve saber o que e por que faz, não deve ser coagido ou obrigado a fazer algo e, além disso, deve assumir a autoria do seu ato, reconhecendo-o como seu e respondendo pelas consequências de sua ação. A reponsabilidade, assim entendida, acaba criando um dever: a obrigatoriedade, o que implica a interiorização da norma, na autoimposição do seu cumprimento. Apesar de parecer paradoxal, o cumprimento da norma não é coercitivo, mas é sinônimo de liberdade. Por isso, nem mesmo a desobediência – o que determina o caráter moral ou imoral do ato – pode ser excluída, pois justamente por ser livre é que o sujeito pode transgredir a norma, mesmo aquela por ele escolhida. Diante disso, podemos afirmar que a moral é uma construção humana. Como, porém, o ser humano não é um ser natural e fixamente definido, além disso, é um ser social e a sociedade sofre transformações, dizemos que a moral é uma construção histórica. Por isso é que apesar de os sistemas morais estarem fundamentados em valores como o bem e a liberdade, aquilo que seja o bem e a liberdade, o seu conceito, varia historicamente. Isto explica a diversidade de concepções éticas. 3.4.1 – Correntes Filosóficas: Podemos ser Livres? O conceito de liberdade pode ser pensado a partir de inúmeras perspectivas. Alguns filósofos encetaram uma discussão profunda e até mesmo radical sobre o problema, no sentido de buscar saber se somos ou podemos ser livres ou se a liberdade seria apenas uma ilusão. 3.4.1.1 – Liberdade e Determinismo O conflito entre liberdade e determinação foi pensado de diversas formas pelos filósofos. Na tradição filosófica grega, a liberdade humana absoluta foi enfatizada como liberdade incondicional, ao passo que, na Idade Média, especial105 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin mente com Santo Agostinho, ela aparece como noção de livre-arbítrio, indicando a possibilidade de o homem agir de um modo ou de outro apesar das forças que o constrangem. Segundo tal perspectiva, ser livre é decidir sem determinação causal, seja pela força determinante do ambiente, seja pela força determinante dos desejos. Já na Idade Moderna, a exemplo de Descartes, o intelecto passou a ter prioridade sobre as paixões, de modo que conhecê-las era o melhor meio para dominá-las. O determinismo, por sua vez, diz que tudo o que existe e acontece tem uma causa. Trata-se do reino da necessidade, e necessário é tudo aquilo que tem de ser de certa maneira nem pode deixar de ser; exatamente o oposto de contingência que diz que as coisas podem ser de um jeito e também de outro. Este princípio rege toda a Ciência, sem o qual, inclusive, tampouco seria possível estabelecer qualquer lei. Auguste Comte e, mais tarde, na Psicologia behaviorista, Watson e Skinner, são os principais representantes dessa corrente. 3.4.1.2 – Racionalismo Os filósofos desta corrente procuram pensar a dupla definição do homem como ser determinado e livre. Para eles, o homem é dotado de consciência moral enquanto é capaz de conhecer e decidir sobre suas ações, de modo que mesmo sofrendo influência da cultura, do tempo e do espaço, ele pode identificar estes condicionamentos. Conhecendo as causas, então, seria possível construir um projeto de ação, razão pela qual a liberdade encontrar-se-ia no poder de transformação do homem tanto sobre a natureza do mundo como também da humana. A ação livre, portanto, poderia concretizar-se no trabalho do indivíduo como ser consciente e prático. 3.4.1.3 – Fenomenologia No século 20, filósofos desta corrente tematizaram a questão da liberdade visando a superar justamente a antinomia determinismo-liberdade. Para eles, a liberdade não se efetivaria pela privilegiada atividade da consciência ou da razão, mas a partir de um sujeito situado no espaço e no tempo e capaz de se relacionar com o mundo e consigo mesmo. Por isso, ao invés de os filósofos desta teoria falarem em determinismo e liberdade, referem-se à facticidade (o fato de o sujeito estar no mundo, na forma de um corpo, com determinadas características psicológicas, pertencente a uma família, a um grupo social, situado num tempo e espaço que não escolheu) e à transcendência (o fato de o sujeito não estar no mundo apenas como as coisas estão, por isso seria capaz de superar tais determinações, não para negá-las, mas para lhes dar sentido). Neste caso, a dimensão da liberdade estaria justamente ligada a esta capacidade humana de transcendência. 106 EaD Filosofia e Ética O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) relaciona a liberdade à compreensão do corpo. Para ele, esta seria a condição de nossa experiência no mundo, no sentido de que o corpo não seria um mero objeto no mundo, mas aquilo pelo qual o mundo existe para mim (“sou um corpo e não tenho um corpo”). Não haveria, portanto, um mundo de objetos (facticidade) de um lado, e um mundo da consciência (transcendência) de outro, posto que o mundo apareceria para cada um segundo a sua percepção, sua vivência, seu modo de existir e de dar sentido ao mundo. 3.4.1.4 – Existencialismo Como um dos mais importantes representantes desta corrente, o filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980) destaca uma questão fundamental do existencialismo, expressa na famosa frase “A existência precede a essência”. Em oposição às correntes tradicionais que defendem uma essência humana, uma natureza humana universal, para Sartre o homem, além de não ter uma natureza, é aquilo que se concebe e faz de si mesmo após existir, porque, diferentemente dos animais, é o único capaz de se colocar fora-de-si e se autoexaminar. E mais: por não haver destino, uma essência ou um modelo que o oriente seu futuro encontra-se aberto, razão pela qual, para Sartre, o homem está irremediavelmente condenado a ser livre. 3.4.2 – A Diversidade das Teorias Como vimos, a ética não é um assunto novo. Desde os gregos, os filósofos se debruçam sobre o problema da ética e o vêm fazendo até os dias atuais com discussões cada vez mais complexas. Por isso é que não existe “a ética” propriamente, mas “éticas”, no sentido de que os debates em seu entorno são tão numerosos quanto as tendências de suas abordagens. 3.4.2.1 – Ética Grega Na Antiguidade clássica o sujeito moral não podia ser compreendido na sua completa individualidade. Como os gregos eram, antes de tudo, cidadãos, a ética ligava-se diretamente à política, exatamente onde a liberdade era exercida. Outro aspecto importante da ética grega era o caráter metafísico que ela assumia, ou seja, a busca pela compreensão e sentido do ser, da sua essência. Daí a importância que, desde Sócrates, foi dada à definição do conceito. É justamente nesse sentido que Platão vai defender que “alcançar o bem” está ligado à capacidade de “compreender o bem”. Aristóteles, por seu turno, aprofundou as discussões éticas inicialmente pela busca do fim último de todas as atividades humanas, uma vez que tudo o que fazemos visa àquilo que nos parece ser um bem. Pergunta-se, então, pelo sumo bem, aquele que é em si mesmo um fim e não um meio, coisa que ele encontra no conceito de “vida feliz” (em grego, eudaimonia). Por tal razão, prazer, riqueza, 107 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin honra, fama, não são condições necessárias para nos conduzirem à felicidade, e sim as ações que mais próximas chegam daquilo que é essencial ao ser humano: o exercício da inteligência teórica, a contemplação. A virtude aristotélica, portanto, concilia a ação, um certo modo de vida, com um princípio racional. Assim, a virtude torna-se uma permanente disposição de caráter para querer o bem, supondo a coragem para assumir os valores escolhidos e o enfrentamento dos obstáculos que dificultam a ação, razão pela qual a vida moral não se resume a um ato ocasional e fortuito, mas ao hábito. Ademais, como a moral implica o enfrentamento dos elementos irracionais da alma, como as paixões, Aristóteles cria a teoria da mediania, de encontrar o justo meio: a virtude é boa quando é controlada no seu excesso e na sua falta (a coragem em excesso é audácia e deficiente é covardia). 3.4.2.2 – Ética Helenista Nessa fase (séculos 3º e 2º a.C) a ética surge dividida em duas doutrinas: a hedonista e a estoicista. Quanto à primeira, representada por Epicuro, o bem se encontra no prazer. Não, porém, nos prazeres materiais e corporais, que causam ansiedade e sofrimento, mas nos espirituais, sobretudo na amizade. Já para a segunda, representada por Zeno de Cítio, as paixões devem ser desprezadas, de modo que sábio é aquele que vive de acordo com a natureza e a razão, aceitando de forma impassível o destino e a dor. Ou seja, como para os estoicos o universo segue um movimento e ordem necessários e nada pode ser feito contra ele, a felicidade consiste na liberdade interior de aceitar a dor e o sofrimento. 3.4.2.3 – Ética Medieval Após a queda do Império Romano, a Igreja Católica surge como elemento agregador das diferenças ao difundir a mesma fé cristã. E como único detentor da educação e da tradição greco-romana, o Clero passa a defender a primazia dos elementos sobrenaturais sobre os humanos, de modo que toda ação volta-se à contemplação de Deus e à conquista da vida eterna. Os valores religiosos, portanto, tornam-se definidores das concepções éticas, razão pela qual as concepções de bem e de mal tornam-se dependentes da fé e da esperança de vida após a morte. Por isso mesmo é que a concepção estoica é bem aceita pelo cristianismo, especialmente porque orienta à resignação e ao controle das paixões. 3.4.2.4 – Ética do Dever Um dos maiores expoentes desta corrente é o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804). Para ele, enquanto na natureza tudo é regido segundo leis, no mundo humano as ações são regidas por princípios, porque o homem é portador de vontade e de capacidade de escolha, não é orientado apenas pelos desejos ou instintos. A vontade ou razão prática, então, torna-se o instrumento para compreender o mundo dos costumes e orientar o indivíduo na ação. Assim, 108 EaD Filosofia e Ética ao analisar os princípios da consciência, Kant emprega o conceito de imperativo: aquilo que se impõe como um dever na orientação da ação. Pode ser de tipo hipotético (ordena a ação como um meio: a ação é boa porque possibilita alcançar outra coisa) e de tipo categórico (a ação é necessária por si mesma, é boa em si, e não por ter como objetivo outra coisa). Para Kant, porém, a vontade humana é verdadeiramente moral quando regida pelo imperativo categórico. Por isso rejeita as concepções éticas desenvolvidas até então, que norteiam a ação a partir de condicionantes como a felicidade ou o prazer. A ação não pode ser movida por interesses, mas deve estar fundada na razão, além de ser universal, necessária e não meramente subjetiva. O imperativo categórico assim rege: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (Kant, 1980, p. 129). É importante ressaltar que o imperativo kantiano não é exterior ao indivíduo, imposto de fora ao sujeito, mas é um dever autoimposto. Daí a ideia de autonomia tão cara a Kant: ela não visa apenas a uma realização subjetiva, mas à universalidade. A ação moral, portanto, é aquela que pode ser exercida por todos, indiscriminadamente. Isso leva a outro conceito kantiano, o da dignidade humana: “Aja de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (Kant, 1980, p. 135). 3.4.2.5 – Ética Consequencialista O consequencialismo afirma que devemos agir de modo a aumentar os benefícios produzidos por nossa ação, independentemente da situação. Em geral, ele pretende resolver os dilemas éticos, ou seja, uma situação complexa que coloca demandas contraditórias cujas consequências são igualmente negativas, mas dentre as quais é preciso decidir. Ex.: dilema do maquinista. 3.4.2.5.1 – Ética Utilitarista É um tipo de consequencialismo. Seu criador foi Jeremy Bentham (17481832) e seu divulgador foi John Stuart Mill (1806-1873). Segundo tal concepção o critério de avaliação do ato moral é considerar o bem como aquilo que possibilita a felicidade, reduz a dor e o sofrimento e beneficia o maior número de pessoas. À semelhança do hedonismo grego, portanto, para o utilitarista a felicidade é o critério para avaliar as consequências de uma ação, de modo que a busca do prazer deve levar em consideração o caráter social e não apenas pessoal. 3.4.2.6 – Ética nietzschiana Nietzsche critica a tradição por ter valorizado demasiadamente a consciência como capaz de dominar as paixões. Em contrapartida, seu pensamento orienta-se na perspectiva de recuperar as forças vitais, instintivas, que foram subjugadas pela razão durante séculos. Critica a tradição grega socrática, o 109 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin cristianismo e o pensamento moderno, denunciando a incompatibilidade entre moral e vida, no sentido de que sob o domínio da moral, o homem torna-se fraco, doente e culpado. Ao fazer a crítica à tradição e propor a “transvaloração dos valores”, Nietzsche questiona o valor dos valores, ou seja, busca saber como, quando e porque foram criados, alegando que os valores de bem e mal não foram senão criados pelo próprio homem. Diante disso, cria a genealogia como método: a busca pela origem da moral, mostrando as lacunas, o que não foi dito, os valores que predominaram na cultura de modo inquestionável. Assim, Nietzsche denuncia a falsa moral de rebanho, de escravos, que submetem os instintos vitais em nome da bondade, da humildade e da piedade. 3.4.2.7 – Ética do Discurso No século 20 a consciência, tal como era entendida na modernidade, deixou de ser o critério último de avaliação e cedeu lugar à interpretação da linguagem. Nesse sentido, é que o filósofo Jürgen Habermas (1929) desenvolve a teoria da ação comunicativa, recorrendo à razão para sua fundamentação. Uma razão, porém, fundada no sujeito, mais especificamente na interação entre os indivíduos do grupo e mediada pela linguagem, pelo discurso, formada por seres capazes de se posicionarem criticamente diante das normas. As normas, assim, são formuladas a partir do diálogo e do consenso, supondo o entendimento e a possibilidade de convencimento do outro mediante argumentos racionais, pelo que a sociabilidade, a espontaneidade, a solidariedade e a cooperação são instauradas. Referências CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 6. ed. São Paulo: Ática, 1991. COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Filosofar. São Paulo: Saraiva, 2010. GIANOTTI, José Arthur. Moralidade pública e moralidade privada. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura, 1992. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1980. LA TAILLE, Yves de. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre: Artmed, 2006. LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 2000. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de (Org.). Correntes fundamentais da ética contemporânea. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. 110 EaD Filosofia e Ética Seção 3.5 Responsabilidade moral, determinismo e liberdade35 Aloísio Ruedell 36 O nível da vida moral depende da responsabilidade dos indivíduos ou grupos sociais em relação ao seu comportamento. Atos propriamente morais são somente aqueles aos quais se pode atribuir responsabilidade a quem os realiza, tanto responsabilidade no que se propôs realizar quanto pelos resultados ou consequências de sua ação. 36 O problema da responsabilidade moral está, por sua vez, ligado com o da necessidade e liberdade humanas. Somente pode ser responsabilizado por seus atos quem tem liberdade de opção e de decisão. Isso significa que, para avaliar determinado ato, não basta julgá-lo segundo uma norma ou regra de ação. Também é preciso examinar as condições concretas, nas quais é praticado, para verificar se existe possibilidade de opção e decisão livres, condição necessária para lhe poder imputar uma responsabilidade moral. Vejamos um exemplo! Se João rouba na casa de Pedro, seu amigo, a reprovação moral deste ato, ao que parece, não oferece dúvida alguma. A condenação de João se justifica, porque roubar a um amigo não tem desculpa. E se a ação de João não tem desculpa, então não se pode eximi-lo da responsabilidade. Suponhamos ainda a situação em que João, além de sua relação de amizade com Pedro, tenha uma situação econômica favorável, sem suspeita de que poderia ter roubado por necessidade. Nada disso poderá explicar o roubo. A realidade, entretanto, muda: tudo ficará diferente quando soubermos que João é cleptomaníaco. Com essa informação cessa a reprovação do ato. Não seria justo atribuir-lhe uma responsabilidade, mas, ao contrário, seria necessário eximi-lo dela, considerando-o um doente, que realiza um ato – normalmente ilícito – por não conseguir se controlar. Reelaboração do texto que consta em: VÁSQUEZ, Adolfo. Ética. Tradução de João Dell’Anna; 18. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 87-109. 35 A liberdade guiando o povo – Delacroix. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia. 36 111 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin A partir desse exemplo, podemos perguntar: “Quais as condições necessárias e suficientes, para poder imputar a alguém uma responsabilidade moral por determinado ato” (Vásquez, 1998, p. 88)? Em outras palavras: Em que condições uma pessoa pode ser louvada ou censurada por seu agir? Quando se pode dizer que alguém é responsável por seus atos “ou se pode isentá-lo, total ou parcialmente, de sua responsabilidade” (1998, p. 88)? Já desde Aristóteles a resposta a essa pergunta evidencia duas condições fundamentais: ser consciente e ser livre. Ou seja: 1. “que o sujeito não ignore nem as circunstâncias nem as consequências da sua ação” (Vásquez, 1998, p. 88) ou comportamento; 2. que a causa de seus atos esteja nele próprio, e não em outro agente externo, que o force a agir contra sua vontade. Ou ainda: para que haja responsabilidade moral, supõe-se conhecimento (do ato e de suas consequências) e liberdade. A ignorância, ao contrário, e a falta de liberdade permitem eximir o sujeito da responsabilidade moral. Vamos ainda examinar mais detalhadamente essa duas condições fundamentais da responsabilidade moral. 3.5.1 – Ignorância e Responsabilidade Moral Considerando que somente pode ser responsabilizado quem decide e age conscientemente, é evidente que deve ser eximido da responsabilidade moral aquele que não tem consciência do que faz, ou seja, ignora as circunstâncias e a natureza de sua ação. A ignorância é condição que exime da responsabilidade moral. Será, no entanto, que toda e qualquer ignorância exime da responsabilidade? Há duas possibilidades: 1. A situação em que o sujeito ignora as circunstâncias de sua ação e também não tem a obrigação e a possibilidade de conhecê-las; 2. A situação em que o sujeito ignora as circunstâncias de sua ação, mas tinha possibilidade e obrigação de conhecê-las. Em relação à primeira situação, podemos nos referir à criança, que, em certa fase do seu desenvolvimento, ainda não acumulou a experiência social necessária para que seja responsabilizada por todos os seus atos. Há situações em que a criança ignora as circunstâncias daquilo que faz e também não tem obrigação de conhecê-las, porque o estágio de seu desenvolvimento ainda não o permite. Nessas situações ela não pode ter responsabilidade moral. Para ilustrar a segunda situação, vejamos o exemplo de um motorista. Imaginemos um motorista que decidiu fazer uma longa viagem e se chocou com outro carro que estava parado por defeito na estrada, provocando grandes prejuízos materiais e pessoais. Ele pode alegar que não viu o carro estacionado, ignorava sua presença (as circunstância da ação) porque a luz de seus faróis era muito fraca. Essa desculpa, obviamente, não pode ser aceita, porque ele poderia e deveria ver o carro parado, se tivesse feito a revisão dos faróis, como é 112 EaD Filosofia e Ética obrigação moral de quem viaja à noite. Assim, ele ignorava as circunstâncias da estrada, mas tinha obrigação de conhecê-las. Neste caso, não pode ser eximido da responsabilidade moral. 3.5.2 – Coação Externa e Responsabilidade Moral A segunda condição para que alguém possa ser responsabilizado por seus atos é a exigência de a causa deles estar nele próprio, e não vir de fora, de algo ou um sujeito estranho, que o force a agir contra sua vontade, pois, quando o indivíduo está sob pressão ou coação externa, perde o controle de seus atos, ficando sem condições de escolher e decidir com liberdade. Na medida em que isso acontecer, o indivíduo não pode ser responsabilizado por seus atos. Para ilustrar essa situação, podemos nos referir a um motorista, que, andando numa velocidade regulamentar e dirigindo com habilidade, acaba causando um acidente fatal com outro carro, ao querer desviar de um pedestre que inesperadamente cruzou na sua frente. O motorista pode ser moralmente responsabilizado? Ele alega que fez tudo para não matar o pedestre, mas, infelizmente, acabou causando outra morte. Está claro que, nesse caso, ele não decidiu livremente matar; a causa da morte estava fora dele e, por isso, com razão pode dizer que não se sente responsável. A causa da coação externa, no entanto, pode provir não apenas de algo, circunstâncias imprevistas, mas de alguém que, consciente e voluntariamente força o sujeito a realizar um ato que não quer fazer, ou seja, que não escolheu e decidiu. Assim, por exemplo, alguém pode ser forçado, sob a mira de um revólver, a assinar um documento que ele não queria assinar. Nesse caso, a coação externa, física, não deixa possibilidade de optar, ou seja, não permite agir como gostaria. Dessa forma, a coação externa pode anular a vontade e a liberdade do agente moral, eximindo-o de sua responsabilidade. Isso, porém, não pode ser tomado em sentido absoluto, porque há situações em que, apesar da pressão externa, sobra uma certa margem de opção. Se não houvesse essa possibilidade, os principais dirigentes do nazismo, no famoso processo de Nüremberg, deveriam todos ser inocentados, porque todos alegam ou ignorância dos fatos ou a necessidade de cumprir ordens superiores. Ou será que, de fato, nenhum deles tinha responsabilidade? 3.5.3 – Coação Interna e Responsabilidade Moral Vimos que o sujeito não é responsável pelos atos que têm sua causa fora dele. A pergunta agora é: Ele será responsável por todos os atos que têm sua causa ou fonte dentro dele? Ou pode haver algum ato, cuja causa esteja no sujeito e pelo qual não seja moralmente responsável? 113 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Para responder a essas questões convém, antes, relembrar que “o homem só pode ser moralmente responsável pelos atos cuja natureza conhece e cujas consequências pode prever, assim como por aqueles que, por se realizarem na ausência de uma coação extrema, estão sob seu domínio e controle” (Vásquez, 1998, p. 94-95). Considerando essas afirmações gerais, pode-se dizer que o indivíduo normal é “moralmente responsável pelo roubo que comete”, diferente do “cleptomaníaco, que rouba por um impulso irresistível” (Vásquez, 1998, p. 95). Assim também o assassinato é moralmente reprovável, e quem o comete contrai responsabilidade moral. Pergunta-se, entretanto: Pode ser moralmente responsável “o neurótico que mata num momento de crise aguda” de sua neurose? Ainda numa outra situação, considera-se normalmente reprovável o comportamento do homem que dirige frases obscenas a uma mulher, e quem procede dessa maneira contrai responsabilidade moral. Se quem faz isso, porém, é um doente sexual e age levado por motivos inconscientes, ainda se pode falar em responsabilidade moral? Está claro que os três casos aqui referidos – cleptomania, neurose e desajuste sexual – são situações de forte coação interna. São situações nas quais o sujeito não tem consciência, ao menos não no momento, dos verdadeiros motivos, da natureza e das consequências de seu ato. Apesar de o ato se originar do íntimo de quem o comete, este não tem o controle sobre ele; propriamente não lhe pertence. A coação interna é tão forte que o sujeito não consegue agir de outra maneira. Os três exemplos referidos são obviamente casos extremos, casos de coação interna, contra a qual o sujeito não consegue resistir de forma alguma. São situações de doença ou de anormalidade que podem ocorrer. Embora seja difícil estabelecer uma linha divisória entre o normal e o anormal ou doentio, “as pessoas que costumamos considerar normais não agem sob uma coação irresistível, embora seja indiscutível que sempre se encontram sob uma coação interna relativa” (Vásquez, 1998, p. 96). 3.5.4 – Responsabilidade Moral e Liberdade Vimos que a responsabilidade moral requer ausência de coação externa e interna, ou então a possibilidade de lhe resistir, em maior ou menor grau. Pressupõe que o sujeito aja não como resultado de uma coação irresistível, mas “como consequência da decisão de agir como queria agir, quando poderia ter agido de outra maneira” (Vásquez, 1998, p. 96). A responsabilidade moral, portanto, pressupõe a possibilidade de decidir e agir, superando a coação externa e interna. Se alguém, no entanto, tem essa possibilidade de resistir à coação e, nesse sentido, é livre, isso ainda não é toda a explicação do problema da responsabilidade moral em relação à liberdade, pois embora o homem possa agir livremente, na ausência de coação externa e interna, encontra-se sempre sujeito 114 EaD Filosofia e Ética a causas que determinam sua ação. Se, de um lado, a responsabilidade moral exige a possibilidade de decidir e agir livremente, formamos, de outro, parte de um mundo causalmente determinado. Como se conciliam essas duas perspectivas de nossa vida: a determinação de nosso comportamento e a liberdade de nossa vontade? Vimos que somente há responsabilidade se existe liberdade. Até que ponto, então, o homem é moralmente responsável por seus atos, se estes se dão no contexto de uma determinação causal? A solução do problema da responsabilidade moral depende da questão das relações entre determinação causal (determinismo) do comportamento humano e a liberdade da vontade. Já é um problema ético antigo, para o qual encontramos, historicamente, duas posições diametralmente opostas: o determinismo absoluto e o libertarismo e, por fim, uma tentativa de síntese entre as duas: dialética da liberdade e da necessidade. 3.5.4.1 – O Determinismo Absoluto A posição do determinismo absoluto baseia-se no princípio de que neste mundo tudo tem uma causa. A experiência do cotidiano e a própria ciência confirmam essa tese. A ciência já parte desse pressuposto de que tudo tem uma causa, embora esta nem sempre possa ser conhecida. Neste caso, se de fato é assim, se tudo é causado, como podemos evitar agir como agimos? Se aquilo que fazemos é resultado de atos anteriores, que, possivelmente, nem conhecemos, como podemos afirmar que nossa ação é livre? Pois também nossa decisão, nosso ato voluntário é causado por um conjunto de circunstâncias. Não nos resta outra saída do que reconhecer que a posição do determinismo absoluto é incompatível com a liberdade. Afirmando que o comportamento do homem é totalmente determinado pelas circunstâncias, não tem mais sentido falar em liberdade e, por conseguinte, em responsabilidade moral. 