Octavio Moreira Guimarães Lopes PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Conceptividade, Possibilidade e Lógica Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pósgraduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Oswaldo Chateaubriand Volume I Rio de Janeiro, maio de 2005 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador. Octávio Moreira Guimarães Lopes PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Bacharel em Direito pela UERJ, bacharel em Filosofia pela PUC-RIO, mestre em Filosofia pela PUC-Rio. Pesquisa nas áreas de filosofia da lógica, epistemologia da lógica e filosofia jurídica. Foi professor auxiliar de lógica e argumentação jurídica da UCAM e professor assistente de lógica e filosofia da linguagem na UESC (Universidade Estadual de Santa Cruz, Bahia). Ficha Catalográfica Lopes, Octavio Moreira Guimarães Conceptividade, possibilidade e lógica / Octávio Moreira Guimarães Lopes ; orientador: Oswaldo Chateaubriand. – Rio de Janeiro : PUC, Departamento de Filosofia, 2005. 2v. ; 30 cm Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia. Inclui referências bibliográficas. 1. Filosofia – Teses. 2. Conceptividade. 3. Conceptibilidade. 4. Imaginação. 5. Possibilidade. 6. Lógica. 7. Psicologismo. 8. Epistemologia modal. 9. Frege. 10. Aristóteles. I. Chateaubriand, Oswaldo.CDD: II. 10 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título. CDD: 100 Octavio Moreira Guimarães Lopes Conceptividade, possibilidade e lógica PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Prof. Oswaldo Chateaubriand Filho Orientador Departamento de filosofia – PUC-Rio Prof. Sérgio Luiz de Castilho Fernandes Departamento de Filosofia – PUC-Rio Prof. Luiz Carlos Pinheiro Dias Pereira Departamento de Filosofia – PUC-Rio Prof. Arno Aurélio Viero Departamento de Filosofia – UFF Prof. Marco Antonio Caron Ruffino Departamento de Filosofia – UFRJ Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio Rio de Janeiro, 24 de maio de 2005 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Para meus pais, Tito e Elisa, pelo incondicional apoio material e, sobretudo, afetivo e espiritual, sem o qual eu não poderia ter começado e prosseguido nenhuma de minhas caminhadas. Agradecimentos Ao meu orientador Professor Oswaldo Chateaubriand por mais de dez anos de generosa convivência e ensinamentos filosóficos, dos quais esta tese depende essencialmente. Aos Professores membros da Comissão avaliadora por aceitarem a incumbência, e pelas correções, críticas e objeções a esta tese. À PUC-Rio e ao Departamento de Filosofia pelo apoio e pelos ensinamentos ao longo destes mais de dez anos. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Aos membros do GT de Filosofia da Lógica e da Matemática da ANPOF e aos membros do PROCAD pelas oportunidades de expor meu trabalho. À UESC, em especial ao colegiado de filosofia, pela calorosa acolhida e pela licença que me permitiu dedicação total à tese nas fases finais de sua elaboração e redação. À Professora Carla da Penha Bernardo, pela eficiente revisão gramatical, ainda que providenciada às pressas. Aos meus pais, pelo crucial apoio financeiro. À minha irmã Bia, e a Marcelo, Sofia, Marcelinho e Bernardo, pela atenção, paciência, e carinho, e por partilharem comigo toda a sua alegria de viver. A todos os meus amigos, pela paciência, estímulo e bom humor. À minha amiga Ana Maria Alvarenga pelo apoio, auxílio e pela convivência sempre alegre. Resumo Lopes, Octavio Moreira Guimarães; Chateaubriand, Oswaldo. Conceptividade, Possibilidade e Lógica. Rio de Janeiro, 2005. 372 p. Tese de doutorado – Departamento de Filosofia, Pontifícia universidade Católica do Rio de Janeiro. A Lógica é hoje em dia vista como uma ciência matemática fundamentalmente ligada à faculdade do entendimento, e pouco relacionada com nossa capacidade de imaginar ou conceber. Desta forma, sob a alcunha de “psicologismo”, costuma-se descartar qualquer associação da lógica à conceptividade ou à imaginação como espúria e mal colocada. Esta tese de doutorado tem como objetivo mostrar que, contrariamente ao que se costuma crer, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA há na lógica, tomada como uma ciência, um inegável emprego metodológico da faculdade da conceptividade ou da imaginação. Para mostrar isto, primeiramente examinamos sobre bases autônomas o princípio da conceptividade, segundo o qual a proposição p é concebível se e semente se p é possível. Investigamos as principais posições contemporâneas contra e a favor deste princípio e chegamos a uma versão qualificada do princípio, que defendemos ser livre de contraexemplos. Terá sido mostrado, portanto, que, sob certas condições, há uma relação essencial entre conceitos modais aléticos (possibilidade, necessidade, contingência, impossibilidade) e nossa faculdade de conceber ou imaginar: o que é concebível é possível – ainda que nem sempre o que é inconcebível seja impossível. Em seguida, mostramos como o princípio da conceptividade foi um instrumento insubstituível, nas mãos dos grandes pioneiros da lógica, em uma tarefa muito bem delimitada: a codificação de novas linguagens lógicas. Defendemos, por conseguinte, que Aristóteles, quando primeiramente codificou a lógica de proposições categóricas, e Frege, quando elaborou a lógica funcional e quantificada, foram obrigados a recorrer à conceptividade como parâmetro básico para examinar a correção expressiva da linguagem que estavam codificando e para aferir a validade lógica de diversas proposições e argumentos. Com vistas a tornar claro o lugar da noção de conceptividade dentro da lógica, examinamos a lógica e a epistemologia de Aristóteles e, sobretudo, de Frege, nas quais encontramos elementos concretos que apontam para o emprego desta noção dentro do contexto primitivo de codificação lógica a que nos reportamos. Enfatizamos que, no contexto em que estes autores se encontravam, não havia opções epistemológicas para examinar e avaliar sua lógica a não ser o recurso princípio da conceptividade. Palavras-chave Conceptividade (conceptibilidade), imaginação, possibilidade, lógica, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA psicologismo, epistemologia modal, Frege, Aristóteles. Abstract Lopes, Octavio Moreira Guimarães; Chateaubriand, Oswaldo (Advisor). Conceivability, Possibility and Logic. Rio de Janeiro, 2005, 372 p. Doctoral Thesis – Departamento de Filosofia, Pontifícia universidade Católica do Rio de Janeiro. Logic is seen today as a mathematical science fundamentally linked to the faculty of understanding, unrelated to our capacity of imagining or conceiving. Under the label “psychologism”, one usually considers any association between logic and conceivability (or imagination) as spurious and misled. This doctoral thesis has as its goal showing that, contrarily to what is ordinarily thought, there is in logic, understood as a science, an undeniable methodological employment of the faculty PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA of conceivability or imagination. In order to show this, we firstly examine the conceivability principle (the proposition p is conceivable if and only if p is possible) on autonomous basis. We examine the main contemporary positions against and in favor of this principle and come to a qualified version of the principle, which we purport to be free of counterexamples; it will have been shown, therefore, that, under certain circumstances, there is an essential relation between modal concepts (possibility, necessity, contingency, impossibility) and our faculty of conceiving or imagining: whatever is conceivable is possible – even though it is not always true that whatever is inconceivable is impossible. Secondly, we show how the conceivability principle was an irreplaceable tool in the hands of the great pioneers of logic, in a very well delimited task: codifying new logical languages. Therefore, we hold that Aristotle, as he firstly codified the logic of categorical propositions, and Frege, as he elaborated quantified functional logic, were bound to employ conceivability as a basic parameter so as to examine the expressive correctness of the language they were codifying and determine the validity of various propositions and arguments. In order to make clear the place of conceivability in logic, we examine Aristotle’s Frege’s logic and epistemology and find concrete elements indicating the employment of this notion in the primitive context of logical codification we have mentioned. We emphasize that, in the context in which these authors were working, there were no epistemological options other than the resource to the conceivability principle. Keywords Conceivability, imagination, possibility, logic, psychologism, modal PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA epistemology, Frege, Aristotle. Sumário Introdução 15 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA PARTE I: CONCEPTIVIDADE E POSSIBILIDADE 1. Conceptividade 25 1.1. Observações Preliminares 25 1.2. A Noção de Conceptividade e o Princípio da Conceptividade 26 1.3. Argumentos de Conceptividade: Observações Históricas 31 1.4. Conceptividade na Visão Contemporânea 37 1.4.1. Conceptividade segundo Chalmers 38 1.4.2. Conceptividade segundo Yablo 48 1.5. O Bidimensionalismo Semântico de Chalmers 54 1.5.1. Frege: Sentidos 54 1.5.2. Kripke: a Semântica dos Designadores Rígidos 58 1.5.3. O Bidimensionalismo 65 1.5.4. Digressão: Bidimensionalismo e Necessidade a Posteriori 73 1.6. Considerações Finais 82 2. Princípio da Conceptividade: Objeções e Respostas 85 2.1. Observações Preliminares 85 2.2. “Somos Capazes de Crer no Impossível” 86 2.2.1. Objeção: Vaguidade e Conceptividade 86 2.2.2. Objeção: uma Demonstração de que Somos Capazes de Crer no Impossível 91 2.2.3. Resposta: o Esvaziamento da Noção de Crença 93 2.2.4. Objeção: Somos Capazes de Crer em Contradições 96 2.2.5. Resposta: os Limites da Expressão Lingüística; a Questão do Erro 99 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA 2.3. “Somos Capazes de Perceber o Impossível” 106 2.3.1. Objeção: Somos Capazes de Ver o Impossível 107 2.3.2. Resposta: Inspecionando uma Imagem Mental 109 2.3.3. Observação: a Questão da Intencionalidade 112 2.4. “Imagens Mentais são Imprecisas” 114 2.4.1. Objeção: Imagens Mentais São Mal Definidas 115 2.4.2. Resposta: Imagens Mentais São Imagens Arbitrárias 115 2.4.3. Objeção: Idéias Gerais São Inconsistentes 119 2.4.4. Resposta: Idéias Gerais e Intencionalidade 121 2.5. “Há situações Possíveis, embora Inconcebíveis” 124 2.5.1. Objeção: as Limitações Intrínsecas a Nossos Sentidos 124 2.5.2. Discutindo a Objeção: a Questão da Incompletude 125 2.5.3. Tratando a Questão da Incompletude da Conceptividade 127 2.6. Considerações Finais 133 PARTE II: CONCEPTIVIDADE E LÓGICA 3. O Lugar da Conceptividade dentro da Lógica 137 3.1. Observações Preliminares 137 3.2. Caracterização da Lógica a Partir de sua Práxis 138 3.3. Conceptividade: Validação de Axiomas e Codificação de Linguagens Lógicas 141 3.4. Considerações Finais 148 4. Conceptividade na Epistemologia e na Lógica de Aristóteles 150 4.1. Observações Preliminares 150 4.2. A Epistemologia Modal de Aristóteles 152 4.2.1. O Princípio CON≡POSS em Aristóteles 153 4.2.2. A Noção de Necessidade nos Segundos Analíticos 164 4.2.3. A Intuição como a Faculdade do Conhecimento do Necessário 167 4.3. A Lógica Formal de Aristóteles: suas Fontes e a Importância da Necessidade 168 4.3.1. A Dialética como Fonte para a Definição de Conseqüência Lógica 170 4.3.2. A Dialética como Fonte Formal para a Lógica de Aristóteles 4.3.3. A Importância da Necessidade na Lógica Aristotélica 4.4. Intuição e Conceptividade na Lógica em Aristóteles 4.4.1. Uma Lacuna na Visão de Conhecimento de Aristóteles 4.4.2. Lógica e Intuição PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA 4.5. Considerações Finais 5. Uma Avaliação Crítica da Epistemologia de Frege 189 5.1. Observações Preliminares 189 5.2. O Ponto de Partida de Frege: A Objetividade da Lógica 190 5.3. Epistemologia do Pensamento 195 5.3.1. A Linguagem como Fonte Epistemológica do Pensamento 196 5.3.2. Há Pensamento na Ausência de Linguagem? 200 5.3.3. Estrutura do Pensamento vs. Estrutura Sentencial 203 5.3.4. Podemos Pensar o Impossível? 206 5.4. Epistemologia da Representação 212 5.4.1. A Noção de Representação de Frege 213 5.4.2. A Noção de Representação de Frege é Sustentável? 214 5.5. Epistemologia do Juízo 218 5.6. A Linguagem Natural na Metodologia de Frege 220 5.6.1. As Críticas de Frege à Linguagem Natural 221 5.6.2. Empregos Metodológicos da Linguagem Natural por Frege 223 5.6.3. O Valor Metodológico da Linguagem Natural para Frege 225 5.7. Considerações Finais 232 6. Para uma Noção de Conceptividade em Frege 236 6.1. Observações Preliminares 236 6.2. “Conceber” e Conceber na obra de Frege 237 6.3. CON≡POSS em Frege 243 6.4. Resgatando a Noção de Representação de Frege 244 6.5. Juízo, Representação e Conceptividade 248 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA 6.6. Juízo e Intensão 250 6.7. Noções Modais em Frege e Conceptividade 252 6.8. Considerações Finais 254 7. Da Conceptividade à Conceitografia 256 7.1. Observações Preliminares 256 7.2. A Metodologia da Lógica de Frege 258 7.3. Conectivos Lógicos 263 7.3.1. A Definição Veritativo-funcional dos Conectivos Lógicos 263 7.3.2. A Definição dos Conectivos e Conceptividade 265 7.3.3. Alguns Possíveis Questionamentos 276 7.4. A Análise Funcional e os Quantificadores 280 7.4.1. A Análise Funcional 280 7.4.2. Quantificadores 286 7.4.3. Quantificadores e Conceptividade 292 7.5. Considerações Finais 318 8. Algumas Questões Críticas 320 8.1. Observações Preliminares 320 8.2. Conceptividade e o Antipsicologismo de Frege 320 8.3. A Opção do Mentalismo 324 8.4. O Apelo à Noção de Contradição 333 8.5. A Existência de Lógicas Alternativas 338 8.6. Considerações Finais 343 Conclusão 346 Referências Bibliográficas 358 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA A questão por que e com que direito reconhecemos uma lei da lógica como verdadeira, a lógica pode responder somente reduzindo-a a outra lei da lógica. Onde isto não é possível, a lógica não pode dar qualquer resposta. Frege São as coisas obscuras em si, mas particularmente aparentes para nós, que dão lugar ao que é claro e mais inteligível pela razão. Aristóteles INTRODUÇÃO 1-Tema da Tese Nesta tese, defendemos, em primeiro lugar, que a conceptividade1 (ou sua falta) de uma proposição é tanto fonte quanto justificação para a afirmação de seu status modal e, em segundo lugar, que a noção de conceptividade ocupa um espaço próprio dentro da metodologia da lógica, no sentido estrito. Estas duas subteses serão defendidas separadamente, correspondendo às partes I e II desta tese. Vejamos em que elas consistem. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA A primeira subtese consiste na afirmação do princípio segundo o qual algo é concebível se e somente se é possível. Isto quer dizer que o contato epistêmico com estados qualitativos da consciência individual (ou sua falta) é informativo quanto ao status modal das proposições pensadas, bem como sua justificativa. Esta conexão entre capacidade de conceber e possibilidade pode ser ilustrada pelos seguintes exemplos: se concebo que a lua é de queijo, então estou justificado a afirmar que é possível que a lua seja de queijo; se é possível a existência de um conjunto infinito, então é concebível a existência de um conjunto infinito. Neste trabalho, defendemos uma versão qualificada do princípio em questão, a fim de podermos lidar com toda uma série de contra-exemplos que aparentemente assolam o princípio da conceptividade. A segunda subtese de que nos ocupamos consiste na afirmação de que a noção de conceptividade, na condição de guia epistemológico e fundamentação 1 Há dois termos na língua portuguesa para indicar a qualidade de ser concebível: “conceptibilidade” e “conceptividade”. O primeiro encontra-se no dicionário Aurélio, enquanto que o segundo no Houaiss. Ao longo desta tese, optamos pelo segundo. 16 para a modalidade alética de proposições, tem um lugar cativo dentro da metodologia da lógica propriamente dita. Esta visão foi lugar-comum em boa parte da modernidade, até a primeira metade do século XIX, e é hoje tida como uma visão arcaica e ingênua acerca do que é a lógica. No entanto, podemos encontrar esta visão ainda em Boole, um dos preceptores da lógica contemporânea, como evidenciam as linhas introdutórias de seu principal tratado sobre lógica: O propósito do tratado que se segue é investigar as leis fundamentais da mente pelas quais o raciocínio é executado; dar-lhes expressão na linguagem simbólica de um cálculo, e sobre este fundamento estabelecer a ciência da lógica e construir seu método (...) (Laws of Thought, apud. Kneebone 1963, p. 51.) Assim, defendemos, junto com Boole, que a observação do que ocorre na mente humana é, do ponto de vista metodológico, fundamental para a lógica. Queremos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA dizer com isto que, em muitos e relevantes casos, quando se “faz lógica”, a introspecção a fim de examinar o conteúdo qualitativo de nossa mente é um recurso metodológico fundamental e imprescindível. Esta é a idéia central de nossa segunda subtese, e é especialmente com vistas a ela que recuperamos a noção de conceptividade. 2- Algumas Confusões Trazidas pela Noção de Conceptividade Um problema que incide sobre a noção de conceptividade é que há, de fato, muito pouca concordância tanto sobre o que ela abarca e o que ela implica, quanto sobre seu valor metodológico. Em virtude disto, o emprego da noção de conceptividade origina grandes confusões. A seguir, examinamos algumas delas. Filósofos das mais diferentes correntes associam as mais variadas idéias à noção de conceptividade, tendo em comum, em geral, somente a intenção de repudiá-la. Um exemplo muito curioso desta variação ocorreu durante palestra proferida por Patrick Suppes, na PUC-Rio, em 2002. Ela versava sobre como palavras e sentenças são representadas no cérebro, usando para tanto o instrumental da análise computacional. Suppes fez menção explícita a Hume como um precursor de sua própria abordagem naturalista. Por ser Hume um tradicional defensor da noção de conceptividade, perguntei-lhe animado como nossa incapacidade de conceber algo, que na visão do próprio Hume é uma 17 evidência epistemológica para aferir uma impossibilidade lógica ou metafísica, poderia enquadrar-se no modelo que ele oferecia, i.e., que efeito cerebral ela acarretaria. Sem entrar em questão de mérito acerca de minha pergunta ou da resposta oferecida, o fato é que Suppes respondeu-me como se eu fora um platonista ou a priorista criticando um naturalista. E este tipo de associação não é incomum. Em The Conscious Mind, uma obra que oferece uma teoria da consciência largamente baseada na noção de conceptividade, Chalmers preocupase em mostrar que sua teoria é naturalizável, para que não seja confundido com um a priorista. Outro exemplo do gênero é McGinn (1993), que, após expor uma visão segundo a qual processos mentais ocorrem conforme uma sintaxe lógica, afirma que tal estrutura mental não é necessária, mas sim fruto de seleção natural.2 É assim que, de um modo geral, quando se fala em relacionar leis lógicas a fenômenos mentais, os filósofos americanos (ou os engajados na discussão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA filosófica oriunda dos EUA) tendem a se preocupar em não serem tachados de platonistas ou a prioristas não-quinianos, e tratam logo de mostrar a compatibilidade de sua visão com o naturalismo Em contraste, no contexto da atual filosofia da lógica e da matemática no Brasil, a associação imediata à noção de conceptividade é com alguma forma de empirismo ou psicologismo démodé, como aquele defendido por Stuart Mill, como já pude experimentar em diferentes seminários. Fregianos, husserlianos e kantianos, por exemplo, não parecem dispostos a se associar a esta metodologia por estes motivo. Com relação ao valor metodológico que esta noção possa assumir, a confusão persiste. Alguns filósofos tratam-na como o único meio epistemológico de aferição de modalidade alética, seja em metafísica, seja em lógica. Butchvarov (1979, p. 4), por exemplo, afirma com todas as letras que não existe nenhum outro meio de fazê-lo, a não ser pelo teste de conceptividade: (...) o critério para possibilidade do qual ela [a metafísica] depende dificilmente poderia ser a mera consistência formal; deve ser conceptividade ou compreensibilidade (não de proposições, mas do que proposições pretendem descrever), pois, gostemos ou não, não temos qualquer outro critério último e geral para possibilidade. 