UMA VISAO ANTRoPOLOGICA DA SINDROME METABOLICA

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UMA VISAO ANTRoPOLOGICA
DA SINDROME METABOLICA
TEXTO_ Pedro
von Hafe
Pedro von Hafe
Professor de Medicina Interna e membro do Conselho Científico da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP). Assistente Graduado de
Medicina Interna, Departamento de Medicina, H.S.J. É membro de diversas sociedades científicas na área da medicina interna, endocrinologia e
cardiologia. Tem mais de 70 trabalhos publicados, a maioria versando aspectos relacionados com a obesidade visceral, hipertensão arterial,
insulinorresistência e diabetes, dislipidemia e outros factores de risco cardiovascular. Actual coordenador do Grupo de Risco Cardiovascular da SPC.
Resumo do artigo
Abordam-se numa perspectiva evolucionista as possíveis vantagens competitivas dos genes envolvidos na síndrome metabólica. A predisposição
genética para a diabetes tipo 2 é vantajosa em condições de fome devido ao maior peso à nascença e à tendência para a acumulação de gordura. A
insulinorresistência conserva calorias em situações de escassez alimentar, sendo importante para os tecidos que não dependem da insulina para a
disponibilização da glicose como o cérebro e o feto. A hiperactividade simpática é vantajosa em situações de “luta ou fuga”. A tendência trombótica
seria importante para diminuir perdas hemorrágicas. A capacidade de retenção de sódio estará também relacionada com a pressão selectiva intensa
baseada no princípio evolutivo de aumento da sobrevida para os mais capazes de poupar sódio. A acumulação de gordura no compartimento abdominal
serviria como armazém de depósitos energéticos durante as estações do ano com maior oferta alimentar, que seriam utilizados nas estações frias, com
menor disponibilidade de alimentos.
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Assistimos nos nossos dias a um aumento
extraordinário na prevalência de obesidade,
diabetes e doença cardiovascular. A obesidade
atingiu proporções epidémicas em todo o
mundo e a situação tem vindo a piorar.
Coincidente com a elevada incidência de
obesidade, a prevalência de diabetes tipo 2 está
a aumentar. Projecções recentes mostram que
existem neste momento 120 milhões de
diabéticos tipo 2 em todo o mundo e no ano de
2010 serão 230 milhões. A maioria dos novos
casos aparecerá na China, subcontinente
indiano e África. Esta epidemia levará a custos
económicos crescentes por aumento de doença
cardiovascular, insuficiência renal, amputações
e cegueira. A obesidade e diabetes tipo 2 representam dois dos constituintes da chamada síndrome metabólica, que representa a associação
no mesmo indivíduo de factores de risco cardiovascular (obesidade abdominal, aumento da
pressão arterial, intolerância oral à glicose e
diabetes, aumento das concentrações de triglicerídeos e diminuição dos níveis de HDL-colesterol. Esta síndrome poderá corresponder
a uma discordância total entre as circunstâncias
ambientais actuais e as que modelaram a selecção natural.
Em 1989 Dawkins propôs no seu livro “The
selfish gene” a teoria, que se tornou polémica,
de que os genes possuem uma propriedade
intrínseca de “replicação egoísta”, ou seja, os
genes garantiriam a sua auto-perpetuação. Um
gene desvantajoso seria eliminado pela espécie
por pressão selectiva contra a expressão do
traço pernicioso. Está estimado que os hominí-
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deos divergiram da sua linha ancestral há cerca
de cinco a sete milhões de anos, com alterações
fisiológicas e metabólicas pouco significativas. O
género Homo evoluiu há cerca de 2,5 milhões
de anos e calcula-se que o Homo sapiens
apareceu há cerca de 400.000 anos. Há provas
convincentes que o genoma humano não se
terá alterado na sua essência nos últimos
10.000 anos. As actuais dietas urbano-industriais, muito recentes, são substancialmente
diferentes do tipo de alimentação envolvida na
maior parte da evolução da espécie humana,
caracterizada por se basear na colheita de
plantas e na caça (o que ainda se verifica por
exemplo com os aborígenes australianos, as
tribos da Amazónia e os povos de Kalahari) e
posteriormente assente na agricultura. O hábito
de consumo regular de alimentos com açúcar
sofreu um aumento extraordinário nas últimas
décadas. A carne gorda dos animais domesticados, previamente consumida só ocasionalmente, tornou-se num alimento quotidiano nas
sociedades afluentes. O consumo de gorduras
aumentou nas sociedades industrializadas
devido não só ao aumento de consumo de
carne mas também de leite e derivados. As
dietas dos países desenvolvidos são pobres em
cereais e outros alimentos com alto teor de
fibras e têm excesso de sal e de bebidas
alcoólicas. Para além destes aspectos, as populações tornaram-se cada vez mais sedentárias
enquanto que os estilos de vida tradicionais
envolviam actividade física regular.