3.5.4.2 – O Libertarismo Na posição do libertarismo nega-se que o agente esteja causalmente determinado, quer de fora, quer de dentro. Parte-se da liberdade como um dado da experiência imediata, ou como uma convicção que não pode ser destruída pela existência da causalidade. Embora se admita que o homem esteja sob uma determinação causal, por ser parte da natureza e estar inserido na sociedade, “acredita-se que exista uma esfera do comportamento humano – e muito especialmente a moral – na qual é absolutamente livre; isto é, livre a respeito da determinação dos fatores causais” (Vásquez, 1998, p. 101-102). O libertarismo caracteriza-se pela contraposição entre liberdade e necessidade causal. A liberdade exclui o princípio causal, pois se nosso querer, decidir ou fazer fossem resultado de causas, então não seriam livres. “A liberdade, portanto, implica numa ruptura da continuidade causal universal. Ser livre é ser incausado” (Vásquez, 1998, p. 102). 115 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin 3.5.4.3 – Dialética Entre Liberdade e Necessidade Uma posição conciliadora entre determinismo absoluto e o libertarismo argumenta que o comportamento humano se dá numa dialética entre liberdade e necessidade. Se o comportamento do homem é determinado, essa determinação não anula a liberdade, mas, ao contrário, é sua condição de possibilidade. A liberdade, pois, não existe em abstrato, fora da História e da sociedade. Ela sempre implica uma ação do homem concreto, que se baseia na compreensão da necessidade causal. É uma liberdade que não exclui a determinação causal, mas, ao contrário, mediante ou por cima dela se afirma ou conquista. Não há dúvidas de que a responsabilidade moral pressupõe certo grau de liberdade, e esta, por sua vez, também implica a necessidade causal. Responsabilidade moral, liberdade e necessidade estão, por isso, “indissoluvelmente entrelaçadas no ato moral” (Vásquez, 1998, p. 109). Referências CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 6. ed. São Paulo: Ática, 1991. COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Filosofar. São Paulo: Saraiva, 2010. GIANOTTI, José Arthur. Moralidade pública e moralidade privada. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura, 1992. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultura, 1980. LA TAILLE, Yves de. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre: Artmed, 2006. LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 2000. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de (Org.). Correntes fundamentais da ética contemporânea. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. 116 EaD Filosofia e Ética Seção 3.6 Considerações sobre ética, política e cidadania Valdir Graniel Kinn Questões Preliminares 37 Vivemos um período histórico ímpar da humanidade. Presenciamos um pro­cesso de profundas mudanças políticas, econômicas e sociais em âmbito mundial, com fortes reflexos em âmbito nacional. 37 Estamos, segundo inúmeros teóricos, na plenitude da globalização e a afirmação definitiva de um único modelo econômico/político. Fala-se, inclusive, no fim da História e a instauração definitiva do último “ismo” (capitalismo). Estamos, também, na iminência de um novo século e de um novo milênio e, mesmo assim, boa parte da humanidade aguarda ainda por uma resposta ética/política/social, capaz de lhe garantir uma vida digna e plena de paz. Apesar disso, muitos ainda insistem na ideia de que o espaço da política é um espaço reser­vado apenas para alguns, os denominados “políticos”. Há ainda um amplo movimento de desvalorização e descrença na política e nas possibilidades que a ação política pode produzir em termos da construção de uma sociedade mais justa (ética) e adequada ao bem-viver humano. O momento é de extrema desconfiança em relação à importância e dignidade da ação política. Conforme enfatiza Garcia (1997, p. 6), hoje, a suspeita não se estende apenas sobre quem deve ocupar-se com a política, mas também sobre a idéia mesma de que a política deva ser considerada entre as mais dignas e necessárias atividades humanas. Se antes a idéia de participação e responsabilidade no âmbito das interações humanas e do interesse comum indicava uma imensa restrição aos homens comuns, hoje o que se generaliza, sobretudo nas sociedades mais ricas, a indiferença, o desinteresse, e a descrença da política como lugar decisivo onde possa ganhar forma o interesse possível de todos. Se é difícil descrever em detalhes as decisões, acasos, escolhas e circunstâncias que se somaram para produzir nossa presente situação, é fácil no entanto constatar que se esvaneceu a antiga dignidade greco-romana atribuída à política como responsabilidade pelo bem comum. Guernica – Pablo Picasso. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia. 37 117 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Talvez em nenhuma época da humanidade se faz tão necessário refletir sobre o “político”, como na nossa. Mais que nunca é fundamental que a ação política e a reflexão sobre o significado desta ação sejam retomadas entre as mais dignas e imprescindíveis atividades que tornam possível ao ser humano dar conta dos sentidos e das tarefas de seu tempo. “É preciso reafirmar com convicção de que a ‘política’ mais que um ‘termo’ e/ou ‘objeto’ de reflexão, diz respeito à atividade e interesse essencial à condição humana” (Garcia, 1997, p. 13). Neste sentido, a reflexão sobre a política e seu processo de fundamentação tem se constituído numa preocupação teórica permanente na Filosofia. Uma das principais discussões da Filosofia política contemporânea tem como fulcro de suas atenções o Estado. Discute-se, por exemplo, qual deve ser seu lugar, sua função, sua dimensão e, principalmente, qual deve ser a medida adequada do seu poder. Para isso faz-se fundamental uma ampla reflexão sobre as suas dimensões e a sua fundamentação ética. 3.6.1 – Sobre Ética/Política A presente exposição não tem a pretensão de ser um tratado sobre ética-polí­tica, ao contrário, o que se deseja é levantar e problematizar alguns elementos que possam nos auxiliar e/ou indicar caminhos no exercício de busca por compreensão desta complexa e vasta temática. A partir do mundo moderno e, em especial, do mundo e da política contemporâneos, ética e política tornaram-se dois conceitos que, não necessariamente, fazem parte de um mesmo processo. No plano da reflexão teórica/ filosófica/política, assim como da ação política, tem-se discutido e insistido na necessidade da ética na política ou ainda, da ação política feita a partir de pressupostos éticos. Em outros termos, isto significa dizer que a ação ética e a política não possuem, necessariamente, a mesma natureza, podendo ser pensadas e/ou desenvolvidas de forma distinta ou, até mesmo, antagônicas. Os conceitos de ética e política, porém, na forma como a tradição filosófica grega originalmente os haviam pensado, não são conceitos distintos que possam ser instituídos e pensados desarticulados ou antagônicos. Genericamente é possível afirmar que as teorias políticas clássicas da antiga Grécia são marcadas pela profunda intenção de dizer qual é a melhor forma de construir um modelo político que esteja em sintonia com o ideal de justiça. A lei, neste sentido, deve ser a expressão da justiça. A ação política, na perspectiva clássica engendrada pelos gregos, é uma ação necessariamente ética, pois ela deve sempre visar ao que é o melhor, o mais justo para o cidadão e para a cidade. A este respeito, num sucinto, porém brilhante artigo intitulado Ética e Política, H. Vaz argumenta que: [...] as teorias políticas clássicas, de Platão a Cícero, se propõem como teorias da melhor constituição: não da que garante mais eficazmente o exercício do poder, mas da que define as condições melhores para a prática da justiça. Se, como ensina Aristóteles, o homem é vivente político (Zôon politikón) porque 118 EaD Filosofia e Ética é vivente racional (zôon logikón), a ciência política tem como objeto definir a forma de racionalidade que vincula o livre agir do cidadão à necessidade, in­trínseca à própria liberdade e, portanto, eminentemente ética, de conformarse com a norma universal da justiça. A racionalidade política na conceituação clássica é, pois, essencialmente teleológica. Ela é ordenadora de uma prática em vista de um fim, que é a justiça na cidade. [...] E se é verdade que Aristóteles introduz uma diferença de natureza metodológica entre ciência teórica e ciência prática, a definição da ciência prática fortalece o finalismo do Bem que unifica Ética e Política segundo a mesma razão do melhor, ou seja, do que é mais justo para o indivíduo e para cidade (1988, p. 258-259). Como é possível perceber, para o pensamento político clássico a busca pela consecução do ideal de justiça faz com que se unifique ética e política. Ambos os conceitos ética e política fazem parte indissociável do processo de edificação de uma sociedade que tenha como fim a justiça, a realização da ideia de Bem. Sendo assim, ao considerarmos exclusivamente as origens da nossa tradição filosófica/política/cultural, não faz sentido falar em ação política dissociada da dimensão da eticidade. Segundo a perspectiva política clássica, da qual somos herdeiros e devedores, a ética constitui parte integrante da vida política e isso implica que tanto a ação política quanto a ética, necessariamente, não devem ser consideradas separadamente. O advento do pensamento moderno e da modernidade enquanto evento histó­rico/social/político/cultural produz um significativo processo de mudança/ ruptura na concepção e na forma do agir político. Na teoria política moderna, que é, sob vários aspectos, impulsionadora e instauradora de um novo modelo para a ação política, a ética, não necessariamente, é parte constitutiva desta ação. Na modernidade instala-se um processo de divórcio entre as dimensões do ético e do político. É possível afirmar que o primeiro incitador e/ou mentor teórico deste divórcio é Maquiavel. Com a teoria política de Maquiavel instala-se em definitivo o processo de cisão entre o ético e o político. A partir desta nova perspectiva filosófica/política/ética, presente no horizonte da modernidade, o poder passa a ser a meta primordial/essencial da reflexão e da ação política. Segundo H. Vaz (1988, p. 259), [...] na aurora dos tempos modernos, a vontade de poder se impõe como constitutiva do político, sem outra finalidade a não ser ela mesma e sem outras razões legitimadoras senão as que podem ser deduzidas da hipótese inicial da sua força soberana. O mundo da ação política passa a pesar sobre o homem moderno como um destino trágico que encontra sua primeira figura, de incom­ parável vigor, no Príncipe de Maquiavel. A partir de então, acentua-se, com a identificação entre política e “técnica do poder”, a cisão entre Ética e Política. E justamente com o advento do mundo moderno, tão saudado e exaltado pelos seus avanços em âmbito técnico-científico, pela evolução em termos de razão comunicativa que, porém, produz-se, em termos da política, uma significativa defasagem ética. Diferentemente do mundo clássico grego, na modernidade rompe-se com a original complementaridade entre ética e política. A ação 119 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin política passa a carregar a marca da ausência de um necessário vínculo ético, tendo como meta fundamental o acesso ao poder. O poder torna-se o objetivo essencial e fundante da ação política. A meta é o poder e não necessariamente o bem-estar da coletividade. A partir de então, a questão central em termos de política passa a ser qual a melhor estratégia para se atingir o elemento/meta fundante da ação política, ou seja: o poder. Assim, política resume-se a um exercício técnico/estratégico – definição de quais os melhores procedimentos e/ou discursos – de luta pelo poder. Outro elemento que corrobora significativamente com este processo de rompimento/cisão entre ética e política provém do próprio campo da ética na sua designação moderna, ou seja: aquilo que se denominou teoricamente como o “refluxo individualista da ética moderna”. Conforme Vaz (1988, p. 260), “Teoricamente a cisão entre Ética e Política acaba sendo consagrada pelo refluxo individualista da Ética moderna que irá condicionar a ideia de ‘comunidade ética’ ao postulado rigoroso da autonomia do sujeito moral tal como o definiu Kant.” No plano da Filosofia política, antes de Kant, o esforço passa a se concentrar na busca teórica por fundamentação e legitimação do poder, uma vez que este se torna o elemento central e fundante da vida política no mundo moderno. Sob vários aspectos, os teóricos vão retomar o princípio básico herdado da tradição clássica, em que o poder não é um fim em si mesmo e para ser político, carece de legitimação – forma­lizada na forma de leis. Retomando mais uma vez a perspectiva construída por Vaz (op. cit., p. 260), [...] a idéia de vida política no Ocidente não pode renunciar ao princípio fundamental da herança clássica: o poder só é político na medida em que for legítimo, isto é, circunscrito e regido por leis. [...] Por outro lado, a lei que legitima o poder deve ser uma lei justa, isto é, garantidora e reguladora do direito do cidadão. [...] Eis a Ética introduzida no coração da política e eis definidos os termos, aparentemente inconciliáveis, cuja síntese passa desafiar o pensamento político moderno: como definir o Estado do poder [...] como Esta­do de direito? A partir desta perspectiva é possível afirmar que o elemento aglutinador, ou melhor, o fio condutor que vai marcar e direcionar a ação política, assim como as teorias políticas no alvorecer do mundo moderno, é a questão da soberania poder soberano e onde reside sua fonte de legitimação. Coerente com esta premissa básica, de que o poder político carece de fundamentação e legitimação, T. Hobbes vai ser o primeiro autor a efetivamente dar forma teórica a uma nova matriz conceitual que, por um longo período e sob certos aspectos ainda vigora até o hoje vai servir de base às teorias políticas da modernidade: o contratualismo e/ou jusnaturalismo moderno. Com Hobbes e o modelo jusnaturalista moderno, a Filosofia política passa por um significativo processo de transformação, ganhando um novo modelo teórico/argumentativo. Inaugura-se uma nova concepção do universo político, na qual o Estado deixa de ser resultado de um processo evolutivo/natural, não 120 EaD Filosofia e Ética estando, também, atrelado a uma concepção divino/metafísica. Assim o poder político, não sendo mais natural e/ou representativo de uma delegação divina, torna-se artificial. Passa a ser concebido enquanto uma construção racional, genuinamente humana, resultante, única e exclusivamente, das intenções e vontades dos seus artífices. Do ponto de vista político, a partir do modelo teórico hobbesiano, o homem está abandonado as suas próprias necessidades e capacidades racionais. Por meio da teoria jusnaturalista moderna processa-se uma inovação importan­te, qual seja: a unidade metodológica de argumentação. Parafraseando N. Bobbio e Bovero (1994), no que concerne à teoria jusnaturalista, pode-se afirmar que o método que une autores tão diversos é o método racional, ou seja, deve permitir a redução do Direito e da moral (bem como da política), pela primeira vez na História da reflexão sobre a conduta humana, a uma ciência demonstrativa. Desta forma, o Direito natural moderno passou a ser designado como Direito racional. Isso significa que o mesmo não possui mais como base um princípio ontológico metafísico, mas busca desenvolver-se segundo critérios racionais. Referir-se ao contrato social na perspectiva da teoria jusnaturalista moderna significa perguntar pelo fundamento de legitimidade da sociedade civil, pois no jusnaturalismo a legitimação reside sempre em alguma forma de contrato social, uma vez que o Estado não é mais uma realidade natural. Natural é, pelo contrário, a situação de ausência do Estado. Assim, o Estado deve ser compreendido enquanto resultado de um ato voluntário e racional por parte dos indivíduos que dele participam. Para Hobbes (1988), o contrato38 significa a passagem do estado de natureza para o Estado civil, que implica a substituição da ordem natural por uma ordem artificial. Implica também, um ato de renúncia aos direitos individuais/ naturais em favor de um novo sujeito político, que passa a ser o novo titular do poder, agora reunido em um só sujeito, ou seja: “o soberano”. É exatamente este processo de acordo contratual que designa e institui o fundamento racional da sociedade civil e da concepção polí­tica hobbesiana como um todo. Hobbes é frequentemente identificado como o iniciador do modelo jusnaturalista moderno, porém ele não é o inventor da teoria do contrato em matéria política. “Existia a respeito uma antiquíssima idéia, que se atribuiu a Epicuro e mesmo a pensadores mais remotos. Era um aspecto da busca racional – tão importante na história das idéias políticas – da origem do Poder. Semelhante busca fora dominada, em geral, pela segunda intenção de enfraquecer o Poder, de limitá-lo fundando racionalmente os direitos dos súditos em face dos seus. Na verdade, os teólogos da Idade Média haviam distinguido dois contratos. Pelo primeiro, dito pactum unionis ou societatis, os homens, isolados do estado de natureza, constituíam-se em sociedade. Pelo segundo, dito pactum subjectionis, ou de submissão, a sociedade assim constituída, transferindo ou alienando seus poderes sob certas condições, propiciava-se um senhor, um soberano” (Chevallier, 1995, p.72). Segundo a leitura de Paulo J. Krischke, Johannes Althusius (1557-1638) deve ser considerado “[...] como primeiro defensor articulado do contrato social, por ocasião das revoluções antiabsolutistas que inauguraram os Estados modernos no Ocidente. [...] A sua proposta encaminhava, portanto, uma pirâmide acumulativa e sucessiva de contratos (ou dimensões menores, constitutivas do ‘contrato original’), que resultavam na delegação condicional da ‘suprema magistratura’ ao governo máximo (através dos representantes das unidades que constituíam o Estado em todos os seus níveis). [...] Apresenta-se assim, pela primeira vez, uma defesa do ‘contrato original’ de formação de um governo legitimado pelo consentimento popular (condicional) [...]” (Krischke, 1993, p. 28-29). 38 121 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin O estado de natureza hobbesiano caracteriza-se por uma situação de perma­nente insegurança, o que o torna restritivo e impeditivo do agir humano, segundo os preceitos da razão. Sendo assim, a condição necessária para que se possa viver em segurança é a instauração da paz, de forma definitiva. Na visão de Hobbes, o único meio para garantir a paz e fazer com que os homens ajam racionalmente, é a construção do pacto original/universal. Sobre as características fundamentais desse acordo e/ou pacto original, o autor é incisivo. Inicialmente deve ser um pacto de muitos – da absoluta maioria – e, principalmente, precisa possuir o caráter permanente, jamais temporário. Outro aspecto importante do pacto hobbesiano diz respeito a sua própria gênese e natureza. Ele deve transcender o nível meramente associativo entre os indivíduos com interesses comuns, tendo de viabilizar a criação de um novo ente de poder. “[...] Hobbes recusa nitidamente a doutrina que funda o Estado no pactum societatis e que identifica a sociedade civil com uma simples sociedade de ajuda mútua” (Bobbio, 1991, p. 41). Para a teoria hobbesiana, o pacto original deve, necessariamente, fazer surgir um terceiro elemento, absolutamente independente e artificial. Hobbes, ao tratar das causas, da geração e definição do Estado, refere-se à necessidade deste acordo contratual entre os homens, ao afirmar: A única maneira de instituir um tal poder comum, [...] é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. [...] Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas (Hobbes, 1988, p. 105). Com Rousseau, o modelo teórico hobbesiano passa por um processo de críti­ca, aprimoramento e complexificação, sem que isso signifique sua negação. Rousseau, em conformidade com Hobbes, assegura que o Estado é uma construção humana/artificial – um artefato racional –, contrapondo-se, assim, à tese de que o homem é, desde sua gênese – por natureza – um ser social/político. Por natureza, segundo Rousseau (1987), o homem é um ser antissocial, que vive apenas para si mesmo. Assim, a partir da teoria jusnaturalista e, em especial, a partir de Hobbes, o Estado torna-se uma instituição absolutamente artificial/racional e, como tal, uma construção genuinamente humana. No jusnaturalismo o Estado é identificado como o lugar – o habitat – por excelência da razão. 122 EaD Filosofia e Ética Com o desenvolvimento da teoria racional do Estado, mediante o jusnaturalismo, ocorre um progressivo processo de secularização do poder político e da própria vida civil como um todo. Este fenômeno, por sua vez, possibilita o efetivo desencadeamento do processo de emancipação política do homem, tornando-o liberto das maquinações e armadilhas do destino, da volúpia incontrolável das paixões naturais e, também, permite a distinção e separação definitiva das atividades e atribuições do Estado, daquelas exercidas pelas autoridades religiosas. A política e o poder político, por meio da racionalização do Estado, imposta pela concepção jusnaturalista, não se encontram mais sob a tutela das verdades teológicas. Segundo Bobbio Bovero (1994, p. 88), construir racionalmente uma teoria do Estado significa prescindir totalmente de qualquer argumento (e, portanto, de qualquer subsídio) de caráter teológico, ao qual sempre recorrera a doutrina tradicional, na tentativa de explicar a origem da sociedade humana em suas várias formas; [...] significa buscar explicar e justificar um fato puramente humano como o Estado partindo da natureza humana, das paixões, dos instintos, dos apetites, dos interesses que fazem do homem um ser sociável/insociável, ou, em suma, partindo dos indivíduos [...] Fica evidente que o elemento teórico que caracteriza e ao mesmo tempo distingue o modelo jusnaturalista das demais filosofias que o antecederam reside no fato de que, para os teóricos jusnaturalistas, a questão central é a construção de uma teoria racional do Estado. Quer dizer, uma teoria que esteja “[...] apoiada em princípios evidentes e deduzida desses princípios de modo logicamente rigoroso” (Bobbio; Bovero, 1994, p. 87). A antítese básica, a partir da qual se estrutura a teoria racional do Estado, engendrada pelo jusnaturalismo, encontra-se na tensão indissolúvel entre as paixões humanas e a razão. O Estado, enquanto ente racional por excelência, surge como consequência necessária e/ou inevitável deste tensionamento produzido pelo embate das paixões e razão humana. O Estado e sua racionalidade característica constituem-se no elemento capaz de fazer com que a racionalidade passe a ser o agente propulsor e mediador das ações entre os homens. Isto não significa, porém, a eliminação das paixões, que são típicas da natureza humana. Assim, o Estado surge como o instru­mento, “[...] como o garante do interesse coletivo, do útil mediato, que é o ‘verdadeiro’ útil, precisamente o útil tal como é sugerido pela reta razão” (Bobbio; Bovero, 1994, p. 88). O jusnaturalismo e sua teoria racional do Estado fazem surgir o Estado racio­nal – um Estado que é produto das necessidades, dos interesses e da inteligência racional daqueles que, de forma livre e autônoma, decidiram criá-lo mediante um contrato que conta com o consentimento de todos os partícipes. Ele é o único ele­mento capaz de garantir o direito natural supremo, que é o direito à vida. Desta forma, o Estado torna-se o gestor e o lugar por excelência da vida regida pela razão, que é a única forma de vida em que há possibilidade de 123 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin previsibilidade e garantia dos direitos que competem a cada indivíduo. Sendo assim, o Estado, na perspectiva jusnaturalista, pode ser compreendido enquanto produto da vontade racional dos in­divíduos que o constituem. Hobbes, enquanto representante teórico do jusnaturalismo, no intuito de de­monstrar as vantagens e o significado do Estado como sede da vida racional, afirma: Fora desse estado, todo homem tem direito a tudo, sem poder desfrutar, porém, de nada; nesse estado, cada um pode desfrutar, em segurança, do seu direito limitado. [...] Finalmente: fora dele, assistimos ao domínio das pai­ xões, da guerra, do medo, da miséria, da imundície, da solidão, da barbárie, da ignorância, da crueldade; nele, ao domínio da razão, da paz, da segurança, das riquezas, da decência, da sociedade, da elegância, das ciências e da benevolência (Hobbes, 1992, p. 78). O Estado é, desta forma, a única maneira pela qual os homens podem viver segundo os preceitos da razão e, assim, garantir uma vida com paz e segurança, ou seja: uma vida adequada ao bem-viver humano/racional. A forma pela qual a racionalidade do Estado se explicita, no jusnaturalismo, é a lei, uma norma geral e abstrata que diz respeito a todos os indivíduos que constituem um determinado Estado: a lei, porém, é um poder e uma atribuição exclusiva do Estado-razão. As leis são a única forma de exteriorização e formalização da vontade racional de cada indivíduo que, por meio do contrato original, fora depositada – transferida – no Estado. O Estado é, desta forma, o elemento sintetizador, explicitador e garantidor da razão humana. Ele é por excelência o intérprete e guardião da racionalidade. Mediante a teoria jusnaturalista, ao contrário das teorias tradicionais que a pre­cederam, torna-se possível a instituição de um Estado laicizado e uma consequente dessacralização do poder e, como consequência, da ação política. O poder deixa de ser exercido em nome de uma representação divina, passando a ser exercido de forma impessoal, regido por leis provenientes de um poder consentido pelos indivíduos a elas submetidos. O Estado torna-se, assim, o ente exclusivo de onde o poder emana, não sendo admissíveis entes intermediários de poder. Para o modelo jusnaturalista existem apenas duas possibilidades: “Ou os indivíduos sem Estado, ou o Estado composto apenas de indivíduos. Entre os indivíduos e o Estado, não há lugar para entes intermediários” (Bobbio; Bovero, 1994, p. 94). O único ente autônomo de poder é o Estado. Exatamente por isso é que o Estado e seu poder devem ser absolutos. Rousseau expõe sua concepção unificada de poder ao definir o Estado como o “eu comum” ou “um ser coletivo”. Expressa sua não aceitação quanto à possibilidade de faccionamento do poder ao afirmar que: “Importa, pois, para alcançar o verdadeiro enunciado da vontade geral, que não haja no Estado sociedade parcial e que cada cidadão só opine de acordo consigo mesmo” (Rousseau, 1987, p. 47). 