2 McGinn atribui esta visão a Dennett, que a repudia em Dennett (1993). 18 Similarmente, para Chalmers (1996 e 2002), conceptividade implica em possibilidade, não havendo qualquer contra-exemplo. Ele vai além, e sugere que a noção de conceptividade tem um lugar dentro da lógica, como recurso para justificar regras de inferência e axiomas.3 Contudo, pode-se dizer com segurança que a maior parte dos filósofos se mostra cética com relação ao valor epistemológico da noção de conceptividade. Seguindo esta tendência, Putnam considera como demonstrado por Kripke (1980) que a conceptividade não implica em possibilidade, e Boghossian e Peacocke (2002a) consideram como demonstrado por Kripke (1980) que a inconceptividade não implica em impossibilidade. Segundo Putnam (1975, p. 590), “... é perfeitamente concebível que água não seja H2O. É concebível mas não é logicamente possível! Conceptividade não é prova de possibilidade lógica”. Já para Boghossian e Peacocke (2000a, pp. 9-10), “a mera inconceptividade de uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA identidade particular entre propriedades não precisa excluir sua verdade. Descobriu-se empiricamente que sons são vibrações no ar, embora a mera reflexão sobre os conceitos ingredientes pudesse ter feito desta identidade algo absurdo”. Não obstante a aversão da maioria, o apelo a argumentos de conceptividade é uma constante na filosofia atual, por mais incrível que isto possa parecer. Duas evidências disto são: (a) a obra seminal Naming and Necessity, de Kripke, que lançou as idéias de necessidade a posteriori, contingente a priori, propriedades essenciais e designação rígida, e que consiste basicamente num grande exercício de conceptividade (ao contrário do que pensa Putnam (1975); isto será justificado ao longo da tese); (b) as várias discussões em filosofia da lógica e da matemática que empregam os chamados “experimentos de pensamento” (thought experiments) a fim de tirar conclusões sobre questões de modalidade (a obra de Wittgenstein é particularmente abundante em tais experimentos). Tais experimentos não são mais nem menos que exercícios de conceptividade. 3 Esta idéia será amplamente discutida na parte II desta tese. 19 Se estas constatações estiverem corretas, então Yablo (1993, p. 2), terá tido razão em caracterizar o panorama atual da filosofia analítica como um estado de esquizofrenia filosófica: quase todos rejeitam a noção de conceptividade, e quase todos a utilizam. A confusão não é menor se voltarmos no tempo e examinarmos a filosofia moderna. Como veremos dentro em breve, virtualmente todos os grandes filósofos da modernidade apelam à noção de conceptividade a fim de fornecer fundamentos últimos para suas afirmações epistemológicas e metafísicas, sendo que boa parte dos principais argumentos filosóficos nascidos nesta época, fontes das mais acirradas disputas filosóficas por alguns séculos, são argumentos de conceptividade típicos: a possibilidade da separação mente/corpo, de Descartes; a possibilidade de fatos não-causados, de Hume; a impossibilidade de existência não-percebida, de Berkeley; a impossibilidade de divisão interna das mônadas, de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Leibniz. Será que há alguma lição a ser extraída desta confusão presente e pretérita? Sim: não faz o menor sentido dizer que a noção de conceptividade consiste em um recurso metodológico tipicamente empirista, idealista, racionalista, ou de qualquer outra filiação. A noção de conceptividade não tem compromisso ontológico, constituindo-se num recurso metodológico ao qual qualquer filósofo pode recorrer. A confusão começa quando os vários pensadores associam a este recurso as mais diversas teses ontológicas ou epistemológicas e impingem sobre os outros seus preconceitos teóricos. Diante desta multiplicidade de abordagens e atitudes para com a noção de conceptividade, temos que marcar nossa própria postura. Ao longo desta tese, a conceptividade será tratada como uma noção de viés psicologista e fenomenológico (no sentido geral, não-husserliano, do termo). Este ponto nos leva a um comentário sobre o psicologismo. 3- A Questão do Psicologismo A tese de que as leis lógicas estão fundamentadas na noção de conceptividade não é bem aceita dentro da filosofia da lógica e da matemática, beirando a condição de um anátema. Sob a pecha de psicologismo, qualquer associação da lógica a aspectos descritivos do funcionamento da mente é vista como fruto de uma visão 20 pouco esclarecida acerca da natureza da lógica. Tanto assim, que poucos hoje em dia gastam um tempo significativo tentando criticar o psicologismo. Afinal, por que se dar ao trabalho de refazer o que Kant, Frege, Husserl e Popper, dentre outros, fizeram tão bem? Seria chutar cachorro morto. Acreditamos que estes filósofos tivessem boas razões para rejeitar certas formas de psicologismo (e.g. as noções de hábito e de certeza), mas cremos também que outros procedimentos metodológicos, que podemos muito bem qualificar de psicologistas, são legítimos. Este é, naturalmente, o caso da noção de conceptividade. Isto posto, é claro que parte de nossa tese consistirá, de certa maneira, na recolocação ou requalificação da questão do psicologismo. Há formas benignas e malignas de psicologismo e, evidentemente, acreditamos que a noção de conceptividade seja uma forma benigna. Contudo, não pretendemos fazer um exame detido ou uma defesa do psicologismo em geral. Nossa tese é clara o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA suficiente para ser defendida sobre bases autônomas, e este é o curso que seguiremos. Há um perigo, no entanto, que evitamos a qualquer custo: formular uma versão tão ampla do psicologismo que torne a tese trivial. Afinal, toda forma de conhecimento depende, em algum nível, da consciência. Por isto, sempre será viável uma manipulação teórica, de modo a fazer da psicologia um elemento crucial para a lógica ou para qualquer outro campo teórico. Nossa tese não consiste numa manipulação deste gênero. Defendemos que há um sentido muito claro e relevante segundo o qual a metodologia da lógica depende da observação de fatos particulares da mente, e isto vai de encontro ao que uma parte significativa dos filósofos atuais pensa. 4- Estrutura Geral da Tese Este trabalho está divido em duas partes, I e II, denominadas “Conceptividade e Possibilidade” e “Conceptividade e Lógica”, respectivamente. A parte I, “Conceptividade e Possibilidade”, tem como objetivo principal o exame e a defesa do princípio da conceptividade (p é concebível se e somente se p é possível). Ela se subdivide em dois capítulos. No primeiro capítulo, “Conceptividade”, concentramo-nos, primeiramente, em oferecer uma análise aprofundada da noção de conceptividade; esta análise 21 inclui definir e apresentar em detalhes o princípio da conceptividade. Há ainda uma seção histórica na qual é dada atenção a notórios exemplos de argumentos de conceptividade presentes na filosofia moderna, com vistas a tornar a noção de conceptividade familiar aos leitores a partir de um temário filosófico comum a todos, a saber, os grandes problemas tratados dentro da filosofia moderna. Também no capítulo 1, lançamos as bases semânticas e fenomenológicas que marcarão nosso tratamento da noção de conceptividade ao longo de toda a tese. Em especial, veremos que o bidimensionalismo semântico de Chalmers é o habitat semântico mais receptivo à noção de conceptividade. Não é exagero dizer que, no capítulo 1, estabelecemos todos os alicerces para o desenvolvimento ulterior da tese. Já o capítulo 2 consiste numa tradicional exposição de objeções ao princípio da conceptividade e respectivas respostas. Concentramo-nos em objeções e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA críticas gerais a nossa tese; objeções restritas à utilização da conceptividade dentro do universo da lógica serão tratadas na parte II. A importância do segundo capítulo não reside somente no fato de nele apresentarmos nossas respostas às principais objeções ao princípio da conceptividade: aproveitamos o contexto das respostas também para aprofundar a fenomenologia e a epistemologia subjacentes à conceptividade. Conceitos como intencionalidade, idéia geral, imagem mental, dentre outros, serão discutidos ao longo desse capítulo. O capítulo 2 tem importância também por acarretar restrições ao princípio da conceptividade, das quais resultará um princípio da conceptividade mais qualificado e limitado. A parte II desta tese, intitulada “Conceptividade e Lógica”, tem como objetivo a defesa da subtese de que o princípio da conceptividade tem aplicação dentro da lógica. O capítulo 3, introdutório à parte II, mostrará exatamente onde, dentro da lógica, a noção de conceptividade tem importância. Adiantamos que é no contexto primitivo de codificação de linguagens lógicas que a noção de conceptividade se faz presente. Nesse contexto, é-se obrigado a avaliar o valor de verdade de diversas formas de enunciados, a fim de se investigar a capacidade expressiva da linguagem. Segundo nossa hipótese, tanto Aristóteles quanto Frege, os dois maiores pioneiros da lógica, têm que empregar a noção de conceptividade, seja para determinar que a forma Bárbara (AAA da 3ª figura) é uma forma válida, seja para checar as capacidades expressivas da sintaxe funcional e quantificacional que 22 Frege traz à lógica. Os capítulos 4, 5, 6 e 7 são destinados ao estudo destes autores revolucionários. No capítulo 4, examinamos as evidências lógicas e epistemológicas de que Aristóteles emprega o princípio da conceptividade em suas investigações lógicas. Defendemos que o “conhecimento lógico” das formas inferenciais contidas em Da Interpretação e nos Primeiros Analíticos requereu uma faculdade cognitiva capaz de reconhecer o necessário, ou seja, uma faculdade apropriada para o conhecimento modal. Esta faculdade, em Aristóteles, é a intuição, possuidora de inegável aspecto sensível mediador no processo de conhecimento, o que a torna amplamente compatível com a noção de conceptividade que esposamos. Nos capítulos 5, 6 e 7, voltamo-nos para a obra de Frege. No capítulo 5, efetuamos uma avaliação crítica da epistemologia fregiana. Se, por um lado, encontramos nesta avaliação vários problemas no tratamento epistemológico que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Frege confere aos pensamentos e à noção de representação, por outro, encontramos na noção abertamente subjetivista e psicologista de juízo a chave para penetrarmos no universo da conceptividade e da modalidade em Frege. Como decorrência disto, buscamos, no capítulo 6, compatibilizar nossa noção de conceptividade, que, não por acaso, encontra diversos empregos ocultos na obra de Frege, com a subestimada noção fregiana de juízo. É a partir da confluência da faculdade psicologista do juízo com o emprego reiterado da noção de conceptividade em Frege que encontramos a explicação para o tratamento das noções modais em Frege, ou seja, para sua epistemologia modal. Já no capítulo 7, de posse da epistemologia modal fregiana retificada, enfrentamos o desafio de mostrar como este universo modal e psicológico, característico da noção de conceptividade, foi importante para a codificação da conceitografia fregiana. Para tanto, examinamos em detalhes tanto a lógica do Begriffsschrift quanto o restante da obra de Frege, em busca de respaldo formal e teórico para nossa tese. Enfatizamos ainda que a posição epistemológica pioneira de Frege faz das noções modais o principal – senão o único – parâmetro que ele tinha para testar as qualidades expressivas de seu sistema; devemos sempre nos lembrar que Frege não estudou lógica contemporânea, ele a inventou (em larga margem). No capítulo 8, tratamos de algumas críticas mais urgentes que nossa tese levanta, sempre aproveitando para também expor aspectos da visão filosófica que está envolvida em nossa abordagem psicologista da lógica. Dentre as questões 23 mais urgentes que discutimos, encontram-se: a inconsistência de nossa atribuição a Frege de um certo tipo de psicologismo com o próprio antipsicologismo fregiano; a opção do mentalismo; a contradição como um método superior de determinação de possibilidade lógica; o desafio da existência de lógicas alternativas. Na conclusão, reunimos o essencial de nossa visão, chamando a atenção para a possibilidade de um substancial revisionismo filosófico que ela enseja. A presente tese vai de encontro ao que se diz há mais de 100 anos de filosofia da lógica e desdiz alguns dos principais slogans que constituem a própria identidade da filosofia analítica, dentre eles: “antipsicologismo” e “virada lingüística”. Também observamos, a despeito do que quase toda a literatura afirma, a existência de um significativo número de semelhanças entre as abordagens lógicas de Aristóteles e Frege, determinada pela condição epistemológica similar em que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA eles se encontravam no momento em que formularam suas contribuições. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA PARTE I: CONCEPTIVIDADE E POSSIBILIDADE 25 1 Conceptividade 1.1 Observações Preliminares Nossa preocupação central, neste capítulo, é oferecer uma análise aprofundada de três elementos que formam a espinha dorsal desta tese: a noção de conceptividade, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA o princípio da conceptividade e os argumentos de conceptividade. Na seção 1.2, oferecemos uma definição para a noção de conceptividade, bem como uma caracterização geral do princípio da conceptividade. Esta seção é fundamental, pois nela lançamos as bases conceituais para todas as discussões posteriores. Também em 1.2, apresentamos um simbolismo simples, porém eficiente, para a expressão concisa do princípio da conceptividade ao longo de toda a tese. Na seção 1.3, detectamos, em algumas discussões filosóficas da modernidade, exemplos tanto do princípio da conceptividade, quanto de argumentos que se utilizam instrumentalmente da noção de conceptividade: os argumentos de conceptividade. O papel desta seção histórica é tornar familiares os argumentos de conceptividade e deixar claro que este recurso metodológico forma uma categoria autônoma de argumentação. Na seção 1.4, será feita uma análise conceitual e fenomenológica do princípio da conceptividade, com vistas a tirar ao máximo sua ambigüidade, e assim livrá-lo de uma série de objeções básicas; isto será feito principalmente a partir de Chalmers (2002) e Yablo (1993). Estes são os tratamentos contemporâneos mais importantes ora existentes. Por fim, na seção 1.5, mostramos como Chalmers (1996, 2002, 2002a e 2002c) integra, com naturalidade, a noção de conceptividade a uma semântica da linguagem natural, a chamada semântica bidimensional. Esta compatibilização prepara o caminho para sua adequação ao emprego dentro da lógica. Fecharemos o capítulo com um apanhado do que foi estabelecido em seu decurso. 26 1.2 A Noção de Conceptividade e o Princípio da Conceptividade Nesta seção, preocupamo-nos em apresentar e definir a noção de conceptividade e o princípio da conceptividade, preparando o terreno para discussões e aprofundamentos posteriores. Devemos oferecer uma definição preliminar de “conceptividade”, sem a qual nossa atual discussão da noção de conceptividade não poderá avançar: Conceptividade é capacidade de ser concebido.1 Esta definição traz de imediato duas questões: (a) tal capacidade de ser concebido PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA é uma propriedade de que tipo de coisa?2; (b) em que consiste esta capacidade de conceber? Qualquer resposta à primeira pergunta traz irremediavelmente uma série de problemas complexos de filosofia da linguagem, que não temos condições de tratar em detalhes aqui, sem desvirtuar o objetivo da própria tese. Não obstante, não há dúvidas de que conceptividade deve ser tratada como uma propriedade de algo no mínimo tão forte quanto proposições (aquilo que é expresso por meio de uma sentença, ou aquilo a que se dirigem atitudes proposicionais, e.g., crença, ou aquilo que pode ser verdadeiro ou falso). Neste sentido, há quem estipule que a conceptividade deva ser uma propriedade de coisas ainda mais fortes, epistemologicamente falando. Este é o caso de Butchvarov (1979, p. 4): 1 A palavra “conceptibilidade” ganha do Aurélio a seguinte definição: qualidade de ser conceptível. “Conceptível” é definido como sinônimo de “concebível”, que por sua vez é definido como que se pode conceber. Assim, na definição do Aurélio, conceptividade quer dizer qualidade do que se pode conceber. Esta definição nos é inútil por ser circular, ao incluir o verbo modal “poder” (para um exemplo de emprego desta definição inútil para fins de crítica, ver Bealer 2002, p. 76, nota 4). Nossa definição de conceptividade como “capacidade de ser concebido” tem como base a utilização deste termo por Hume, para quem a propriedade de ser concebível é definida em termos psicológicos, e ainda a definição do dicionário Webster, da língua inglesa, que define “conceivable” da seguinte maneira: capable of being conceived. Encontramos a mesma definição no Cambridge Dictionary of Philosophy, verbete “Conceivability” (ver Tidman 1995). 