CENTRO DE ESTUDOS DA CÉREBRO E NEUROBIOLOGIA DOS COMPORTAMENTOS LIGADOS AO USO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS Introdução Com o objetivo de colocar limites entre um padrão de uso recreacional e aquele diferenciado como perda de autocontrole, surgiram os estudos neurobiológicos sobre o abuso de substâncias psicoativas. De tal forma, busca-se uma forma de compreender o motivo pelo qual, apesar dos grandes prejuízos do indivíduo em diversos âmbitos de sua vida, o comportamento descontrolado se mantenha, juntamente com a fissura e recaídas frequentes, que definem um quadro de dependência. Como uma resposta puramente primitiva, não restrita ao ser humano, a busca natural por parceiros sexuais, alimentos – o instinto de perpetuar a espécie –, leva o homem a se cercar de estímulos, interpretá-los ao seu modo e classificá-los como favoráveis ou não. Havendo uma percepção, uma sensação, positiva, esse estímulo prontamente será memorizado em conjunto com todas as suas informações adjacentes: detalhes sobre o ambiente, possibilidade de reprodução e onde há alimento. Esse processo é realizado pelo que chamamos de Circuito de Recompensa Cerebral. Circuito de recompensa cerebral O sistema de recompensa é aquele responsável pelo aprendizado dos estímulos que nos rodeiam, analisando-os como bons ou ruins e os encaminhando diretamente à memória. Tais estímulos, classificados como adequados, de prazer, tenderão a ser repetidos como algo proveitoso ao indivíduo. Como grande “orientadora” do circuito de recompensa, desempenhando um grande papel quando liberada para atividade, além de outros, a dopamina – um neurotransmissor, um mediador químico – encarrega-se de incentivar determinados comportamentos primordiais, como alimentação, fuga de situações potencialmente prejudiciais, relações sexuais e outros estímulos específicos, tais como sensação de euforia e bem estar. O sistema de recompensa capta tais percepções, tornando-as fixas em memória, fazendo com que desejemos repeti-las cada vez mais. Sabe-se, nos dias de hoje, que as alterações realizadas no sistema dopaminérgico – no qual, por definição, a dopamina modula diversos circuitos no organismo – não apenas pode ocasionar alterações temporárias, como permanentes no circuito de recompensa cerebral. Aqui pode ser inserido o abuso de substâncias psicoativas, quaisquer sejam elas, pois todas aumentam, direta ou indiretamente, os níveis de dopamina; de tal modo, com o provocar do bem estar, do prazer, físico e psíquico, com a estimulação dos mesmos sistemas cerebrais de motivação, será induzida a compulsão por aquela memória, pelo meio, que permite tais sensações. A exposição repetida às drogas altera a modulação do sistema de recompensa e torna a sua ligação cada vez mais intensa. Tudo o que diz respeito a elas será armazenado: o ambiente, no qual se pode consumir, com suas facilidades e dificuldades, aromas, indivíduos e tudo o que a ela se associa. O circuito cerebral acaba por ser moldado, de forma a crer que tais substâncias e quaisquer sensações a elas associadas são essenciais para a sobrevivência. A resposta comportamental do indivíduo é por meio da impulsão, do desejo, à busca constante pela sensação de prazer e cada vez mais expressiva. CENTRO DE ESTUDOS DA Do mesmo modo, com a exposição repetida, o cérebro e seus circuitos adaptam-se funcionalmente à presença de tais substâncias, podendo permanecer por meses ou anos, até mesmo após a interrupção de seu uso. Ainda que estudos afirmem, que a memória do abuso de substancias seja algo imutável, é essencial para um tratamento, que o indivíduo seja direcionado, induzido, a criar e substituir a lembrança da droga por novas vivências. O desenvolvimento da dependência química aparenta provir de adaptações neurobiológicas diversas, que não somente facilitam uma recaída após a tentativa de manter abstinência, mas também se negam a manter os efeitos da droga em questão, levando ao prejuízo do indivíduo, permitindo que o corpo experimente sensações de intenso desconforto. Tais adaptações neurobiológicas atrelam-se umas às outras, formando, então, a síndrome de dependência. Possíveis alterações neurobiológicas e suas atuações no quadro de dependência química 1. Reforço positivo: Como anteriormente exposto, não somente o sistema de recompensa permite o prazer e a euforia, mas também são esses estimulados por substâncias de abuso, as quais consideramos como reforçadores positivos. O reforço positivo consiste na afirmação de que a droga continua a ser auto-administrada pelo indivíduo devido ao prazer, aos efeitos, supostamente, benéficos que se deseja serem mantidos e não de modo a aliviar um estado de desconforto. A quantidade administrada, para atingir os efeitos, da droga é algo variável, dependendo do seu tempo de vida no organismo; aquelas que possuem vida curta têm de ser administradas com maior frequência, de modo que as sensações sejam mantidas, provocando, então, uma dependência com maior facilidade. Ainda que o indivíduo sinta-se compelido a fazer uso da droga, por conta de seus efeitos prazerosos, muitas vezes os prejuízos na sua vida familiar, social e laboral tornam-se muito mais expressivos do que a sensação benéfica. 