124 EaD Filosofia e Ética Hobbes, por sua vez, também é enfático ao afirmar a necessidade de um único ente autônomo de poder. No capítulo 29 do Leviatã o autor enumera várias situações e doutrinas que são contrárias a unidade do Estado, levando ao seu enfraquecimento e dissolução. Afirma o autor: Existe uma sexta doutrina, aberta e diretamente contrária à essência do Estado, que é esta: o poder soberano pode ser dividido. Pois em que consiste dividir o poder de um Estado senão em dissolvê-lo, uma vez que os poderes divididos se destroem mutuamente uns aos outros? [...] Assim como houve doutores que sustentaram que há três almas no homem, também há aqueles que pensam poder haver mais de uma alma (isto é, mais de um soberano) num Estado e levantam a supremacia contra a soberania, [...] atuando sobre o espírito dos homens com palavras e distinções que em si nada significam [...] (Hobbes, 1988, p. 194-195). A partir das afirmações de Hobbes e Rousseau, fica evidente que o único ente capaz e legítimo de poder é o Estado, seja na figura do soberano, no caso de Hobbes, ou na ideia da vontade geral, no caso de Rousseau. Para a teoria jusnaturalista, o Estado, enquanto Estado-razão, torna-se único e absoluto em matéria de poder e ordenamento jurídico, pois esta é a condição básica para que o direito fundamental de natureza – preservação da própria vida – possa ser efetivada e garantida, em meio às relações exigidas pela vida em sociedade. Desta forma, a absolutização do poder do Estado não deve ser compreendida como o pressuposto básico, do qual parte a teoria jusnaturalista. Ela surge e se impõe como consequência lógico/necessária do processo de racionalização do próprio Estado, como forma de despersonificação e laicização do poder. A realidade social-política do mundo contemporâneo não conseguiu produzir os efeitos e resultados esperados que, teoricamente, teriam levado os indivíduos a abdicar das suas liberdades e poderes individuais absolutos em favor de um novo e único ente de poder. Enquanto realidade histórica efetiva, a ideia de um Estado/poder surgido e legitimado num pacto original entre indivíduos, naturalmente portadores de liberdade e poder, tem se revelado insuficiente para responder às demandas tão variadas e complexas do mundo contemporâneo. O desafio que nos é imposto, enquanto cidadãos, estudantes, professores e pensadores da Filosofia política diante da realidade ético-política contemporânea – extremamente dinâmica e complexa – é o da construção de alternativas filosóficas/ teórico-políticas que transcendam a “dialética indivíduo-poder”, que serve de elemento fundante das teorias políticas moderno-contemporânea e das estruturas de poder delas derivadas. Conforme H. Vaz (1988, p. 261): Parece, assim, razoável supor que a crise das sociedades políticas con­ temporâneas, sacudidas pelo combate entre as aspirações à participação demo­crática e a justiça social de um lado e, de outro, a hipertrofia das estruturas do poder do Estado [...] tenha uma das suas raízes num projeto de existência políti­ca que aceita a oposição indivíduo-poder como a oposição primeira e constitutiva do ser-em-comum político. [...] o indivíduo é pensado 125 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin aqui primariamente como um ser de carência e necessidade, a alienação ou a restrição da liberdade no pacto de sociedade encontra sua significação como condição inicial da qual se deduz o sistema da satisfação das necessidades que, como sistema político, passa a ser regido pela racionalidade instrumental do “fazer” ou da produção dos bens. Assim, o espaço da ética e da política sucumbe ante a lógica da razão instrumental do puro fazer, tendo em vista a satisfação das necessidades e carências individuais em detrimento de um projeto de emancipação coletiva. A questão central, o desafio maior está posto, ou seja: “[...] como recompor, nas condições do mundo atual, a comunidade humana como comunidade ética e como fundar sobre a dimensão essen­cialmente ética do ser social a comunidade política?” (Vaz, 1988, p. 262). 3.6.2 – Reflexões Finais A intenção aqui não é a de responder à questão anteriormente indica­da, pelo contrário, esta é uma tarefa coletiva que transcende as opiniões e interesses individuais, transcende inclusive as fronteiras de nacionalidade. É uma questão que diz respeito à humanidade como um todo. Com certeza, este deve ser um trabalho de aprendizado coletivo/solidário, porém não estamos proibidos, mesmo correndo o risco de sermos acusados de pretensiosos, de levantar alguns elementos que possam contribuir nesta tarefa. Neste sentido, penso que o aprendizado e a herança clássica grega não podem ser desprezados, sob o risco de aprofundarmos ainda mais a cisão entre ética e política. Assim, é urgente a rememoração e revigoração dos princípios democráticos, como elementos fundantes da ação política, pois “é nas experiências históricas da Polis Grega e da República Romana que se articula, por primeira vez, a noção de política enquanto um pensar e um agir em comum em vista do interesse da Cidade ou da República” (Garcia, 1987, p. 9). A reflexão e a ação política devem ser vistas como um espaço fundamental para a discussão e construção daquilo que é comum a todos. O espaço da política precisa ser compreendido como instância do agir, segun­do a vontade livre dos homens tendo em vista a consecução do bem coletivo. É urgente a ampliação e aprofundamento dos instrumentos e canais de participação coletiva/democrática, no sentido de garantir a participação de todos os indivíduos/cidadãos no processo de criação e responsabilização de um novo projeto coletivo-humano. Um projeto que tenha como elemento fundante e orientador os interesses da coletividade – da comunidade humana – não só em relação ao presente, mas também em relação à responsabilidade para com o futuro desta coletividade. Faz-se necessário uma crítica e revisão dos padrões éticos hegemônicos, que vigoram e orientam as ações no mundo contemporâneo. Esta é uma das propostas, por exemplo, defendidas pelos pensadores do chamado “giro ético contemporâneo”. 126 EaD Filosofia e Ética A designação “giro ético” é algo recente e ainda polêmico dentro dos padrões da tradição filosófica do Ocidente, porém isso não significa que ele não esteja lastreado teoricamente e não possua questões significativas sobre as quais se deva refletir. A discussão e o apelo à necessidade de uma “virada (giro) ética” podem ser considerados como resultado e/ou produto da própria crise da modernidade. É uma tentativa de fazer uma leitura crítica/teórica das consequências e efeitos produzidos pela razão moderna ao nível das práticas sociais, do pensamento filosófico, da produção científica e das teorias éticas. É também, uma busca por soluções que respondam à defasagem e incapacidade das éticas tradicionais, diante das novas situações e desafios impostos pelo mundo tecnológico contemporâneo. A base da crítica dirigida à maioria das éticas tradicionais reside no fato de que elas são dotadas de um antropocentrismo absoluto e também, pelo fato de não transcenderem o nível da pura formalidade, restringindo-se, assim, apenas ao âmbito das intenções. Outra limitação característica das éticas tradicionais – por exemplo, as éticas configuradas a partir do modelo kantiano – diz respeito à sua abrangência temporal, ou seja, são éticas restritas apenas às ações presentes, e não consideram as repercussões e consequências futuras destas ações. São éticas desprovidas de responsabilidade para com o futuro. Este processo de renovação e atualização do estatuto ético (giro ético) busca priorizar a revitalização das relações entre teoria e prática, dando ênfase ao caráter interdisciplinar que se faz presente na constituição dos objetos e discursos teóricos. O que se deseja como resultado deste processo é urna ética orientada para o social, diretamente embricada com as ações e relações dos diversos grupos sociais existentes. Além disso, é uma ética que deve sempre se perguntar pelas consequências das nossas ações no plano do meio ambiente. Em última instância, poderíamos considerar que a denominação “giro ético” desig­na uma proposta de construção de novos projetos de convivência pelo homem e para o homem. É um verdadeiro processo de conversão da vida humana por meio da autocompreensão e autorresponsabilidade coletiva. [...] El espacio cada vez mayor ocupado por las investigaciones antes aludidas, con su carácter interdisciplinario y dialógico, el reconocimiento de su responsabilidad ética por parte de los científicos (unido al descrédito creciente de la creencia en la neutralidad axiológica de las ciencias), las exigencias de esclarecimiento y de orientación morales por parte de la sociedad toda sefialan la pertinencia de la denominación de giro ético. En efecto, con ella se expresa un proyecto de convivencia nuevo, otras costumbres y hábitos (éthos y éthos) de pensamiento y de acción; es decir, un lugar (éthos) propio, construido por el hombre y para el hombre (Bonilla, 1996, p. 6). 127 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Como podemos perceber, a nova perspectiva construída pelo “giro ético” exige-nos um urgente repensar das nossas ações e dos direitos do homem perante o mundo (universo) que habitamos. É uma proposta de discussão e revisão da concep­ção antropocêntrica tão característica da modernidade. É uma tentativa de alargamento do espaço de abrangência da ética e, desta forma, trazendo para dentro do campo de preocupações e discussões éticas as questões que dizem respeito, por exemplo, à ecologia e à forma como nos relacionamos – uso – com a natureza. Isto nos remete a uma situação que implica um possível afrouxamento da concepção antropocêntrica absoluta e, assim, fazer com que além de termos direitos, tenhamos deveres para com a natureza e o mundo que habitamos e construímos. Esta nova ética requer, pelo menos, uma revisão e consequente afrouxamento do antropocentrismo absoluto vigente nas concepções científicas e políticas de até então. É preciso que se reconheça que o homem não é o único elemento e/ou ser que tem valor e deve ser considerado no momento da instituição de critérios éticos. Não se está aqui negando que o homem seja um ser especial, diferente dos demais, porém ele não é o único e sua autonomia e sobrevivência não são absolutamente inde­pendentes dos demais seres e elementos que compõem o universo. Neste sentido, não necessariamente o homem deva ser o centro do universo. Apesar de ser especial e diferenciado dos demais, ele compartilha e mantém relações de dependência com aqueles. Outro aspecto relevante desta nova concepção ética, desenvolvida a partir do princípio de responsabilidade, diz respeito à responsabilização do homem contem­porâneo em relação ao destino da humanidade. Nossas ações devem estar pautadas pela responsabilidade que temos diante das gerações futuras. Sendo assim, a ética a ser construída é uma ética não apenas do presente, ela não se restringe à avaliação e orientação das nossas ações apenas no âmbito da imediaticidade das mesmas, mas, e principalmente, preocupa-se com as repercussões e implicações futuras destas ações. Por isso, é uma ética voltada para o futuro. A responsabilidade para com o futuro deve agir como princípio orientador das ações no presente. A garantia de que no futuro haverá um mundo apto à continuidade da vida humana de forma digna é obrigação e responsabilidade do homem que, no presente, habita e age neste mundo. Assim, “[...] como proposta moral, isto é, como obrigação prática para com a posteridade de um futuro distante e como princípio de decisão para a ação presente, essa tese é muito diferente dos imperativos das éticas anteriores [...]” (Bonilla, 1996, p. 38). Como já referimos, é uma ética/política que não se restringe à pura “presentidade” das ações, uma vez que está voltada para o futuro. É um tipo de ação ética/política que se estrutura a partir da projeção do direito das gerações futuras, ou seja, o direito de continuarem existindo enquanto humanidade. Desta forma, a garantia da efetividade do direito das gerações futuras é responsabilidade nossa, 128 EaD Filosofia e Ética pois, no presente, somos os gestores da humanidade. Neste sentido, o que se deseja é a construção de um novo modelo de ação ética/política, dirigida muito mais ao coletivo e ao público do que às ações privadas. Referências BARKER, Sir Ernest. Teoria política grega. Trad. Sérgio Bath. 2. ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,1978. 372p. (Pensamento Político 2). BOBBIO, Norberto. Ensaios escolhidos. Trad. Sérgio Bath. São Paulo: C. H. Cardim, [198-?]. 232p. ______. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Trad. Marco Aurélio Nogueira. 4. ed. São Paulo : Paz e Terra, 1995. 173p. ______. Thomas Hobbes. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1991. 201p. ______. A teoria das formas de governo. Trad. Sérgio Bath. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985. 179p. (Pensamento Político, 17). 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Assim, estão instituídas as condições para o surgimento da Estética como “ciência do conhecimento sensitivo” (Baumgarten, 1993, III, p. 95). 39 Temas relacionados à Estética, entretanto, são discutidos pela Filosofia desde a Antiguidade clássica. A reflexão sobre o Belo (“Kállos”) e a arte (“Tékne”) está presente em Sócrates, Platão e Aristóteles. No início da modernidade as discussões estéticas voltam-se para os critérios que fundamentam o juízo de gosto – faculdade humana capaz de distinguir entre o belo e o feio. Segundo Luc Ferry, a discussão sobre o belo sofre uma “mutação radical” na medida em A Fonte: Marcel Duchamp. http://egonturci.wordpress.com/2012/09/10/a-fonte/ 39 130 EaD Filosofia e Ética que “o belo é ligado tão intimamente à subjetividade humana, que se define, no limite, pelo prazer que proporciona, pelas sensações ou pelos sentimentos que suscita em nós” (Ferry, 1994, p. 36). Adolfo Vázquez (1999) destaca que a Estética é uma experiência humana específica, que se caracteriza pela apropriação preponderantemente sensível da realidade. O autor defende a necessidade de ampliar a “esfera do estético” incorporando as discussões de outros aspectos, como o feio, o cômico, o trágico, o grotesco e o sublime. As reflexões sobre o belo, na Estética, são consideradas predominantes em diversos períodos históricos. À sombra desse conceito, porém, um vasto universo permanece latente. Revela sua existência física apesar da resistência em tratá-lo teoricamente. O feio sempre ocupou um extenso espaço na existência real e artística de todos os tempos, mesmo sendo combatido ou negado. Apesar disso, é inegável a dificuldade de abordar teoricamente o conceito. Por séculos, o conceito é mencionado de um modo superficial, para designar a antítese do belo. Umberto Eco sustenta que o feio não pode ser definido como o contrário do belo. O autor analisa uma das primeiras tentativas de abordar o tema, feita por Karl Rosenkrantz na “Estética do Feio”, em 1853. Para Rosenkrantz, o feio está presente na natureza, na ordem espiritual e na arte e pode ser compreendido como: “[...] a ausência de forma, a assimetria, a desarmonia, o desfiguramento e a deformação (o mesquinho, o débil, o vil, o banal, o casual e o arbitrário, o tosco), as várias formas de repugnante (o desajeitado, o morto e o vazio, o horrendo, o insosso, o nauseabundo, o criminoso, o espectral, o demoníaco, o feiticeiresco, o satânico) [...]” (Eco, 2007, p. 16). Segundo Eco, a análise feita por Rosenkrantz mostra que o feio deve ser considerado um conceito mais rico e complexo do que tradicionalmente vem sendo tratado. A partir disso, o autor propõe abordar a questão a partir de uma história da feiúra que considere três fenômenos diferentes: o feio em si, o feio formal e a representação artística do feio. Já Adolfo Vázquez (1999) chama a atenção para a dificuldade histórica de admitir a dimensão estética do feio. O autor destaca a tendência, em várias épocas, de associar o feio a valores negativos de áreas como a moral, o conhecimento cognitivo e a prática. É notória a presença de uma mentalidade que associa o feio ao mal em diversas culturas. Também é possível perceber a identificação entre o feio e o falso (não verdadeiro) e entre o feio e o inútil. Para se contrapor à vinculação com valores negativos de outras dimensões da experiência humana, o autor sustenta a necessidade de reconhecimento da dimensão estética do feio: O feio ocorre em um objeto que por sua forma é percebido esteticamente, ainda que se note – sobretudo quando se trata de objetos reais – a ausência ou negação da beleza. Mas como acontece com outras qualidades estéticas, mesmo que se trate de uma experiência singular que vive um sujeito em 131 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin determinada situação estética, o feio só ocorre historicamente e, com o fluir histórico, muda o seu conteúdo. Nem sempre o que foi considerado feio em uma época sobrevive como tal em outras (Vázquez, 1999, p. 212). Para o autor, a relação entre o sujeito e o feio não pode ser considerada uma experiência da ordem do indiferente. Ao contrário, essa relação provoca uma série de reações sensíveis no sujeito. O fato de o feio ocorrer numa esfera preponderantemente sensível justifica sua consideração como uma categoria estética: O feio, conseqüentemente, não é sinônimo de não-estético ou de indiferente (ou inestético) a partir do ponto de vista estético... O feio ocorre na esfera do sensível (da aisthesis) e não de um estado de anestesia (no sentido original de carente de sensibilidade). Como todo estético, ocorre em um objeto concreto-sensível e na experiência de um sujeito ao percebê-lo sensivelmente (1999, p. 212). O sujeito reage de modo diverso diante do feio real e do feio produzido pela arte. Mesmo assim, trata-se de reações estéticas. Diante de uma situação real, o feio normalmente produz repulsa, desagrado e um desejo de afastamento. Ao contemplar o feio “reproduzido” na arte, o sujeito experimenta um certo tipo de prazer. Tomando como exemplo o Boi Esfolado de Rembrandt, Vázquez esclarece a distinção feita: Certamente, o boi esfolado real, ao ser contemplado, só pode produzir um efeito negativo. Todavia, ao ser representado, esse objeto ingrato, ignóbil, se transformou, graças à forma sensível que o pintor concedeu à matéria, graças a seus efeitos de luz e a sua cor carnosa, em um objeto grato e nobre que nos apraz contemplar (Vázquez, 1999, p. 227). As relações do sujeito com o feio precisam ser compreendidas nas transformações do processo histórico. Tomando como referência o período medieval, percebe-se que a presença do feio é justificada por diversos autores como manifestação da precariedade e decadência da existência terrena. Se o mundo cristão é essencialmente belo e bom pelo fato de ser uma criação divina, a existência do feio é justificada a partir de sua identificação com o mal. Santo Agostinho, ao investigar as causas do mal, afirma que ele não existe em substância, mas sim por uma “perversão da vontade desviada da substância suprema” (Agostinho, 1996, p. 190). O mundo é concebido como um todo, constituído por corpos inanimados, seres vivos sem razão e criaturas espirituais – seguindo uma escala hierárquica. Apesar dessa ordem estabelecida, à qual é preciso se conformar, o homem deve aproximar-se da perfeição divina, mesmo reconhecendo que esta seja inatingível em toda sua extensão. Essa dialética ascendente do espírito humano apoia-se na concepção de beleza. A beleza presente no universo físico é considerada uma decorrência da criação divina. Por isso, é preciso reconhecer que, acima da beleza física, existe a beleza espiritual, fonte criadora de toda beleza. A verdadeira beleza transcende 132 EaD Filosofia e Ética a esfera sensual; pertence apenas a Deus e pode ser apreendida pela intuição intelectual ou intuição mística. Manifesta-se, sobretudo, na harmonia matemática e na proporção. O teólogo critica os que se limitam a apreciar a beleza natural e reprova o encanto sensual provocado por algumas formas artísticas. Nas “Confissões”, escreve sobre seu arrependimento em relação ao prazer que sentiu durante a juventude nos espetáculos teatrais. Recrimina-se por sentir compaixão diante das dores e sofrimentos dos atores – compaixão por “assuntos fictícios e cênicos”: Mas eu, miserável, gostava então de me condoer, e buscava motivos de dor. Só me agradava e atraía com veemência a ação do ator quando, num infortúnio alheio, fictício e cômico, me borbulhavam nos olhos as lágrimas... Disto provinha o meu afeto pelas emoções dolorosas, só por aquelas que me atingiam profundamente, pois não gostava de sofrer com as mesmas cenas em que a vista se deleitava. Comprazia-me com aquelas coisas que, ouvidas e fingidas, me tocavam na superfície da alma. Mas, como acontece quando remexemos (uma ferida) com as unhas, este contato provocava em mim a inflamação do tumor, da podridão e o pus repelente (Agostinho, 1996, p. 81-82). Em sua obra o “esplendor da verdade”, o bem, o belo e a criação divina aparecem como elementos indissociáveis. Por outro lado, a existência do mal e do feio são concebidos como formas de corrupção, de desvirtuamento da ordem perfeita e harmônica: Em absoluto, o mal não existe nem para Vós nem para vossas criaturas, pois nenhuma coisa há fora de Vós que se revolte ou que desmanche a ordem que lhes estabelecestes. Mas porque, em algumas das suas partes, certos elementos não se harmonizam com os outros, são considerados maus. Mas estes coadunam-se com outros, e por isso são bons (no conjunto) e bons em si mesmos... (Agostinho, 1996, p. 188). No entendimento de Umberto Eco (2007), é a ideia de “pankalia” (beleza de todo universo) que domina as discussões medievais. Isso, entretanto, não elimina a presença do feio nesse período; ao contrário, abre espaço para sua representação em temas como o sofrimento de Cristo, a inevitabilidade da morte e as tentações do diabo e do inferno. Ressalta Eco: É na esteira agostiniana que reencontraremos no pensamento escolástico vários exemplos da justificação do feio no quadro da beleza total do universo, onde também a deformidade e o mal adquirem o mesmo valor, no qual no claro-escuro de uma imagem, na proporção entre luz e sombra, se manifesta a harmonia do conjunto (Eco, 2007, p. 46). No século 12, São Bernardo escreve em Apologia ad Guillelmum sobre a presença do feio nos espaços religiosos. O autor questiona a potencialidade de sedução exercida por tais elementos, capazes de distrair os fiéis de sua atividade fundamental, a oração. Entre os ornamentos citados estão figuras consideradas estranhas, disformes e monstruosas: 133 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin De resto, para que serve, nos claustros, onde os frades lêem o Ofício, aquela ridícula monstruosidade, aquela espécie de estranha formosidade disforme e disformidade formosa? O que estão ali a fazer os imundos símios? Ou os ferozes leões? Ou os monstruosos centauros? Ou os semi-homens? Ou os tigres manchados? Ou os soldados na batalha? Ou os caçadores com trombetas? (...) Enfim, por todo lado aparece uma estranha e grande variedade de formas heterogêneas, para que se tenha mais prazer em ler os mármores do que os códigos, para que se ocupe o dia inteiro a admirar, uma a uma, estas imagens em vez de meditar na lei de Deus. Oh Senhor, já que não nos envergonhamos destas criancices, porque não lamentamos, ao menos, os dispêndios? (apud Eco, 1989, p. 18). No período medieval não há uma distinção clara entre a beleza e a utilidade ou a beleza e a bondade. O feio, por sua vez, encontra espaço na arte, ao ser representado com uma finalidade didática. Ao mesmo tempo em que deve deleitar, a arte deve “servir” como instrumento de divulgação dos princípios cristãos: Os mesmos autores eclesiásticos que celebram a beleza da arte sacra insistem, por outro lado, no seu fim didático; o objetivo de Suger é o que foi sancionado pelo sínodo de Arras em 1025, para o qual o que os humildes não podiam apreender através da escrita devia ser-lhes ensinado através das figuras; o fim da pintura, diz Honório de Autun, como bom enciclopedista que reflete a sensibilidade dos seus tempos, é tripla: serve, antes de mais, para tornar bela a casa de Deus (ut domus tali decore ornetur), para chamar à memória a vida dos santos e, finalmente, para o deleite dos incultos, dado que a pintura é a literatura dos leigos... (Eco, 1989, p. 27). O uso de formas artísticas com finalidade didática aparece nas tentativas de evangelização feitas pela Companhia de Jesus nos territórios luso-hispânicos. Tanto na Província do Paraguai quanto na Província do Brasil, as Reduções indígenas eram dirigidas pelos jesuítas que organizavam o trabalho, o processo de evangelização e a ordem econômica. As oficinas de carpintaria e de escultura produziam as ferramentas necessárias para o trabalho, instrumentos musicais e para esculpir. Um dos meios de evangelização preferidos pelos jesuítas era o teatro. O teatro jesuítico incorporou alguns elementos dos rituais indígenas primitivos, como é o caso da música, da dança e do canto cerimonial. As primeiras formas de dramatização, criadas sob o formato de alegorias, eram utilizadas para marcar celebrações e festividades do calendário cristão: El camino estaba abierto para que dentro de un recitado local y temporal, se incorporasen (sin violencia) sencillas alegorías como virtud, salvación eterna, y los principales fundamentos de la Iglesia, como Nuestro Señor, la Virgen María, Santos y Apóstoles, que fueron consolidando su presencia en imágenes exhibidas al pueblo, en las celebraciones y festividades de aldeas cristianizadas (Rela, 1990, p. 112). 