2 Quando dizemos que algo “é capaz de ser concebido”, queremos dizer em geral que um ser humano é capaz de conceber este algo, e não que há um algo que tem a propriedade ontológica de ser concebido. Assim, quando formulamos a pergunta (a), estamos interessados em que tipo de coisas os seres humanos são capazes de conceber, e não na capacidade de conceber como uma propriedade ontológica do que quer que seja. O emprego da voz passiva não deve ser fonte de confusão aqui. 27 O critério para possibilidade (...) deve ser conceptividade ou compreensibilidade não de proposições, mas daquilo que proposições pretendem descrever. Mas esta colocação não significa muito, sem que se deixe claro o que é isto que as proposições pretendem descrever: mundos possíveis, situações, estados de coisa. Para os mundos possíveis, por exemplo, as alternativas variam desde meras muletas epistemológicas até mundos concretos como os nossos, como no caso notório de Lewis. Dado este enorme universo de alternativas, deve ficar claro, desde já, que nossa tese não é sobre como melhor sistematizar o discurso modal. Nosso interesse reside, isto sim, na conexão entre fenomenologia e modalidade. É claro que nos comprometemos com uma sistematização, como veremos ainda neste capítulo: o bidimensionalismo semântico de Chalmers. Mas as razões deste PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA comprometimento advêm das intuições modais que o bidimensionalismo modela, e não da própria sistematização oferecida para as intuições. Não queremos moldar nossas intuições a um tipo de sistematização (semi) formal; se não houver formalismos para nossas intuições, que assim seja. Em virtude de nossa ênfase no fenomenológico e no epistemológico, seguimos a sugestão de Butchvarov e assumimos que a conceptividade é uma propriedade de situações. A noção de conceptividade ganha, então, a seguinte definição: A situação S é concebível sse somos capazes de conceber a situação S. Aqui, uma situação é um estado mental qualitativo que representa um conteúdo que, por sua vez, é portador de condições de verdade. Por conseguinte, se, por exemplo, concebo ou imagino (ou mesmo percebo) que meu automóvel foi roubado, eu concebi uma situação, ou seja, eu formei um estado mental qualitativo que representa um conteúdo que pode ser verdadeiro ou falso. Esta definição de conceptividade será assumida ao longo de toda a tese. Um problema, porém, se afigura com o nosso tratamento da noção de conceptividade. Em geral, não se considera que uma sentença expresse uma situação (imagem mental etc.), mas sim uma proposição (ou pensamento, ou sentido etc.). Como Frege bem lembra, quando afirmo “meu automóvel foi 28 roubado”, não estou transmitindo qualquer imagem mental a quem quer que tenha lido ou ouvido esta afirmação, mas sim um pensamento (fregiano) ou proposição. Este problema é facilmente resolvido pela seguinte definição: A proposição p é concebível se e somente se somos capazes de conceber uma situação na qual p é verdadeira.3 Com esta formulação, os dois elementos essenciais das situações são mantidos: seu caráter psicológico e seu caráter semântico. A conceptividade permanece, desta maneira, uma candidata digna a fonte e justificação para a afirmação de possibilidade de uma proposição. Ao longo da tese, falamos livremente da conceptividade de proposições e de situações, o que nos é autorizado pelas definições acima. Eventualmente, a noção PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA de situação será subsumida a uma noção ontologicamente fraca, porém epistemologicamente forte, de mundo possível; no entanto, em nenhum momento, comprometeremo-nos com a realidade de mundos possíveis. Mundos possíveis, para nós, nada mais são do que situações concebíveis. Quando tratarmos da semântica para a noção de conceptividade, usaremos preferencialmente a expressão “mundo possível” apenas porque este é o termo padrão usado no contexto de discussão semântica. Com relação à questão (b) (“em que consiste tal capacidade de conceber?”), entendemos tal capacidade em termos de introspecção ou contato direto com fatos qualitativos da consciência individual, sendo a defesa desta posição um dos temas centrais desta tese. Contudo, mantemo-nos sempre circunscritos ao âmbito da fenomenologia e dos estados mentais, ou seja, não extrapolamos nossa discussão a fim de fornecer uma filosofia da mente subjacente (embora sejamos simpáticos ao neodualismo ressurgente). Tampouco nos preocupamos com problemas ontológicos. A noção de conceptividade dá vazão a questões ontológicas muito importantes: como nossos estados mentais relacionam-se com os fatos que reputam, por exemplo, necessários? Ou seja: se me é inconcebível que 2+2≠ 4, como esta inconceptividade relaciona-se com a realidade do fato de que 2+2=4? 3 Esta definição tem como base as definições de Yablo (1993, p. 26 e 29) e Chalmers (2002, p. 150). 29 Embora vez por outra, possamos fazer sugestões num sentido ou noutro, permanecemos neutros com relação a esta questão. Tendo terminado nossa apresentação da noção de conceptividade, voltamonos para o princípio da conceptividade. O modo como este princípio relaciona conceptividade e possibilidade pode ser expresso de maneira simples e clara através do seguinte bicondicional: i) uma proposição p é concebível se e somente se p é possível. A afirmação i), por sua vez, pode ser divida em duas implicações: i.1) Se p é concebível, então p é possível; PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA i.2) Se p é possível, então p é concebível. Deve ficar claro, desde já, que a aceitação de i.1 é independente da aceitação de i.2, e vice-versa. Aliás, nossas posições sobre a verdade destas implicações são diferentes, como ficará patente ao longo da tese. Tanto i.1) quanto i.2) são recursos filosóficos amplamente utilizados na filosofia e na ciência,4 em todas as épocas, mas em particular na filosofia moderna. O caso clássico é Hume (1739, p. 32): (...) o que quer que a mente conceba claramente inclui a idéia de existência possível, ou, em outras palavras, que nada que imaginamos é absolutamente impossível. Esta afirmação de Hume, por muitos chamada de “máxima de Hume”, consiste na verdade, de duas formulações equivalentes de i.1), a primeira em sua forma típica (se p é concebível então p é possível), e a segunda em sua forma obversa (Não é o caso que, se p é concebível então p é impossível; ou, na forma de proposição categórica: Nenhuma proposição concebível é impossível).5 Seria o caso, então, de Hume aceitar somente i.1, e rejeitar i.2? Não, pois no trecho que se segue 4 Ver Sorensen (1992), uma mina para inúmeros exemplos científicos. Para obter a obversa de um condicional, nega-se o conseqüente e nega-se externamente o condicional. Por exemplo, a obversa de P⊃Q é ~(P⊃~Q). No caso de uma proposição categórica do tipo A, transforma-se a proposição em E e substitui-se o termo predicado por seu complemento. 5 30 imediatamente à afirmação de sua máxima, Hume dá exemplos dos dois sentidos do bicondicional: Podemos formar a idéia de uma montanha dourada, e disto concluir que tal montanha pode de fato existir; não podemos formar qualquer idéia de uma montanha sem vale, e daí considerar isto impossível.6 (ibid.) O primeiro exemplo de Hume é um caso de i.1: se é concebível a existência de uma montanha dourada, então é possível a existência de uma montanha dourada. O segundo exemplo é um caso da contrapositiva7 de i.2: se é inconcebível uma montanha sem vale, então é impossível uma montanha sem vale (que, na forma típica, fica: se é possível uma montanha sem vale, então é concebível uma montanha sem vale). A exemplo do que ocorre nos exemplos de Hume, a maior parte dos casos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA históricos de ocorrências de i.2 se dão na forma contrapositiva. A razão disto é clara: o interesse nos argumentos que empregam a noção de conceptividade decorre de eles permitirem um tráfego do epistemológico para o metafísico (ou ao menos para o modal). Assim, o sentido destes argumentos, em geral, obedece à ordem epistemológico → metafísico (ou modal). Doravante, chamaremos i de “princípio da conceptividade”, e i.1 e i.2 de “princípio parcial da conceptividade”, sempre adicionando as qualificações pertinentes quando não estiverem óbvias. Utilizaremos também os seguinte esquemas para os representar: i) CON≡POSS i.1) CON⊃POSS i.2) POSS⊃CON (ou INC⊃IMP, sua forma contrapositiva recorrente) Além disto, nos reportaremos a quaisquer argumentos particulares que empreguem os esquemas i.1 ou i.2, e seus equivalentes, como “argumentos de 6 De fato, o segundo exemplo de Hume, contido nesta citação, está errado. Tidman (1994, p. 309, nota 1), seguindo Arthur Pap, observa corretamente que podemos muito bem conceber uma montanha sem vales. O que não somos capazes de conceber são vales sem montanhas. Segundo Pap, o erro provavelmente se dá por um descuido de Hume, ao reutilizar o exemplo tradicional da inconceptividade de vales sem montanhas, de Descartes. 7 Para formarmos a contrapositiva de um condicional, negamos ambos o antecedente e o conseqüente, e invertemos suas posições. A contrapositiva de P⊃Q é ~Q⊃~P. 31 conceptividade”. Para esquematizarmos argumentos que assumem a forma CON⊃POSS, utilizaremos o seguinte esquema: Con(p) ⊃ Poss(p), no qual “p” está no lugar de uma proposição particular.8 Por exemplo, se é concebível que a lua é de queijo, então a lua é de queijo, ganha a seguinte esquematização: Con(a lua é de queijo) ⊃ Poss(a lua é de queijo). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA A mesma esquematização vale para os outros tipos de argumentos de conceptividade, com as respectivas adaptações. Estas esquematizações, não obstante simples, nos permitem-nos ver a unidade temática de nossas discussões através de um universo muito variado de exemplos e visões que serão discutidos ao longo de toda a tese. 1.3 Argumentos de Conceptividade: Observações Históricas No período moderno, a noção de conceptividade desempenhou um papel central para provavelmente todos os filósofos de importância, como critério de possibilidade9 e, nesta condição, como instrumento filosófico posto a vários usos em epistemologia e em ontologia. O exame de alguns destes argumentos nos trará mais perspectiva e clareza acerca do uso de argumentos de conceptividade, em geral. Deve ficar claro, desde já, que não estamos afirmando que os argumentos que estamos em vias de examinar atingem seus objetivos; não nos furtamos a dizer, no entanto, que estes são argumentos de enorme valor, do ponto de vista epistemológico. 8 Eventualmente, “p” funcionará como variável para proposições, o que nos permitirá quantificar sobre proposições. Por exemplo, ∃p (Con(p) ∧ Imp(p)). 9 Quando falamos na noção de conceptividade como critério para possibilidade, estamos nos referindo a CON≡POSS. 32 Hume é um caso exemplar. Já expusemos sua famosa máxima segundo a qual “o que quer que a mente conceba claramente inclui a idéia de existência possível, ou, em outras palavras, que nada que imaginamos é absolutamente impossível” (CON⊃POSS). Esta máxima, que muitos chamam de máxima de Hume, é uma espécie de axioma para muitos filósofos da modernidade, independentemente de sua tendência racionalista ou empirista. O próprio Hume faz desta máxima a base principal para seu argumento cético contra a existência de conexão causal necessária entre eventos (Hume 1739, p. 172): Se definirmos uma causa como sendo um objeto precedente e contíguo a outro, e na qual todos os objetos semelhantes ao primeiro são colocados em igual relação de prioridade e contigüidade a estes objetos que são semelhantes ao último; podemos facilmente conceber que não há qualquer necessidade, absoluta ou metafísica, que todo o começo de existência deva ser acompanhado por tal tipo de objeto. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Ou seja, se somos capazes de conceber um evento A sem o evento B que em geral lhe antecede (sua causa), então é possível a existência de A desacompanhado de B: são possíveis eventos não-causados. Temos, portanto, uma aplicação do princípio CON⊃POSS: Con(a existência de um evento sem uma causa) ⊃Poss(a existência de um evento sem uma causa). Em Hume (1777, p. 29-30), encontramos o famoso experimento de pensamento das bolas de bilhar, com o qual ele ilustra a contingência do que se consideravam, anteriormente, leis causais necessárias: Quando vejo, por exemplo, uma bola de bilhar movendo-se em linha reta em direção a outra; suponha até mesmo que me seja sugerido movimento na segunda bola, como resultado de seu contato ou impulso; não posso conceber que uma centena de diferentes eventos possam também seguir-se a esta causa? Não podem ambas as bolas permanecer em absoluto repouso? Não pode a primeira bola retornar em linha reta, ou saltar para longe da segunda, em qualquer linha ou direção? Todas estas suposições são consistentes e concebíveis. Por que, então, deveríamos dar preferência a uma, que não é mais consistente ou concebível que as outras? Todos os nossos raciocínios a priori jamais serão capazes de nos mostrar qualquer fundamento para esta preferência. Assim: 33 Con(a bola move-se em qualquer direção)⊃Poss(a bola move-se em qualquer direção). Nada que Kant tenha colocado sobre a natureza do sintético a priori parece abalar este argumento simples e poderoso. É digno de nota que, para Hume, o conhecimento analítico, definido em termos de conceptividade ou inconceptividade de certos arranjos entre idéias, é o tipo de conhecimento mais nobre que um ser humano pode obter. É por isto que, através do teste de conceptividade, todas as outras formas de conhecimento (a matemática, a física, a moralidade, a estética) são examinadas a partir do padrão da relação entre idéias. Segundo observa Zabeeh (1960, p. 274, nota 2), somente a álgebra e a aritmética passam no teste. Hume, todavia, eventualmente redefine conhecimento (inclusive o conhecimento matemático) em termos de probabilidade PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA e hábito, instaurando uma vez mais a suspeição com relação às ciências formais, o que causa alguma perplexidade entre comentadores.10 Descartes é outro que utiliza-se sistematicamente de argumentos de conceptividade, nos quais nossa capacidade de formar uma idéia clara e distinta é tida como indicador de possibilidade. O exemplo clássico é seu argumento pela separação entre mente e corpo. Mas, a exemplo de Hume, ele se preocupa, em primeiro lugar, em estabelecer como postulado básico sua própria versão do princípio da conceptividade: ... porque sei que todas as coisas que concebo clara e distintamente podem ser produzidas por Deus tais como as concebo, basta que possa conceber clara e distintamente uma coisa sem uma outra para estar certo de que uma é distinta ou diferente de outra, já que podem ser postas separadamente, ao menos pela onipotência de Deus. (1641, Meditação Sexta, § 17) A exemplo de Hume, nos trechos acima, Descartes não abraça CON≡POSS explicitamente, mas apenas uma versão mais restrita do princípio da conceptividade: CON⊃POSS.11 Contudo, há pelo menos duas diferenças entre as versões do princípio da conceptividade de Descartes e Hume: a) para Descartes, 10 Ver o excelente Zabeeh (1960) para um exame e tratamento desta alegada dubiedade de Hume perante o conhecimento. 11 Que o princípio da conceptividade tenha sido apresentado em versão parcial, CON⊃POSS, e não na forma irrestrita CON≡POSS, não quer dizer que Descartes não aceite INC⊃IMP. É provável que ele aceite a equivalência completa. Como vimos, há exemplos, em sua obra, que indicam esta aceitação: Inc(vales sem montanhas) ⊃ Imp(vales sem montanhas). 34 nossa capacidade de conceber é fruto da faculdade mais nobre de intuir, ao passo que Hume, como empirista, atribui a toda ocorrência mental, isto é, a toda concepção mental, traços derivados do sensível; b) Descartes faz da onipotência de Deus uma garantia para a possibilidade de concretização do que quer que concebamos. Com base em CON⊃POSS, Descartes expõe seu clássico argumento dualista: ... já que, de um lado, tenho uma idéia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho uma idéia distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente e verdadeiramente distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele. (Ibid.) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Este argumento pode ser esquematizado da seguinte forma: Con(minha alma é distinta de meu corpo) ⊃ Poss(minha alma é distinta de meu corpo). É interessante notar que Descartes, no trecho acima, chega a enunciar Con(meu corpo é distinto de minha alma), mas não se interessa em inferir que Poss(a existência de corpo sem alma). Esta inferência, na forma do argumento do Zumbi, encontra-se no momento no centro das atenções dentro da filosofa da mente, em decorrência de sua utilização por Chalmers (1996), justamente como uma forma alternativa de defesa do dualismo. O impacto foi grande. Mesmo Leibniz, que “afasta-se do subjetivismo característico do pensamento moderno em suas origens”,12 apresenta indefectíveis argumentos de conceptividade. A Monadologia, que tem uma estrutura sistemática e demonstrativa, parte da definição de mônada como substância simples, para, então, derivar suas outras características. Dada esta estrutura quase axiomática, como, então, enunciar de modo justificado as características fundamentais das mônadas, que se situam na base do sistema? A resposta é óbvia: por meio de argumentos de conceptividade. Segue um exemplo, no qual Leibniz argumenta pela impossibilidade de alteração ou modificação interna de uma mônada, a partir 12 Marcondes (1997, p. 192). 35 da inconceptividade deste fato (outras propriedades são estabelecidas da mesma forma): Não há maneira alguma na qual poderia fazer sentido, para uma mônada, ser alterada ou modificada internamente por qualquer outro ser criado. Pois não há nada para rearranjar-se dentro de uma mônada, e não há qualquer movimento interno concebível dentro dela que poderia ser excitado, dirigido, aumentado ou diminuído, do modo como pode em um compósito, no qual há mudança entre as partes. (1714, §7) Assim, em contraste com os exemplos de Hume e Descartes, que empregam CON⊃POSS, o argumento de Leibniz utiliza-se do princípio POSS⊃CON, em sua versão contrapositiva INC⊃IMP: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Inc(movimento interno numa mônada) ⊃ Imp(movimento interno numa mônada). Também Berkeley empregou INC⊃IMP em pelo menos um argumento de conceptividade. Notoriamente, ele defende a idéia de que não é possível existência não-percebida a partir da inconceptividade deste fato. Afirma ele: Mas, você afirma, não há nada mais fácil que imaginar árvores, por exemplo, num parque ou livros dentro de uma armário, e ninguém para percebê-los. Eu respondo, você pode fazê-lo, não há dificuldade nisto: mas o que é isto, eu insto-o a dizer-me, além que produzir em sua mente certas idéias que você chama de livros e árvores, e ao mesmo tempo omitir a produção da idéia de alguém os percebendo? Mas você não os percebe ou os pensa todo o tempo? Isto, portanto, não quer dizer nada: isto apenas mostra que você tem o poder de imaginar ou formar idéias em sua mente; mas isto não mostra que você pode conceber como possível que os objetos de seu pensamento possam existir sem a mente: para aceitar isto, é necessário que você conceba-os existindo não-concebidos ou não-pensados, o que é uma repugnância manifesta. (The Principles of Human Knowledge, seção 23, apud. Campbell, 2002, p.127) Segundo Berkeley, no próprio ato de imaginarmos um objeto como independente do pensamento, já o tornamos dependente do nosso próprio pensamento, o que torna inconcebíveis (“repugnância manifesta”), e portanto impossíveis, objetos não-pensados. Logo: Inc(objeto independente do pensamento) ⊃ Imp(objeto independente do pensamento) 36 Estes exemplos todos de emprego de argumentos de inconceptividade suscitam alguns comentários. Deve ficar claro, primeiramente, que estamos, a esta altura, oferecendo exemplos de argumentos clássicos que procedem a partir do mesmo recurso fenomenológico, a despeito da explicação teórica ou epistemológica que seus autores ofereçam para este recurso. Podemos adiantar que muitos diriam que nossa afirmação de unidade fenomenológica é falsa, na medida em que, em seus argumentos, Hume e Berkeley estão se referindo a uma faculdade imaginativa, de produção de imagens mentais, enquanto Leibniz e Descartes estão se referindo a uma faculdade do entendimento (aliás, Berkeley é acusado de ter confundido ambas, em sua formulação; ver Campbell 2002 para discussão desta questão). O fato é que, seja lá qual for a epistemologia adotada por estes pensadores, todos eles reportam-se a estados mentais (ou à incapacidade de formá-los) como PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA evidência e justificação para o status modal de proposições. Isto basta para corroborar nossa afirmação de unidade fenomenológica; a explicação teórica que cada um dá para o estado mental é outra questão. De nossa parte, negamos que haja uma separação radical entre estas duas faculdades (imaginação e entendimento), como defendeu Kant, por exemplo; ao invés, defendemos que estas são faculdades contínuas, na melhor tradição aristotélica.13 Assim, um problema que devemos enfrentar diz respeito à formulação de uma epistemologia em que seja efetuada a assimilação entre imaginação (e percepção) e entendimento. Isto é ainda mais urgente em nosso caso, dado o fato de termos em vista a fundamentação de leis lógicas através da noção de conceptividade; para muitos, seria um absurdo que quiséssemos fundar esta ciência na capacidade de produzir imagens mentais. Em seções ulteriores, apresentaremos algumas sugestões sobre como realizar esta assimilação. Os casos históricos de argumentos de conceptividade nos trazem um outro dado importante. Todos os autores que trouxemos como exemplo, sem exceção, tratam os argumentos de conceptividade por eles mesmos apresentados como um tipo de justificação autônoma. Eles não fundamentam suas teses filosóficas a partir de um argumento lógico ou de evidências estritamente perceptuais. Como observamos há pouco, em todos os casos relatados, há uma referência explícita a fatos da consciência, ao que ela aceita (CON⊃POSS) ou repugna (INC⊃IMP), 13 Ver De Anima e Segundos Analíticos II, 19. 