2. Reforço negativo: Pode-se chamar de reforço negativo os sintomas de desconforto – náusea, taquicardia, sudorese, convulsões e cãibras – provenientes da interrupção abrupta do uso das drogas. Ainda que em um uso prolongado de determinada droga, mesmo em dose semelhante ou com o aumento progressivo da mesma, poderá ocorrer uma diminuição dos efeitos euforizantes e de bem-estar. A estimulação ou inibição por qualquer substância provoca alteração, uma neuroadaptação, nos sistemas nervosos, de forma que começam a formar novos circuitos e pontos de equilíbrio. Esse processo é denominado tolerância. Existindo a tolerância do organismo no que diz respeito à droga em questão, o consumo compulsivo da substância não será mais com o objetivo de manter os efeitos de prazer, porém, sim, aliviar o desconforto provocado pela sua ausência e manter as suas funções básicas. Uma descontinuação repentina da droga pode provocar no organismo uma resposta desequilibrada, de desconforto, que dá origem à síndrome de abstinência. Com o aparecimento dos sintomas anteriormente mencionados e com os quais o indivíduo tende a fazer uso da droga para abreviar o desconforto físico da descontinuação abrupta, CENTRO DE ESTUDOS DA passou a ser chamado tal processo de dependência física, como ocorre no uso de álcool e opióides. A dependência física não surge de maneira isolada e não é essencial como efeito de todas as drogas. Há certas substâncias, que não provocam os sintomas usuais e, sim, apresentam o que passou a se chamar de dependência psíquica, que engloba todos os efeitos comportamentais e psíquicos. Como exemplo, podemos citar a nicotina – que, após a sua interrupção repentina, mostram-se sintomas de aumento de apetite, irritabilidade, dificuldade de concentração, bradicardia, ganho ponderal e impaciência –, a cocaína – observando-se bradicardia, depressão e fadiga – e maconha – que podemos ver náusea, insônia, irritabilidade e agitação. 3. Teoria da sensibilização do incentivo: O sistema neural da ativação psicomotora e do incentivo motivacional é diretamente sensibilizado pelas substâncias de abuso. Nesse caso, caracteriza-se pela progressão da atividade locomotora, da agitação do indivíduo, assim como o incentivo a estímulos que se relacionam a busca de prazer, que acarretam em um “querer” patológico e logo um desejo obsessivo, incontrolável, que impulsiona o indivíduo à busca da substância e tomam posse de seu comportamento. De tal forma, como contraposição ao efeito de tolerância, a sensibilização pode-se dizer ser a intensificação do efeito de uma droga, após uso repetido de uma dosagem fixa da mesma, e ser mantida por anos; desta forma, torna-se possível a recaída, mesmo após longos períodos de abstinência. Certas substâncias, contudo, não alteram determinados efeitos ao longo do uso, assim como têm a capacidade de provocar tolerância a certos efeitos e sensibilização, em outros. 4. Teoria dos processos oponentes: Estudos sugeriram que o sistema nervoso central faz uma tentativa de contrabalancear os efeitos imediatos da droga, de forma que os estados de prazer, felicidade e desconforto seriam, de maneira automática, controlados e reduzidas as intensidades, resultando na tolerância. Neste ponto, a tolerância mostra-se indiscutivelmente ligada à síndrome de abstinência. O uso inicial da substância tende a causar prazer e logo reduzir o seu efeito, levando, então, a um quadro de desconforto, que se intensifica ao longo do tempo. Com isso, fazem-se necessárias novas administrações da droga, tornando os efeitos euforizantes da droga mais toleráveis. Com a redução e a dificuldade em manter os efeitos proveitosos da substância, mesmo a mantendo em uso continuado, os sintomas de desconforto mostram-se cada vez com maior frequência, são mais duradouros e passam a mascarar os efeitos euforizantes inicialmente projetados. Essa atuação do sistema nervoso central apresenta-se como o estado negativo na síndrome de abstinência, que é contrário aos efeitos de bem estar da substância. De tal modo, o indivíduo torna-se dependente e agirá de modo a prevenir ou reduzir os sintomas de desconforto. CENTRO DE ESTUDOS DA Síndromes relacionadas à dependência de substâncias psicoativas Nota-se que há uma progressão no que diz respeito ao primeiro uso de uma substância psicoativa, seus primeiros efeitos em uso recreativo e todos os possíveis estágios que levam à síndrome de dependência e suas consequências. A síndrome de dependência, por definição, consiste em mal-adaptações sociais, físicas e psicológicas de um indivíduo, que se integra completamente ao meio de uma ou mais substâncias específicas, e, ainda que com o desejo de interromper