A afluência, com excesso de ingestão calórica e
sedentarismo, corresponde a uma muito peque-
na fracção da história da espécie humana. Se
esse tempo histórico fosse comparado, suponhamos, a 85 anos, as últimas décadas de
afluência corresponderiam aos derradeiros
segundos. É natural que o património genético
do Homem não se tivesse adaptado à circunstância tão recente de excesso constante de
calorias com ausência de actividade física. Esta
transição cultural e económica que teve lugar
na Europa e América do Norte após a revolução
industrial apresenta actualmente um paralelo
nos países em desenvolvimento com a mudança das populações das zonas rurais para as
cidades e com os movimentos migratórios para
os países industrializados. Mais de 60% da
população mundial será urbana em 2025, o que
terá por certo implicações no estilo de vida
desses indivíduos com as correspondentes
consequência na saúde.
J. V. Neel postulou o conceito de que a ocorrência frequente de certas doenças, particularmente aquelas características das sociedades
afluentes, pode reflectir uma selecção de genes
que ofereceriam originalmente alguma vantagem de sobrevivência da espécie, mas que
posteriormente, com alterações de estilo de
vida, podem predispor a consequências adversas (Neel JV. Diabetes mellitus: A “thrifty”
genotype rendered detrimental by “progress”?
Am J Hum Genet 14:353-62, 1962).
Exemplificando para a diabetes tipo 2, a sua
predisposição genética ofereceria uma vantagem de sobrevivência em condições de fome
(maior peso à nascença, tendência para a acumulação de gordura), tendo efeitos deletérios
“A DISTRIBUIÇÃO NO
em situações de excesso alimentar.
A supressão do metabolismo verificado na
diminuição da sensibilidade à acção da insulina
de disponibilização de glicose para os tecidos,
característica da diabetes tipo 2 e obesidade,
conserva calorias em situação de fome,
aumentando as hipóteses de sobrevivência, e o
resultante aumento da glicose no plasma é
importante para os tecidos que não dependem
da insulina para a disponibilização da glicose,
como o cérebro e o feto, com as óbvias vantagens de sobrevida. A alta incidência de diabetes
em emigrantes da Ásia e África para países
afluentes é um exemplo deste “gene frugal” de
Neel ou da incapacidade de adaptação a
alterações ambientais relativamente rápidas.
Um outro exemplo marcante constitui o estudo
da população dos paleo-índios Pima, cujos
ascendentes emigraram para a América do
Norte há cerca de 11.000 anos. Esta população
fixou-se no estado americano do Arizona e,
após ter adoptado um estilo de vida do tipo
ocidental, a prevalência de obesidade aumentou para 90% e cerca de metade dos seus
membros desenvolve diabetes aos 35 anos,
enquanto que os seus parentes distantes que se
deslocaram para as montanhas da Sierra Madre
no México (tendo a separação dos dois grupos
ocorrido há cerca de 700 a 1.000 anos), que
mantêm uma economia de subsistência
tradicional baseada na agricultura, pesam em
média menos 26 kg e a diabetes tipo 2 é uma
raridade. Este é um exemplo em que uma
susceptibilidade genética – genes excepcionalmente “frugais” – é amplificada por um meio
ambiente que oferece um acesso fácil a
alimentos altamente energéticos sem exigir
uma grande actividade física. Esta “frugalidade”
pode apresentar-se de várias formas: metabólica (um metabolismo muito eficiente na
ABDÓMEN DA GORDURA
CORPORAL SERIA,
ENTÃO, O ARMAZÉM DE
DEPÓSITOS ENERGÉTICOS
DURANTE AS ESTAÇÕES
DO ANO COM MAIOR
OFERTA ALIMENTAR,
QUE SERIAM UTILIZADOS
DEPOIS NAS ESTAÇÕES
FRIAS, COM MENOR
DISPONIBILIDADE
DE ALIMENTOS.”
poupança de energia), adipogénica (uma propensão para uma rápida acumulação de
gordura) ou fisiológica (capacidade de “desligar” processos não-essenciais).
A hiperactividade do sistema nervoso simpático
também teria vantagem para os nossos antepassados em termos de sobrevida, nomeadamente em situações de “luta ou fuga” importantes para a sobrevivência. A tendência para a
coagulação rápida terá sido importante para
diminuir perdas hemorrágicas em situações
adversas. A propensão para a retenção de sódio,
nomeadamente o sódio oriundo do sal, estará
também relacionada com a pressão selectiva
intensa baseada no princípio evolutivo de
aumento da sobrevida para os mais capazes de
poupar sódio e que melhor responderiam a
perdas de volume por hemorragia. Os genes
poupadores de sal poderão ter oferecido vantagens competitivas em situações ou doenças com
deplecção de volume, especialmente quando
associadas a situações indutoras de stress.