37 como forma de fundamentar uma visão metafísica ou epistemológica. Isto aponta para a possibilidade do tratamento dos argumentos de conceptividade como uma espécie autônoma e independente de argumentação, à parte da razão estritamente dedutiva e formal. Qual é o modus operandi comum a argumentos de conceptividade? Chalmers (2002, p. 145) oferece uma boa proposta: Argumentos [de conceptividade] têm tipicamente três passos: primeiro uma asserção (sobre o que pode ser sabido ou concebido), daí para uma asserção modal (do que é possível ou necessário), e daí para uma asserção metafísica (sobre a natureza das coisas no mundo). Esta esquematização talvez seja um pouco artificial, pois se pode muito bem compreender um argumento de conceptividade como trafegando diretamente do epistêmico para o metafísico, ou seja, daquilo que somos capazes de conceber, ou PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA não, para o que é possível ser, ou não. Por outro lado, a estrutura que Chalmers propõe é interessante, pois, ao isolar o elemento modal do metafísico, ela possibilita o exame dos argumentos de conceptividade como um recurso utilizável por qualquer um, independente de posição filosófica. Pode-se ir do epistêmico ao modal, e parar por aí, de modo a permitir que se atribua esta modalidade a diferentes origens, a partir de diferentes doutrinas filosóficas. Assim, a possibilidade de isolar o elemento modal do estritamente metafísico deixa evidente o traço que torna os argumentos de conceptividade utilizáveis por filósofos de qualquer filiação: sua total falta de comprometimento ontológico. Embora nossa própria tendência seja a de associar argumentos de conceptividade a uma metafísica substancial, assumimos ao longo desta tese o não-comprometimento ontológico dos argumentos de conceptividade. 1.4 Conceptividade na Visão Contemporânea Nesta seção apresentamos e comparamos as duas principais análises da noção e do princípio da conceptividade disponíveis contemporaneamente, a saber, aquelas de 38 Chalmers (1996 e 2002) e Yablo (1993).14 Ao longo da exposição destas análises, preocupamo-nos também em apresentar semelhanças e diferenças entre ambas. Estas duas abordagens constituem-se na base de nosso tratamento para a noção de conceptividade. De Chalmers, aproveitamos uma classificação que permite o tratamento instantâneo de um grande conjunto de candidatos a contra-exemplos para o princípio da conceptividade. De Yablo, extraímos importantes substratos fenomenológicos. Nossa idéia, nesta seção 1.4, é a de nos aproximarmos da formulação de um princípio da conceptividade livre de contra-exemplos, e, a partir daí, tratar os contra-exemplos mais complicados separadamente, no próximo capítulo. Um ponto importante a ser observado: Chalmers e Yablo investigam somente o princípio CON⊃POSS, deixando de lado POSS⊃CON (ou INC⊃IMP). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA O modo como POSS⊃CON deve ser aceito ou rejeitado será tratado por nós posteriormente, no capítulo de objeções e respostas. Até lá, assumiremos a correção de POSS⊃CON e, portanto, sustentaremos a correção da tese POSS≡CON por inteiro. 1.4.1 Conceptividade segundo Chalmers Chalmers (2002) vê com clareza que existem algumas versões diferentes para a noção de conceptividade, podendo acarretar diferentes tipos de possibilidade. A fim de livrá-la de ambigüidades e obscuridades, ele isola três aspectos desta noção, havendo para cada um deles uma classificação dicotômica: conceptividade prima facie vs. conceptividade ideal, conceptividade primária vs. conceptividade secundária, conceptividade positiva vs. conceptividade negativa. 14 Tidman (1994) também é uma referência importante, mas por ser inteiramente crítica à noção de conceptividade, tratamos dela no capítulo de objeções e respostas. 39 Combinando as opções oferecidas por estas dicotomias, podemos obter várias espécies de conceptividade, com comportamentos bem diferentes. Por exemplo, podemos, por um lado, ter uma noção de conceptividade prima facie primária positiva e, por outro, a noção de conceptividade ideal secundária negativa, as quais terão comportamentos diferentes como aferidoras de possibilidade; e assim por diante, num total de 8 combinações possíveis entre os pares dicotômicos. Nos parágrafos A e B que se seguem, examinaremos somente as duas primeiras classificações dicotômicas acima listadas; deixaremos de lado a distinção entre conceptividade positiva e negativa por sua importância reduzida para nossos objetivos e por ela basear-se na análise de Yablo, que estaremos examinando em breve. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA A) Conceptividade Prima Facie vs. Conceptividade Ideal Chalmers (2002, p. 147) define conceptividade prima facie da seguinte maneira: Uma proposição p é prima facie concebível quando ela é concebível à primeira vista. Assim, se uma proposição é concebível após alguma consideração, mas sem muita reflexão, então ela é prima facie concebível. Em contraste, a conceptividade ideal é definida do modo a seguir: Uma proposição p é idealmente concebível quando ela é concebível em condições ideais de reflexão racional. (ibid.) Ou seja, se uma proposição p é concebível por uma mente ideal, e.g. a mente de um Deus leibniziano, então ela é idealmente concebível. A discussão de alguns casos deixará claro como o comportamento destes dois tipos de conceptividade difere. Considere uma conjectura matemática. É comum que uma conjectura possa se mostrar prima facie concebível, mas, após alguma reflexão posterior, da qual obtém-se sua refutação, mostrar-se (idealmente) inconcebível. Assim, tipicamente, conjecturas são proposições prima facie concebíveis, mas que podem revelar-se 40 falsas (o que mostraria que são idealmente inconcebíveis) ou verdadeiras (o que confirmaria sua conceptividade ideal). Isto pode ser ilustrado por meio de exemplos históricos. Até ter sido provado, o último teorema de Fermat era prima facie concebivelmente verdadeiro (assim como prima facie concebivelmente falso). Uma vez provado, o último teorema de Fermat ganhou o status de idealmente concebível, e sua negação passou a ser idealmente inconcebível (assumindo-se que a prova seja absolutamente correta). Observe-se que, com relação a conjecturas que ulteriormente revelam-se falsas, não podemos dizer simplesmente que antes da refutação de uma conjectura, ela era concebível e que, após sua refutação, ela deixou de ser concebível. Isto seria uma flagrante falácia de equívoco. Devemos dizer que, antes da refutação, a conjectura era prima facie concebível, e que, após a refutação, revelou-se seu PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA status de idealmente inconcebível (ou que sua negação é idealmente concebível). Aqui, um exemplo clássico é a tese do logicismo de Frege, conforme formulada no Grundgesetze. Esta tese pareceu a Frege, não meramente prima facie concebível, e sim secunda ou tertia facie concebível; no entanto, a partir da conceptividade russelliana, ela mostrou-se idealmente inconcebível.15 A partir destes casos, fica claro que uma proposição pode ser prima facie concebível, e ainda assim ser idealmente inconcebível, bem como que a falsidade de uma proposição pode ser prima facie concebível, e sua verdade revelar-se idealmente concebível. Não há conflito em nenhum destes casos. Esta classificação de Chalmers tem amplo respaldo na matemática. Vejamos alguns casos. A palavra “concebível” é comumente utilizada no sentido prima facie, por matemáticos. Como exemplo disto, temos a afirmação de Fraenkel et al. (1973, p. 316), discutindo o método de decisão de Tarski para a álgebra e a geometria elementares: E apesar deste método ainda não ser prático o suficiente mesmo para os computadores mais rápidos existentes, não é inconcebível [i.e., é concebível prima facie] que através dos simultâneos melhoramentos do método e dos computadores, cheguemos eventualmente a atingir um estágio em que problemas em aberto neste e em outros campos serão tratados e resolvidos por estas máquinas. 15 O exemplo de Frege é dado por Chalmers (2002). 41 Os melhoramentos citados são prima facie concebíveis, mas isto não obsta a que, no fim das contas, sejam absolutamente (idealmente) inconcebíveis tais melhoramentos e, portanto, impossíveis. Este é o significado mais comum para o termo “concebível”, dentro da matemática, embora ele também possa ser utilizado em sua acepção ideal. Se tenho que refutar, por exemplo, que ∀y∃xRxy╞ ∃x∀yRxy, posso fazê-lo dizendo que é (idealmente) concebível que a premissa seja verdadeira e a conclusão falsa e mostrando um modelo para atestar isso (e.g. um modelo para a aritmética no qual para qualquer número y exista um número x maior que y, mas no qual não exista um número x tal que x seja maior que todos os números y). Neste caso, a conceptividade do modelo tem a pretensão de ser ideal: chega-se a ela através de um exercício de conceptividade efetivo e assume-se que uma mente ideal chegaria ao mesmo resultado (o que não é assumido no trecho de Fraenkel et alia, que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA permanece uma conjectura que se pode revelar falsa). Vê-se que a dualidade prima facie/ideal não é ad hoc ou artificial. Os casos acima evidenciam que podemos facilmente encontrar esta dualidade dentro de contextos estritamente lógicos. Ao dizermos isto, não queremos afirmar que lógicos são psicologistas, ou coisa que o valha; é claro que, nos contextos acima, “concebível” está sendo usado como sinônimo de “possível”, ou melhor, de “prima facie possível” e de “idealmente possível”, respectivamente; cabe a nós mostrar que a noção de possibilidade é redutível à noção de conceptividade. O que queremos indicar com os exemplos acima é que podemos definir e tirar a ambigüidade da noção de conceptividade de modo completamente compatível com sua ocorrência na lógica, i.e., compatível com os usos que estes termos ganham neste contexto (a despeito da epistemologia modal que os lógicos e matemáticos aceitam). Isto, por si só, já é um bom indício para a correção da classificação de Chalmers. A conceptividade ideal tem um lugar especial dentro da matemática? Os diversos infinitos, números transfinitos etc. são concebíveis? Teorias matemáticas que contêm paradoxos escondidos são concebíveis? Estes casos são resolvidos com o apelo à noção de conceptividade ideal. Embora nós, seres humanos, não tenhamos capacidade cognitiva para resolver todos os possíveis teoremas da matemática ou entrever todas as possíveis conseqüências de nossos formalismos ou inspecionar um conjunto infinito por inteiro, assumimos que nossas 42 capacidades cognitivas mais básicas, potencializadas ao máximo, podem.16 Esta assunção, explicitamente aceita ou não, é parte constitutiva da matemática, em procedimentos simples como uma indução. Este é o lugar da conceptividade ideal nas ciências formais. Para os que ainda acreditam que a noção de conceptividade ideal é artificial, devemos lembrar que, como aponta Chalmers (2002, p. 148-149), a mesma assunção de idealidade também está implícita no conceito de a priori. Para os que aceitam a noção de conhecimento a priori, ~(p ∧ ~p) é verdadeiro a priori, na medida em que não precisamos apelar a dados empíricos (dados sensoriais, fatos mentais etc.) para reconhecer esta proposição como verdadeira. É natural, por conseguinte, que eles também aceitem que um enunciado composto de 100000¹ººººººººº símbolos seja também considerado uma verdade a priori, se este enunciado se revelar verdadeiro para uma mente capaz de calculá-lo, sem apelo a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA dados empíricos. Ou seja, idealidade não é exclusividade da noção de conceptividade, estando também presente em um conceito tão importante para a filosofia quanto a noção de conhecimento a priori. Ademais, sem que se assuma algum tipo de idealização, teses epistemológicas genéricas, como “a aritmética é a priori” ou “a aritmética não é a priori”, não teriam qualquer sentido, e só poderiam ser proferidas após a prova estrita de todos os teoremas desta ciência. Ainda, a se negar o caráter ideal do conhecimento, teria que haver um limite maximal para as capacidades humanas a priori, além do qual todo o conhecimento obtido seria considerado a posteriori (conhecido com o auxílio de instrumentos de escrita ou computadores, como Kripke coloca de modo confuso em Naming and Necessity). Qual seria este limite, a mente de Aristóteles? Um ponto merece atenção antes de finalizarmos o parágrafo A. É fácil notar que temos trafegado muito rapidamente da conceptividade ideal como indicador de possibilidade para a conceptividade ideal como indicador para a validade lógica de argumentos (ou proposições). Já deve ter ficado claro, a partir dos exemplos de conjecturas matemáticas, que as duas coisas são equivalentes dentro do universo da lógica e da matemática. Para uma proposição p ser idealmente concebível, devemos fazer o exercício de conceptividade de modo que sejamos capazes de imaginar em condições ideais uma situação que verifica p (imaginar 16 Isto é verdadeiro ao menos no caso da lógica clássica. 43 verazmente p). Ora, no caso de enunciados matemáticos e lógicos, isto só pode significar efetuar a prova. Algo mais fraco que isto recairia na noção de conceptividade prima facie (ou secunda, ...). Esta é uma explicação natural para o teorema do sistema S5 de lógica modal segundo o qual ◊ P⊃ P. Ou seja, se é idealmente concebível que uma proposição é um teorema, então ela é um teorema. As evidências apontam para S5 como o sistema adequado para modelar conceptividade (e possibilidade) ideal. A conclusão que extraímos a partir da discussão feita neste parágrafo é que: CONprima facie≡POSSprima facie; CONsecunda facie≡POSSsecunda facie; PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA CONideal≡POSSideal. Defendemos que não há exceção para estas versões qualificadas do princípio da conceptividade (CON≡POSS). B) Conceptividade Primária vs. Conceptividade Secundária Alguns autores assumem que Kripke (1980) enterrou de uma vez por todas as chances de análise das noções modais a partir da noção de conceptividade. Putnam (1975, p. 590), em especial, é particularmente enfático acerca disso: Podemos imaginar perfeitamente bem ter experiências que nos convenceriam de que água não é H2O. Neste sentido, é concebível que água não seja H2O. É concebível, mas não é logicamente possível! Conceptividade não é prova de possibilidade lógica. Daí o bordão externalista, típico de Putnam: “Cut the pie any way you like, “Meanings” just ain’t in the head!”.17 17 Putnam (1975, p. 587). Com relação ao termo “externalista”, o entendemos conforme Routledge Encyclo-pedia of Philosophy (p. 399): “A distinção internalismo-externalismo é normalmente aplicada à justificação epistêmica de crenças. A forma mais comum de internalismo (internalismo de acessibilidade) afirma que somente o que o sujeito facilmente pode tornar-se consciente (por reflexão, por exemplo) pode ter conseqüência na justificação. Podemos pensar no externalismo simplesmente como a negação desta limitação”. Ver também Wedgwood (2001), principalmente para uma análise do internalismo. 44 Como esta alegação de Putnam choca-se contra nosso princípio central? Pelo princípio da conceptividade (CON⊃POSS), temos que: Con(água ≠ H2O) ⊃ Poss(água ≠ H2O). Mas Kripke (1980) teria mostrado que, embora seja verdadeiro que Con(água≠H2O), é falso que Poss(água≠H2O). Ou seja, por um lado, posso muito bem imaginar uma substância com todas as propriedades fenomênicas da água (transparente, inodora, insípida, ferve a 100 C° etc.), também chamada de “água”, mas com a estrutura atômica XYZ, em vez de H2O. Por outro lado, é impossível PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA que água seja diferente de H2O, como coloca Kripke (1980, p. 128): Se houvesse uma substância, mesmo que no mundo atual, que tivesse uma estrutura atômica completamente diferente da estrutura atômica da água, mas que se assemelhasse à água nestes respeitos [toque, aparência e gosto], diríamos que alguma água não é água? Penso que não. Temos então que: Con(água ≠ H2O) ∧ Imp(água ≠ H2O) O mesmo ocorre com várias identidades entre designadores rígidos. Por exemplo: Con(Hesperus ≠ Phosphorus) ∧ Imp(Hesperus ≠ Phosphorus), Con(Pelé ≠ Edson Arantes do Nascimento) ∧ Imp(Pelé ≠ Edson Arantes do Nascimento). Kripke (1980) é particularmente rico em exemplos deste tipo de falha (aparente) do princípio da conceptividade. Há o caso da mesa de madeira/gelo, dos gatos/demônios, e daí afora. A distinção entre conceptividade primária e conceptividade secundária, estabelecida por Chalmers, visa justamente a esclarecer e resolver esta alegada inadequação da noção de conceptividade como indicador de possibilidade. Seu sucesso é notável. Os dois tipos de conceptividade são definidos da seguinte maneira (Chalmers 2002, p. 157): 45 Uma proposição p é primariamente concebível (ou epistemicamente concebível) quando é concebível que p é de fato o caso. Uma proposição p é secundariamente concebível (ou subjuntivamente concebível) quando p concebivelmente poderia [might]18 ter sido o caso. Vejamos mais de perto em que consiste cada uma destas variedades de conceptividade, de modo a esclarecer estas definições (voltaremos a discuti-las em mais detalhes na seção sobre o bidimensionalismo). A conceptividade primária consiste na aferição da conceptividade de uma proposição tomando por base o que sabemos a priori, i.e., a partir somente dos dados epistêmicos (fenomenológicos) associados aos termos que formam a proposição. Assim, pelo que sabemos a priori, é primariamente concebível uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA situação na qual o termo “água” seja usado para denotar um líquido com composição química diferente de H2O, mas com o mesmo aspecto sensível, com as mesmas funções e com o mesmo nome. Neste sentido, é plenamente concebível que água ≠ H2O, na medida em que somos capazes de imaginar epistemicamente este fato. Esta conceptividade ou imaginabilidade fenomenológica dá vazão à possibilidade legítima de que podemos descobrir amanhã que a substância que sempre chamamos de “água” não tem a composição química H2O, e sim XYZ. Como coloca Chalmers, It could have turned out that water ≠ H2O. Igualmente, poderíamos descobrir que a estrela mais brilhante da manhã, chamada de “Phosphorus”, é diferente da estrela mais brilhante da tarde, chamada de “Hesperus”, ao contrário do que sempre pensamos; ou seja, é primariamente concebível que Hesperus ≠ Phosphorus. A possibilidade legítima de que isto possa 18 A utilização do verbo modal “might”, por Chalmers, pode gerar a alegação de que sua definição de conceptividade é circular e, portanto, inútil como guia para possibilidade, por já incluir em si certo tipo de modalidade. Mas esta definição de Chalmers tem a intenção de ser também uma apresentação heurística. Não é difícil excluir esta circularidade, oferecendo uma definição em termos de situação concebível, o primo epistêmico do mundo possível: p é secundariamente concebível quando somos capazes de conceber uma situação contrafactual na qual p é o caso. Se esta definição ainda não diz muito, é porque não entramos ainda na semântica bidimensional de Chalmers. No momento, o que podemos dizer é que a impressão de circularidade é rapidamente desfeita quando se percebe que este “might” encapsula uma análise semântica em termos de situações concebíveis (ou mundos possíveis). Ver mais abaixo, e seção sobre o bidimensionalismo, para uma explicação detalhada de como isto é feito. 