134 EaD Filosofia e Ética Espetáculos com propósitos evangelizadores também eram encenados nas cidades. Eram destinados aos colonos, mamelucos e indígenas cristianizados e representados nos pórticos das igrejas ou em palcos especialmente feitos para este fim. Um exemplo disso é a obra de Padre Anchieta que intercala alegorias e diálogos correntes para despertar o interesse do espectador em relação aos ensinamentos do Evangelho. Povoados por anjos e demônios, seu enredo cumpre a finalidade de expor aos espectadores a doutrina cristã. Analisando a obra de Anchieta, Monsenhor Guilherme Schubert ressalta a presença dessas figuras: Hay discusiones entre demonios y ángeles, oportunidad para que estos expongan la doctrina cristiana. Los Santos cristianos aparecen con trajes vistosos y multicolores. De esta forma, a diferencia del teatro europeo de época, en los Autos predominan figuras concretas: Nuestra Señora, Angeles y Santos, pero mucho menos las alegorías, como Amor y Temor de Dios, la ciudad de la Victoria, y la Ingratitud (apud Rela, 1990, p. 125). ������������������������������������������������������������������ Em seguida, analisa a representação do bem e do mal na obra de Anchieta. Enquanto o mal e o feio são relacionados aos elementos pagãos da cultura indígena, o bem e o belo só podem ser conquistados pela salvação cristã: Los demonios, con nombres indígenas traen a sus víctimas amarradas con cuerda usada para los sacrificios humanos, y hay referencia al canibalismo indio. Hay luchas entre Angeles y Demonios, y el Angel de la aldea asegura en su mano el garrote, mientras un demonio dispara un arcabuz en plena escena. Pero los Angeles o San Mauricio, vencen y mandan a los demonios al “infierno”. Y cuando uno de ellos se quiere resistir, tiene la cabeza partida con un tacapé (otro instrumento usado en el sacrificio pagano), ¡argumento muy convincente para los indios! (apud Rela, 1990, p. 125). Adolfo Vázquez aponta para uma vinculação intrínseca entre o belo e o feio no período medieval. As duas categorias são consideradas a partir de uma relação de subordinação, na medida em que o feio só é admitido quando reforça a ideia de oposição ao belo e para servir à exteriorização de uma mentalidade predominante na época: O feio existe certamente na vida real e entra na arte e na literatura para mostrar que o belo é apenas relativo, precário, já que só a beleza divina é absoluta, plena e eterna. E o feio, ao ser representado artisticamente, recorda a transitoriedade do belo, associada ao pecado, à enfermidade, à decrepitude e à morte. Em suma, o feio neste mundo terreno é o limite do belo... (1999, p. 219). Na modernidade, a discussão sobre o feio segue uma nova direção em meio à polêmica travada entre os representantes da estética clássica e da estética romântica. O Romantismo rompe com princípios vigentes que estabeleciam regras para a criação artística. Victor Hugo, no Prefácio de Cromwell (1827), afirma que a arte moderna deve ser orientada pelo princípio de liberdade e demonstra sua rebeldia em relação a qualquer tentativa de regrar sua produção: 135 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Usemos o martelo nas teorias, nas poéticas e nos sistemas. Deitemos abaixo esse velho estuque que esconde a fachada da arte! Não há regras, nem modelos; ou melhor, não há outras regras senão as leis gerais da natureza que planam sobre toda arte no geral, e as leis especiais que, para cada composição, resultam das condições da existência próprias a cada assunto [...] (Hugo, 2004, p. 306). Inspirado pelo “espírito de melancolia cristã”, o autor defende uma nova poesia que mostre outras facetas além do belo, como o feio e o grotesco. Está aberta uma nova perspectiva, que sustenta teoricamente a representação do feio na arte e na literatura. Hugo afirma: “[...] a Musa Moderna verá as coisas com um olhar mais elevado e mais vasto. Sentirá que tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe aí ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz [...]” (Hugo, 2004, p. 305). Para Umberto Eco, Victor Hugo faz uma “apaixonada exaltação romântica do feio”, desconstruindo a convicção do belo como ideia predominante na estética. O feio não aparece mais apenas como contraponto ao belo, mas como categoria estética autônoma: O feio que Hugo vê como típico da nova estética é o grotesco (“uma coisa disforme, horrível, repelente, transportada com verdade e poesia para o domínio da arte”), a mais rica das fontes que a natureza poderia oferecer à criação artística... Mas em Hugo o grotesco transforma-se na categoria que (embora ele fale de fenômenos artísticos que se estendem ao longo de dezenas de séculos) explica, anuncia e, em parte, promove uma galeria de personagens que, entre o final do século XVIII e os nossos dias, parecem marcados por uma satânica ou patética ausência de beleza (Eco, 2007, p. 280). Rompendo com a rigidez da estética clássica que preconiza a “pureza” dos gêneros, Victor Hugo propõe a mistura de elementos trágicos e cômicos, provocando um “terremoto” na criação poética. Inspirado pela natureza, o poeta moderno deve livrar-se das convenções estabelecidas pela tradição: “Por-se-á a fazer como a natureza, a misturar nas suas criações sem, portanto, as confundir, a sombra com a luz, o grotesco com o sublime, noutras palavras, o corpo com a alma, a besta com o espírito [...]” (HUGO, 2004, p. 305). Dessa maneira, a poesia dramática deve ser uma espécie de espelho da natureza, entretanto, mais do que ser “fiel” à natureza, o poeta deve ser capaz de criar um “espelho de concentração”, no qual aspectos diversos da realidade estejam presentes: “O teatro é um ponto de óptica. Tudo o que existe no mundo, na história, na vida, no homem, tudo deve e pode refletir-se aí, mas sob a varinha mágica da arte. A arte folheia os séculos, folheia a natureza, interroga as crônicas, ensaia-se a reproduzir a realidade dos fatos, sobretudo as dos costumes e dos caracteres [...]” (2004, p. 309). 136 EaD Filosofia e Ética Na arte moderna, o feio aparece não mais como subterfúgio para finalidades didáticas ou para ser convertido em beleza. O feio surge, nas obras, enquanto tal, chamando a atenção para aspectos usualmente desconsiderados pela arte acadêmica. Vázquez destaca essa concepção do feio nas produções de Velázquez, Rembrandt e Ribera: O feio como tal, com sua realidade própria, está aí na pintura deles para expressar certa relação do homem com o mundo: uma relação tensa, purulenta ou desgarrada que não pode ser expressa com a serenidade e o equilíbrio emocional do belo. O feio, portanto, não pode deixar patente ante nossos olhos essa relação embelezando-se, ou seja, negando-se a si mesmo, deixando de ser propriamente feio... (Vázquez, 1999, p. 222). A arte de vanguarda, no início do século 20, e as manifestações artísticas contemporâneas, consagraram o feio como uma categoria estética autônoma. Na estética, novos espaços de discussão sobre o tema se estabelecem. O questionamento filosófico sobre o significado do feio para a existência humana e histórica afirma-se como condição indispensável para compreender a experiência estética. Ao descrever uma personagem em Um Cavalo de Raça, Baudelaire afirma: “Ela é muito feia. Mas é deliciosa!” O poeta parece insinuar o caminho para compreendermos melhor as diversas facetas do feio, desvinculando-o de sua óbvia associação à negatividade. É um convite para vê-lo com outros olhos, aproximando-o da ironia, da criticidade, do prazer e do lúdico. Referências AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Col. Os Pensadores). BAUDELAIRE, Charles. O Spleen de Paris – pequenos poemas em prosa. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1995. BAUMGARTEN, Alexander G. Estética: a lógica da arte e do poema. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993. BAYER, Raymond. Historia de la estética. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989. ______. História da feiúra. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2007. (Col. Dimensões). FERRY, Luc. Homo Aestheticus. A invenção do gosto na era democrática. Ensaio movimento de idéias/idéia em movimento. São Paulo, SP, 1994. HUGO, Victor. Prefácio de Cromwell. In: HUGO, Victor. Estética teatral – textos de Platão a Brecht. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. RELA, Walter. El Teatro en Brasil, Paraguay, Argentina: Siglos XVI-XVIII. Montevidéu: Universidad Católica del Uruguay, 1990. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Convite à estética. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1999. 137 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Síntese da Unidade 3 Nesta Unidade, estudamos que: • Todas as mais variadas formas pelas quais as visões de homem e de mundo vieram sendo pensadas ao longo da História moldaram o homem moderno e o mundo que conhecemos. Com isso aprendemos a relativizar a própria sociedade e sua época, reconhecendo que os valores morais e os costumes não são absolutos e que o mundo tem o homem como o seu agente transformador. • O homem não pode ser reduzido a uma única, simples e fixa definição, ou seja, aquilo que dizemos dele, o seu conceito, está condicionado pela História, pela cultura na qual está inserido. • A base da ética é sempre a cultura, o hábito, o modo de vida de um grupo, que vai se complexificando com o passar do tempo e, por isso mesmo, exigindo novos princípios que possam salvaguardar a dignidade humana. Este modo de vida, construído a partir da visão de mundo e de homem que o grupo possui, formará uma visão ampla de toda realidade: o paradigma, ou seja, um modelo de compreensão do mundo que norteia as ações humanas. • A moral é uma construção humana. E como o homem não é um ser natural e fixamente definido, mas um ser social que está sujeito a transformações, dizemos que a moral é uma construção histórica. Por essa razão é que, apesar de os sistemas morais estarem fundamentados em valores como o bem e a liberdade, aquilo que seja o bem e a liberdade, o seu conceito varia historicamente. Isto explica a diversidade de concepções éticas. • A responsabilidade para com o futuro deve ser princípio orientador das ações no presente, pois a garantia que no futuro haverá um mundo apto à continuidade da vida humana é obrigação e responsabilidade do homem que, no presente, nele habita. Ou seja, é uma ética que está voltada para o futuro, para uma ação que se estrutura a partir da projeção do direito das gerações futuras de continuarem existindo. • A arte no início do século 20 e as manifestações artísticas contemporâneas consagraram o feio como uma categoria estética, cunhando novos espaços de discussão sobre o significado do feio e, assim também, do que vem a ser o bom, o belo, o justo, para a existência humana. 138 Unidade 4 ÉTICA E CONTEMPORANEIDADE OBJETIVOS DESTA UNIDADE • Compreender os fenômenos contemporâneos presentes nas relações de trabalho e suas implicações éticas. • Analisar, sob a perspectiva ética, os processos crescentes de violência presentes na cultura da modernidade. • Refletir as perspectivas, em termos ético/educacionais, para a sociedade e a cultura vigentes em nosso tempo histórico. • Debater as implicações éticas presentes no fenômeno da comunicação e suas tecnologias. AS SEÇÕES DESTA UNIDADE Seção 4.1 – Algumas Considerações Sobre o Trabalho Alienado em Marx Seção 4.2 – Ética e Violência: a Ética como Filosofia Primeira Seção 4.3 – Reflexões Acerca das Perspectivas para a Educação no Século 21: Uma Análise em Perspectiva Ético-Filosófica Seção 4.4 – Ética, Comunicação e Novas Tecnologias 139 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Seção 4.1 Algumas Considerações Sobre o Trabalho Alienado em Marx1 Vânia Dutra de Azeredo 2 A QUESTÃO Marx denuncia a desvalorização do homem a partir do crescente aumento e valorização das mercadorias produzidas por este mesmo homem. Procura mostrar como se desenvolve essa desvalorização no conjunto da sociedade. Com isso, detém-se sobre as relações sociais nas quais se apresentaria a concretização da desvalorização humana e sua crescente desumanização. O homem se faz humano nas próprias relações sociais, entretanto é nessas mesmas relações sociais que perde sua essência, ou seja, sua humanidade. Essa perda ocorre a partir da forma como o trabalho é desenvolvido em determinada sociedade. O trabalho apresenta-se, por um lado, como a essência humana, isto é, pelo trabalho o homem se autoproduz e, por outro, como o responsável pela desumanização. Embora o trabalho seja definido por Marx como a essência do homem, na atividade produtiva o que se verifica é a coisificação do homem, sua transformação em mercadoria. Isso ocorre devido ao hiato existente entre o trabalho como essência humana e a concretização dessa essência na existência. Marx argumenta que “a essência do homem nunca se manifesta efetiva, real ou historicamente”, pois, na existência concreta, o trabalho – essência humana – aparece como trabalho alienado. A alienação do trabalho apresenta-se Texto publicado em primeira versão em: Schneider, Paulo Rudi (Org.). Introdução à Filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí, 1995. p. 62-72. 1 Colhedores de batatas – Van Gogh. Fonte: Enciclopédia Multimídia da Arte Universal. São Paulo: Alphabetum Edições Multimídia. 2 140 EaD Filosofia e Ética como resultante da alienação com relação ao objeto produzido e com relação à própria atividade produtiva. Como consequência dessas duas alienações, tem-se a autoalienação do homem e a alienação deste com relação aos outros homens. O TRABALHO ALIENADO A alienação é um dos conceitos centrais do sistema marxiano, visto que se estende a todos os domínios das relações humanas. O estudo da alienação principia pela alienação religiosa, perpassando a filosófica, a política, a social, culminando com a alienação econômica. Nessa última é que se situa a questão básica, ou seja, o fator de autoalienação do homem: o trabalho alienado. A essência humana é definida pelo trabalho. É pela atividade produtiva que o homem constrói seu ser, mediante o estabelecimento de relações com a natureza. O trabalho é responsável pela mediação entre o homem e a natureza. Tal mediação consiste na relação da natureza com ela mesma, uma vez que o homem, como uma parte dela, se relaciona com o todo. Pelo trabalho o homem se apropria e transforma a natureza e acaba por transformar-se a si mesmo. A atividade produtiva, por conseguinte, é determinante do autorreconhecimento do homem e do reconhecimento dos outros homens, isto é, vincula necessariamente o caráter social do ser humano. O trabalho, todavia, ou a atividade produtiva, nem sempre cumpre a sua função definidora da essência humana. De fato, Marx observa que a essência humana não se concretizou historicamente na existência humana. As formas de relações estabelecidas pelo trabalho – divisão de trabalho, trabalho assalariado – foram responsáveis pela cisão entre a existência do trabalho e a essência que deveria caracterizá-lo e, consequentemente, definir o homem enquanto humano. Esse desvio da essência é que caracteriza, por um lado, o trabalho alienado e, por outro, a alienação do próprio trabalho. A alienação do trabalho pode ser caracterizada em quatro pontos fundamentais: o homem se aliena do produto do seu trabalho, daquilo que ele produz; aliena-se de si mesmo; aliena-se da própria atividade produtiva e aliena-se dos outros homens. A alienação do objeto A questão da alienação com relação ao produto do trabalho – objeto – ocorre devido à impossibilidade de o trabalhador se apossar do objeto produzido. O operário produz, mas, concluída a produção, entrega o objeto produzido a um terceiro em troca de um salário. Ocorre então não a venda do produto, mas a venda da força de trabalho. O operário passa a vender a si próprio. Devido a isso, o trabalhador torna-se mercadoria, pois vende a si e o seu trabalho. Há, portanto, uma dupla produção de mercadorias: aquelas produzidas pelo trabalho do operário e o trabalho do operário produzido como mercadoria, e, por conseguinte, a transformação do operário em mercadoria. 141 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin O trabalho não produz só mercadorias, se produz também a si mesmo e ao operário como mercadoria, e além disso, na mesma proporção em que produz mercadorias em geral.3 O objeto produzido deixa de pertencer ao operário e apresenta-se a este como algo estranho e alheio. “O produto é a objetivação do trabalho,”4 encerra em si o desdobramento de sua confecção, ou seja, no produto está objetivado o ato da produção, o próprio trabalho. O operário, no sistema capitalista, dificilmente tem acesso ao produto de seu trabalho. Quanto mais gera mercadorias, mais difícil torna-se a sua participação na sua distribuição. Quanto mais produz, mais distante fica da produção com relação à aquisição e, em contrapartida, acaba cada vez mais submetendo-se – estar a serviço – à acumulação desta mesma produção. O aumento de riquezas acarreta ao operário o aumento de sua pobreza, pois as riquezas se originam do acúmulo de seu trabalho e, uma vez que este não lhe retorna, o trabalhador se vê privado dos meios necessários para sua própria subsistência. O capital, que se constitui como trabalho acumulado, é gerado pelo operário, todavia o trabalho não se apresenta a ele como algo seu. Apresenta-se, pois, como determinante de sua subjugação. O operário fica submetido ao capital, o que faz com que o aumento da produção acarrete sua maior subjugação. Dessa forma, o objeto produzido não só não lhe pertence, como se lhe opõe, e, ainda, passa a determinar sua condição. Isso é o que, propriamente, caracteriza a alienação do objeto produzido com relação ao seu produtor. A alienação em seu produto significa não só que seu trabalho transformouse em um objeto, em uma existência externa, se não que esta existência está fora dele, é independente dele e alheia a ele, e representa um poder próprio e substantivo frente a ele, a vida que operário deu ao objeto enfrenta-se a ele como algo estranho e hostil.5 O homem, como foi exposto anteriormente, se relaciona com a natureza por meio de sua atividade produtiva. Tal atividade, por sua vez, só pode exercerse sobre a natureza. Por essa razão, a natureza fornece os meios necessários – “objetos sobre os quais o trabalho atua”6 – para a concretização do trabalho. É a natureza, também, que fornece os meios de vida necessários para a própria subsistência do operário, sua existência física. Um sistema em que o trabalhador é privado do fruto de seu trabalho tem como consequência a privação, ao trabalhador, dos meios de produção para tal trabalho, bem como dos próprios meios de subsistência que adviriam deste trabalho. Marx, K. Manuscritos econômicos-filosóficos de 1844. Tradução Mauky Cardama Guedes, p. 68. 3 Id. ibidem, p. 69. 4 Id. ibidem, p. 69. 5 Id. ibidem, p. 69. 6 142 EaD Filosofia e Ética Quanto mais apropria-se o operário do mundo exterior, a natureza sensível, por meio do seu trabalho, tanto mais fica privado de meios de vida neste duplo sentido, porque, em primeiro lugar, o mundo exterior sensível deixa de ser cada vez mais um objeto pertencente ao trabalho, um meio de vida deste, e, em segundo lugar, porque em medida cada vez maior deixa de representar um meio de vida no sentido direto da palavra, um meio para a subsistência física do operário.7 O operário tem sua existência duplamente submetida ao objeto. A sua existência enquanto trabalhador está determinada pelo objeto, assim como sua existência enquanto sujeito físico também está. Ele só existe como operário devido à produção do objeto – a venda da força de trabalho – e só pode manter-se como sujeito físico, adquirindo os meios necessários para sua subsistência, por ser operário. Marx faz questão de mostrar que o operário só existe como sujeito físico por ser operário e, sendo operário, só pode existir como sujeito físico. Ora, enquanto operário ele não pode existir humanamente, uma vez que o trabalho assalariado acarreta a sua desumanização pela sua transformação em mercadoria. Isso faz com que o operário seja reduzido a “sujeito físico”. Mesmo, porém, sendo “sujeito físico” só pode manter-se – subsistir – como tal sendo operário. 1.2. A alienação na produção Segundo Marx, a alienação com relação ao produto do trabalho é uma dentre as demais alienações que decorrem e caracterizam o trabalho assalariado. Para ele, se o objeto se apresenta como algo estranho e hostil ao sujeito, o próprio ato de produção se apresentará assim. No entanto, a alienação não se manifesta só no resultado, senão que, além disso, no ato da mesma produção, na atividade produtiva mesma.8 Ora, uma vez que o produto do trabalho deveria retornar ao operário para que este não só obtivesse os meios de subsistência, mas, e principalmente, pudesse construir e afirmar a sua humanidade, o ato que impossibilita tal construção e afirmação tem de ser necessariamente agente de alienação. O objeto aparece, com relação à produção, como um produto passivo de uma alienação ativa. Enquanto o objeto mostra-se como um produto estranho, o trabalho aparece como ação produtiva de tal objeto estranho. Consequentemente, tal ação será igualmente estranha e hostil para o operário. A atividade produtiva apresenta-se como totalmente independente do operário. Faz com que este se aliene de si mesmo – autoalienação – ao transformar sua atividade em passividade, uma vez que, não lhe pertencendo o objeto – produto – não lhe pertence o próprio trabalho. Por isso, o trabalho constitui-se Id. ibidem, p. 70. 7 Id. ibidem, p. 71. 8 143 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin como uma obrigação árdua que serve ao operário única e exclusivamente para a obtenção do mínimo necessário para sua sobrevivência. Deixa então de satisfazer sua necessidade humana de autoprodução. O trabalho externo, o trabalho em que o homem aliena-se, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação. Em definitiva, a exterioridade do trabalho para o operário mostra-se como algo que não é seu, senão de outro, que não lhe pertence, e em que ele mesmo, no trabalho, não pertence a si mesmo, senão que pertence a outro.9 O trabalho alienado anula o homem tanto no plano físico quanto no espiritual. Faz com que suas funções propriamente humanas se convertam em funções animais. Embora Marx considere comer, beber e procriar como funções humanas, adverte que tomá-las como fundamentais ou determinantes seria reduzir o homem ao estado animal, no qual tais funções representam o fim, o objetivo, da existência. No homem existe pelo menos uma função que se sobrepõe às funções meramente animais. Tal função é o trabalho, que, por ser uma atividade livre e criadora, elevaria o homem. Para que isso possa ocorrer seria necessário o reconhecimento daquele que produz naquilo que é produzido, bem como que a atividade de produção de tal objeto fosse criadora. Ora, no trabalho alienado isso não ocorre. O objeto não possibilita ao operário reconhecer-se no objeto, pois que lhe é estranho. E, com relação à atividade produtiva, em vez de ser criadora ela se torna castradora, pois, ao ser imposta ao operário, faz, como foi referido anteriormente, de sua atividade um ato de passividade. 1.3. A alienação do ser do homem O homem relaciona-se com a natureza de duas formas. Primeiro, enquanto ser físico, relaciona-se com a natureza a fim de obter os meios necessários para sua sobrevivência. Na segunda forma, a relação é estabelecida por meio da sua atividade produtiva. O trabalho aparece, então, como um mediador entre o homem e a natureza e, inclusive, entre o homem e o próprio homem. O homem é um ser que faz parte da natureza, precisa desta tanto para sobreviver quanto para se fazer ser, para se humanizar. Por isso, ao fazer parte da natureza como ser físico e também espiritual, estabelece uma relação da natureza com ela mesma. Tanto sua vida física quanto espiritual dependem e estão ligadas à natureza. A humanização advém de sua atividade produtiva. O trabalho, enquanto objetivação da natureza, faz com que o homem – ser consciente e livre – abarque e reproduza toda a natureza. É propriamente esta capacidade de objetivar a natureza pela atividade produtiva que, demonstrando sua consciência e liberdade, Id. ibidem, p. 71. 9 144 EaD Filosofia e Ética constitui seu ser essencial. O homem aparece, então, como ser vivo e atual, ser genérico. Como ser genérico, ele se manifesta justamente nesta relação em que a natureza – ou todos os gêneros, inclusive o seu – se convertem em algo seu. O homem é um ser genérico, não só porque tanto na prática como na teoria converte em objeto seu o gênero, tanto o seu próprio como o das demais coisas, senão que, além disso – e isto nada mais é que uma forma de expressar o mesmo – porque relaciona-se consigo mesmo como com o gênero vivo e atual, como um ser universal e por isso, livre.10 O trabalho é, para Marx, uma atividade vital. Tal atividade converte-se, no homem, em atividade vital livre, ou seja, o homem faz “de sua própria atividade vital o objeto de sua vontade e de sua consciência”. É pelo trabalho consciente e livre que o homem se faz e, neste fazer, se eleva dos demais animais e se distingue da natureza em geral. No sistema marxiano a espécie é determinada pelo tipo de atividade vital que desempenha. No homem, tal atividade se manifesta como consciente e livre. A consciência e a liberdade é que constituem o caráter de sua espécie, seu caráter genérico. O homem é o único ser que tem consciência de pertencer a uma espécie. Com isso se quer afirmar que a natureza humana – entendida como seu ser essencial – é predominantemente social. O homem vive da natureza. Tal viver é definido a partir da afirmação de que a natureza constitui-se como corpo inorgânico do homem. A natureza, ao propiciar as condições de existência física e, ao mesmo tempo, os instrumentos da atividade vital ao homem, apresenta-se como seu corpo inorgânico. Com isso possibilita ao homem sua existência física, seu desenvolvimento espiritual e, inclusive, social. Marx procura mostrar como, a partir do trabalho alienado, passam a ocorrer transformações significativas nas relações existentes entre o homem e a natureza, transformações estas que chegam a acarretar a alienação do próprio ser do homem. Em um trabalho em que o produto – trabalho objetivado – não retorna ao trabalhador, tem-se, como consequência, a alienação do homem com relação à natureza e com relação a sua atividade vital. Ora, se à atividade produtiva responsável pela mediação entre o homem e a natureza e o homem e os outros homens se interpõe outra mediação, o homem, como consequência, não só se aliena da natureza e dos outros homens, mas de si próprio enquanto parte da natureza e enquanto homem entre os outros homens. O trabalho alienado, 1) porque converte a natureza em uma coisa alheia ao homem, e 2) porque aliena-se a si mesmo, sua própria função ativa, sua atividade vital, faz do gênero algo alheio ao homem, faz que sua vida genérica Id. ibidem, p. 72. 