o uso, há o domínio da droga sobre seu comportamento e quaisquer outras prioridades que antes existiam. Como antes elucidado, o sistema de recompensa permite que a região da memória cerebral armazene as sensações provocadas pela droga como prazerosa e favorável, acabando, portanto, em agregar todo e qualquer tipo de estímulo externo que ela oferece, desde pessoas ao ambiente que se associa. Desta forma mostra-se um envolvimento e uma dedicação gradativa do indivíduo à substância – tanto no que diz respeito ao tempo como interesse afetivo –, restringindo, por consequência, atividades sociais, familiares, ocupacionais e laborais, as quais, simplesmente, deixam de lhe despertar qualquer tipo de interesse. Com a crescente obsessão pelo uso da droga, faz-se evidente o decrescente cuidado, não apenas com seus interesses, como, também, de si mesmo – no que diz respeito à aparência, higiene, perda do respeito próprio, até mesmo desnutrição – e possíveis envolvimentos criminosos de modo a obter a droga. Encontrando-se parcial ou totalmente consciente das brutais alterações em seu cotidiano, o abuso das substâncias permanece contínuo. Como parte das repercussões da síndrome de dependência, encontram-se: tolerância, abstinência, craving (fissura) e recaída. 1. Tolerância A tolerância, como antes explicitada, trata-se da redução do efeito da substância após repetidas administrações da mesma, havendo, então, necessidade de aumento de sua quantidade para conseguir o mesmo efeito que lhe fora proporcionado inicialmente. 2. Síndrome de abstinência Refere-se ao quadro que emerge após a descontinuação, ou redução, do uso de uma substância que vinha sendo consumida de maneira abusiva e descontrolada. Usualmente esse conjunto de sinais e sintomas, em geral ccontrário ao efeito prazeroso da droga, surge após dias, até mesmo horas, porém, independente de sua intensidade, de sua maneira de exposição, conferem dependência física de uma substância. Neste quadro, existe a possibilidade de a estabilização das respostas naturais (fisiológicas) do organismo levar até mesmo um ano. Ainda que um longo período após a interrupção do uso da droga, o dependente ainda pode se encontrar mais sensibilizado à dor e aos outros estímulos ao seu redor. CENTRO DE ESTUDOS DA 3. Craving (fissura) Determinantes do uso compulsivo, encaixando-se no intricado de alterações neurobiológicas, encontra-se o fenômeno de craving. Também, inicialmente em um meio popular, conhecido como fissura, o craving mostra-se como um grande complicador no decorrer do tratamento da dependência química, sendo um dos mais expressivos fatores que induzem à recaída. Podendo ser estimulado por fatores externos – como o ambiente, estresse diário, sentimentos e ansiedade –, é desencadeado um desejo imperativo e propulsor direcionado ao uso de substâncias, o que, assim como o a abstinência, integra o contexto de dependência. Com a memória preservada para os fatos, ambientes e pessoas que permeiam o uso das drogas, a exposição aos mesmos – ou a um só, apenas –, que podem se manter vívidos ao longo dos anos, também originam a fissura e, por consequência, uma possível recaída. 4. Recaída Ainda que com a tentativa de manter a abstinência do uso de substâncias psicoativas, na dependência mostram-se inúmeras passagens de recaída – a qual pode ser precipitada por uma única exposição, apenas, às substâncias ou estímulos ambientais associados ou estresses emocionais quaisquer –, que dificultam o tratamento e recuperação do indivíduo. Juntamente com a apresentação do craving, fazem-se presentes na recaída: a memória que se mantém arraigada no centro de memória cerebral – que dizem respeito à droga –, quaisquer outras comorbidades físicas ou psiquiátricas e possíveis fatores de risco à recaída – instabilidade familiar, econômica e disponibilidade às substâncias. De tal forma, mesmo após longos anos de abstinência, a recaída pode acontecer. Conclusão O uso de substâncias psicoativas, ainda que iniciado de maneira social, recreativa, pode desencadear um processo complexo de neuroadaptação a partir do centro de recompensa cerebral, resultando em alterações prolongadas, talvez para toda a vida do indivíduo. Dentro de tais alterações de motivação e comportamento, podem ser vistas a perda de controle, comportamentos obsessivos, desinteresse em atividades que antes proporcionavam prazer e perda da capacidade de gerenciar a sua vida, que são mostrados dentro dos fenômenos de craving e quadros de recaída, como uma amostra de memória da dependência. Com o envolvimento obsessivo e compulsório com substâncias psicoativas, o processo de tratamento e recuperação é lento e trabalhoso para a equipe que o rege. Esta implica diretamente na tentativa de orientar o dependente, desenvolver novas relações afetivas com pessoas e ambientes, criando, assim, novas memórias significativas, que possam substituir o armazenamento cerebral daquelas que se relaciona às drogas.