46 ocorrer nos é disponibilizada pela conceptividade primária (ou epistêmica) de caráter estritamente fenomenológico. É pensando neste tipo de caso que Chalmers define a conceptividade de p com a conceptividade de que “p é de fato o caso”. Este “ser de fato o caso” tem em vista que, dada nossa fenomenologia, é concebível que o mundo atual revele-se como sendo de maneira diferente do que cremos que ele seja: água pode de fato ser XYZ, Hesperus pode ser de fato diferente de Phosphorus etc., a despeito do que hoje cremos. Assim sendo, nesse tipo de conceptividade, o modo como o mundo atual realmente é, é irrelevante para o teste de conceptividade, na medida em que o mundo atual não está sendo usado para fixar a referência dos designadores rígidos (típicos). O teste de conceptividade se resume, então, a nos perguntamos se somos capazes de conceber uma situação epistêmica (ou fenomênica) que verifica a proposição. Se a resposta for positiva, a proposição é primariamente concebível. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA É precisamente neste sentido que Putnam afirma que é concebível que água ≠ H2O, o que está correto. Mas, ao contrário do que ele diz, é plenamente possível que água ≠ H2O, isto é, é possível epistemicamente que água ≠ H2O – podemos muito bem descobrir que os químicos estavam errados em estipular que a estrutura atômica da água é H2O. Portanto, o princípio CON⊃POSS está salvo, com a seguinte qualificação: CONprimária⊃POSSprimária. Já a conceptividade secundária consiste na aferição da conceptividade de uma proposição, tomando por base como o mundo atual é, i.e., sendo fixadas no mundo atual as referências de todos os termos que compõem a proposição. Assim sendo, dado que “água” denota H2O no mundo atual (e pela rigidez de “água”, que denota H2O em todos os mundos possíveis), é-nos secundariamente inconcebível que água ≠ H2O – ou seja, um mundo possível no qual a substância que compõe os mares e rios, que as pessoas bebem e com a qual se banham, é XYZ, não é um mundo possível no qual água ≠ H2O. Neste sentido, é impossível que água ≠ H2O, na medida em que não sou capaz de imaginar esta situação. Usando as noções da semântica de mundos possíveis, podemos explicar isto nos seguintes termos: assume-se que o mundo atual fixa a referência dos termos água e H2O, e, a partir disto, tenta-se conceber um mundo possível no qual não há tal 47 identidade; tal mundo nos é inconcebível, do que concluímos ser impossível. Esta é basicamente a visão kripkiana do significado dos termos designadores rígidos. Deve ficar claro, então, que não cabe adotar a conceptividade primária como um indicador de possibilidade secundária ou adotar a conceptividade secundária como indicador de possibilidade primária. Este foi o erro de Putnam. Ele tomou ~(CONprimária ⊃ POSSsecundária), que é correto, como uma evidência geral de que ~(CON⊃POSS), que é falso. O problema é facilmente resolvido quando aprendemos a lição: CONprimária ⊃ POSSprimária; PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA CONsecundária ⊃ POSSsecundária. Sem estas qualificações, estaríamos sujeitos a contra-exemplos de proposições primariamente concebíveis, porém secundariamente impossíveis (CONprimária ∧ IMPsecundária) , como é o caso mesmo do exemplo de praxe, água ≠ H2O. A mesma qualificação deve ser adotada com relação a POSS⊃CON: POSSprimária ⊃ CONprimária; POSSsecundária ⊃ CONsecundária. Desta maneira, temos o princípio da conceptividade qualificado resultante: CONprimária≡POSSprimária; CONsecundária≡POSSsecundária. Uma outra conquista de Chalmers, a partir de sua distinção entre conceptividade primária e secundária, foi realinhar a noção de verdade necessária com a noção de verdade a priori, realinhamento que muitos pensam ter sido refutado por Kripke. 48 É possível que alguns elementos do tratamento das conceptividades primária e secundária proposto por Chalmers ainda não estejam claros ao leitor. Se este for o caso, pedimos que aguardem até a seção 1.5, na qual as raízes semânticas desta abordagem serão vistas em mais detalhes. 1.4.2 Conceptividade segundo Yablo Outra importante análise contemporânea da noção de conceptividade é aquela fornecida por Yablo (1993). De fato, este artigo é um dos desencadeadores do revival desta noção no âmbito da filosofia analítica. Para nosso projeto, a importância deste trabalho de Yablo reside no fato de ele trazer substratos fenomenológicos importantes para a compreensão da noção de conceptividade. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Estes fatores serão examinados no parágrafo A. Em B, comparamos as visões de Yablo e Chalmers, mostrando no que elas são compatíveis e no que não são. A) Aspectos Importantes da Fenomenologia da Conceptividade de Yablo Segundo Yablo (1993, p. 29): p é concebível para mim se eu posso imaginar um mundo que tomo como verificando p.19 Esta é a definição do princípio da conceptividade que adotamos em nossa tese (ver seção 1.2). Convém, então, vermos mais de perto o que se quer dizer com “imaginar ou conceber uma situação”, para que a definição do princípio da conceptividade que adotamos não fique num vácuo fenomenológico. Comecemos pela análise fenomenológica de “situação”, empreendida por Yablo. Para Yablo, há dois tipos de imaginação: a imaginação proposicional e a imaginação objectual. Assim, para ele, eu sou capaz de imaginar que há um tigre atrás da cortina (imaginação proposicional) ou imaginar o próprio tigre (imaginação objectual). 19 Como o nome evidencia, somente a imaginação Chalmers adota definição análoga, extraída diretamente de Yablo, que chama de conceptividade positiva. Chalmers (2002 p. 149) define conceptividade positiva da seguinte maneira: “Uma proposição é positivamente concebível se se pode imaginar uma situação que verifica p”. 49 proposicional tem conteúdo alético e, portanto, é a espécie de imaginação mais relevante para a noção de conceptividade. Não obstante à distinção feita, Yablo nota que: (i) a imaginação objectual pode vir acompanhada de conteúdo proposicional e (ii) a imaginação proposicional pode vir acompanhada de conteúdo objectual. Deste modo, no caso (i), ao imaginar objectualmente um tigre, eu imagino também que ele possui certas propriedades (e.g. que ele está sentado atrás de uma cortina); ou seja, eu o imagino objectualmente acompanhado de um complemento de imaginação proposicional, i.e., não somente o tigre, mas que o tigre está sentado. O caso (ii), todavia, é o que nos interessa. Ao imaginar que há um tigre atrás da cortina, eu imagino um tigre e eu o imagino estando atrás da cortina. Isto indica que a imaginação proposicional é mediada por diversos elementos objectuais, que formam um estado mental qualitativo associado à proposição. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Assim, a imaginação proposicional pode vir acompanhada de um estado mental fenomênico capaz de responder pelas propriedades aléticas da proposição em questão. Estes elementos fenomênicos mediadores presentes na imaginação proposicional formam o que Yablo (e Chalmers) chama de situação. Chalmers (2002, p. 150) corrobora a visão objectual da imaginação proposicional proposta por Yablo, e a generaliza para todos os tipos de concepção (que chama de concepção positiva): Diferentemente de apreender ou supor que p, a fenomenologia de imaginar perceptualmente que p tem um caráter objectual mediato, com uma atitude em direção a um objeto mental intermediário (aqui, uma situação imaginada) desempenhando um papel crucial. Este caráter objectual (notado por Yablo 1993) é distintivo da conceptividade positiva. Aceitamos e generalizamos por completo o caráter objectual que Yablo (e Chalmers) atribui à imaginação proposicional: quando concebemos, o fazemos por meio de estados mentais qualitativos. Contudo, Yablo não para por aí em sua análise da conceptividade. Ele detecta, ao longo de seu artigo, diversas noções que se assemelham, de um modo ou de outro, à noção de conceptividade e que, portanto, podem trazer confusão. Em especial, ele preocupa-se em distinguir uma proposição ser concebível de uma proposição ser crível (“believable”), de modo a desfazer possíveis confusões entre ambos os casos: 50 p é concebível se eu posso imaginar, não uma situação na qual eu creia verazmente que p, mas uma da qual eu creia verazmente que p. (...) Resumindo, [quando concebo,] eu imagino uma situação mais ou menos determinada que assumo ser aquela na qual minha proposição é o caso. (Ibid., p. 26; grifos do autor) A interpretação deste trecho é um pouco dificultosa em virtude das próprias regências dos verbos “believe” e “crer” que, segundo nos parece, normalmente pedem “in” e “em” respectivamente.20 Yablo parece querer dizer que se eu sou capaz de imaginar uma situação na qual eu ou outra pessoa, dentro desta situação, creio que p (e.g., que existem quadrados redondos), isto não quer dizer que p seja concebível; p é, neste caso, somente crível. Para que uma proposição p me seja concebível, é preciso que eu seja capaz de imaginar verazmente uma situação que representa p como verdadeira. Yablo dá o exemplo da conjectura de Goldbach para ilustrar a questão. É concebível que a conjectura de Goldbach seja PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA verdadeira? É crível? Podemos muito bem imaginar um computador gerando uma prova da conjectura de Goldbach, i.e., nós mesmos (ou alguém) olhando para a tela de um computador e afirmando: “eis a prova da conjetura de Goldbach”. Neste caso, é crível que ela seja verdadeira, na medida em que esta seria uma situação dentro da qual cremos que p. Mas isto não é suficiente para que a conjectura seja considerada concebível, pois, para tanto, deveríamos ser capazes de imaginá-la verazmente. Na verdade, isto seria o mesmo que ter provado a conjectura. Agora, no entanto, parece haver uma lacuna no tratamento que Yablo oferece para a conceptividade. Vimos que, para Chalmers, conjecturas matemáticas podem ser adequadamente qualificadas como prima facie concebíveis. Mas não está claro qual seja o status de conceptividade de conjecturas, na visão de Yablo – o fato de conjecturas serem críveis não resolve a questão, pois a noção de credibilidade (qualidade de ser crível) não se confunde com a noção de conceptividade. Yablo ainda deve uma explicação sobre como devemos classificar conjecturas matemáticas em termos de conceptividade. Para entender a visão de Yablo acerca das conjecturas matemáticas em termos de conceptividade, temos que observar que Yablo não leva em conta a idéia de mente ideal ou raciocinador ideal, como faz Chalmers. Yablo não sai do 20 Ofereço o trecho original, para possibilitar a comparação: “p is conceivable if I can imagine, not a situation in which I truly believe that p, but one of which I truly believe that p”. 51 âmbito fenomenológico a fim de definir absolutamente o que é concebível e o que é inconcebível a partir de uma mente maximal; ele define conceptividade somente em termos de quando este exercício é efetuado com sucesso a partir dos conceitos dados. Este é o motivo que leva Yablo a caracterizar a noção de conceptividade como um “success term” (que podemos traduzir como “termo de consecução”).21 Dada a abordagem de Yablo, a opção que lhe resta para o status de conceptividade, e portanto modal, da conjectura é classificá-la como indecidível. Este é o veredicto de Yablo. Assim, se um enunciado encontra-se em estado conjectural, isto quer dizer que, para todos os efeitos, ninguém o concebeu como verdadeiro (ou sua negação como verdadeira). Na visão de Yablo, segundo a qual conceber é um termo de consecução e não se leva em conta uma mente ideal, não há que se falar em conceptividade de um enunciado sem que haja efetivamente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA uma concepção. B) Comparando as Visões de Chalmers e Yablo Podemos agora comparar aspectos das visões de Chalmers e Yablo a partir de um caso já familiar: o logicismo de Frege. Este caso nos permitirá detectar com clareza concordâncias e discordâncias entre as duas visões, nosso objetivo principal neste parágrafo. Já vimos que, segundo a ótica de Chalmers, o logicismo era para Frege secunda facie concebível antes da descoberta do paradoxo de Russell; após sua descoberta, seu status de idealmente inconcebível revelou-se. Como enxergar o caso do logicismo a partir da ótica de Yablo? Dado que Yablo não trabalha com a noção de conceptividade ideal, a conceptividade de uma situação será sempre relativa à bagagem conceitual e cognitiva de alguém, ou seja, sempre relativa ao que se conhece e pressupõe para o exercício de conceptividade – conceptividade é um termo de consecução. É a partir desta bagagem cognitiva que o indivíduo compõe a situação que verificará, ou não, a proposição em questão. Assim sendo, a melhor opção, dentro do esquema de Yablo, consiste em dizer que, naquela 21 Sorensen (2002, p. 364) e (1992, p. 35) também se refere à noção de conceptividade como um success term, explicando que, neste sentido, conceber quer dizer: “a apreensão de um estado de coisas” (1992, p. 35). Isto é, se uma pessoa não apreendeu um certo estado de coisas, ela não o concebeu; e se ela é incapaz de conceber um estado de coisas, este estado de coisas continua sendo-lhe inconcebível, mesmo que Deus possa concebê-lo. 52 altura, antes da descoberta do paradoxo, a tese do logicismo era indecidível para Frege, até porque não existiam meios conhecidos de se provar completude semântica, ou qualquer outro critério mediante o qual alguém pudesse dizer: “quando alcançarmos isto, teremos mostrado que o logicismo é concebível” (o que, como exemplificado pelo caso da conjectura de Goldbach, só poderia ser dito na presença da prova).22 Qual é o melhor tratamento para o caso histórico da conjectura do logicismo (e para conjecturas em geral): o de Chalmers ou o de Yablo? Estas visões são incompatíveis? Devemos notar que, pelos próprios critérios de Frege, sua tese logicista seria qualificada como possível, mas num sentido que abarca a noção de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA indecidibilidade de Yablo: Se uma proposição é apresentada como possível, ou bem o falante está suspendendo seu juízo, ao sugerir que ele não conhece qualquer lei da qual a negação da proposição seguir-se-ia, ou ele afirma que a generalização desta negação é falsa. (Frege 1879, § 4, grifos nossos). Dado que Frege não tinha meios de “afirmar que a generalização da negação” do logicismo é falsa, a opção que lhe restava, antes do paradoxo, era a de que “ele não conhecia qualquer lei da qual a negação [do logicismo] seguir-se-ia”; Russell eventualmente o fez conhecer: a negação do axioma V. A visão de Yablo não apresenta discrepância nem com a visão de Frege nem com o decurso histórico. Por outro lado, todavia, há a favor da visão de Chalmers o fato de que podemos muito bem dizer que Frege tinha boas razões (lógicas, filosóficas) para crer que sua tese era verdadeira, o que sugere o tratamento de Chalmers também como adequado: o logicismo era, para Frege, ao menos secunda facie concebível. Onde a classificação de indecidível proposta por Yablo fica num certo vazio fenomenológico (em parte remediado pela noção de credibilidade – qualidade de ser crível – que sua visão aceita), a noção de conceptividade de Chalmers, ao estipular que a conceptividade pode variar de prima facie a ideal de acordo com a capacidade cognitiva empregada, é capaz de abarcar bem casos como o do logicismo, ou seja, de conjecturas ou teses que não são propostas inadvertidamente, mas sim com bases em evidências epistemológicas substanciais. 22 No mesmo sentido, Goldfarb (2001, p. 8) afirma que “o único sentido que a questão de as leis e regras que Frege apresenta serem completas, ou não, é “experimental” – se elas são suficientes para derivar todos os resultados particulares que alguém se propõe a derivar”. 53 Afinal de contas, seria melhor tratar o logicismo de Frege como indecidível ou secunda facie concebível? O fato é que não há conflito entre os dois tratamentos. Em geral, os casos que são adequadamente tratados como conceptividade prima, secunda, ..., facie na visão de Chalmers, são igualmente bem tratados como indecidíveis (e também como críveis), conforme a visão de Yablo. Não obstante, talvez a idéia de uma escala cognitiva de conceptividade prima, secunda, ... facie até ideal, introduzida por Chalmers, seja mais natural para conjecturas matemáticas, que, no tratamento de Yablo, ficam num certo vazio epistemológico e fenomenológico. Enquanto que na visão de Chalmers se aceita com naturalidade que conjecturas sejam propostas com base em evidências cognitivas prima facie ..., a visão de Yablo recai numa certa rigidez para tratar este fato, qualificando uma conjectura sempre como indecidível a partir da visão da conceptividade como um termo de consecução. A rigor, é correto dizer, como PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA faz Yablo, que uma conjectura é indecidível quanto à sua conceptividade, mas, na medida em que muitas vezes as conjecturas são formadas a partir de um certo conjunto de “evidências” que apontam no sentido da verdade de um enunciado, evidências que vão para além da mera credibilidade, a visão de Chalmers parece ser mais conveniente. Por esta razão, privilegiamos o tratamento de Chalmers ao longo de nossa tese. Não havendo discordância fundamental entre as noções de conceptividade prima, ..., ideal de Chalmers e o tratamento de Yablo, será que podemos dizer o mesmo a respeito das noções de conceptividade primária e secundária de Chalmers? Será que a dicotomia primário/secundário de Chalmers encontra paralelo na visão de Yablo? A resposta é negativa. Yablo não possui nenhum correspondente à noção de conceptividade secundária de Chalmers. De fato, ele se alinha a Putnam em sua crítica à noção de conceptividade, vendo as identidades entre designadores rígidos como contra-exemplos para a tentativa de redução dos conceitos modais a estados mentais.23 Esta é a única grande discrepância entre as abordagens de Chalmers e Yablo. Claro que, neste particular, tomamos as noções de conceptividade primária e secundária, de Chalmers, como uma solução para o problema. 23 Ver Yablo (1993, pp. 21-22) e ainda Yablo (2002), onde a discussão ganha um nível de detalhes que faz com que seja impossível de ser tratada nesta tese, sem desvirtuar de nosso objetivo. 