10 145 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin se converta em meio de vida individual e em segundo lugar, converte a vida individual em sua abstração, no fim da vida genérica, também sob sua forma abstrata e alienada.11 O trabalho alienado acaba por anular a essência humana ao fazer com que sua atividade, essencialmente social e real, se converta em individual e abstrata. A transformação da atividade produtiva – consciente, livre e social – em atividade imposta e individual, tem como consequência a alienação do homem com relação ao seu próprio ser. O que deveria torná-lo superior aos outros animais, sua atividade vital consciente e livre, torna-o inferior, uma vez que lhe são usurpadas as condições para exercer tal superioridade. O trabalho humano, enquanto meio de sobrevivência física estritamente individual, é convertido em trabalho animal. 1.4. Alienação do homem com relação a outro homem Uma vez que o trabalho alienado representa uma alienação com relação ao objeto, ao ato de produção e com relação à essência mesma do homem, seguese a alienação do homem com relação a outro homem. De fato, se ao operário não é dado o produto de seu trabalho, este deve necessariamente pertencer a outro homem. Ora, se o trabalho é uma propriedade essencialmente humana, seu produto só pode pertencer ao homem. Sendo o operário privado do acesso ao produto de seu trabalho e tendo este de pertencer a outro homem, pertencerá a alguém que se apresentará ao operário como estranho. A pertinência do produto do trabalho a um outro homem que não é o operário faz com que a atividade produtiva, definida como autoconstrução, se converta em autossacrifício para o trabalhador e em satisfação para o outro. A imposição do trabalho, sem o retorno da produção, implica a desumanização. O fato alienante nesse caso deve ser buscado na usurpação do homem sobre o homem. Se o produto do trabalho não pertence ao operário, se é frente a ele um poder estranho, só pode explicar-se em caso de que pertença a outro homem que não seja o operário. Se a atividade do operário é para ele um sofrimento, necessariamente será um deleite e uma função vital para outro.12 O trabalhador, por conseguinte, tendo de entregar a sua produção a um outro, entrega-se a si mesmo. Assim se manifesta a autoalienação do homem, isto é, a alienação com relação a si mesmo e à natureza. Na vida prática, porém, o trabalhador manifesta a autoalienação nas suas relações com os outros homens, ou seja, quando se estabelecem as relações dos outros homens com relação à Id. ibidem, p. 73. 11 Id. ibidem, p. 76. 12 146 EaD Filosofia e Ética produção do trabalhador. Uma vez que um outro se apropria da produção, isso acarreta a privação da própria realidade do trabalhador e, como consequência, o homem perde sua essência e converte o seu trabalho em sacrifício. A alienação do homem com relação aos outros homens é uma decorrência da alienação do objeto e da alienação da atividade produtiva. O produto do trabalho que não retorna ao trabalhador fica nas mãos de outro. Com isso formam-se duas classes antagônicas, uma que é despossuída do objeto produzido e outra que se apossa da produção de outrem. Ambas as classes são, segundo Marx, alienadas, só que sob circunstâncias diferentes. Certamente que uma das classes será mais privilegiada do que a outra, visto que não lhe serão frustrados os meios de sobrevivência. Marx assinala algumas das características definidoras que distinguem o operário e o proprietário com relação à alienação. As diferenças existentes entre eles são que, primeiramente, para o operário há uma atividade alienada, enquanto que para o proprietário há um estado alienado, que corresponde sempre à atividade alienada do operário. Enquanto que o primeiro, mesmo na atividade alienada com relação à produção, apresenta um comportamento real e prático, o segundo se apresenta a esta mesma produção com um comportamento teórico. A alienação da atividade produtiva e a consequente alienação do trabalhador em relação a um outro que se apropria do seu trabalho dá origem à propriedade privada. A propriedade, todavia, aparecerá, também, como meio de alienação do trabalho, pois que, conceptualmente, a relação entre o trabalhador e seu trabalho implica a relação da produção com o dono do trabalho. O desenvolvimento da propriedade privada se manifesta, então, duplamente: em primeiro lugar, como produto do trabalho alienado e, em segundo, como meio de alienação do trabalho. A propriedade privada deriva, por análise, do conceito do trabalho alienado, ou seja, do homem alienado, do trabalho estranho, da vida estranha, do homem estranhado.13 Não só a propriedade privada aparece como resultado do trabalho alienado, embora depois se converta em produtora deste, mas também o salário. Ora, o salário não é mais do que a confirmação da usurpação do objeto produzido e da transformação do homem em mercadoria. A substituição destas relações apresenta-se, a Marx, somente a partir da emancipação política do operário. Tal emancipação não se restringirá ao operário. Uma vez que a essência humana encontra-se desvirtuada da existência, a emancipação política do operário poderá possibilitar a convergência de ambas, pois significará a emancipação do próprio homem. Id. ibidem, p. 77. 13 147 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin CONCLUSÃO O desequilíbrio entre a essência e a existência humana deve-se às formas concretas do desenvolvimento do trabalho. Por um lado, o trabalho deveria propiciar a humanização do homem – e nisso consistiria sua essência; por outro, ele acaba por coisificar e desumanizar o homem, como verificamos em sua existência real. Por isso, a essência do trabalho encontra-se desvinculada de sua existência, pois, ainda que a atividade produtiva consista na própria definição da essência humana, no trabalho assalariado se converte em negação dessa essência. A atividade produtiva aparece, historicamente, como atividade alienada. A atividade produtiva realiza a mediação entre o homem e a natureza. Com isso propicia, por um lado, a sobrevivência física do homem e, por outro, seu desenvolvimento espiritual. Tal atividade é, para o homem, vital, só que uma atividade vital consciente e livre. Justamente na consciência e liberdade com que o homem desenvolve tal atividade é que ele encontra a autorrealização e, consequentemente, autoprodução. Tal atividade aparece, porém, historicamente, como atividade alienada. A atividade produtiva alienada manifesta-se de quatro maneiras. Primeiramente, apresenta-se com relação ao produto do trabalho – trabalho objetivado – que, não retornando ao operário, passa a se apresentar a este como estranho e hostil. Nesse momento o operário é convertido em mercadoria, pois passa a vender sua força de trabalho em troca de salário. Uma vez que o objeto lhe é usurpado e se lhe apresenta como estranho, a própria atividade de produção deste objeto encontra-se já como atividade alienada. A terceira forma de manifestação da alienação do trabalho é com relação ao próprio ser do homem. O homem, devido à alienação do objeto e à alienação da atividade produtiva, acaba por alienar-se de si e dos outros homens. Efetivamente, o não retorno da produção ao trabalhador quebra o vínculo do reconhecimento do homem enquanto natureza. Com isso, ele não se reconhece no objeto, uma vez que este objeto não lhe pertence mais. Consequentemente, deverá pertencer a um outro homem que lhe aparece, então, como oposto. Esta oposição entre os homens, definidora de oposição entre as classes, constitui a alienação do homem com relação a outro homem. Marx demonstra como, nas formas capitalistas de produção, efetua-se a negação da essência humana pelo trabalho alienado. Por outro lado, revela, também, a impossibilidade de romper com tais situações sem que se rompa com todas as formas de relações provenientes do sistema capitalista. Somente mediante a transformação das relações sociais, mormente das relações de produção, é que se poderia eliminar a alienação e enquadrar a essência humana na sua existência concreta. Referências CALVEZ, Jean-Yves. O pensamento de Karl Marx. Porto: Tavares Martins, 1959. Vol. 2. 148 EaD Filosofia e Ética GIANOTTI, J. A. Origens da dialética do trabalho. 2. ed. Porto Alegre: LPM, 1985. MARX, Karl. Manuscritos economico-filosóficos de 1844. Bogotá: Editorial Pluma, 1980. MÉSZÁROS, István. Marx: a teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. URDAÑOZ, Teófilo. Historia de la Filosofía. Madrid: BAC, 1975. Vol. V. VÁSQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. Seção 4.2 Ética e Violência: a Ética como Filosofia Primeira Luis Alles 14 Este texto pretende mostrar uma crítica feita ao pensamento ocidental, com base na obra de Levinas. A Filosofia levinasiana procurou compreender o fenômeno da violência enraizada em nossa cultura, bem como a falta de sentido para a vida humana. Propõe como possível superação desses problemas a colocação da Ética como Filosofia Primeira. 14 4.2.1 – A Filosofia ocidental como fomentadora da violência e de uma vida sem sentido Levinas fez a experiência da guerra. Sentiu em sua própria carne as consequências nefastas da violência e da total insensibilidade que se estabeleceu entre os seres humanos no período da Segunda Guerra Mundial. Nessa guerra Levinas perdeu praticamente toda a família. Assim, essa experiência o impulsionou e motivou a buscar a compreensão da raiz de tanta violência e maldade. Não só quis entender essa questão da violência e da insensibilidade humana, mas também buscar criar uma reflexão que, pelo menos, sinalizasse uma saída desse mundo caótico. Junto dessa marca da violência o autor também percebe uma outra marca muito forte na realidade humana moderna. É a falta de um sentido mais profundo para a vida humana. O viver, para muitos, tornou-se um pesadelo, ou uma vida sem-sentido. Esse sem-sentido para a vida está vinculado ao sem-sentido Fotografia – s/título – Kevin Carter. Fonte: http://farias.wordpress.com/2007/03/18/foto-de-kevin-carterem-1993. 14 149 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin das coisas, do mundo. A falta de sentido para a vida significa que o homem se desviou do caminho capaz de produzir um sentido satisfatório. Significa que o homem se perdeu num certo labirinto, no qual o sentido atribuído à realidade é inadequado por não produzir uma realização humana a contento dos nossos maiores anseios. Foram essas duas grandes marcas da realidade ocidental, a violência e a falta de sentido para a vida que, fundamentalmente, motivaram Levinas a buscar a compreensão das raízes desses problemas e, obviamente, apontar para uma possível solução. Se a realidade traz essas marcas, certamente as grandes concepções teórico-filosóficas contribuíram para esse modus vivendi caótico. Daí a necessidade de uma leitura mais acurada e crítica, para descobrir em que sentido a reflexão filosófica ou o pensamento ocidental contribuíram para a geração da violência e da falta de sentido para a vida. Levinas debruçou-se sobre a Filosofia tradicional para nela perscrutar elementos que, se não são causa direta desse mundo indesejável, pelo menos possibilitaram o surgimento dessa realidade. Assim sendo, o que move a reflexão do autor é a convicção de que a Filosofia é um fator fundamental na construção da vida dos povos e que durante 2.500 anos ela não conseguiu produzir alguns dos frutos que a humanidade mais anseia: uma convivência pacífica e solidária. O predomínio da guerra e da violência é sempre sinônimo de uma vida sem-sentido. Somente uma relação pacífica e solidária entre as pessoas possibilitará a superação do caos da guerra e a instituição de uma vida com mais sentido. Uma relação que coloque o outro como centro permitirá o descobrimento ou a criação de um sentido mais profundo da vida humana, capaz de propiciar uma realização humana mais satisfatória. Em que, então, consiste a contribuição da Filosofia para a violência e para a construção de uma sociedade caótica e sem-sentido? Para responder a essa questão Levinas busca compreender o que é essencial no pensamento ocidental. Analisando a Filosofia desde as suas origens gregas, percebe-se que a questão central está voltada para o ser. A Filosofia quer encontrar uma unidade na diversidade. Essa unidade é encontrada no ser. Por isso, em última instância, filosofar é buscar a compreensão do ser. Para além do ser, nada pode-se pensar ou dizer. Também nada de radicalmente novo poderá surgir. Tudo já está no ser. O que for pensado ou dito, em última instância, vai ser sempre a repetição do mesmo. Nesse sentido, a Filosofia como ontologia vai significar uma violência engolidora da diversidade e da diferença. Só terá sentido o que se conformar com a totalidade do ser. 4.2.2 – A lógica dominadora da Filosofia Ocidental A lógica própria dessa tradição filosófica visa a reduzir tudo ao mesmo, englobando tudo numa totalidade. Nessa lógica predomina o olhar que organiza tudo em totalidade. A totalidade move-se no nível do visível. Nas palavras de Levinas, “o visível forma uma totalidade ou tende a ela” (1977, p. 221). 150 EaD Filosofia e Ética “A visão é, de fato essencialmente uma adequação da exterioridade à interioridade: a exterioridade funde-se na alma” (Levinas, 1977, p. 275). Nesse sentido, parece que a Filosofia tradicional reduz a relação entre o mesmo e o outro numa relação que se esgota no conhecimento em que o mesmo sempre abarca o outro. Levinas (1977), no entanto, quer pensar o outro como revelação, e enquanto tal ele não é abarcável pela compreensão do desvelamento. A consequência de uma Filosofia como ontologia fundamental, ou ontologia da totalidade, está em possibilitar que alguém se coloque no centro dessa totalidade e atribua um sentido a toda realidade circundante. Nesta realidade serão abarcados também os outros sujeitos, como se fossem coisas que estão ali para servirem a esse eu central. Como não existe um eu absoluto, que pudesse ocupar o centro da totalidade, cada sujeito sente-se livre para buscar esse centro. Cada ser humano tende, naturalmente, a compreender o ser com base em seus interesses, enquadrando ali os outros sujeitos. E estes, quando não se enquadrarem nessa totalidade de sentido, ou serão marginalizados ou forçados a se adequarem. Nesta busca constante da centralidade de um sujeito cognoscente instaura-se, quase sempre, uma relação de competição e de superação do outro, e a dominação torna-se uma prática rotineira e moralmente aceita. Para Levinas, a racionalidade ocidental que procura englobar tudo na totalidade caracteriza-se como uma violência. “Não há necessidade de provar por meio de obscuros fragmentos de Heráclito que o ser se revela como guerra ao pensamento filosófico” (Levinas, 1977, p. 9), argumenta o autor. A face do ser que revela a guerra está presa ao conceito de totalidade e domina a Filosofia ocidental. Dentro da totalidade, nas palavras de Levinas, “os indivíduos reduzem-se aí a portadores de formas que os comandam sem eles saberem” (1977, p. 10). Todo sentido é conferido a partir da totalidade. A ameaça constante de guerra, ou a paz que assenta na guerra não devolvem aos indivíduos a identidade perdida. Na Filosofia tradicional a alteridade sempre foi pensada a partir da totalidade. As tematizações que procuraram pensar a relação do eu com o outro normalmente produziram uma síntese totalizadora, na qual a figura da alteridade subsumia. A alteridade, portanto, não foi pensada suficientemente na sua especificidade. E na medida em que a voracidade engolidora do mesmo fazia desaparecer a singularidade do outro, gerava-se, necessariamente, uma violência. Evitar esta violência contra a alteridade pareceu a Levinas uma questão fundamental e uma lacuna a ser suprida pela reflexão filosófica. 4.2.3 – A Filosofia da Alteridade e a Liberdade A chave da Filosofia de Levinas está no primado do outro em relação ao mesmo. Nesse entendimento, a relação entre sujeitos é fundamentalmente uma relação ética. E isto exigirá uma crítica à concepção tradicional da subjetividade 151 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin e a elaboração de uma nova concepção de sujeito, principalmente no que diz respeito ao outro. Assim, “a subjetividade não será determinada pelo ‘modus’ do eu do conhecimento, mas antes, será ‘tocada’ ou ‘despertada’ pelo outro como outro” (Pelizzoli, 1994, p. 51). Não será, portando, um eu que definirá o sujeito a partir do seu conhecimento. A subjetividade não será o resultado de uma experiência cognoscitiva, mas de uma experiência que brota de um desejo metafísico instigado pelo outro. O outro me interpela e dele brota um apelo que me convida à generosidade. A análise levinasiana da liberdade parte da intersubjetividade. Ali, eu e outro são dois termos desiguais. Um é sempre transcendente em relação ao outro, o que significa que a relação entre ambos não se dá numa totalidade. Na dimensão cognoscitiva dá-se o domínio do sujeito sobre o objeto, pela sua caracterização e classificação, no entanto o ser humano não se deixa enquadrar numa tipologia classificatória. Ele permanece estranho ao domínio do conhecimento, e essa estranheza é a sua liberdade. “Só os seres livres podem ser estranhos uns aos outros. A liberdade que lhes é ‘comum’ é precisamente o que os separa” (Levinas, 1980, p. 60). Na relação do conhecimento o outro permanece livre dos enquadramentos e generalizações que o conhecimento produz. Neste caso, ao se permitir que o outro seja ele mesmo, ele nos aparece como estranho, como livre. A liberdade acontece, propriamente, na relação do eu com o outro como exterioridade. Esta se manifesta no rosto como bondade e resiste a toda totalização no ser. Se a liberdade se desse fora dessa relação, então as relações acabariam, pois cada um fechar-se-ia em si mesmo, ou dar-se-iam como dominação, na qual o outro passaria a participar da razão do mesmo que abarca tudo. Ninguém olharia no rosto do outro. O encontro com o outro põe em questão a minha liberdade. O rosto do outro submete a minha liberdade ao julgamento. Assim, a justificação da liberdade não se dá no campo do conhecimento, mas no campo da moral. “A liberdade não se justifica na consciência da certeza, mas numa exigência infinita em relação a si, na ultrapassagem de toda a boa consciência” (Levinas, 1980, p. 284). Por isso, para Levinas (1980) o primado está no campo ético, que está para além da visão e da certeza científicas, e se dá na relação com a exterioridade. Nessa relação predomina a justiça que me julga. E a liberdade só tem sentido quando se submete a esse julgamento que me coloca no patamar da inteira responsabilidade que vem do apelo do outro que se manifesta como rosto. Essa responsabilidade, à qual sou submetido, causa certa estranheza. Surgem perguntas do tipo: Onde nasce a responsabilidade? Por que devo ser responsável pelo outro? A partir do pensamento levinasiano extraímos alguns indicativos que nos esclarecem essas questões. A presença do outro, no acolhimento, ajuda a me situar na presença da minha última realidade. Não que esta realidade resulte do que o outro pensa a meu respeito, mas, a sua presença como 152 EaD Filosofia e Ética que me reconduz ao lugar próprio do meu ser. Neste momento me dou conta que a minha realidade última consiste em servir ao outro, e que minha existência começa, propriamente, com a presença do rosto do outro. Há uma abertura para o outro que significa tornar-me atento, e “estar atento é reconhecer o domínio do Outro, receber a sua ordem ou, mais exatamente, receber dele a ordem de mandar” (Levinas, 1980, p. 160). Assim, a minha existência só terá sentido na medida em que se realizar no âmbito da responsabilidade para com o outro. A alteridade exige justiça, e é neste sentido que a justiça é anterior à liberdade. Esta somente é concebível dentro da responsabilidade perante o outro. Enquanto na visão tradicional a liberdade é fundamento de tudo, para Levinas (1980) a liberdade só encontra o seu fundamento na transcendência. Ali aparece o outro como rosto, que julga a nossa liberdade. Diante do outro, que exige justiça, somos responsáveis. Somente somos livres dentro dessa responsabilidade. 4.2.4 – A experiência cognoscitiva e a experiência moral Para compreendermos melhor a novidade pretendida e buscada pela Filosofia da alteridade, podemos fazer menção a duas experiências e a dois tipos de relação: uma é a experiência cognoscitiva, elaboradora do conceito. Nela estou só e a base última é a minha liberdade. A outra é a experiência moral. Aí a minha liberdade é posta em questão. A moral, ou a justiça, significa o acolhimento do outro. Acolher o outro é tornar-se responsável por ele, é submeter a própria liberdade a esta responsabilidade. É a experiência “esquecida” pela racionalidade técnico-científica. A Filosofia levinasiana preocupa-se em pensar uma subjetividade e uma intersubjetividade que são anteriores à centralidade da consciência cognoscitiva. Dessa forma, pretende-se entrar num âmbito pré-temático, num campo que é anterior a toda e qualquer Filosofia. É o campo em que a subjetividade é constituída pela sensibilidade e a intersubjetividade acontece como recebimento. Nesse nível podemos propriamente pensar a ética. No entendimento de Levinas (1980), a ética torna-se a Filosofia primeira, porque assenta numa subjetividade que se constitui como abertura e acolhimento do outro, e se efetiva numa responsabilidade infinita em relação ao outro. Uma vez assentada a relação nesse comprometimento com a alteridade, pode-se partir para a segunda Filosofia que foi desenvolvida pela tradição ocidental. O compromisso com o outro dá uma nova direção para a consciência teórica na busca da compreensão e elaboração do significado e do sentido da realidade na qual estamos imersos. Nesta relação entre dois sujeitos que se mantêm exteriores um ao outro, torna-se possível um verdadeiro diálogo e uma eficaz relação intersubjetiva, pois cada um coloca-se como abertura para acolher o que vem do outro. Há ali uma relação que coloca num primeiro plano a consciência moral. Nesse plano, em que o outro é sempre anterior e exterior ao eu, o eu torna-se submisso no sentido de acolher o que o outro oferta. O eu como consciência teórica que 153 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin busca o saber para dominar o que me cerca, passa para segundo plano. No primeiro plano haverá a possibilidade de uma relação em que a linguagem será portadora de um sentido mais originário da vida dos seres humanos. É a linguagem do campo pré-temático, pois acontece no olhar do outro, a partir do rosto do outro. É a linguagem do infinito que não se deixa enquadrar na linguagem lógico-compreensiva da racionalidade do mesmo. Filosofia, na sua origem terminológica grega, quer significar amigo da sabedoria, amor ao saber. O que é mesmo o saber? Nas palavras de Levinas, “a crítica ou a filosofia é a essência do saber. Mas o peculiar do saber não reside na sua possibilidade de ir para um objeto, movimento pelo qual se aparenta aos outros atos. O seu privilégio consiste em pôr-se em questão, em penetrar aquém da sua própria condição” (Levinas, 1977, p. 72). E nesse movimento da busca de um fundamento que justifique a liberdade, a Filosofia depara-se com o “Outro que se apresenta como Outrem” (1977, p. 73). Dessa forma o saber deixa de ser um poder que domina o ser pela compreensão e passa a ser acolhimento do outro. O acolhimento ao outro torna-se uma exigência ética que deve ser a preocupação primeira da Filosofia. É nesse sentido que Levinas pode subverter a ordem dos termos e encontrar um novo sentido para a Filosofia. Ao invés de amor à sabedoria, Filosofia deveria ser, pelo menos numa primeira instância, sabedoria do amor. Somente uma Filosofia com esta pretensão poderá efetivamente enriquecer o sentido da vida humana e apontar para uma possível superação das marcas caóticas resultantes da violência presente em nossa sociedade. 4.2.5 – A ética como Filosofia Primeira Segundo Levinas (1993), a ontologia é dogmática e a ética é crítica. O dogmatismo ontológico nasce da concepção do sujeito cognoscente como sendo livre diante do objeto cognoscível. Essa liberdade do sujeito é de tal modo que subjuga e até mesmo aniquila a identidade do objeto. Como a ontologia significa a inteligência dos seres, ela legitima a postura do sujeito que aniquila o outro a ponto de identificá-lo consigo mesmo. Já na ética essa liberdade do sujeito cognoscente é questionada, o que confere à ética uma dimensão crítica. No âmbito da ética nós temos em primeiro lugar o encontro de dois entes humanos. É a experiência do face a face que é anterior a qualquer tematização. Nessa relação o outro se apresenta numa amplitude tal que sempre extrapolará a pretensão do sujeito cognoscível. A razão tematizadora nunca abarcará a totalidade do outro. Nesse sentido o outro sempre permanecerá instância crítica dessa pretensão ontológica. A questão fundamental que se coloca nesse momento é a compreensão da relação do eu com o outro. Qual é propriamente a base dessa relação e por que essa relação é ética? Por que essa relação não é possível numa ontologia absoluta? 