A capacidade de acumular gordura no abdómen
terá tido também uma vantagem selectiva para a
sobrevivência. Os diferentes depósitos de gordura
(abdominal ou subcutânea) diferem no metabolismo no que respeita ao ciclo lipólise-lipogénese. A gordura intra-abdominal é o principal
tecido para o armazenamento a prazo dos depósitos energéticos. O fornecimento de glicose em
reserva no organismo sob a forma de glicogénio é
limitado e dura, no máximo, um ou dois dias em
situação de jejum. Após a exaustão dos depósitos
de glicogénio do fígado, a glicose plasmática é
mantida à custa da chamada gliconeogénese, um
processo que depende em parte do catabolismo
do músculo. A conversão para uma economia de
energia baseada no tecido adiposo poupa, assim,
o músculo esquelético e prolonga a vida em
períodos de fome. A distribuição no abdómen da
gordura corporal seria, então, o armazém de
depósitos energéticos durante as estações do ano
com maior oferta alimentar, que seriam utilizados
depois nas estações frias, com menor disponibilidade de alimentos. Estudos em ratos com formas
genéticas de obesidade documentaram elegantemente este fenómeno. Num estudo os animais
portadores de um duplo gene determinante de
obesidade receberam exactamente a mesma
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“É NATURAL QUE
quantidade e qualidade de alimentos e aumentaram a quantidade de gordura relativamente aos
animais de controlo sem esses genes e numa
segunda experiência foram comparadas as taxas
de perda de peso e o tempo de sobrevida em
situação de fome e verificou-se que os roedores
com tendência para a obesidade viviam mais que
os animais magros (Bray GA. Hypothalamic and
genetic obesity: an appraisal of the autonomic
hypothesis and the endocrine hypothesis. Int J
Obes 8(suppl. 1): 119-37, 1984). O mesmo se
verificou com animais de experiência com diminuição da sensibilidade à insulina que sobreviveram mais tempo durante o jejum total do que
aqueles com sensibilidade à insulina normal
(Coleman D. Obesity genes: beneficial effects in
heterozygous mice. Science 203:663-5, 1979).
Vários genes têm sido identificados como candidatos à inclusão no genótipo frugal, incluindo
aqueles que codificam a síntese de proteínas
das vias de sinalização da insulina e da leptina,
assim como do metabolismo intermediário da
gordura. As diferenças individuais no metabolismo energético são causadas primariamente por
polimorfismos de nucleotídeos únicos (PNU’s),
alguns dos quais estão associados ao desenvolvimento de diabetes tipo 2 e obesidade. As diferenças em PNU’s de PPAR gama 2, receptor da
leptina ou UCP3-p, por exemplo, podem ter sido
causadas por selecção natural. A base genética do
genótipo frugal deriva provavelmente dos efeitos
multiplicativos de vários desses polimorfismos.
Este conceito implica que os indivíduos afectados
possuem a versão “ancestral” dos genes relevantes, enquanto que os indivíduos saudáveis ou
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O PATRIMÓNIO GENÉTICO
DO HOMEM NÃO SE
TIVESSE ADAPTADO
À CIRCUNSTÂNCIA TÃO
RECENTE DE EXCESSO
CONSTANTE DE CALORIAS
COM AUSÊNCIA DE
ACTIVIDADE FÍSICA.”
“não-afectados” beneficiaram de mutações
recentes que possibilitaram a perda de frugalidade
desses genes. Por exemplo, estudos recentes do
gene do angiotensinogénio mostraram que a
variante ancestral (AGT 235T), também presente
em primatas, está associada a HTA enquanto que
uma variante recente (AGT 235M) aparentemente
reduz o risco de aumento da pressão arterial
(Kosachunhanun N et al. Genetic determinants of
nonmodulating hypertension. Hypertension
42(5): 901-8, 2003).
Nesta perspectiva evolucionista da síndrome
metabólica há a referir ainda o papel emergente da inflamação na sua génese e no risco
cardiovascular e a sua relação com a resistência
à insulina e desenvolvimento de diabetes tipo
2. A infecção activa o sistema imunológico de
que resultam alterações metabólicas generalizadas. O FNT-alfa está envolvido nos eventos
inflamatórios, no combate à infecção e tem sido
relacionado com fenómenos de sinalização
nutricional que vão desde a indução de dislipidemia à regulação da sinalização intracelular da
insulina. Alguns polimorfismos do gene do FNT-alfa ligados a uma taxa de transcrição elevada do
factor foram associados simultaneamente a
resistência à insulina, obesidade, e mortalidade
por infecções crónicas. O sistema do FNT pode ter
sido “desenhado” numa perspectiva evolucionista
para uma luta eficaz contra a infecção e para
providenciar vantagens competitivas durante
períodos de carência alimentar. Para os nossos antepassados as vantagens dos elevados respondedores de citoquinas (erradicação de infecções) e
resistentes à insulina (protecção em situações de
fome) sobrepuseram-se a possíveis inconvenientes do desenvolvimento de aterosclerose.
Resumindo, dada a importância das reservas de
energia para a sobrevivência individual e
também para a aptidão reprodutiva, a capacidade de conservar energia na forma de gordura
propiciou uma vantagem competitiva em termos
de sobrevida. Actualmente, com o excesso de
oferta alimentar nas sociedades afluentes, essa
característica de distribuição da gordura corporal
no abdómen tem consequências negativas do
ponto de vista metabólico e cardiovascular.
Pedro von Hafe
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