54 1.5 O Bidimensionalismo Semântico de Chalmers A classificação de conceptividade primária e secundária ganha uma ampla sistematização na proposta de Chalmers de uma semântica bidimensional. Para que esta classificação dicotômica fique mais clara, e também para percebermos outras conseqüências filosóficas decorrentes do bidimensionalismo, dedicamos a seção 1.5 a esta abordagem semântica elaborada por Chalmers. No bidimensionalismo semântico, termos em geral possuem duas intensões, uma intensão primária e outra secundária – suas duas dimensões. A intensão primária assemelha-se aos sentidos fregianos enquanto a intensão secundária tem o comportamento semelhante ao dos termos designadores rígidos, na interpretação kripkiana. O arcabouço teórico da semântica bidimensional é a semântica de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA mundos possíveis. Nesta seção, oferecemos uma explicação básica do que consiste o bidimensionalismo de Chalmers. Para tanto, começamos com um exame das principais idéias semânticas daqueles filósofos que estão na origem do bidimensionalismo: Frege e Kripke (seções 1.5.1 e 1.5.2). Em seguida, expomos as próprias idéias de Chalmers, a fim de tornar mais claras as noções de intensão primária e secundária, bem como a conceptividade primária e a secundária (1.5.3). Por fim, em forma de digressão, tratamos da crítica de Chalmers à noção de necessidade a posteriori, que é um dos desdobramentos filosóficos mais importantes da semântica bidimensional (1.5.4). 24 1.5.1 Frege: Sentidos Nesta seção, nosso objetivo está distante de uma análise detalhada da noção de sentido fregiana. Queremos somente destacar algumas características desta noção que são resgatadas pela noção de intensão primária de Chalmers. 24 Para uma boa versão formal do bidimensionalismo, ver Gendler e Hawthorne (2002a). Chalmers (2002c) oferece uma abordagem bastante esclarecedora e discute vários enigmas semânticos famosos (e.g. o enigma de Frege) do ponto de vista da semântica bidimensional. O bidimensionalismo de Chalmers, em particular, tem sido foco de acalorado debate dentro da filosofia da mente e da linguagem, envolvendo filósofos como John Perry, Stephen Yablo, Frank Jackson (ele mesmo um defensor independente do bidimensionalismo, através de sua obra From Metaphysics to Ethics: a Defense of Conceptual Analysis), Thomas Nagel, Robert Stalnaker, Sydney Shoemaker, dentre muitos outros. 55 Em “Sobre o Sentido e a Referência” (Frege 1892a e 1892b), Frege desenvolve sua teoria dos sentidos para termos singulares em geral (nomes próprios, descrições definidas), e depois a estende para sentenças. Ele distingue três elementos semânticos fundamentais: signo, sentido e referência. O signo é um nome, ou combinação de palavras, cuja função é expressar um sentido e denotar uma referência. Paralelamente, uma sentença (assertiva padrão) expressa um pensamento e denota um valor de verdade. Não nos interessa aqui a discussão filosófica acerca dos signos ou das sentenças; voltamo-nos para o sentido e a referência. Tradicionalmente, Frege é visto como quem estabeleceu com clareza a seguinte divisão do trabalho semântico: a referência é o objeto denotado pelo signo, ao passo que sentidos são modos de apresentação do objeto. Estes dois elementos semânticos, por sua vez, contribuem de maneira diferente para a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA formação do que Frege chama de “juízo” – a combinação de pensamento e valor de verdade, na qual o primeiro funciona como o caminho para o segundo.25 A referência de um termo contribui para compor o valor de verdade da sentença na qual ele se encontra, enquanto o sentido do termo contribui para compor o pensamento expressado pela sentença. Sentido e pensamento, por um lado, e referência e valor de verdade, por outro, gozam, portanto, de uma relação de composicionalidade independente dentro do contexto de sentenças assertivas típicas: os sentidos das partes determinam o sentido da sentença (pensamento); as referências das partes determinam a referência da sentença (valor de verdade).26 Na visão de Frege, termos singulares e sentenças podem ter sentido ao mesmo tempo em que não têm referência, como mostra o seguinte exemplo: “Papai Noel é gordo”. Neste caso, nem o termo “Papai Noel” nem a sentença que o contém têm referência, embora tenham sentido. Por outro lado, termos singulares e sentenças não conseguem funcionar regularmente, do ponto de vista semântico, se têm somente referência e não têm sentido. Sentenças com referência, mas sem sentido, teriam o efeito de sentenças proferidas em uma 25 Frege (1892a, p. 78) afirma: “juízo [é] a progressão para o seu valor de verdade”. E, na página 64, ele coloca: “Em todo juízo (nota: um juízo, para mim, não é a mera compreensão de um pensamento, mas a admissão de sua verdade), não importa o quão trivial, o passo a partir do nível dos pensamentos para o nível da referência (o objetivo) já foi efetuado”. 26 Para todos os efeitos, estamos assumindo sentenças assertivas como padrão. Estamos deixando de lado outros contextos sentenciais tratados por Frege (discurso direto, indireto, sentenças subordinadas, contextos emotivos, interrogações diretas, interrogações indiretas etc.). 56 língua estrangeira desconhecida: elas teriam sua função semântica mais básica ceifada, a saber, a capacidade de informar e descrever. O resultado disto é a impossibilidade de formar um juízo, na medida em que o caminho que leva até a referência é interrompido. Chateaubriand (2001, p. 375) observa o silêncio de Frege quanto à natureza entitativa dos sentidos: Frege jamais desenvolveu uma teoria dos sentidos em suas obras publicadas. Em particular, ele não abordou a questão do status dos sentidos enquanto entes. Sentidos são objetos ou conceitos? Não há uma palavra sequer sobre isto em “Sobre o Sentido e a Referência” e em outros artigos relacionados.27 Segundo Chateaubriand, o fato de sentidos desempenharem uma função epistemológica tem sido incorretamente visto como evidência de que sentidos têm uma natureza epistemológica. Contra esta tendência, ele defende sentidos como PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA propriedades abstratas identificadoras. Uma coisa é certa: para Frege, sentidos não são entes mentais. Frege é incansável em repetir que sentidos não devem ser confundidos com qualquer tipo de ocorrência mental. Podemos tomar como evidência disso o fato de que, quando comunicamos um fato a alguém, não transmitimos uma imagem mental a esta pessoa e, a despeito disso, o conteúdo cognitivo é transmitido com sucesso. Independentemente do que sejam sentidos, o que não se nega é seu valor cognitivo. Naturalmente, este valor cognitivo é ilustrado pelo enigma de Frege: se a = b, então isto é tão verdadeiro quanto a = a; mas, como podemos explicar que a verdade de a = a não seja informativa, ou pouco informativa,28 enquanto que a = b pode conter um incremento cognitivo significativo? A resposta de Frege está na diferença de modos de apresentação que pode existir entre a e b, ou seja, nos sentidos associados a “a” e a “b”. Dada esta diferença cognitiva, descobrir que a = b consiste, em muitos casos, em descobrir não somente que um único objeto tem dois nomes, mas também que duas propriedades descritivas diferentes, que não se implicam mutuamente, pertencem a um mesmo objeto. 27 Chateaubriand (2001, p. 375 e nota 2) destaca, no entanto, que há sugestões em seus manuscritos não publicados de que sentidos de objetos são objetos, e que sentidos de funções são funções. 28 Chateaubriand (2001, p. 389), contudo, indica um modo como a verdade de a = a é informativa e a posteriori: indica a existência de a. Isto porque, se a não existe, então a = a não pode ser verdadeiro. Este fato tem sido passado ao largo em todas as discussões acerca de identidade com que tivemos contato. 57 Há vários elementos da visão semântica defendida por Frege que interessam a Chalmers em sua reconstrução da semântica intensional. O mais importante destes elementos é justamente o elemento cognitivo de que acabamos de tratar: Podemos pensar no sentido de uma expressão como refletindo o papel da expressão na razão e na cognição. Quando duas expressões são trivialmente equivalentes,29 elas desempenharão quase o mesmo papel na razão e na cognição, e terão sempre o mesmo sentido. Quando duas expressões não são trivialmente equivalentes, elas desempenharão papéis diferentes na razão e na cognição, e terão sentidos diferentes. Desta maneira, podemos pensar no sentido de uma expressão como capturando sua significância cognitiva, e como representando o “valor cognitivo” ou o “conteúdo cognitivo” de uma expressão. (Chalmers 2002a, p. 4). Além do valor cognitivo, um segundo elemento dos sentidos fregianos também interessa a Chalmers, a saber, que os sentidos devem determinar sua extensão (única). Regularmente, um mesmo sentido não deve denotar mais de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA uma única referência. Coloca Frege (1892a, p. 58): A conexão regular entre o sinal, seu sentido e sua referência é de tal modo que ao sinal corresponde um sentido determinado e ao sentido, por sua vez, corresponde uma referência determinada (...). Assim, o aluno da PUC talvez possa ser considerado um sentido, mas por ser incapaz de determinar uma única referência, mostra-se defeituoso para seu emprego efetivo. Contudo, Chalmers questiona se, para determinar a referência, basta apenas o sentido. Ele estabelece que o mundo é um elemento adicional sem o qual o sentido não consegue exercer sua função: Uma questão é se o sentido determina a extensão por si só, ou se algo mais contribui para determinar a extensão. Se ocorrer a primeira hipótese, então parece que a extensão deve, de algum modo, estar presente ao menos implicitamente dentro do sentido. Mas não é fácil ver como isto funcionaria, ao menos se o sentido é tomado como refletindo a significância cognitiva. Os dois termos “a estrela da manhã” e “a estrela da tarde” têm a mesma extensão, por exemplo, mas não está claro como o fato de ter a mesma extensão está presente dentro do sentido do termo. Similarmente, um enunciado como “há 90 elementos químicos que ocorrem na natureza” pode ser verdadeiro, mas não está claro como a verdade da sentença é determinada pelo sentido, somente. Assim, é natural pensar que algo mais deve contribuir: nomeadamente, o mundo. Intuitivamente, a sentença acima é verdadeira não somente por causa de seu sentido, mas por causa do modo que o mundo é. E um termo como “a estrela da manhã” refere-se ao planeta Vênus não somente por 29 Chalmers (2002a, p. 4) dá como exemplo de termos trivialmente equivalentes “attorney” e “lawyer”, além do caso tradicional de ocorrências distintas de uma mesma expressão “a”. Um possível exemplo, em português, seria “cão” e “cachorro”. Estes são casos de sinonímia estrita. 58 causa de seu sentido, mas por causa do modo como o mundo é. Se isto está certo, a tese da determinação poderia ser posta da seguinte maneira: a extensão de um termo é determinada por seu sentido em conjunção com o mundo. (2002a, p. 5) Com esta observação, Chalmers está apontando para a possibilidade de se construir, a partir da visão de sentidos fregiana, uma teoria dos sentidos como intensões, ou seja, funções de mundos possíveis para extensões. O modo preciso como Chalmers formula sua noção de intensão, e em particular sua noção de intensão primária, ficará mais claro mais tarde. Antes examinemos a fonte da intensão secundária: a semântica dos designadores rígidos, segundo Kripke. 1.5.2 Kripke: a Semântica dos Designadores Rígidos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Dedicamos um espaço razoável nesta seção para descrever as idéias de Kripke, na medida em que elas nos são importantes por dois motivos: para que se entenda adequadamente a semântica bidimensional de Chalmers e para que se compreenda a crítica (acertada) que Chalmers faz à noção de necessidade a posteriori kripkiana, a ser examinada na seção 1.5.4. Kripke (1980, p. 4) expressa da seguinte maneira as três principais teses com as quais se ocupa seu livro: Devemos distinguir três teses distintas: (i) que objetos idênticos são necessariamente idênticos; (ii) que enunciados verdadeiros de identidade entre designadores rígidos são necessários; (iii) que enunciados de identidade entre o que chamamos de ‘nomes’ na linguagem natural são necessários. (i) e (ii) são teses (auto-evidentes) da lógica filosófica, independentes da linguagem natural. Elas estão relacionadas uma com a outra, embora (i) seja a respeito de objetos e (ii) seja metalingüística. Assim, temos em (i) uma tese metafísica sobre a natureza essencial dos objetos, em (ii) uma tese sobre a natureza dos designadores rígidos em geral, e em (iii) a mesma tese que em (ii), mas agora ampliada para nomes próprios e termos com semelhante funcionamento da linguagem natural. Podemos tomar estas teses, que se relacionam intimamente, como fio condutor para uma discussão das principais idéias desenvolvidas por Kripke: identidade, essência, designador rígido e a teoria da cadeia histórica de transmissão do nome e da referência. A) Identidade e Essência 59 O que (i) nos diz? Suponha um determinado objeto particular (e.g. uma pessoa ou uma mesa) em nosso mundo atual. Dadas as características essenciais deste objeto, será que somos capazes de conceber um mundo possível no qual este mesmo objeto esteja presente, mas sem tais características? A resposta de Kripke é não. A identidade entre objetos se dá a partir de suas características essenciais (em detrimento de seu aspecto epistêmico), o que quer dizer que dois objetos não podem ser contingentemente idênticos: objetos idênticos são necessariamente idênticos. Para além deste fato, Kripke estabelece como essência dos referentes de uma ampla gama de termos designadores rígidos30 sua matéria (no caso de seres vivos, sua estrutura biológica).31 Podemos usar um exemplo tradicional de Kripke como ilustração da necessidade de identidades entre objetos, a partir de suas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA propriedades essenciais. Suponha uma determinada mesa feita inteiramente de madeira. Kripke (1980, pp. 113-115) se pergunta: Agora, poderia esta mesa ter sido feita de um bloco de madeira completamente diferente, ou mesmo d’água, astutamente endurecida em forma de gelo—água tirada do rio Tâmisa? (...) Embora possamos imaginar-nos fazendo uma mesa a partir de outro bloco de madeira ou mesmo de gelo, idêntica em aparência a esta aqui, e embora possamos tê-la posto nesta mesma posição dentro da sala, pareceme que isto não é imaginar esta mesa como feita de madeira ou de gelo, mas sim imaginar outra mesa, parecendo-se com esta em todos os detalhes externos, feita de outro pedaço de madeira, ou mesmo de gelo. Estes são apenas alguns exemplos de propriedades essenciais. (grifos do autor) Não somos capazes de imaginar esta determinada mesa, porém feita de um material diferente; isto seria simplesmente imaginar outra mesa. A matéria da qual uma mesa é feita lhe é essencial. Outro exemplo, na mesma linha, concerne a substâncias de massa como água ou ouro. Durante milênios, estas substâncias foram identificadas somente com base em sua aparência física e em seu comportamento, mas hoje são 30 São considerados designadores rígidos termos como: nomes próprios (“Palocci”, “Marte”), tipos naturais (“ser humano”, “água”) termos de massa (“ouro”, “água”), pronomes indexicais (“isto”), pessoais (“você”), dentre outros tipos de pronomes. A razão desta grande variedade de termos estar subsumida à categoria de designador rígido é um funcionamento semântico específico que estamos em vias de analisar em B. 31 Inúmeros autores têm-se livrado do comprometimento explícito com a noção de essência através de soluções lingüísticas. “Deep explanatory features” é a mais comum delas. Dado que estes recursos são inteiramente inócuos, mantemo-nos fiéis ao kripkianismo. 60 identificadas rigorosamente através de sua composição física. Estes são os casos de identidade teorética. Dizemos, então, que água = H2O e ouro = elemento químico número 79. Segundo Kripke (1980, p. 128), tais composições químicas são essenciais ao que chamamos de água e ouro.32 Apesar de, como o próprio Kripke admite, a postulação das características materiais como essenciais a objetos e tipos naturais trazer vários problemas (ver Kripke 1980, pp. 114 –116, notas 56 e 57, e ainda p. 1), boa parte de sua teoria da necessidade metafísica e de sua semântica para os designadores rígidos depende desta postulação. B) Designadores rígidos A tese (ii) de Kripke (e sua extensão na linguagem natural, iii) afirma que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA identidades verdadeiras entre designadores rígidos são necessárias. Este comportamento modal particular das identidades verdadeiras entre designadores rígidos baseia-se fundamentalmente no funcionamento destes termos. Examinemos, então, o funcionamento dos termos designadores rígidos. Kripke (1980, p. 6) resume sua visão acerca do funcionamento semântico dos designadores rígidos da seguinte maneira: Considere: (I) Aristóteles gostava de cães. Um entendimento apropriado deste enunciado envolve um entendimento ambos das condições (extensionalmente corretas) sob as quais este enunciado é factualmente verdadeiro, e das condições sob as quais um curso contrafactual da história, semelhante ao curso atual em alguns aspectos, mas não em outros, seria corretamente descrito (parcialmente) por (I). Presumivelmente qualquer um concorda que há um certo homem, o filósofo que chamamos de ‘Aristóteles’, tal que, de fato, (I) é verdadeiro se e somente se ele gostava de cães. A tese da designação rígida é simplesmente que o mesmo paradigma aplica-se às condições de verdade de (I) na medida em que ele descreve situações contrafactuais. Isto é, (I) descreve verazmente uma situação contrafactual se e somente se o mesmo homem mencionado anteriormente tivesse gostado de cães, caso a situação tivesse corrido. Kripke quer dizer que é parte do significado de designadores rígidos e condição indissociável da compreensão dos enunciados que os contêm a avaliação das condições de denotação do designador rígido e das condições de verdade da 32 Ver citação em 1.4.1, parágrafo B. 61 proposição que o contém, tanto no mundo atual quanto em todos os mundos possíveis. Neale (1990, p. 20) sintetiza tais elementos da seguinte maneira: (R3) Se ‘b’ é uma expressão referencial genuína que se refere ao objeto x, então ‘b’ é um designador rígido; i.e., x entra na especificação das condições de verdade da proposição expressa por um proferimento u de ‘b é G’ com respeito a situações atuais e contrafactuais. Um designador rígido autêntico denota o mesmo objeto (identificado como tal a partir de suas propriedades essenciais) no mundo atual e em todos os mundos possíveis; e para compreendermos um enunciado que inclui um designador rígido, assumimos implicitamente não somente suas (do enunciado) condições de verdade no mundo atual, mas também em todos os mundos contrafactuais.33 Era possível crer, antes da obra de Kripke, que a linguagem natural funcionava em dois planos diferentes (ao menos) que não se misturavam: o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA indicativo e o subjuntivo, i.e., o atual e o contrafactual. Kripke mostrou que estes dois planos estão fortemente associados no funcionamento dos termos designadores rígidos, seja em sua utilização em enunciados no modo indicativo, seja no modo subjuntivo. Quando dizemos: (1) Palocci é poderoso, a compreensão deste enunciado está subordinada à assunção de que “Palocci” denota neste mundo e em todos os outros mundos possíveis, o mesmo indivíduo, com as mesmas características essenciais que Palocci tem no mundo atual. É este indivíduo que dizemos ser poderoso. E quando dizemos: (2) se Palocci fosse economista, ele seria um ministro incompetente, a compreensão deste enunciado está subordinada à compreensão de que o objeto denotado por “Palocci” dentro da hipótese contrafactual afirmada pelo enunciado 33 Fica mais clara a importância das teses essencialistas de Kripke para sua tese semântica (ii). As condições de determinação do referente são dadas por suas características essenciais, uma vez que é através destas características que podemos dizer que o mesmo objeto ou substância foi denotado em qualquer mundo possível, e tal identificação é condição necessária para o funcionamento de termos referenciais. Somente a essência das coisas nos permite estipular que duas ocorrências são do mesmo objeto. É por isto que não há como escapar do essencialismo kripkiano, se se aceita sua visão semântica dos designadores rígidos. 