154 EaD Filosofia e Ética Começamos pela última questão: a crítica de Levinas à ontologia pelo fato de esta impossibilitar a ética. A ética não é possível porque o eu é colocado no centro. E o eu é colocado no centro porque é a partir dele que se quer compreender o ser. O eu é a referência central para a qual tudo o mais está voltado. O outro está incluído nesse “tudo o mais”. O eu passa então a querer compreender o outro. E o outro torna-se compreensível na medida em que se deixa reduzir à mesmidade. O que for diferente a essa mesmidade não é compreendido, não é dominado, é marginalizado. Essa centralidade e superioridade do eu em relação ao outro impossibilita uma autêntica relação. O outro deve ser compreendido e, mais do que isso, deve estar a serviço dos interesses do eu. O ser pretendido pelo eu é o único ser admissível. A partir dessa visão ontológica a relação entre o eu e o outro sempre estará comprometida. O outro necessariamente sofrerá a violência do enquadramento nos interesses do eu. O eu que pensa o ser do outro compromete a relação por impedir que o outro permaneça na alteridade. Nessa relação a ética torna-se inviável. Deve-se buscar, por isso, um sentido mais legítimo da relação entre o eu e o outro. Afinal, por que o eu busca o outro para estabelecer uma relação? Segundo Levinas, o eu não busca o outro porque está farto e enfastiado de si mesmo. Nem busca o outro como uma mônada fechada que quer passar uns bons momentos com outra mônada fechada. Também o eu não busca o outro para compreendê-lo nem para formar com ele uma comunhão. Se assim fosse, destruiria a alteridade do outro. A relação com o outro é estabelecida em níveis mais profundos e originários. Somente nesses níveis é possível falar de uma relação ética. Afinal, o que mesmo move o eu em direção a esse outro? O eu busca o outro porque todas as relações que reduzem tudo a mesmidade não satisfazem. O outro então é buscado por um desejo metafísico. O desejo vem do outro e está para além da satisfação própria do mundo da corporeidade. O eu voltado sobre si mesmo (eu-mim-mesmo), saturado das coisas desse mundo, mas não plenamente satisfeito, agora pode abrir-se ao outro metafísico. Isso, porém, não significa que essa abertura ao desejo do outro só acontece após uma saturação não satisfatória desse mundo. Significa que mesmo tendo usufruído de tudo que esse mundo oferece ao eu, este ainda não se sente realizado. Assim, o desejo que vem do outro pode explodir essa mesmidade do eu. Explodir aqui significa a possibilidade de uma abertura do eu ao outro sem querer reduzir o outro ao esquema da mesmidade. Significa abrir a possibilidade de uma verdadeira relação do eu com o outro. Verdadeira porque o eu não se enche do outro e nem impede que o outro permaneça plena alteridade. Nessa relação o outro, como exterioridade, não pode ser incluído na identificação do eu. O rosto do outro fala por si e recorda as obrigações do eu. O olhar estampado no rosto do outro torna-se um juiz a condenar as arbitrariedades do eu. 155 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin O rosto do outro desperta a vergonha e a culpabilidade. Vergonha da ingênua liberdade individual e culpa de um mundo egoísta que pretende dominar tudo a seu favor. Dessa forma a relação do face a face torna-se a relação mais originária e é uma experiência ética que pode contribuir na superação da violência e na criação de um mundo com mais sentido. Referências BUCS, René. A Bíblia e a ética: Filosofia e sagrada escritura na obra de Emmanuel Levinas. São Paulo: Loyola, 1997. COSTA, Márcio Luis. Levinas: uma introdução. Petrópolis: Vozes, 2000. LEVINAS, Emmanuel. Da existência ao existente. São Paulo: Papirus, 1998. ______. De outro modo que ser, o más allá de la esencia. Introdução de Antonio Pintor-Ramos. Salamanca: Sígueme, 1987. ______. Ética e infinito: diálogos com Philippe Nemo, Lisboa: 70, 1982. ______. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993. ______. Totalidad e infinito: ensayo sobre la exterioridad. Introdución de Daniel E. Guillot. Salamanca: Sígueme, 1977. ______. Totalidade e infinito. Lisboa: 70, 1980. PELIZZOLI, Marcelo Luiz. A relação ao outro em Husserl e Levinas. Porto Alegre: Edipucrs, 1994. SOUZA, Ricardo Timm de. Totalidade & desagregação: sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. ______. Sujeito, ética e história. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. SUSIN, Luiz Carlos. Levinas: a ética e a ótica. In: STEIN, Ernildo; DE BONI, Luís Alberto (Orgs.). Dialética e Liberdade (Festschrift em homenagem a Carlos R. Cirne Lima). Petrópolis: Vozes, 1993. ______. O homem messiânico: uma introdução ao pensamento de Emmanuel Levinas. Porto Alegre; Petrópolis: Vozes, 1984. 156 EaD Filosofia e Ética Seção 4.3 Reflexões Acerca das Perspectivas para a Educação no Século 21: Uma Análise em Perspectiva Ético-Filosófica Valdir Graniel Kinn O homem não é nada além daquilo que a educação faz dele (Kant). 15 Ao olhar/refletir retrospectivamente para a História da humanidade, em especial na sua vertente ocidental a partir do projeto de mundo moderno, no que concerne à educação desenvolvida ao longo desse período, é possível afirmar que, sob vários e significativos aspectos, a mesma falhou. 15 Falhou não só nos processos educacionais, mas, e principalmente, falhou no projeto emancipatório humano que foi gestado na modernidade. Sobre essas dimensões, reflete M. Gadotti: No início deste século, H. G. Wells dizia que “a História da Humanidade é cada vez mais a disputa de uma corrida entre a educação e a catástrofe”. A julgar pelas duas grandes guerras que marcaram a “História da Humanidade”, na primeira metade do século XX, a catástrofe venceu. No início dos anos 50, dizia-se que só havia uma alternativa: “socialismo ou barbárie” (Cornelius Castoriadis), mas chegou-se ao final do século com a derrocada do socialismo burocrático de tipo soviético e enfraquecimento da ética socialista. E mais: pela primeira vez na história da humanidade, não por efeito de armas nucleares, mas pelo descontrole da produção industrial, pode-se destruir toda a vida do planeta. Mais do que a solidariedade, estamos vendo crescer a competitividade. Venceu a barbárie, de novo? (2000, p. 3). Os processos educacionais institucionalizados – nas escolas, universidades etc. – não foram capazes de dar vida aos principais institutos/princípios alicerçadores do projeto da modernidade. Um projeto que propugnava o esclarecimento e a emancipação humana como condição necessária para uma vida de plenitude e dignidade. É importante frisar que as referências norteadoras deste trabalho não buscam trilhar os (des)caminhos teóricos das diferentes propostas didático/ pedagógicas que se apresentaram ao longo deste período histórico. Sem desme- Fotografia de Sebastião Salgado. Disponível em: <http://www.agenciaatr.com/sebastiao-salgadodesigualdade-em-preto-e-branco/>. 15 157 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin recer e/ou menosprezar as leituras e contribuições produzidas pelos pedagogos e suas pedagogias, busca-se, neste estudo, um olhar a partir das possibilidades teórico-metodológicas engendradas pela Filosofia, em especial, a perspectiva16 crítica/histórica/política das dimensões éticas da educação. Neste sentido, não há como escapar, mesmo que de forma abreviada e quem sabe superficial, da análise histórica/filosófica das questões éticas que envolvem o processo de educação e construção do conhecimento. Isso porque somos herdeiros de uma tradição que nos informa e conforma em sucessivas reconstruções a que necessitamos estar atentos para superá-las à busca de respostas aos desafios sempre novos dos tempos mudados (Marques, 1993). Assim como não se pretende uma análise didático-pedagógica, a presente reflexão também não tem o objetivo de ser um tratado sobre ética e educação; ao contrário, o que se deseja é levantar e problematizar alguns elementos que possam nos auxiliar e/ou indicar caminhos no exercício de busca por compreensão desta complexa e vasta temática. Neste sentido, dois princípios básicos podem, preliminarmente, ser anunciados. Em primeiro lugar, a necessária indissociabilidade entre educação e ética,17 compreendendo, assim, a ação educativa, antes de tudo, como uma ação ética. Em segundo lugar, a constatação de que a análise das questões que envolvem o processo ético/educativo não pode estar desarticulada da realidade social, política, econômica e cultural vigente em nosso mundo presente. Presentidade esta marcada pelo sentimento generalizado de crise e perplexidade, carente de paradigmas e referenciais capazes de serem alavancadores de novos projetos de sociabilidade humana e da própria educação como parte constitutiva dessa realidade. Conforme afirma Gadotti: É um tempo de expectativas, de perplexidade e da crise de concepções e paradigmas não apenas porque inicia-se um novo milênio, época de balanço e de reflexão, época em que o imaginário parece ter um peso maior. (...). É um momento novo e rico de possibilidades. Por isso, não se pode falar do futuro da educação sem certa dose de cautela. (...). A perplexidade e a crise de paradigmas não podem se constituir num álibi para o imobilismo (2000, p. 3). No que respeita ao termo perspectiva, são fundamentais as observações de M. Gadotti (2000, p. 3-4), quando afirma: “A palavra ‘perspectiva’ vem do latim tardio ‘perspectivus’, que deriva de dois verbos: perspecto, que significa ‘olhar até o fim, examinar atentamente’; e perspicio, que significa ‘olhar através, ver bem, olhar atentamente, examinar com cuidado, reconhecer claramente’ (...). A palavra ‘perspectiva’ é rica de significações. Segundo o Dicionário de filosofia, do filósofo italiano Nicola Abbagnano (2000), perspectiva seria ‘uma antecipação qualquer do futuro: projeto, esperança, ideal, ilusão, utopia. O termo exprime o mesmo conceito de possibilidade, mas de um ponto de vista mais genérico e que menos compromete, dado que podem aparecer como perspectivas coisas que não têm suficiente consistência para serem possibilidades autênticas’. (...) Perspectiva significa ao mesmo tempo enfoque, quando se fala, por exemplo, em perspectiva política, e possibilidade, crença em acontecimentos considerados prováveis e bons. Falar em perspectivas é falar de esperança no futuro.” 16 Ao referirmos ao conceito de ética, é importante salientar que não se trata de um conjunto de normas e valores predeterminados e não se pode confundi-lo com a própria moralidade vigente. Na perspectiva em que se está trabalhando, ética assume uma dimensão de reflexão e busca por esclarecimento acerca das origens e princípios norteadores da moralidade vigente e que se fazem notar nos processos de educação. Cabe aqui reproduzir as palavras M. Marques: “Os valores éticos que regem a vida humana em sociedade não se admitem mais eternos, desde sempre estabelecidos ou decretados, nem buscados como ideal do sábio eqüidistante dos extremos. Não basta a ética da compaixão, sem a ética baseada numa pretensa lei natural ou em algo situado além da intersubjetividade humana. A ética só se estabelece no entendimento por todos partilhado através da linguagem da argumentação em que todos ouvem a todos” (2000, p. 15). 17 158 EaD Filosofia e Ética Tendo presente esta complexa realidade e, em conformidade com a perspectiva apresentada por Gadotti, faz-se necessário um exercício constante e crítico no sentido de compreender as origens e os fundamentos teóricos que vigoram e são determinantes neste processo. O processo de globalização tecnológica – tecnociência – é um modelo de conhecimento que traz consigo a ideia e/ou promessa de um progresso contínuo e infindável que, necessariamente, deverá construir as soluções para todos os nossos problemas e assim, saciar os inesgotáveis desejos e necessidades produzidas pelo homem no mundo moderno e contemporâneo. Esta promessa já se mostrou irrealizável e com consequências nefastas para o universo humano e ambiental, obrigando-nos, portanto, a um repensar ético/educativo. Faz-se necessário, também, desenvolver uma compreensão teórico/crítica sobre os saberes científicos envolvidos nas práticas tecnológicas do mundo contemporâneo. Nesse sentido, é preciso tematizar as especificidades do conhecimento científico, transformado em razão instrumental, como forma de saber, como relação de poder e de controle ideológico na cultura da modernidade. Essa nova realidade centrada na tecnociência afeta diretamente as condições para o refletir ético/educativo, revelando-nos a defasagem e incapacidade das perspectivas teóricas tradicionais em construir respostas e propostas capazes de perspectivar novos caminhos e uma nova consciência em termos éticos/ educacionais. 4.3.1 – Ética, conhecimento e educação A análise das questões relativas à ética e à educação exige-nos uma análise anterior e mais ampla do próprio processo constitutivo do conhecimento, em especial, daquele engendrado pelo projeto da modernidade. Neste sentido, de forma preliminar, é possível afirmar que a realidade ética/educacional não está dissociada das demais dimensões da realidade (social, política, cultural e econômica) em que estamos inseridos e, portanto, encontra-se também em situação de crise. A questão que precisa ser tematizada e (re)elaborada diz respeito à dimensão desta crise. O que é mesmo que está em crise? As questões anteriormente levantadas remetem-nos à análise e descrição do projeto do mundo moderno, em especial de sua dimensão do conhecimento e da Ciência e o modo como estas refletem nas dimensões éticas/educacionais. Ao buscar compreender e reconstituir as características fundamentais do projeto desencadeador e articulador do mundo moderno, percebemos que este se alicerça a partir de um grupo de grandes conceitos/paradigmas, transformados em “crenças” orientadoras e definidoras das ações dos sujeitos e de suas concepções de mundo e de humano. Conforme afirma Kujawski em sua obra A crise do século XX, a modernidade é permeada pelo utopismo e pela crença no progresso. Segundo o autor: 159 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Razão e racionalismo são formas de radicalismo ideológico, ou seja, de utopismo. O utopismo, ou culto da utopia, exige: a) que a realidade seja transformável pelo homem; b) que a transformação se dê sempre para melhor; c) que o “melhor”, o grau ótimo de transformação, esteja situado em futuro sempre mais à frente e sempre por atingir; d) que a realidade presente não tenha valor em si, mas valha, unicamente, como degrau para o estágio superior seguinte. (...) A crença no progresso descongela a utopia de sua abstração contemplativa e a transforma em processo, (...). O progresso atualiza toda aquela imensa riqueza latente prometida pelo alvorecer da modernidade (1991, p. 21). Estas são, sem maiores polêmicas, algumas das características centrais do projeto moderno. “A modernidade (...) condensa sua essência na utopia arquetípica do paraíso terrestre, do céu na terra. Modernidade é utopia (...)” (Kujawski, 1991, p. 21). Ainda segundo esta mesma perspectiva, o utopismo penetra todas as dimensões do pensamento e da ação na modernidade. No texto que segue, o autor reforça ainda mais esta perspectiva: A razão, tal como a concebe o racionalismo, é pura utopia, ao supor que a realidade se estrutura more geométrico, como um relógio cósmico regulado a priori pela razão pura. A ciência moderna é utopismo, na medida em que se propõe o conhecimento definitivo da natureza em suas leis imutáveis. A técnica é utopismo ao querer levar aos últimos efeitos o domínio da realidade, ignorando que esta é irredutível à técnica. A política moderna foi toda dominada pela utopia, primeiro ao enunciar a liberdade e a igualdade para todos os homens [...]; A arte foi utopizante em seu empenho de revolucionar o mundo e o homem por intermédio da estética [...]. Por último, a indústria, o comércio e a publicidade encampam a utopia ao nível mais rasteiro e banalizante, procurando absorver o homem na bolha tépida e macia do conforto onde ele se sente mais protegido e feliz que no ventre materno (Kujawski, 1991, p. 20-21). De forma breve e muito genérica, esta pode ser uma descrição/compreensão possível do projeto de mundo engendrado pela modernidade. No mundo contemporâneo, vivemos ainda as consequências e os prolongamentos deste projeto tão vigoroso e avassalador. Vivemos não mais o projeto moderno, mas sim sua crise, sua desarticulação e possível naufrágio: “[...] perdemos os padrões de pensamento e ação da modernidade e ainda não encontramos seus substitutos equivalentes para estabilizar e organizar efetivamente a nossa vida” (Kujawski, 1991, p. 28). Este é um momento histórico que nos determina e empurra em direção à busca da construção e efetivação de um novo projeto de mundo. Diante desta realidade, é preciso reinventar inúmeras dimensões e convicções do humano. Com a ética e a educação não é diferente. O projeto ético/ educacional hegemônico da modernidade tornou-se, também, esclerosado e insuficiente para o momento de crise em que nos encontramos. Sobre as dimensões desta crise e o vácuo ético daí oriundo, M. Oliveira afirma: 160 EaD Filosofia e Ética A crise ecológica, o perigo de proliferação de novas guerras no planeta, o problema do reconhecimento dos direitos das minorias e das relações internacionais, da fome e da miséria no mundo, manifestaram a urgência de uma reflexão ética abrangente. A nova reestruturação das relações globais e da crise ecológica, determinada pelos problemas oriundos da sociedade industrial e da crise do tipo de racionalidade cientificista, que tornou-se hegemônica no mundo moderno, fez ressurgir o problema da justificação filosófica das normas fundamentais da ação humana. Se há algo que caracteriza de forma incisiva o mundo atual é, sem dúvida, a desproporção entre a velocidade absurda do progresso científico-tecnológico e o vácuo ético que se formou a partir da negação dos sistemas tradicionais de valores. (...) Além disso, a ética tem dificuldades de legitimação diante de uma sociedade marcada pelo individualismo, onde as pessoas aparecem encerradas no círculo infinito de seus próprios interesses e impulsos e a vida social não passa de uma associação mecânica de indivíduos perseguindo fins individuais (2000, p.7). Esta situação, além de suscitar questões de ordem ética, remete-nos à busca de alternativas em torno de um projeto educacional capaz de contribuir para a rearticulação desta realidade, permitindo, assim, que a promessa de liberdade e emancipação humanas, presente no projeto original da modernidade, possa enraizar-se no cotidiano, constituindo-se em solo fértil à educação enquanto autorrealização e autoconhecimento humanos. Afinal, “o homem, um ser a caminho de si mesmo, é uma busca de liberdade, ou seja, ele é uma opção, que se radica numa interpretação da totalidade do real. A educação é precisamente o processo através do qual o homem toma consciência desta totalidade como condição de possibilidade de sua autorealização como homem” (Oliveira apud Ahlert, 1999, p. 17). O que percebemos, contudo, no cotidiano da nossa sociedade, tanto na economia, na produção do conhecimento e no processo educacional, é algo muito distinto e contrário desta perspectiva. Ao analisarmos, retrospectivamente, as consequências e/ou resultados em termos sociais, econômicos e ético/educacionais produzidos pela modernidade, percebemos que o projeto emancipatório humano, que impulsionou sua gênese e dinâmica original, não se realizou. Pelo contrário, [...] a modernidade construiu sociedades complexas no mundo ocidental, erigidas sobre a razão instrumental, o que permitiu o desenvolvimento de técnicas cada vez mais sofisticadas para o desenvolvimento das forças produtivas, do controle sobre a natureza e da sua transformação. Seu pilar filosófico, seguindo a máxima de Descartes (“Penso logo existo”), desestruturou o pensamento comunitário coletivo e centralizou a vida humana no indivíduo, na capacidade de cada um construir sua própria felicidade. Gerou uma sociedade essencialmente individualista (Ahlert, 1999, p. 106). Neste contexto, a educação deixou de ser espaço de diálogo – aberto, crítico e (re)construtivo – em busca do esclarecimento emancipatório, passando a desempenhar um papel puramente estratégico, orientado aos interesses he161 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin gemônicos do capital e do chamado “livre mercado”. Assim, educação torna-se sinônimo de preparação técnica – para o trabalho, vestibular, mercado, etc. – sem o necessário compromisso com os interesses sociais e políticos da coletividade. A vida, os interesses, a política, a cultura de forma geral e, consequentemente, o próprio processo de educação, passam a ser mercantilizados e submetidos às regras do “deus” mercado. Tudo vira mercadoria que pode ser comprada e vendida no mercado global. Trata-se de mais um processo de coisificação do mundo humano, em que a racionalidade técnica penetra todas as dimensões da vida e da sociedade. É o processo de colonização do mundo da vida, nas palavras de J. Habermas (1984). É preciso, portanto, desenvolver uma compreensão ética/teórica essencialmente crítica acerca dos saberes técnico-científicos envolvidos nas práticas tecnológicas do mundo contemporâneo. Esta crítica ética/teórica faz-se necessária, uma vez que, no universo da “civilização tecno-científico-industrial”, a técnica deixa de ser considerada um instrumento e/ou meio para a realização de algo (fins) e passa a se determinar como fim em si, o que nos coloca na iminente possibilidade de uma catástrofe universal. O agir humano passa a ser determinado e delimitado segundo os interesses da razão técnico-instrumental. A ética perde espaço e deixa de ser relevante enquanto elemento orientador e articulador da ação humana. A práxis deixa de ser ética e se faz única e exclusivamente técnica, o que significa dizer que toda a organização social é, hoje, entendida como essencialmente aética. O triunfo exclusivo da racionalidade tecnológica significa uma atrofia fundamental da dimensão ética da vida. A esfera do prático se identifica agora com a esfera do técnico: trata-se da mais radical cientifização da vida humana, que se traduz no ideal da tecnificação plena, o que iria significar que os mecanismos de regulação da vida dos homens poderiam garantir a realização e a consecução de determinados fins sistêmicos, que conduzem a um processo de autoconservação, o que significa dizer a eliminação do homem. Quanto menos o homem pensa, menos exerce sua capacidade de reflexão crítica, tanto melhor o sistema funciona, conserva-se e se reproduz (Oliveira, 1995, p. 90). Como já afirmamos anteriormente, a razão técnico-instrumental penetra todas as dimensões da vida e das instituições do universo humano, transformando e reduzindo a problemática humana a questões de ordem técnica/científica. Presenciamos um processo de endeusamento e mitificação da Ciência e da técnica, fazendo desaparecer o lugar e o significado da reflexão ética abrangente. “Isto significa, em última análise, a eliminação pura e simples da ética: as questões que dizem respeito à convivência humana são apenas problemas técnico-sociais ou sócio-psicológicos” (Oliveira, 1995, p. 92). O processo de educação enquanto parte constitutiva desta realidade acaba por corroborar e reproduzir este modo de pensar e agir. A educação também se tecnifica, preocupando-se, única e exclusivamente, com a preparação em termos de racionalidade técnica-instrumental, sem maiores compromissos com a formação dos sujeitos no que concerne à razão ético-emancipatória. Neste 162 EaD Filosofia e Ética sentido, a educação também vive um processo de profunda crise. Nas palavras de Ahlert, “(...) a crise da modernidade é também a crise da educação, pois forma sujeitos fragmentados e transmite conteúdos prontos e acabados (...). Não permite, pois, aos sujeitos a construção de rupturas capazes de emancipações e liberdades coletivas” (1999, p. 130). Para que aconteça a ruptura com esta realidade e a educação possa se constituir em processo ético-emancipatório, precisamos mudar a lógica de construção do conhecimento. É preciso desatrelar o processo de conhecer e de educar das demandas puramente técnicas e econômicas que imperam na lógica do modelo capitalista – excludente social e economicamente para a grande maioria e concentrador, do ponto de vista econômico e técnico-científico, para a grande minoria – vigente no mundo contemporâneo. Precisamos instaurar uma nova lógica de construção do conhecimento e do fazer educação. Uma lógica que compreenda o saber, o conhecer e o fazer educação enquanto criação, alternativa, transformação e esperança. Nesta busca pela constituição de uma nova realidade em termos de conhecimento e educação numa perspectiva ético-emancipatória, cumpre papel fundamental o conceito de pesquisa. Neste sentido, a pesquisa deve ser vista como processo social que perpassa toda a atividade de educar e deve penetrar na medula dos professores e dos educandos. Sem a presença da atividade de pesquisa não há como falar em educação ética/emancipatória. A pesquisa, tomada como processo social em forma de diálogo inteligente com a realidade e, integrante do cotidiano, deve ser um princípio fundante da ação educativa/ ética (Demo, 1990, p. 36-37). Sobre o conceito de pesquisa é extremamente esclarecedora e instigante a concepção defendida por Pedro Demo: Pesquisar, assim, é sempre também dialogar, no sentido específico de produzir conhecimento do outro para si, e de si para o outro, dentro de contexto comunicativo nunca de todo devassável e que sempre pode ir a pique. Pesquisa passa a ser, ao mesmo tempo, método de comunicação, pois é mister construir de modo conveniente a comunicação cabível e adequada, e conteúdo da comunicação, se for produtiva. Quem pesquisa tem o que comunicar. Quem não pesquisa apenas reproduz ou apenas escuta. Quem pesquisa é capaz de produzir instrumentos e procedimentos de comunicação. Quem não pesquisa assiste à comunicação dos outros (1990, p. 39). A educação, enquanto permeada pelo processo de pesquisa, pode ser compreendida como um processo constante de diálogo em busca do esclarecimento e da emancipação. O fenômeno do diálogo, entretanto, não pode ser compreendido como mera transmissão de conhecimentos prontos e acabados. Ele não pode ser confundido com as relações tradicionais entre professor e aluno, em que o professor supostamente ensina e o aluno supostamente aprende. Assim: 163 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Diálogo é fala contrária entre atores que se encontram e se defrontam. Somente pessoas emancipadas podem de verdade dialogar, porque têm com que contribuir. Somente quem é criativo tem o que propor e contrapor. Um ser social emancipado nunca entra no diálogo para somente escutar e seguir, mas para demarcar espaço próprio, a partir do qual compreende o do outro e com ele se compõe ou se defronta (Demo, 1990, p. 37). Educar torna-se, assim, um processo aberto e indeterminado, no qual professores e educandos interagem dialogicamente na busca, não da simples transmissão e reprodução dos conhecimentos já instituídos e predeterminados (como os conteúdos mínimos), mas querendo sempre dialogar em busca da mudança e da construção do senso de alternativa, em que a esperança deve prevalecer e não se deixar sucumbir ante o primeiro fracasso. Educação, assim compreendida, torna-se diálogo emancipatório que não se desenraiza do contexto dos interesses sociais, políticos e culturais dos sujeitos que dela participam. Eis aí uma dimensão significativa da ética e da educação. O conhecer e o próprio conhecimento, quando pensados a partir da dimensão ético-educativa, transformam-se radicalmente. Na visão de Marques, “[...] conhecer não é mais dobrar-se ao que está posto no mundo, nem produzir cada qual seu próprio mundo, mas é entenderem-se os homens sobre si mesmos e sobre seus mundos.” (2000, p. 14). Conhecer, no contexto da ética e educação, não pode ser confundido com mera imitação e reprodução do conhecimento já posto e acabado. Educar e conhecer não pode se limitar à lógica da transmissão e repetição, na qual os lugares teóricos/políticos/sociais já estão, sempre, predeterminados. No processo ético-educativo a preocupação central deve ser com a construção social do conhecimento, pois, como já foi demonstrado, no mundo moderno e contemporâneo o conhecimento e sua reprodutibilidade estão, sempre, determinados pelos interesses técnico-econômicos. Assim, toda forma de conhecimento torna-se uma forma de poder. Poder a ser acionado/utilizado como um vetor para o desenvolvimento da liberdade e emancipação humana ou para a repressão. Neste caso, ter ou não ter acesso ao conhecimento pode significar, também, ter ou não ter acesso à vida. O conhecimento, no âmbito ético-educacional, não deve, sob hipótese alguma, ser vetor de repressão e violência. Deste modo, o saber e a educação, para se constituírem eticamente, precisam estar comprometidos com a promoção da liberdade e da autonomia dos sujeitos. Para tal, a construção do conhecimento deve priorizar, sempre, a pergunta e não apenas a busca por respostas. Afinal, a pergunta abre possibilidades, enquanto a resposta tende a fechá-las e encerrálas. A educação, enquanto exercício instigador e promotor da pergunta rompe com o atrelamento do pensar e do conhecer às demandas puramente técnicas e econômicas. Educar deixa de ser, apenas, instrução e/ou preparação para algo já predeterminado, podendo, assim, instaurar-se como espaço de promoção e construção de conhecimento, sempre aberto e renovável. 