62 é o mesmo denotado por este termo em nosso mundo atual (i.e., tem as mesmas características essenciais). A obra de Kripke deixou claro que designadores rígidos não denotam um objeto por meio de propriedades descritivas associadas ao termo, mesmo que estas propriedades apontem para somente um objeto. Assim, “Palocci” não denota seu referente por meio de uma ou mais propriedades, como, por exemplo, a propriedade de ter sido o ministro da economia em 2004, pois desejamos ser capazes de falar de Palocci em situações contrafactuais nas quais ele não tenha sido o ministro da economia em 2004; e isto está implícito na utilização de “Palocci” mesmo dentro de contextos do mundo atual. Compreendendo-se o funcionamento dos designadores rígidos, fica mais fácil entender o caráter necessário de identidades verdadeiras entre dois termos designadores rígidos, a tese (ii) de Kripke. Dada sua verdade, Lula = Luís Inácio PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA da Silva e Antônio = Palocci são enunciados necessariamente verdadeiros porque estes termos denotam rigidamente o mesmo objeto em todos os mundos possíveis; por outro lado, Lula = o presidente do Brasil em 2004 e Palocci = o ministro da economia do governo Lula são enunciados verdadeiro, porém contingentes, pois em outros mundos possíveis, Lula poderia não ter sido o presidente do Brasil em 2004 e Palocci poderia não ter sido o ministro da economia de Lula. Pode-se ver que descrições definidas não são tipicamente designadores rígidos, mesmo que denotem no mundo atual o mesmo objeto que um nome, a exemplo do que ocorre com “o presidente do Brasil em 2004” e “Lula”. Isto vale para descrições definidas, tanto na interpretação fregiana, quanto na interpretação russelliana. É bem verdade que, como Donellan (1966) coloca, há “usos referenciais” de descrições definidas, nos quais elas funcionam mais como uma etiqueta identificadora do que como prescreve Russell (1905), com sua análise quantificacional, ou como defende Frege (1892a). Nesses casos, o falante tem a pretensão de denotar um indivíduo em particular, em vez de qualquer indivíduo que preencha a fórmula de Russell ou possua o sentido expresso pela descrição. Isso é atestado pelo simples fato de que, nesses usos referenciais, a descrição definida denota com sucesso, mesmo nos casos em que “a propriedade usada na descrição não individua coisa alguma” (Chateaubriand 2001, p. 115). Assim, a expressão “o homem bebendo champanhe”, utilizada referencialmente, pode ser bem-sucedida em denotar uma certa pessoa, mesmo que ela esteja, de fato, 63 bebendo refrigerante, em vez de champanhe (ibid.). Há inclusive casos em que descrições não procedentes cristalizaram e formaram nomes, como é o caso de “Rio de Janeiro”, utilizado para batizar um lugar aportado em janeiro, mas que, ao contrário do que os exploradores pensavam, não se tratava de um rio, e sim da Baía da Guanabara. Esta discussão tem muitos meandros, que não temos espaço para seguir aqui. Um caminho interessante a ser seguido é tratar estes casos como anomalias pragmáticas, nas quais a intenção de denotar um certo indivíduo em particular sobrepõe-se à propriedade descritiva presente na descrição definida. Este é o caminho prescrito por Grice e adotado por Neale (1990). Seja como for, o razoável é admitir que, nestes usos referenciais, as descrições funcionem como designadores rígidos kripkianos. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA C) A Cadeia Histórica de Transmissão do Nome e da Referência A partir da análise dos termos designadores rígidos, surge uma pergunta bastante natural: se a denotação destes termos acontece independentemente de propriedades epistêmicas associadas ao objeto e se muito raramente temos acesso à essência individualizadora dos objetos, então por meio de que mecanismo um termo referencial denota? Tome o exemplo: (3) Palocci deu uma entrevista na manhã de hoje. Por meio de que mecanismo o nome “Palocci” é capaz de efetivamente denotar um certo indivíduo, que é ministro da economia, trotskista, barbado etc., de maneira totalmente independente de todas estas características descritivas (nãoessenciais)34 que lhe são associadas? Uma resposta possível e natural seria: a partir do conhecimento das características essenciais de Palocci. Mas as pessoas (ainda) não andam com uma coleira indicando seu DNA, de modo que não temos, em geral, a menor idéia de todas as características essenciais de pessoas (ou de 34 É natural estipularmos que existam propriedades estritamente fenomênicas que sejam consideradas essenciais. Por exemplo, Wright (2002, p. 402) relata que, em manuscrito circulado durante a década de 90, Kripke defendeu que cores são tipos naturais e que, portanto, termos para cores, e.g. “azul”, são designadores rígidos. Nestes casos, a propriedade essencial que permite a identificação de azul entre mundos possíveis é estritamente fenomênica. 64 objetos). Mas, ainda assim, esperamos ver cumprida a expectativa de que nossos designadores rígidos denotem um dado indivíduo nos mundos atual e contrafactual, e esperamos também ser capazes de formular enunciados verdadeiros de identidade entre designadores rígidos. Como é possível que estas expectativas sejam cumpridas? A resposta de Kripke é apelando a uma outra tese que o tornou notório: a teoria da cadeia histórica de transferência do nome e da referência.35 A partir de um momento mais ou menos definido, quando se dá o batismo de um tipo natural (e.g. água) ou objeto (e.g. Aristóteles), o designador torna-se público e passa a ser transferido através das gerações. Assim, um nome consegue varar o tempo e o espaço (e.g. “Aristóteles”, cujo referente morreu a milênios, e habitou na Grécia, onde jamais estive) através de uma corrente histórica de transferência, propagando-se por formas de comunicação verbais, escritas etc. Ao longo do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA processo de transmissão e aquisição de um nome, o referente é, por assim dizer, transferido junto, de modo que, quando digo “Aristóteles”, a capacidade deste nome de denotar aquele filósofo grego em particular está diretamente relacionada ao percurso feito pelo nome, desde o batismo até sua aquisição por algum indivíduo; é àquele indivíduo (com suas propriedades essenciais, embora desconhecidas para mim), situado na outra ponta do processo, que o termo “Aristóteles” refere-se, a despeito das propriedades descritivas epistêmicas atribuídas a tal indivíduo. A teoria da transmissão histórica soluciona o problema que os termos designadores rígidos sofrem em função de dois aspectos em muitos casos aparentemente incompatíveis: sua dependência de essências (materiais), que permite a identificação entre mundos possíveis, e sua independência de quaisquer estímulos fenomênicos. Assuma o termo “água”. O referente de “água” é H2O, e não uma substância qualquer com a aparência e o comportamento daquilo que denotamos por este termo no mundo atual. Desta maneira, em muitos casos, não há estímulo empírico que responda autonomamente pelo referente de um 35 É uma tendência atual que não se utilize mais o termo “teoria causal dos nomes próprios” para estes casos, mesmo embora Kripke (1980) tenha se utilizado, em certas ocasiões, do adjetivo “causal” para caracterizar a transferência do nome e da referência. A razão desta tendência é não haver um sentido claro no qual possamos dizer que a transferência do nome decorra de maneira causal, propriamente dita. 65 designador rígido.36 Ter a aparência e o mesmo comportamento epistêmico de água, calor, estrela d’alva, Lula ou Palocci não garante que o tipo natural ou o objeto observado ou pensado seja idêntico a água, calor, estrela d’alva, Lula ou Palocci (ver os exemplos da mesa e da água, que o próprio Kripke oferece, acima). Conforme a tese de Kripke, o meio que a linguagem natural desenvolveu para lidar com esta flutuação empírica de referentes que, paradoxalmente, têm como essência sua composição material, foi estipular como referente de um designador rígido o que quer que tenha sido batizado inicialmente como tal. 1.5.3 O Bidimensionalismo Com base em certas características dos sentidos fregianos, Chalmers desenvolve PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA sua visão de intensão primária (também chamada de intensão epistêmica), e com base nas principais características semânticas dos designadores rígidos kripkianos, ele desenvolve sua visão de intensão secundária (também chamada de intensão subjuntiva ou contrafactual). Segundo o bidimensionalismo semântico, todos os termos (tanto termos gerais quanto singulares) e sentenças possuem estas duas dimensões. Vejamos como isto se dá. Chalmers (2002a, pp. 2-6 e 2002c, p. 609) estipula que um pensamento (num sentido fregiano, ou próximo a ele) tem, em geral, as seguintes características: a) é um exemplar [token] de uma atitude proposicional cujo objetivo é representar o mundo. Assim, um pensamento é, tipicamente, objeto de uma crença. Isto não quer dizer, evidentemente, que pensamentos não possam ser objeto de outras atitudes proposicionais (dúvida, desejo, hipótese etc.). b) é composto de conceitos que determinam uma referência. Conceitos são uma generalização que Chalmers faz a partir dos sentidos fregianos: enquanto sentidos fregianos são restritos a termos singulares (nomes e descrições definidas), conceitos são aquilo que responde pelo conteúdo cognitivo de qualquer termo. E, como o sentido fregiano, um conceito determina uma 36 No entanto, ver caso das cores trazido por Kripke, que mencionamos acima. 66 referência.37 Muitas coisas podem ser a extensão de um conceito: objetos de toda ordem (físicos, mentais, matemáticos), propriedades, tipos etc. c) é expresso por uma sentença. Pensamentos encontram seu veículo de expressão através de certos objetos lingüísticos, organizados sintaticamente: as sentenças. Sentenças são formadas por termos, que, por sua vez, são os portadores de conceitos. d) tem valor de verdade. Pensamentos têm ou determinam valores de verdade. Chalmers (2002a p. 1) não se compromete integralmente com a tese fregiana segundo a qual os valores de verdade são a referência dos pensamentos. Todavia, seja lá o que forem valores de verdade, eles dependem do conteúdo cognitivo das sentenças (como vimos na seção 1.5.1, Frege é claro sobre como um juízo se forma a partir da combinação de um pensamento com um valor de verdade, na qual o primeiro nos leva ao PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA segundo). Com base nesta visão, pode-se extrair uma interpretação de conceitos e pensamentos como estando associados a intensões. Neste sentido, afirma Chalmers (2002c, p. 609): É uma idéia familiar que conceitos e pensamentos podem ser associados a uma intensão: uma função de mundos possíveis para extensões ou valores de verdade. A intensão de um conceito mapeia um mundo possível à extensão do conceito naquele mundo: em um dado mundo, a intensão de meu conceito de renado designa a classe de criaturas com um rim, naquele mundo. A intensão de um pensamento mapeia um mundo ao valor de verdade daquele pensamento naquele mundo: em um dado mundo, a intensão de meu pensamento todos os renados são cordados será verdadeira se toda criatura com um rim naquele mundo também tem um coração. Assim, uma intensão, associada a um conceito ou pensamento, é uma função de mundos possíveis (ou situações concebíveis) para sua referência (ou valores de verdade): F: W→R. Avaliar uma intensão associada a um pensamento num mundo possível W consiste, portanto, em conceber o mundo possível W e determinar o valor de verdade do pensamento neste mundo possível. 37 É claro que este é o comportamento típico; muitas vezes conceitos não denotam nada. 67 Esta visão corresponde, segundo Chalmers, à visão tradicional originada a partir de Frege. Com o advento da visão semântica de Kripke, muitos pensaram que a visão tradicional havia sido excluída. A idéia de Chalmers é que o entendimento de cunho fregiano foi, não excluído, e sim rearranjado, originando um segundo tipo de intensão, que Chalmers (1996, p. 57) chama de intensão secundária: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA O insight de Kripke pode ser expresso dizendo-se que há de fato duas intensões associadas a um dado conceito. Isto é, há dois padrões bem distintos de dependência do referente de um conceito para com o estado do mundo. Primeiro, há a dependência segundo a qual a referência é fixada no mundo atual, dependendo de como o mundo resulta: se ele resulta de um modo, um conceito vai discriminar uma coisa, mas se ele resulta de outro, o conceito vai discriminar outra coisa. Em segundo lugar, há a dependência pela qual a referência em mundos contrafactuais é determinada, dado que o referente no mundo atual já esteja fixado. Correspondendo a cada uma destas dependências há uma intensão, a qual chamaremos de intensões primária e secundária, respectivamente. O que Chalmers quer mostrar é que não há somente uma intensão que pode ser associada a um conceito ou pensamento, mas sim duas intensões diferentes. Dizer que há duas intensões diferentes significa dizer que há dois modos como um mundo pode determinar a extensão de um conceito. A intensão primária determina o referente de um conceito (ou pensamento), levando em conta o modo como o mundo, tomado como atual, resulta. A intensão secundária de um conceito (ou pensamento) determina o referente de um conceito levando em conta o modo como o mundo, tomado como contrafactual, resulta. Isto ficará mais claro com o exame de alguns exemplos. O exemplo preferido de Chalmers para ilustrar os dois tipos de intensão é o conceito de água, no contexto do famoso experimento de pensamento da Terra Gêmea, proposto por Putnam (1975, pp. 584-587). Considere dois mundos possíveis, a Terra e a Terra Gêmea. Estes mundos são exatamente iguais, com as mesmas pessoas, objetos, constituição física, línguas, localização no universo etc., com exceção de um fato: enquanto na Terra a água é composta de H2O, na Terra Gêmea, a substância que ocupa os oceanos e rios, que as pessoas bebem, que é transparente, inodora e insípida etc., e que é chamada pelos habitantes da Terra Gêmea de “água”, é composta da substância XYZ. (Vale lembrar que é no contexto deste experimento de pensamento que Putnam coloca seu pseudocontraexemplo para a noção de conceptividade.) 68 Como, então, funcionam as intensões primária (ou epistêmica) e secundária (ou subjuntiva, ou contrafactual) do conceito água, avaliadas a partir destes dois mundos possíveis, a Terra e a Terra Gêmea? Responde Chalmers (2002c, p. 609): Para o meu conceito água, a intensão epistêmica [primária] designa H2O em nosso mundo (o mundo Terra), e XYZ em um mundo Terra Gêmea. Isto reflete o fato de que, se eu aceitar que meu mundo atual é como o mundo Terra Gêmea (i.e., se eu aceito que o líquido nos oceanos é e sempre foi XYZ), eu devo aceitar que água é XYZ. Em contraste, a intensão subjuntiva [secundária] de meu conceito água designa H2O em ambos os mundos Terra e Terra Gêmea. Isto reflete o fato de que, dado que água é H2O no mundo atual, o mundo contrafactual Terra Gêmea é melhor descrito como um mundo no qual água ainda é H2O, e no qual XYZ é meramente uma coisa aquosa [watery stuff]. Partindo do tratamento bidimensional do conceito água oferecido acima, podemos ampliar o quadro oferecido por Chalmers e avaliar a intensão de água ≠ PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA H2O a partir das duas possíveis intensões atribuíveis a água, avaliadas na Terra e na Terra Gêmea. Onde assumimos a intensão primária do conceito água, água ≠ H2O terá como extensão o verdadeiro ou o falso, conforme o mundo tomado como atual verifique ou não que a substância epistemicamente semelhante a H2O seja H2O. Onde assumimos a intensão secundária do conceito água, água ≠ H2O terá sua extensão (o verdadeiro ou o falso) determinada pelo mundo contrafactual (o mundo onde é feita a avaliação da intensão), estando a referência de “água” fixada no mundo atual. Com isto, seremos capazes de observar a extensão (valor de verdade) resultante em cada uma das combinações possíveis:38 (1) A extensão de “água ≠ H2O”, levando em conta a intensão primária de água, tendo a Terra como mundo atual, é o falso. Isto ocorre porque “água” denota na Terra a substância que tem todas as características epistêmicas que associamos ao termo “água” no mundo atual, e esta substância é, na verdade, H2O. Assim, a Terra falsifica o pensamento de que água é diferente de H2O. (2) A extensão de “água ≠ H2O”, levando em conta a intensão primária de água, tendo a Terra Gêmea como mundo atual, é o verdadeiro. Isto ocorre porque 38 Como queremos observar o comportamento das intensões do conceito água, e seu impacto na determinação da extensão (valor de verdade) do pensamento em que este conceito está incluído (água ≠ H2O), manteremos em todos os casos a extensão de H2O fixada na Terra, e rigidificada com relação à Terra gêmea, conforme o comportamento regular dos designadores rígidos, na leitura kripkiana. É de se notar que muitos autores fazem análise semântica de identidades entre designadores rígidos, sem se preocuparem com um dos lados da identidade. 69 “água” denota na Terra Gêmea uma substância que tem as mesmas características epistêmicas do que chamamos de “água”, no mundo atual, e lá, esta substância não é H2O, e sim XYZ. Assim, a Terra Gêmea verifica o pensamento de que água é diferente de H2O. (3) A extensão de “água ≠ H2O”, levando em conta a intensão secundária de água, tendo a Terra como mundo atual (no qual a referência de água é fixada) e também como mundo contrafactual (no qual a intensão é avaliada), é o falso. Isto ocorre porque “água” denota rigidamente na Terra a substância que chamamos de “água” no mundo atual (a própria Terra), e esta substância é H2O. Assim, a Terra falsifica o pensamento de que água é diferente de H2O. (4) A extensão de “água ≠ H2O”, levando em conta a intensão secundária de água, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA tendo a Terra como mundo atual e a Terra Gêmea como mundo contrafactual, é o falso. Isto ocorre porque “água” denota rigidamente na Terra Gêmea a substância que chamamos de “água” no mundo atual. Assim, a Terra Gêmea falsifica o pensamento segundo o qual água é diferente de H2O. (5) A extensão de “água ≠ H2O”, levando em conta a intensão secundária de água, tendo a Terra Gêmea como mundo atual e a Terra como mundo contrafactual, é o verdadeiro. Isto ocorre porque “água” denota rigidamente na Terra a substância que é chamada de “água” na Terra Gêmea. Esta substância é XYZ, que é, de fato, diferente de H2O, o que verifica o pensamento segundo o qual água é diferente de H2O. (6) A extensão de “água ≠ H2O”, levando em conta a intensão secundária de água, tendo a Terra Gêmea como mundo atual e contrafactual, é o verdadeiro. Neste caso, “água” denotará rigidamente na Terra Gêmea, tomada como contrafactual, exatamente aquilo que este termo denota na Terra Gêmea, ou seja, XYZ. Dado que XYZ é diferente de H2O na Terra Gêmea (tomada como mundo contrafactual), podemos dizer que água ≠ H2O é verificada pela Terra Gêmea. Podemos agora finalmente examinar o comportamento modal de água ≠ H2O, a partir de suas intensões primária e secundária. Para o teste de 70 conceptividade primária (possibilidade primária), levamos em conta a intensão primária do pensamento, enquanto para o teste de conceptividade secundária (possibilidade secundária), levamos em conta a intensão secundária. Comecemos pela conceptividade primária. Uma proposição é primariamente concebível se há ao menos um mundo possível que, tomado como atual, verifica a proposição. Assim, para determinar a conceptividade primária de uma proposição, somos obrigados a examinar todos os mundos possíveis, considerando-os como atuais, o que significa examinar as situações concebíveis exclusivamente em termos fenomênicos, sem levar em conta essências. A totalidade de mundos possíveis constitui nosso espaço epistêmico, ou seja, ela engloba todas as situações que somos capazes de conceber epistemicamente; se houver uma destas situações ou mundos possíveis que verifique a proposição (primária) água ≠ H2O, então a proposição é concebível, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA i.e., possível. Podemos ver que água ≠ H2O é epistemicamente possível na medida em que a Terra Gêmea é um mundo possível que verifica esta proposição (dentre vário outros mundos). Com relação à conceptividade secundária de água ≠ H2O, novamente temos que considerar todo nosso espaço de mundos possíveis, mas não mais como mundos atuais, e sim como mundos contra-factuais, o que quer dizer que devemos fixar a referência do termo água no mundo atual e mantê-la rígida para todos os mundos possíveis; se, nestas condições, encontrarmos algum mundo que verifique a proposição secundária água ≠ H2O, então a proposição será secundariamente concebível, ou seja, secundariamente possível. Sem dúvida que, em nossa linguagem natural, “água” tem sua referência fixada em nosso mundo atual, a Terra. Mas, para vermos como funciona o aparato semântico bidimensional (que é nosso objetivo desta seção), vale a pena observarmos também o comportamento modal de água ≠ H2O na hipótese em que “água” tem sua referência fixada em outro mundo possível, ou seja, na Terra Gêmea. Temos então, os dois casos a seguir: 1) É secundariamente concebível que água ≠ H2O, tomando a Terra como mundo atual (ou seja, no qual a referência de água é fixada)? Não, pois, nestas condições, o termo “água” denota H2O em todos os mundos possíveis, o que torna água ≠ H2O secundariamente inconcebível e, portanto, secundariamente impossível. 