164 EaD Filosofia e Ética Vale, então, rever o conceito de aprendizagem, relacionado ao de ensinar, sempre restritos os dois a posições receptivo-domesticadoras. Educação aparece decaída na condição de instrução, informação, reprodução, quando deveria aparecer como ambiência de instrumentação criativa, em contexto emancipatório. O que conta aí é aprender a criar (Demo, 1990, p. 18). Quem aprende algo fica restrito a isso que aprendeu. Quem aprende a aprender, a criar, está apto a aprender qualquer coisa. Educar eticamente significa, assim, proporcionar as condições para um aprendizado em sentido criativo. 4.3.2 – Considerações Finais No exercício cotidiano do fazer educação é visível, em nossas instituições escolares e universitárias, uma espécie de adestramento estético-perceptivo. No geral, as escolas e universidades transformaram-se em repassadoras de conhecimentos e saberes selecionados e acabados. Em certa medida, este processo de repasse de conhecimentos é necessário, porém insuficiente. Necessário à medida que somos sujeitos histórico-culturais e, como tais, resultado, também, deste processo que determina nossa percepção acerca do mundo. Assim, o passado, a História, não é algo morto: ele está vivo em nós, uma vez que somos, também, consequência dele. Insuficiente, posto que o simples repasse de conhecimentos torna-se conservador e obstaculizador da crítica e da transformação da realidade e do próprio saber. Por meio do estudo e da análise crítica da História podemos compreender como as forças culturais, sociais, políticas e econômicas moldaram os processos que contribuíram para edificar a educação, tal como a conhecemos hoje. Os nossos métodos e teorias pedagógico-educacionais e, de fato, nós mesmos, somos resultado de forças e tradições que se desenvolveram ao longo da História. Se não tivermos consciência dessa realidade, ter-nos-emos cortados de nossas raízes e impossibilitados da crítica esclarecedora e reconstrutiva. Produzir esta análise teórica/reconstrutiva, porém, é apenas a primeira parte deste processo, amplo e intrincado, de pensar a educação em sentido ético-emancipatório. Como vimos ao longo da argumentação, o processo de atrelamento do conhecimento e da educação aos interesses puramente científicos/técnicos/ econômicos leva à expulsão e/ou ao alijamento da ética da ação educativa e das próprias relações sociais, enquanto produtoras do conhecimento. “Assim, a educação é desligada das questões éticas e vem servindo à formação de um ser humano máquina, tecnificado, instrumentalizado, isto é, mão-de-obra e ‘cérebrode-obra’” (Ahlert, 1999, p. 165). Uma outra consequência advinda deste processo repercute, incisivamente, no modo como se processa a construção do conhecimento: a má articulação, em termos do saber e da cultura, pode levar a sérias patologias. Uma das grandes questões a serem discutidas, do ponto de vista ético/educacional, é a que se refere 165 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin às patologias do saber. Na realidade contemporânea, vivemos e produzimos um saber “doente”. Enfermidade manifestada, por exemplo, na ingenuidade científica que afirma que quanto mais a Ciência é técnica, necessariamente é melhor. Na modernidade, o advento da guerra, enquanto aplicação de aparatos técnico-científicos, é algo exemplar para demonstrar a ingenuidade e insuficiência desta crença na ideia de que a Ciência e a técnica poderiam levar-nos à solução de todos os problemas. A modernidade sustentou o sonho impossível de que, por meio da Ciência e da técnica, poderíamos criar o paraíso terrestre. A guerra, a fome, as profundas desigualdades sociais/econômicas, assim como o processo de exploração e degradação dos recursos naturais, que hoje nos levam à iminência de uma catástrofe ecológica em âmbito planetário, são elementos suficientes para demonstrar o modo como se utilizou aquilo que, supostamente, havia de melhor: Ciência e técnica, para matar e destruir. A crença no progresso, enquanto elemento impulsionador do desenvolvimento científicotecnológico, se não estiver amparada numa dimensão ético-emancipatória, pode se tornar uma arma mortal para a própria humanidade. Diante desta realidade, precisamos reconstituir as bases teóricas/políticas do projeto ético vigente no mundo contemporâneo. Faz-se necessária a instituição de uma espécie de “tratado tecnológico ético”. Neste sentido, é válido sempre lembrar que não se trata de um discurso contra a Ciência e a tecnologia, mas contra o modo indiscriminado e irresponsável como estas têm sido utilizadas. O que se intenta é rediscutir o lugar e o papel da Ciência e da técnica no universo do mundo humano, indicando a necessidade de se rever o antropocentrismo absoluto vigente na ética e na racionalidade técnica contemporânea que, simplesmente, ignora a vulnerabilidade da natureza e as necessidades mais prementes da grande maioria da humanidade. Precisamos de um projeto ético/ político/educacional, capaz de instituir limites ao utopismo desenvolvimentista tecnológico, uma espécie de mandado de cautela, visando à preservação da autonomia e da liberdade humanas, tão perseguidas ao longo da História. Este processo de renovação e atualização do estatuto ético/político/educativo busca priorizar a revitalização das relações entre teoria e prática, dando ênfase ao caráter interdisciplinar que deve se fazer presente na constituição dos projetos e processos educacionais. O que se deseja como resultado deste processo é uma ética e uma educação orientadas para o social, diretamente imbricadas às ações e aos interesses dos diversos grupos sociais existentes. Uma ética e uma educação que, acima de tudo, propugnem pela paz e pela liberdade humanas. Devem os valores éticos, sempre de novo, ser consensualmente construídos nos pressupostos comunicativos da universalidade em que todos os possivelmente envolvidos possam participar e tomar posição com argumentos fundamentados na justeza e na transparência deles. A capacidade das decisões existenciais e das escolhas sensatas supõe a vontade a cada momento determi166 EaD Filosofia e Ética nada por valores racionalmente fundamentados no universalismo do respeito igual em relação a todos e da solidariedade com tudo o que tenha o semblante humano (Marques, 2000, p. 15). A reflexão, o (re)exame, o diálogo crítico sobre todas estas questões que envolvem a realidade contemporânea é tarefa primeira e fundamental da ética e da educação. No cotidiano educacional, estamos habituados a pensar mimeticamente – por repetição. Tendemos a realizar uma flexão normalizante do raciocínio e do pensamento vigentes e, desse modo, limitamos a ação educativa a um processo repetitivo de repasse de conhecimentos e valores já prontos e acabados. A fragmentação exacerbada do conhecimento é, hoje, uma das grandes patologias do saber e da educação. Este processo, no âmbito do sistema educacional, está tornando-o autista, pois cada área do saber fecha-se em torno de si mesma, na ilusão da autossuficiência. A ética, ao contrário, é a insistência do reconhecimento de um suposto universal ao qual todos nós pertencemos. Neste sentido, a ética na educação exige-nos um exercício dialogante entre as diversas áreas do conhecimento, visando ao rompimento com o processo de mera flexão mental, repetição e repasse de saber, permitindo-nos ver que existe muito a produzir e criar. Ética na educação significa, assim, dar novos sentidos, ressignificar o existente em termos de conhecimento e de valores. É a tentativa dialogante de romper com o autismo teórico instituído, em termos de conhecimento e educação. Uma perspectiva ética/emancipatória/educacional pressupõe o diálogo franco e aberto entre as diferentes áreas do saber, em que ninguém, de antemão, possui a verdade e as respostas. Caso contrário não existirá diálogo, somente retórica em busca de mero convencimento e de colonização. A educação deve ter como tarefa e princípio as funções de promover e incentivar esse processo de diálogo em busca de emancipação e esclarecimento. A educação deve ser promotora do questionamento e da reflexão crítica para que a repetição não se instale como definitiva. Por fim, é fundamental que se insista na perspectiva que compreende a ação ético/educativa como dimensão fundamental e estruturante da existência humana. Não há como abdicar e/ou negligenciar desta ação. Nas sociedades contemporâneas é de fundamental importância a existência de educadores comprometidos com os interesses e necessidades coletivas que transcendam o formalmente instituído – os conteúdos mínimos, a pura e simples exigência de preparação para o mercado, a repetição e perpetuação dos valores e máximas que sustentam o modelo social/econômico vigente, a submissão aos interesses de uma minoria dirigente que enaltece ao extremo as dimensões do individualismo e competitividade, em detrimento das dimensões de solidariedade e ajuda mútua. 167 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Referências AHLERT, Alvori. A eticidade da educação: o discurso de uma práxis solidária/universal. Ijuí: Ed. Unijuí, 1999. 176 p. (Coleção Fronteiras de Educação). AZEVEDO, José Clóvis de et al. (Org.). Utopia e democracia na educação cidadã. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 2000. 520p. CAMPS, Victoria (Ed.). 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As transformações nas cidades e na própria sociedade civil – como os movimentos sociais, políticos e culturais que ocorreram do século 16 até o século 18, que impulsionaram o surgimento dos Estados democráticos e fizeram ascender uma nova classe social que passou a constituir o que Habermas (1984) denominou como nova esfera pública burguesa – foram, em grande medida, estimuladas pela imprensa que se desenvolveu sob a influência do liberalismo, vinculada à ideia de democracia e aos ideais do Iluminismo. Diante disso, as primeiras formulações a respeito da relação ética-comunicação ancoram-se na visão antropocêntrica que marca as inúmeras doutrinas éticas dominantes até o século 19, muito especialmente a ética de Kant, centrada na razão universal.20 Só recentemente, todavia, as discussões sobre questões ético-morais – relativas à ordem do dever, de caráter essencialmente prático e que dizem respeito às relações sociais, coletivas e/ou individuais, bem como à vida das instituições, abrem-se à perspectiva comunicacional (Esteves, 2003). Tais reflexões, para além da retomada da ética moderna e sua incidência na comunicação e no Jornalismo, buscam aproximações entre os processos comunicacionais atuais e as correntes da ética contemporânea. A arte da conversa. René Magritte (1950). Disponível em: <http://www.abcgallery.com/M/magritte/ magritte58.html>. 18 Entre os gregos, destaca-se o pensamento de Aristóteles, visto que foi o primeiro a sistematizar o estudo da retórica compreendendo-a como a arte da persuasão. Esse filósofo buscou determinar as normas e regras práticas baseadas no ethos (dimensão na qual estaria inserido o sentido de ética), no pathos (emoção) e no logos (razão), de modo a gerar um discurso exitoso – persuasivo – em termos políticos e sociais. 19 Para Kant, o homem como sujeito moral pertence ao mundo da liberdade sendo, portanto, ativo, criador e está no centro tanto do conhecimento quanto da moral. Tais pressupostos levam Kant a formular, no terreno da ética, o imperativo categórico da lei universal que deve ser condicionada à consciência moral do homem como fim e não como meio (Vásquez, 1996). 20 169 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Nesse sentido, as discussões sobre a ética da comunicação levam em conta um conjunto de pressupostos teóricos e práticos de momentos históricos distintos. Por essa razão, conforma afirma Esteves (2003), não se pode considerar a ética da comunicação uma teoria absoluta da ética, como se pudesse dar conta do problema ético ao longo de toda a História humana. Trata-se de formulações que se debruçam sobre questões que surgem nos processos da comunicação, de modo geral e cotidiano, e que permeiam a prática jornalística de forma singular, tanto que hoje se discute a existência de uma ética jornalística. Nessa perspectiva, para falar da ética da comunicação é necessário, primeiro, que se entenda o fenômeno da comunicação, especialmente seus fundamentos filosóficos. De modo sistemático e teórico, a comunicação é um campo de conhecimento acadêmico que estuda os processos comunicacionais da sociedade, abrangendo diversas modalidades de comunicação, entre elas o Jornalismo. Compreender o horizonte filosófico da comunicação, todavia, é reconhecer que se trata de um fenômeno predominantemente humano, e condição imprescindível para o desenvolvimento da pessoa humana. Além disso, é preciso compreender a comunicação no contexto contemporâneo. Não há dúvidas de que a comunicação assume um papel determinante e central na configuração da sociedade contemporânea, tendo em vista os meios de comunicação e novas tecnologias e redes digitais de comunicação e informação que se encontram hoje disponíveis. Conforme sinaliza Gomes (1997, p. 9), “é impossível compreender a realidade, a dimensão humana e a própria vida sem um adequado entendimento do que seja o fenômeno da comunicação e de como ele se estrutura”. Tais mecanismos constituem a relação básica para as trocas simbólicas que visam à compreensão dos fenômenos e transformações sociais. Muito em razão disso, há um retorno da reflexão da ética e da moral em vários setores da vida social, que readquire nos últimos tempos uma extraordinária atualidade. Na comunicação, esses esforços teóricos representam a busca pela compreensão das dimensões éticas na comunicação com a esperança de se redefinir valores e normas que sejam aceitos e possam servir de referência para a condução das atividades inerentes ao campo comunicacional. 4.4.1 – A comunicação como condição humana e o objeto comunicação Como um fenômeno humano, a comunicação supõe consciência e se desenvolve a partir da linguagem compartilhada, tornando-se assim um fenômeno social com características, valores e dinâmicas específicas que abarcam diferentes maneiras de comunicar. Como surge da necessidade do ser humano de se relacionar, a comunicação envolve mais de uma pessoa, mas não se reduz 170 EaD Filosofia e Ética ao modelo que, por muito tempo, foi utilizado para conceituar a comunicação.21 Sabe-se, hoje, que a comunicação não se limita à transferência de informações para a relação entre pessoas, como se isoladas de seu contexto sociocultural. Como bem lembra Gomes (1997), no processo comunicacional tanto o emissor quanto o receptor não podem ser entendidos como indivíduos isolados e abstratos, mas como unidades referenciais singulares que estabelecem uma interação social, dotados de espaços, preconceitos e preconcebidos próprios. A produção de significado, desse modo, não é apenas tarefa do emissor, mas também do receptor. Da mesma forma, a linguagem que é codificada e decodificada no processo comunicacional deve ser considerada de acordo com o complexo fenômeno da cultura ao qual é integrada e que sintetiza toda a atividade em que o homem age como ser para os outros e para si. Conforme explica o autor, a comunicação, ao mesmo tempo em que é fruto das pessoas, é também a condição que possibilita a realização do homem. Ele é comunicação e se constitui na e pela comunicação. Desse modo, quando se examina e se analisa a comunicação, toca-se no que de mais profundo existe no ser humano (Gomes, 1997, p. 19). Para Martino (2001), a comunicação humana na sua acepção mais fundamental designa o processo de compartilhar um mesmo objeto de consciência, isto é, exprime uma relação entre consciências na qual está implicada a intervenção sociocultural e histórica de cada ser que estabelece essa relação e da sociedade em geral. Nesse sentido, a comunicação é processo simbólico de apreensão do mundo, dos outros e de si mesmo, vinculando-se diretamente à vida social ao nível do quadro social da interação, que dá forma à ação ética e aos comportamentos morais: [...] a responsabilidade assumida por cada indivíduo tem origem no quadro de uma intersubjectividade comunicacional, no intercâmbio de formas significantes (linguísticas ou de outro gênero) entre os agentes sociais, através das quais se tornam visíveis as suas convicções, os seus sentimentos e as suas paixões (Esteves, 2003, p. 15). A abertura ao outro pressupõe uma exigência intersubjetiva, valorizando-se assim as relações humanas. A comunicação assume, nesse processo, uma exigência moral e uma pretensão ética para justificação dos fatos e também dos comportamentos. E isso ocorre a partir do questionamento racional de problemas Faz-se referência, aqui, à concepção de Lasswell que acaba por reduzir a comunicação humana a um modelo mecânico, derivado da cibernética, de transferência de informações unilateral, isto é, de fontes ativas a receptores passivos, pelo intercâmbio de símbolos por meio de canais/meios. (Gomes, 1997). 21 171 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin cotidianos próprios do universo comunicacional. Desse modo, no exercício da razão prática, a comunicação humana poderia ser considerada ela própria uma dimensão da ética. De acordo com Gomes (1997), a ideia de intersubjetividade e de valorização das relações sociais representa o último de três momentos fundamentais para o desenvolvimento da consciência crítica – o momento do objeto, o do sujeito e o do social – nos quais as quatro relações fundamentais do ser humano – consigo mesmo, com os outros, com a natureza e com o transcendente – terão uma configuração específica. O autor destaca que é no último momento que a comunicação atinge seu ponto máximo, de modo que, no mundo contemporâneo, o objeto comunicação ganha espaço e força, devendo ser levado em conta por todos aqueles que buscam compreender o mundo presente. Para além das preocupações sobre a comunicação como inter-relacionamento humano, o contexto atual provoca inúmeras indagações sobre a possibilidade de uma efetiva comunicação entre as pessoas e também sobre as consequências das tecnologias avançadas de comunicação e informação sobre a vida dessas mesmas pessoas. Isso porque, conforme as palavras de Gomes (1997, p. 24): A par das tecnologias e possibilidades cada vez maiores de comunicação, a sociedade humana vive momento de incomunicação, com movimentos sempre maiores de voltar-se para dentro de si, de encaramujar-se. Afirma-se não só o individualismo, mas também a prescindência do outro. As pessoas cercam-se de grades, fogem dos outros, refluem para dentro de si e de suas fortalezas. [...] Como as ruas e as cidades se tornam perigosas, há um refluxo para o interior dos lares. Falta a comunicação interpessoal e aumenta o consumo dos meios de comunicação, cada vez mais adaptados às necessidades das pessoas. [...] na medida em que aumenta o consumo de informação de dados, diminui a intercomunicação pessoal. Tal conjuntura social e do universo comunicacional colocam em discussão, cada vez mais, a comunicação como objeto de estudo teórico e epistemológico a fim de se compreender as transformações que ocorrem na sociedade e no mundo contemporâneo. Sobre isso, Vera França (2001) afirma que a modernidade problematizou e complexificou o desenvolvimento da comunicação, promovendo o surgimento de múltiplas formas e modulações para sua realização. Assim sendo, ainda que exista desde os primeiros agrupamentos humanos, constituindo-se como o embrião da vida social e das trocas simbólicas, é a partir da modernidade que a comunicação ganha o status de campo de conhecimento, sendo pensada a partir de várias perspectivas e correntes teóricas, promovendo também a abertura para se pensar a ética da comunicação. A partir disso, além de abranger um elenco de práticas distintas, a comunicação também adquire uma dimensão conceitual, consistindo numa maneira de conceber tais práticas e conhecê-las. Deste modo, 172 EaD Filosofia e Ética [...] o objeto da comunicação não são os objetos “comunicativos” do mundo, mas uma forma de identificá-los, de falar deles – ou de construí-los conceitualmente. [...] quando se pergunta pelo objeto da comunicação, não nos referimos a objetos disponíveis no mundo, mas àqueles que a comunicação, enquanto conceito, constrói, aponta, deixa ver (França, 2001, p. 42). Isso mostra que a modernidade transformou a comunicação em problema, no sentido de questionar suas práticas até então percebidas como naturalizadas. O desenvolvimento das práticas, juntamente com os meios de comunicação e dos espaços acadêmicos, motivou o homem a conhecer melhor o objeto comunicação e, a partir disso, estudos e teorias foram e continuam sendo criadas, cada vez mais, tanto para complementar a formação, aperfeiçoar e reformular as práticas comunicacionais, quanto para refletir e entender as transformações que ocorrem nas sociedades. E, embora o quadro das teorias da comunicação seja, ainda hoje, plural e fragmentado, as diversas correntes teóricas que o compõem também possibilitam o pensar sobre a ética da comunicação. Assim, os primeiros estudos e teorias voltaram-se para os meios de comunicação de massa, especialmente para seus efeitos e funções, potencialidades e alcances, ligados a motivações de ordem política e econômica. De 1930 até o contexto da guerra fria, especialmente nos Estados Unidos, estimulou-se o investimento em pesquisas sobre o comportamento das audiências e para aperfeiçoamento das técnicas de intervenção e persuasão, uma vez que a propaganda era amplamente utilizada como mecanismos de controle e manipulação político-ideológica. Desenvolveu-se nesse período a concepção da comunicação como um processo de transmissão – criada por H. Lassewell – que tem como objetivo a persuasão, concepção esta que marcou, de forma douradora, os estudos posteriores da comunicação (França, 2001). Contrapondo-se a essa perspectiva pragmática e positivista norteamericana, desenvolveu-se na Europa, no final dos anos 30 do século passado, a Teoria Crítica ou Escola de Frankfurt, a qual promoveu uma crítica à mercantilização da cultura e à manipulação ideológica operada pelos meios de comunicação de massa, tidos como conhecimento aparente e não verdadeiro. Para os frankfurtianos da primeira geração – especialmente Horkheimer, Adorno e Marcuse – as potencialidades humanas são neutralizadas pela racionalidade tecnológica, que alimenta os meios de comunicação de massa tornando-os instrumentos de dominação, alienação do ser humano e ordenação social pelo consumo. Gomes (1997, p. 43-49) explica que para essa corrente teórica, a comunicação só adquire sentido quando entendida como processo social, sendo alcançada quando se torna práxis social. Por isso, os estudiosos focaram os fenômenos comunicacionais e a produção da cultura no contexto das práticas sociais cotidianas, e compreenderam que as práticas vigentes provocavam uma unidimensionalidade do ser humano, obstáculo quase que instransponível para uma efetiva comunicação. Tal crítica, embora resulte numa análise da comuni173 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin cação extremamente negativa, buscava negar a situação vigente, afirmando a necessidade de um novo modo pluridimensional para as relações humanas e comunicação. No final dos anos 70 do século 20, a ética retorna ao espaço público de forma geral, fazendo-se presente em discursos políticos e midiáticos, bem como na cena acadêmico-teórica, fazendo surgir novos estudos sobre o objeto comunicação e a relação comunicação-ética. Destaca-se, nesse último universo, o pensamento latino-americano de tradição marxista que, atravessado por um profundo sentimento crítico e anti-imperialista, propõe um novo modelo e uma nova prática comunicativa – a comunicação horizontal, ou participativa. De acordo com França (2001), tal proposta para uma nova ordem comunicacional é acompanhada das lutas, em vários países, pela constituição de políticas nacionais de comunicação e pela democratização dos meios. Destaca-se também, nessa época, o pensamento de Habermas, pesquisador da segunda geração da Escola de Frankfurt, que desenvolveu uma proposta de comunidade comunicativa centralizando nela a linguagem – entendida como essência da interação humana e social – e o tema dos atos comunicativos. Em seus estudos, de acordo com Gomes (1997, p. 49-52), Habermas problematizou desde a ideologia até a comunicação nas sociedades nas quais impera o capitalismo monopolista e observou que o contexto do discurso é o lugar em que se produzem os atos linguísticos que demarcam o mundo das significações, concebendo depois disso a Teoria da Ação Comunicativa. Sua teoria representa uma nova maneira de articular e fundamentar uma concepção mais ampla de racionalidade, a partir da qual ele buscou estabelecer uma pragmática universal e uma fundamentação para uma ética discursiva. Concebendo a linguagem como fundamento de tudo, Habermas faz a distinção entre ação instrumental (ou técnica) – que se institucionaliza no sistema econômico e no político – e a ação comunicativa – que é própria do mundo vivido, entendendo que ambas as dimensões compõem as sociedades de forma simultânea e são interpenetrados, isto é, dependem um do outro. O problema, em sua ótica, é que nas sociedades modernas e contemporâneas a ação técnica passou a ser predominante a ponto de invadir o espaço da ação comunicativa, extinguindo-a ou expulsando-a de seu ambiente natural. Desta forma, [...] Habermas advoga a descolonização do mundo vivido e a restauração dos pressupostos da ação comunicativa: sociabilidade, espontaneidade, solidariedade e cooperação. Embora não despreze a ação instrumental, ele defende uma hierarquia que privilegia a ação comunicativa (1997, p. 53). [...] para Habermas é a competência da fala do sujeito que lhe permite relacionar-se com os outros e com o mundo. Os valores a serem afirmados, as normas a serem cumpridas e elaboradas estão sujeitos à competência argumentativa. Tudo deve ser discutido pelo grupo, pela comunidade, buscando-se o consenso. Por isso, denuncia o colonialismo e as patologias da modernidade, que 174 EaD Filosofia e Ética impedem a intersubjetividade e banem a ação comunicativa do seu habitat natural. A solução é reafirmar a importância da ação comunicativa mediada pela linguagem (Gomes, 1997, p. 54). A partir disso, Habermas estabelece as regras discursivas básicas que devem ser observadas para que se possa examinar a validade das argumentações presentes na fala cotidiana, isto é, a veracidade das afirmações sobre o ser e a validade do dever-ser. Dentre essas regras figuram os critérios para os participantes do discurso, os mesmos direitos para todos e uma comunicação que seja livre, sem violência ou coação. Nesse sentido, “[...] a ética discursiva de Habermas não diz como agir, mas apenas como justificar, dialogicamente, as implicações das ações em contextos sociais já conhecidos” (Gomes, 1997, p. 57), situando a questão da moralidade numa etapa anterior à ação. Com isso, a moralidade resulta da interação linguística argumentativa, isto é, o agir moral e humano encontra-se fundamentado na comunicação efetiva que possui condições para sua realização mediante da linguagem. Na teoria de Habermas, portanto, as normas éticas são consideradas, ao mesmo tempo, normas pragmáticas e condições fundamentais dos atos sociais básicos, que são os que se inserem no “agir comunicacional”. O final do século 20 é marcado por uma reconfiguração do quadro de teorias, evidenciando perspectivas mais propriamente comunicativas. Essas mudanças são resultado dos reordenamentos vividos pela sociedade devido à revolução provocada pelo advento da Internet e novas tecnologias de comunicação e informação, que incluem alterações no campo dos valores, das representações e na configuração das relações e formas de sociabilidade (França, 2001). 4.4.2 – A ética e a comunicação na contemporaneidade Na conjuntura do mundo contemporâneo discute-se que a dinâmica da constituição da exigência da ética e das normas morais pela via da intersubjetividade fica comprometida. Esteves (2003) chama a atenção para o fato de que, nas sociedades modernas e complexas, há um esvaziamento e desarticulação da razão prática devido a uma racionalidade tecnocrática e instrumental que se faz hegemônica, o que estaria na origem dos principais problemas éticos do presente. Alinhado ao pensamento de Habermas, Esteves compreende que a atividade instrumental intensa e amplamente generalizada, impulsionadora do progresso, tende a se desconectar das exigências ético-morais acabando, no limite, por remover a normatividade própria das relações humanas. Segundo este autor, isso resulta de uma objetivação generalizada do social, que é levada a efeito pela tecnocracia, processo este que pode ser traduzido na “desproblematização” profunda das relações dos agentes sociais com os valores, e pelo instrumentalismo que afeta também a normal estruturação do universo ético-moral à medida que subverte a relação dos sujeitos com valores e quadros normativos. Neste último caso, os valores e normas são adequados, de forma ilegítima, às exigências de afirmação pessoal, interesse próprio do sucesso e do 175 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin poder, resultando assim na perversão da razão prática e consequente abolição dos quadros morais e exigências éticas. Deste modo, o estado hipertrófico da racionalidade técnica, conforme as palavras de Esteves (2003, p. 20): Deixa de ser possível fazer valer uma exigência normativa aos actos congruentes e cada ser humano vê-se incapacitado de orientar a sua acção no mundo tendo em conta os outros homens: pela via tecnologizante, a intersubjectividade dilui-se na objectividade da “solução eficaz”, pela via estratégico-utilitarista, a intersubjectividade é erradicada pela prossecução unilateral do êxito e do sucesso. A partir disso, pode-se inferir a existência de uma subversão da ética, processo este que não é alheio à comunicação. Pelo contrário, atinge o âmago do processo comunicacional, incidindo na estrutura da comunicação típica da sociedade atual: uma comunicação midiatizada resultante da intervenção dos múltiplos dispositivos técnicos e digitais que temos a nossa disposição. A origem do mal-estar ético que atinge a sociedade atual, segundo Esteves, estaria situada da desvinculação entre as midiatizações simbólicas postas em cena pelos meios de comunicação e modernos dispositivos técnicos e uma verdadeira comunicação humana. Esse contexto predominantemente comunicacional revela, nesse sentido, que os meios de comunicação se apresentam hoje “[...] como grandes catalisadores do debate ético: os seus profissionais, o seu funcionamento, organização e performances são objecto de discussão e avaliação sistemática em termos morais” (Esteves, 2003, p. 21). Não há dúvida de que os meios de comunicação e, mais recentemente, as novas tecnologias digitais de comunicação e informação, possuem um papel central nas sociedades contemporâneas. Os modernos dispositivos tecnológicos de mediação simbólica e atividades comunicacionais, especialmente o Jornalismo, adquirem importância vital para a organização da vida coletiva. Os fluxos de conteúdos simbólicos atingem e, de certa maneira, conformam, todos os setores da vida social: a política, a economia, a cultura, o espaço público e o privado e suas inter-relações, as relações sociais e a constituição da própria subjetividade individual e realidade social. Essa conformação, em grande medida, depende de quem controla as informações que circulam no espaço público contemporâneo. Conforme afirmam Guareschi et al. (2000, p. 44), controlar o fluxo de informações que circulam numa dada sociedade é, de certa maneira, “atuar diretamente sobre a forma como os indivíduos representam a si mesmos e, em seu grupo social, as relações e as condições de vida a que estão submetidos.” Na sociedade contemporânea, portanto, a informação constitui-se como um bem social, elemento constitutivo dos sujeitos e da vida humana, fundamental para a estruturação das sociedades, e o controle dos meios de comunicação torna-se 176 EaD Filosofia e Ética instrumento de poder, pois quem os controla é quem define, em grande medida, práticas materiais, formas e sentido de categorias como tempo e espaço, e também as regras e valores sociais. Especialmente o Jornalismo, devido à sua natureza histórica e socialmente legitimada e seu caráter de referencialidade em relação aos fatos de interesse público, permanece como mediação fundamental do espaço público, fazendo circular informações sobre temas considerados relevantes para a sociedade nesse lugar de visibilidade e também essencial para a vida democrática. Nesse sentido, no contexto contemporâneo, o Jornalismo adquire papel fundamental no processo comunicacional, à medida que sua função é informar a sociedade contribuindo para a construção da democracia e da cidadania. Essa função social, entretanto, tende a ficar comprometida à medida que empresas jornalísticas e jornalistas se submetem a outros interesses – privados (políticos ou econômicos) – que não os relativos ao interesse público e finalidade do Jornalismo, que é prezar pelo direito à informação e liberdade de expressão, baseando-se em critérios de verdade e objetividade, entre outros princípios e valores que, historicamente, fundamentam a atividade e que, portanto, devem (ou deveriam) nortear o exercício profissional. 22 É preciso lembrar, entretanto, que as novas tecnologias de comunicação e informação produzem intensas transformações na dinâmica comunicacional e uma nova realidade a partir da qual são configurados problemas éticos inéditos para a sociedade. A crescente inovação tecnológica e digital facilita a troca e os fluxos de informações de uma forma jamais vista, possibilitando a um público amplo o acesso a fontes de informação e a técnicas de produção e divulgação de conteúdos, provocando a perda do controle tradicionalmente exercido pelo Jornalismo sobre aquilo que deveria ou poderia ser tornado público. Desde seu surgimento, no limiar da modernidade, quando novas vozes forjando novas relações sociais de poder e de trocas simbólicas desencadearam um alargamento de ações e expressões que antes eram restritas ao espaço privado, o Jornalismo – a partir dos primeiros jornais que alimentavam as discussões nos salões e cafés europeus – constituiu-se como instrumentos para o exercício crítico da razão, da consciência humana, pelo coletivo da sociedade. Já no contexto moderno, a imprensa passou a ser vista como “um dos instrumentos da expressão dessa consciência” (Cornu, 1994, p. 149), o que ajudou a estimular a afirmação e o fortalecimento da expressão das liberdades de opinião e de imprensa. Ela se instituiu, historicamente, como a grande mediadora da opinião pública, estabelecendo-se como uma instituição representativa do interesse público e do direito à informação (Sousa, 2008). Ao assumir um lugar central nas lutas em prol do regime democrático e partilhando de toda uma mesma história contra a censura e a favor das liberdades (Traquina, 2005), o Jornalismo é publicamente legitimado pela sociedade. Por isso, a liberdade é atribuída à prática e instituição jornalística, constituindo, juntamente com outros valores e princípios – forjados no contexto revolucionário do Iluminismo –, o alicerce ético-moral do Jornalismo. O ideal de esclarecimento dos cidadãos a partir de uma atitude racional e crítica voltada à construção de uma nova realidade, bem como a condição de pensar por si próprio com coragem e liberdade, eram os ideais defendidos no contexto das revoluções liberais, momento no qual foram forjados também os valores de justiça, soberania e os direitos e liberdades do homem como princípios sagrados. A verdade da informação, enquanto um “direito do público” (Cornu, 1994), e os valores de liberdade e de justiça constituem os princípios fundamentais do Jornalismo, configurando a missão intrínseca da imprensa, sustentam até hoje sua base ética e deontológica. 22 177 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Se, por um lado, as possibilidades de transmissão instantânea facilitam as trocas comunicacionais tornando-as mais horizontais, por outro, conforme sinaliza Moretzsohn (2009), fazem prevalecer uma excitação permanente que acaba, na maioria das vezes, sendo canalizada para atividades que alimentam a indústria do entretenimento – uma das mais lucrativas da atualidade. As chamadas novas mídias e redes sociais digitais, que surgem com a Internet, estimulam a participação e produção/compartilhamento de informações instantâneas sem limites, além de outras situações que não apenas reabrem as discussões clássicas sobre a ética, como também criam novos dilemas éticos para as atividades comunicacionais, especialmente para o Jornalismo, uma vez que [...] derrubou a demarcação entre comunicação pessoal e coletiva e, portanto, entre os conceitos de público e privado; derrubou a demarcação entre meio de informação e mercado, já que num site você se informa sobre uma mercadoria e, ao mesmo tempo, efetiva a transação comercial; derrubou a demarcação entre as várias linguagens da comunicação, assim como entre os vários suportes. Seus conteúdos são os mais arbitrários possíveis e, por meio da facilidade de copiar, ela destruiu na prática o conceito de direito autoral e da própria autoria. Com isso, abriu caminho a problemas de autenticidade e veracidade da informação, credibilidade do meio e responsabilidade pelas mensagens (Kucinski, 2005, p. 81-82). Diante disso, a discussão sobre a ética adquire importância fundamental e deve tratar sobre a questão dos limites, para além do Jornalismo. Não basta a defesa dos direitos que fundamentam as práticas comunicacionais e, inclusive, as lutas que buscam a democratização da comunicação e dos meios, posto que, conforme afirma Kucinski (2005, p. 86), “Na internet, mais do que em outros meios, se materializa hoje o paradoxo ético criado pela falência dos valores surgidos no iluminismo e não preenchidos pela ética da pós-modernidade.” Da mesma forma, o discurso sobre a ação dos profissionais dos meios de comunicação deve ser complexificado e não confinado na perspectiva deontologizante, para utilizar a expressão de Esteves (2003). Segundo esse autor, a deontologia tem um sentido lato de estudo ou conhecimento do dever, mas a sua utilização mais comum hoje em dia remete para um significado mais restrito: o conjunto das regras concernentes à realização de diferentes actividades profissionais. Isto significa, na prática, que este tipo de deontologia(s) só remotamente configura quadros simbólicos de verdadeiro raciocínio ético: as preocupações profissionais e corporativas sobrepõem-se em geral ao imperativo dos interesses colectivos. Assim encarada, a deontologia constitui uma peça-chave da ideologia do “profissionalismo” – especialmente activa, entre as modernas actividades de comunicação, no meio jornalístico. O seu discurso de superfície assume a intencionalidade ética de projectar os media como instrumentos fundamentais da democracia – com base na função informativa e num conjunto de valores de referência (neutralidade, verdade, objectividade, distanciamento, etc.). Mas a 178 EaD Filosofia e Ética grande ilusão desta ideologia está na crença profunda de que os jornalistas, só por si e sem qualquer mudança estrutural mais profunda, podem condicionar decisivamente o funcionamento democrático dos media (p. 21-22). Por isso, quando se fala em ética da comunicação ou do Jornalismo, isto não se resume a uma tarefa tão simples. Na maioria das vezes e para muitas pessoas, a ética é compreendida como algo muito complexo, que não pode se efetivar na prática diária; outras vezes, ela é confundida com a moral ou com a deontologia.23 Conforme escreve Karam (2004), muitos empresários, profissionais do mercado e até estudantes e professores da área de Comunicação e do Jornalismo entendem a ética como uma característica inerente à pessoa, algo que deve ser atestado mediante comprovação de um componente biológico e genético, hereditário, tal como uma “virtude genética”. A ética também chega a ser tratada como uma formação moral genérica (necessária a todo e qualquer profissional), o que acaba por descartar os fundamentos e princípios que são próprios da ação comunicacional e trazendo problemas concretos, como a ideia de que uma ética da Comunicação ou do Jornalismo seja capaz de dar respostas de como proceder no cotidiano da profissão. A ética, porém, não pode ser reduzida a um conjunto de normas e prescrições, ela ultrapassa esse entendimento. Nesse sentido, para Karam (2004, p. 120), as discussões sobre a ética no Jornalismo precisam ultrapassar o senso comum: precisam contemplar “estudos específicos sobre a ética jornalística e a base epistemológica em que se apóia”. Isso envolve o conjunto de dilemas com os quais os profissionais jornalistas se defrontam todos os dias, critérios que embasam suas escolhas. Envolve também História, além de estudos de ética aplicados às profissões, cujo processo requer “saltar da ética para a deontologia e desta para aquela, num processo permanente e num quadro de referenciais jornalísticos históricos e relacionados à importância social da atividade” (Id., ibidem). São vários os temas que perpassam esses estudos específicos, mas o que importa é que eles estão sempre ligados aos códigos deontológicos (normalmente chamados éticos), pois esse é um reconhecimento, segundo Karam, de que o Jornalismo possui determinados procedimentos que, construídos ao longo da História, formam o patrimônio profissional e social da atividade, ou o que se pode chamar de “ethos jornalístico”. Conforme destaca Bucci (2000, p. 206), a existência de códigos deontológicos, fechados em si mesmos, não garantem uma conduta ética, mas deve-se ter em mente que “a validade dos códigos de ética está no compromisso prévio que eles contêm, e no acúmulo de sabedoria ética que representam”. Entende-se por deontologia as normas e códigos de conduta específicos para qualquer atividade profissional, que orientam como a mesma deve ser exercida, bem como que princípios devem regê-la. Trata-se, assim, de uma moral específica para profissões. 23 179 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin A necessidade da discussão ética adquire relevância fundamental quando se trata de conferir qualidade ao Jornalismo, pois “a imprensa é a materialização de uma relação de confiança e o que sedimenta a confiança é uma prática ética” (Bucci, 2000, p. 46). Conforme explica Bucci (p. 51-52), o Jornalismo se define “por uma ética, uma ética baseada no combate à mentira ou, noutra perspectiva, na busca da verdade dos fatos – não da verdade metafísica, nem da verdade religiosa, muito menos da verdade científica, mas simplesmente da verdade dos fatos”. A verdade dos fatos, conforme argumenta o autor, não exige um relato perfeitamente objetivo, neutro e imparcial, porque é sempre uma versão dos fatos. Não podendo oferecer a verdade dos fatos, o que a imprensa deve proporcionar é confiabilidade. Uma postura arrogante, assertiva, que se recusa a dialogar, chamada pelo autor de síndrome da autossuficiência ética, em nada contribui para construir uma relação de confiança com o público. E o elo de confiança só é possível desde que o trabalho realizado pelos profissionais e empresas atenda aos parâmetros de qualidade jornalística, objetivo este que pode ser alcançado pelo atendimento aos preceitos erigidos a partir da ética. Isso porque a ética jornalística não está dissociada de aspectos técnicos da profissão (Christofoletti, 2008), ou seja, as exigências assentadas a partir da reflexão ética podem aprimorar a qualidade do Jornalismo. As habilidades requeridas aos jornalistas – domínio específico de equipamentos e linguagens – e os modos pelos quais estes estabelecem relação com os outros agentes, estão estreitamente vinculados à conduta ética desses profissionais e aos valores e comprometimentos que orientam o Jornalismo. Conforme afirma Bucci (2000, p. 50): “Se a informação tem qualidade, ela necessariamente foi apurada e editada com ética. Se a ética foi atropelada, a informação resultará tecnicamente débil.” Além disso, a dimensão da ética contribui para a busca pela consolidação de contornos e limites da profissão e pela regulamentação da atuação de jornalistas e veículos de imprensa. Uma vez nítidos esses contornos e marcos regulatórios é possível definir a qualidade de um trabalho jornalístico e, desse modo, ser estabelecida uma relação de confiança entre público e mídia, uma vez que o Jornalismo volta-se para questões sociais: A escolha técnica é também moral e vice-versa. Por isso, é na especificidade da temática ética que se dá a ponte para a universalidade das questões sociais. Esta é a razão de existir códigos que, em última instância, revelam as bases teóricas e os marcos teleológicos os quais se busca em uma profissão, na sociedade ou em todo o sistema midiático (Karam, 2004, p. 129). Além disso, é preciso fazer uma distinção entre ética e legislação, dado que, segundo Gomes (1997), essa confusão sempre aparece quando se pretende discutir questões éticas e deontológicas. O autor afirma que, enquanto a legisla180 EaD Filosofia e Ética ção situa-se no âmbito do Direito Positivo, estabelecendo normas de conduta, a ética tem um caráter mais geral e discute, assim, os princípios morais, podendo debater, inclusive, a legislação. Os códigos deontológicos, deste modo, não podem ser deixados apenas para aqueles que cumprem determinada função. No caso do Jornalismo, Gomes refere-se à necessidade de que as normas éticas que norteiam essa profissão sejam também discutidas pelo público, que é primeiramente afetado pelos desvios morais do jornalista. Esses desvios de conduta, segundo o autor, afetam ainda o funcionamento da democracia. Uma concepção que pode ser mais bem entendida se tomarmos a comunicação como uma parte fundamental da vida dos indivíduos, como um direito de ser. No entendimento de Gomes (1997, p. 76), “é a partir de uma comunicação adequada que se pode desenvolver uma sociedade sadia, livre e soberana. O pressuposto da democracia é a possibilidade.” Ainda nesse sentido, este autor defende que se a comunicação não se estabelece de forma livre, ela coloca em risco a constituição da sociedade. “Defender a vida social é defender o estabelecimento de uma comunicação que possa ser acessível a todos, onde a verdade e a liberdade sejam o apanágio” (Gomes, 1997, p. 77). Ainda de acordo com o autor, a sociedade evolui da afirmação da liberdade de expressão para o direito à informação. Isso significa que, mais do que ter direito a expressar livremente suas ideias e emoções, os sujeitos têm direito de serem informados sobre o que se passa no interior da sociedade, uma vez que o conhecimento pleno sobre o que acontece nas instituições sociais é condição básica para o exercício da cidadania. Outro ponto fundamental para a ética da comunicação, na visão de Gomes (1997), é a dimensão da opinião pública. Segundo ele, a liberdade de expressão é o ponto crucial para a formação da opinião pública, o que dá a todos o direito de expressar opiniões e ideias e confrontá-las com as demais. Nesta mesma perspectiva Kosovski defende: A liberdade de expressão é, antes de mais nada, um direito político e o primeiro a ser abolido pelos governos totalitários que se querem proteger da vigilância dos cidadãos informados. Temos de preservá-la e protegê-la contra seus próprios eventuais abusos. O freio para os abusos é a valorização de princípios éticos, fundados em valores universais consensualmente aceitos. Um desses valores e princípios é o respeito à cidadania (1995, p. 34). Tais concepções contribuem para que a informação deixe de ser compreendida apenas como uma mercadoria e passe a ser percebida, fundamentalmente, como um bem social. Assim, os meios de Comunicação transcendem sua condição de indústria e passam a ser um serviço público. Neste sentido, a dimensão ética e a conduta moral com a qual norteiam seu trabalho deve ser o bem comum, devendo, inclusive, prestar contas à sociedade sobre aquilo que fazem. 181 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Gomes (1997) alerta que, mesmo com a constituição de normas específicas para a atividade profissional do jornalista, ou do comunicador de modo geral, muitas práticas denunciam que há um descompasso entre a realidade e o dever-ser da comunicação. Elementos como a apresentação parcial de uma verdade, o sensacionalismo, os vazios sugestivos, os rumores sem base, entre outros, demonstram que a sociedade não tem bem atendida a sua necessidade de informação, que está muito mais relacionada à dimensão econômica e aos interesses particulares. O mesmo autor argumenta, entretanto, que o problema da ética da comunicação está centrado naquilo que fundamenta o problema ético de qualquer indivíduo. Por mais que existam códigos deontológicos, que dão autonomia aos profissionais diante das pressões externas (forças econômicas e políticas) e que permitem a discussão das normais morais dos profissionais, a questão só estará realmente solucionada quando a ética deixar de ser uma imposição e passar a se tornar um princípio universal. Em outras palavras, não é o enrijecimento das leis e do aparato repressivo que tornará qualquer profissional ou cidadão mais ético, mas sim o amadurecimento da sociedade e a conscientização sobre os processos que dela fazem parte; quando os sujeitos forem capazes de, com autonomia, definir a própria consciência do que é ético ou não. No caso do Jornalismo, quando for compreendido que a informação é um direito, fundamentado na dignidade humana do bem comum. Para tanto, devem trabalhar as instituições de ensino que formam e qualificam os profissionais. Às vezes, muito preocupadas com a técnica, as universidades acabam por deixar de lado a formação humana e cidadã dos sujeitos para que possam ser cada vez mais éticos. Nesse ponto, a própria comunicação também tem muito a contribuir. Referências BUCCI, Eugênio. Sobre ética e Imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CORNU, Daniel. Jornalismo e verdade: para uma ética da informação. Tradução Armando Pereira da Silva Lisboa. Lisboa: Labor et Fides, 1994. CHRISTOFOLETTI, Rogério. Ética no jornalismo. São Paulo: Contexto, 2008. ESTEVES, João Pissarra. A ética da comunicação e os media modernos: legitimidade e poder nas sociedades complexas. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. FRANÇA, Vera Veiga. O objeto da comunicação/A comunicação como objeto. In: HOHLFELDT, Antônio; MARTINO, Luiz C.; FRANÇA, Vera Veiga (Org.). Teorias da Comunicação: conceitos, escolas e tendências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 39-60. GOMES, Pedro Gilberto. 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Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. 183 EaD Aloísio Ruedell – Luis Alles – Maciel Antoninho Vieira – Valdir Graniel Kinn – Vânia Lisa Fischer Cossetin Síntese da Unidade 4 Nesta Unidade estudamos inicialmente: As implicações ético/sociais do fenômeno do trabalho alienado presente na sociedade moderna e contemporânea, elaboradas pelo pensador Karl Marx. Na segunda seção estudamos o fenômeno da violência e suas repercussões éticas por meio das contribuições teóricas do filósofo Levinas. Buscouse compreender como o fenômeno da violência enraizou-se em nossa cultura, desconstituindo os sentidos da própria vida e a necessidade de retomarmos a ética como Filosofia primeira. Em terceiro lugar, analisamos retrospectivamente a história da cultura e da educação desenvolvidas a partir do mundo moderno e a insuficiência destes processos para dar efetividade ao projeto de emancipação humano. Verificamos o atrelamento dos processos constitutivos do conhecimento e da educação aos interesses do mercado e da acumulação capitalista e a sua desconexão com as dimensões éticas emancipatórias. Na quarta seção discutimos as relações entre a ética e o fenômeno da comunicação considerando-o, de um lado, ação essencialmente humana e, de outro, objeto de estudo e campo de atuação profissional. Analisamos, a partir de uma abordagem histórica, a aproximação/incorporação da ética à prática comunicacional, especialmente no âmbito do Jornalismo, e as implicações éticas nos fluxos informacionais contemporâneos decorrentes das transformações provocadas pelas novas tecnologias digitais de comunicação e informação. 184