71 2) É secundariamente concebível que água ≠ H2O, tomando a Terra Gêmea como mundo atual (no qual a referência do termo “água” é fixada)? Sim, pois, nestas condições, o termo “água” denotará XYZ em todos os mundos possíveis, o que tornará água ≠ H2O não somente possível como também necessário: em todos os mundos possíveis, água ≠ H2O. Encerramos a seção rebatendo uma crítica possível às noções de intensão primária e secundária. Eis a crítica: “a noção de intensão primária foi formulada ad hoc para salvar os casos de conceptividade epistêmica de contra-exemplos, mas não encontra uso na linguagem e é contra-intuitiva. Não há duas dimensões semânticas associadas aos termos designadores rígidos kripkianos, e sim somente aquilo que Chalmers PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA chama de intensão secundária.” Defendemos, seguindo Chalmers, que a noção de intensão primária encontra respaldo intuitivo e que podemos encontrar contextos lingüísticos naturais para ela. O único meio de justificar esta afirmação é apresentar um contexto lingüístico no qual a intensão primária se encaixe naturalmente. Um contexto natural é: (i) Podemos descobrir amanhã que água não é H2O. Aqui, o termo “água” não pode ser interpretado a partir de sua intensão secundária. Quando afirmamos “podemos descobrir amanhã que água não é H2O”, estamos, com isto, querendo dizer que podemos descobrir amanhã que a substância inodora, incolor, insípida, com a qual saciamos a sede etc. não é H2O. Estas qualidades enumeradas nada mais são que a intensão primária do conceito água. Ademais, ao negar (i) como verdadeiro, o crítico vai contra o que Kripke e Putnam afirmaram. Ambos foram claros sobre a verdade de (i)! Lembremos Putnam (2002, p. 590): Podemos imaginar perfeitamente bem ter experiências que nos convenceriam de que (e que fariam racional crer que) água não é H2O. Neste sentido, é concebível que água não é H2O. 72 No mesmo sentido, Kripke (1980, pp. 126-127) afirma (não sobre o caso específico da água, mas sobre a natureza da matéria; o que é dito, todavia, aplicase perfeitamente ao caso de que estamos tratando): A teoria molecular descobriu, digamos, que este objeto aqui é composto de moléculas. (...) Podemos imaginar termos descoberto que ele não seja composto de moléculas. “Ele”, na colocação de Kripke, quer dizer o que quer que tenha as qualidades epistêmicas associadas ao objeto – ele não pode estar afirmando que é concebível descobrir que um objeto não tem a essência que sabemos que ele realmente tem, pois isto é inconcebível. Assim, tanto Kripke quanto Putnam afirmam ser concebível que água ≠ H2O; o que Chalmers traz de novo é somente uma análise que deixa claros os mecanismos semânticos mediante os quais isto se dá (e ao PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA fazê-lo, resgata o princípio da conceptividade por inteiro). Existem teorias inteiras da ciência que são baseadas na falseabilidade de enunciados, e.g., a teoria do conhecimento de Popper. É a conceptividade primária que nos disponibiliza a idéia geral de que nossas leis da natureza, no presente momento consideradas verdadeiras, podem estar erradas. Retire este traço semântico e a linguagem ficará permanentemente desfigurada. (Isto já é um indício de que as chamadas “necessidades a posteriori” são problemáticas; veremos isto na próxima seção). Chalmers chama este tipo de contexto de enunciados tipo “turned out”, por identificar, na seguinte formulação, o contexto mais típico para a ocorrência de intensões primárias: It could have turned out that .... Aplicado aos exemplos clássicos da água e de Hesperus/Phosphorus, temos os seguintes exemplos: it could have turned out that water ≠ H2O; it could have turned out that Hespurus ≠ Phosphorus. 73 Em português, um contexto próximo à formulação em inglês (fora o que já oferecemos em (i), acima) é: as coisas poderiam ter transcorrido de modo que água ≠ H2O. O bidimensionalismo tem alegações muito sérias, o que explica a ampla discussão que tem provocado. Vejamos mais uma conseqüência impactante decorrente dele: a crítica à noção de necessidade a posteriori. 1.5.4 Digressão: Bidimensionalismo e Necessidade a Posteriori Nesta seção, iremos primeiramente expor a noção de necessidade a posteriori PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA kripkiana, para depois mostrarmos, com base na semântica bidimensional de Chalmers, como esta noção constitui-se numa noção fraca de necessidade, na qual o alegado elemento empírico desempenha um papel pouco importante. A) Explicando a Necessidade A Posteriori Hoje em dia, há toda uma série de exemplos clássicos de verdades necessárias a posteriori amplamente discutidos. Sidelle (2002), cita alguns: Muitos filósofos acreditam hoje que há verdades necessárias que podem ser conhecidas somente a posteriori. Os exemplos clássicos são enunciados de identidade empíricos (nos quais ambos os termos são designadores rígidos), como ‘Hesperus é Phosphorus’ (identidades ordinárias como ‘Este é o Joe!’ são exemplos menos discutidos, mas são mais indicativos da amplitude de tais verdades) e identificações de propriedades descobertas cientificamente (e suas conseqüências lógicas), como ‘água é H2O’ (e ‘água contém hidrogênio’); também são comumente oferecidas verdades de pertencimento a um tipo – ‘Lassie é um cão’ (isto não é a priori – poderíamos descobrir que ela era um pônei de aspecto muito estranho) e ‘gatos são mamíferos’ – e enunciados mais controversos de origem material, como ‘A rainha Elizabeth originou-se de um esperma e e de um óvulo o’. (p. 318) Um exemplo mais polêmico de necessidade a posteriori, oferecido por Kripke (1980, pp. 37-38), envolve provas matemáticas que só poderiam ser conhecidas a posteriori, e.g. através da checagem visual do resultado de um cálculo efetuado 74 por um computador (o status modal deste “poderiam” não é sujeito de análise por Kripke). Kripke está longe de deixar minimamente claro como isto se dá. O que leva Kripke e outros a crer que identidades verdadeiras entre designadores rígidos (este caso será tomado como padrão, dentro de nossa discussão) possam ser necessárias a posteriori? A tese da necessidade metafísica de Kripke, que sustenta a noção de necessidade a posteriori, parte da seguinte verdade analítica: Se “a” e “b” são designadores rígidos e a = b, então ٱa = b. 39 Assim, a necessidade de a = b está condicionada à verdade de a = b; mas esta verdade muitas vezes só nos é disponível a posteriori, em vez de por meio de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA intensões atribuídas a “a” ou “b”. Tomemos um exemplo ilustrativo: Pelé = Edson Arantes do Nascimento (doravante “EAN”). Esta é uma identidade necessária, se verdadeira. Mas a verdade da identidade não nos é disponibilizada por análise a priori de Pelé ou EAN. Podemos muito bem, por um lado, saber que Pelé foi um grande jogador de futebol brasileiro, negro etc., e utilizar o termo “Pelé” com competência, integrado a diversos contextos diferentes; e, por outro lado, podemos muito bem saber que EAN é um grande empresário, com investimentos no setor agrário, marketing, negro etc., e igualmente utilizar termo “EAN” com desenvoltura; mas, ainda assim, estes conhecimentos acerca de Pelé e EAN não garantem que saibamos que estes dois indivíduos são a mesma pessoa, i.e., não garantem que saibamos que Pelé = EAN é verdadeiro (e portanto necessariamente verdadeiro).40 Não temos acesso a esta verdade por meio de análise das intensões (primárias, no jargão de Chalmers) que podem ser associadas a Pelé e a EAN. Para estabelecer a verdade da identidade entre Pelé e EAN, devemos ter acesso a informações que são, por sua própria natureza, empíricas. Por exemplo, ao ver e ouvir o referente de “Pelé” ser chamado de “EAN”, podemos constatar que estes termos têm o mesmo referente 39 Encontramos a seguinte colocação em Kripke (1980, p. 3): Se “a” e “b” são designadores rígidos, segue-se que “a = b”, se verdadeiro, é necessariamente verdadeiro. 40 Tome por exemplo, um empresário estrangeiro que faça negócio com EAN, sem saber que se trata de Pelé. 75 na ponta do processo causal de transferência dos nomes. Este é um comportamento comum em identidades entre designadores rígidos. Podemos apresentar, nesta linha, um exemplo adicional do próprio Kripke, não de uma identidade entre nomes próprios, mas sim entre descrições teoréticas para tipos naturais (também designadores rígidos). Diz Kripke (1980, p. 138): O caso de fenômenos naturais é similar: identificações teoréticas tais como “calor é movimento molecular” são necessárias, embora não a priori. O tipo de identidade de propriedades usado na ciência parece ser associado com necessidade, não com a prioricidade, ou analiticidade: para todos os corpos x e y, x é mais quente que y se e somente se x tem a energia cinética molecular mais alta que y. Aqui a coextensividade dos predicados é necessária, mas não a priori. Ainda, para Kripke, calor é movimento molecular não somente goza do status de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA verdade necessária, mas o faz “no mais alto grau”: [Eu defendo] que identificações teoréticas características como “calor é o movimento de moléculas” não são verdades contingentes, mas verdades necessárias, e aqui eu não quero dizer somente fisicamente necessárias, mas necessárias no mais alto grau – o que quer que isto queira dizer. (Ibid., p. 99) Putnam (1988a, pp. 99-100) também se empolga com a ocorrência de necessidades a posteriori em identidades teoréticas: Uma asserção que é verdadeira em qualquer mundo possível é tradicionalmente designada como “necessária”. Uma propriedade que algo tenha em qualquer mundo possível, no qual exista, é tradicionalmente designada de “essencial”. Nesta terminologia tradicional, aquilo que Kripke está a dizer é que “o calor é a energia molecular média de translação” é uma verdade necessária, mesmo apesar de não a podermos conhecer a priori. A asserção é empírica, mas necessária. Ou, formulando a mesma idéia com palavras diferentes, ser energia cinética molecular média da translação é uma propriedade essencial do calor. Descobrimos a essência do calor por meio de investigação empírica. (...) A antiga idéia de que a ciência descobre verdades necessárias, de que a ciência descobre a essência das coisas, é, num sentido importante, correta e não incorreta. 41 B) Contestando a Noção de Necessidade a Posteriori O que pretendemos contestar aqui, com base em Chalmers, é que os enunciados necessários a posteriori de Kripke e Putnam sejam, de fato, “necessários no mais 41 A tradução da edição portuguesa emprega o termo “temperatura” para o que Putnam provavelmente chamou de “heat”. A tradução mais correta para “heat” é “calor”, de modo que tomamos a liberdade de efetuar esta modificação dentro da tradução portuguesa, mantendo todo o resto igual. 76 alto grau” ou que “a ciência descobre a essência das coisas num sentido importante”. De fato, estes não são casos (1) nem de enunciados metafisicamente necessários, em algum sentido substancial, (2) nem de enunciados estritamente empíricos. B.1) Necessidades a Posteriori são Vazias ou Fracas, do Ponto de Vista Metafísico Qual é o diagnóstico bidimensional para enunciados necessários a posteriori? Segundo Chalmers (2002c, p. 616), “casos de “necessário a posteriori” kripkianos (e.g. água é H2O) emergem quando um pensamento tem uma intensão secundária ou subjuntiva necessária (verdadeiro em todos os mundos considerados como contrafactuais), mas uma intensão primária ou epistêmica contingente (falso em algum mundo considerado como atual)”. Com base neste diagnóstico, seremos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA capazes de perceber como casos de necessidade a posteriori são casos vazios de necessidade. Vejamos o exemplo calor = movimento molecular. A partir de uma série de experimentos científicos, constatou-se que o que chamamos de “calor” e identificamos empiricamente através da sensação de calor é causado pelo movimento das moléculas. Isto nos autoriza a dizer que movimento molecular é co-extensivo a calor; ou seja, calor = movimento molecular. A questão é: é concebível (e portanto possível) que calor seja diferente do movimento molecular? (Lembremon-nos que, ao longo de Naming and Necessity, esta é sempre a questão para Kripke.) A resposta a esta pergunta depende, evidentemente, do tipo de intensão assumida. A intensão primária de calor consiste basicamente em nossa sensação de calor, ou seja, a sensação específica que sentimos quando algo quente nos toca; esta intensão tem como extensão, por conseguinte, o que quer que cause a sensação de calor no mundo atual. Deste modo, ao assumirmos a intensão primária de calor, é-nos plenamente concebível que calor seja diferente do movimento das moléculas, na medida em que nos é concebível que, no mundo atual, a sensação de calor nos seja provocada por outras coisas, e.g., pela incidência de luz. Isto é, é primariamente concebível e, portanto, primariamente possível, que calor ≠ movimento molecular, na medida em que é primariamente concebível, por exemplo, que calor = incidência de luz. 77 Já a intensão secundária de calor é dada pela fixação do referente deste termo no mundo atual, de modo que o termo “calor” denote rigidamente tal referente em todos os mundos possíveis. Ao que tudo indica, a referência de calor é o movimento molecular, de modo que o termo “calor” deve denotar movimento molecular em todos os mundos possíveis. Ou seja, calor ≠ movimento molecular é secundariamente inconcebível, e portanto calor = movimento molecular é secundariamente necessário. Assim nos ensina Kripke. Para mostrarmos que calor = movimento molecular é necessário somente num sentido vazio, temos que mostrar agora que a conceptividade primária dos enunciados deve ser levada em conta na análise da modalidade dos enunciados. Já chamamos a atenção para o fato de haver pelo menos um contexto muito claro no qual podemos afirmar com naturalidade que é concebível primariamente que calor ≠ movimento molecular: podemos descobrir amanhã que, na verdade, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA calor (i.e., o que nos causa a sensação de calor) é radiação luminosa, e não o movimento molecular. Noutras palavras, temos disponíveis, a partir do exercício de nossas capacidades mentais intrínsecas, mundos possíveis nos quais calor não é o mesmo que movimento molecular. Não há qualquer razão, a priori ou a posteriori, que vede metafisicamente a ocorrência da hipótese destes mundos; muito pelo contrário: estes são os enunciados do tipo “turn out” de Chalmers, que, como já vimos, encontram grande respaldo intuitivo e são constitutivos da prática científica. Isto quer dizer que os mundos possíveis epistemicamente pensados devem ser considerados uma alternativa metafísica relevante ao mundo atual. É claro que Kripke diria que o mundo que verifica epistemicamente calor ≠ movimento molecular, assumida a intensão primária de calor, não é, a rigor, um mundo no qual calor ≠ movimento molecular, pois, para ele, o termo “calor” só tem a dimensão semântica secundária. Ele diria, ainda, que se descobríssemos que calor é de fato radiação luminosa, então estaríamos obrigados a aceitar que é necessário que calor = radiação luminosa. Estas colocações de Kripke estão corretas, mas elas somente nos mostram como a tese da necessidade a posteriori é vazia metafisicamente. No fundo, do ponto de vista metafísico, tudo que esta tese afirma é: “seja qual for a referência de “calor”, ela é necessariamente idêntica a si mesma, e o termo “calor” denota esta mesma referência em todos os mundos possíveis”. 78 Isto, no entanto, não traz qualquer dado relevante sobre a natureza essencial do calor, sobre como esta essência deve ou não ser. Assim, contextos de intensão primária devem ser tomados como evidência contra a tese de que enunciados a posteriori são “necessários no mais alto grau”. Repare que não estamos negando que as chamadas “necessidades a posteriori” sejam necessárias, mas sim que sejam necessárias no mais alto grau, como defendem Kripke e Putnam. Que tipo de enunciado pode ser considerado necessário no mais alto grau? 3 + 2 = 5 é uma proposição necessária no mais alto grau: não consiguimos conceber epistemicamente ou contrafactualmente (i.e., primariamente ou secundariamente) que ela seja falsa. Mesmo os contextos de utilização dos enunciados “turned out” não oferecem alternativa metafísica para PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA 3+2=5. Ou seja, it could have turned out that 3+2≠5, ou o mundo poderia transcorrer de modo que 3+2≠5, não se apresentam como alternativas epistêmicas viáveis: são inconcebíveis. Isto mostra que proposições que são realmente necessárias no mais alto grau são tanto primariamente quanto secundariamente necessárias. Isto quer dizer que, nestes casos, não temos contato epistêmico com mundos possíveis que as falsificariam. Tente imaginar epistemicamente um mundo possível no qual, de alguma forma, 3+2≠5. Eu, particularmente, não consigo concebê-lo. Em contraste, calor = movimento molecular é falsificável por mundos possíveis pensados epistemicamente: sou capaz de conceber primariamente que calor ≠ movimento molecular – por exemplo, podemos descobrir amanhã que sempre estivemos errados ao considerar que calor = movimento molecular. E isto me disponibiliza uma hipótese alternativa metafisicamente viável. Não há ciência sem este tipo de emprego. B.2) Necessidades a Posteriori não são estritamente Empíricas 79 Além de críticas ao estatuto metafísico forte das necessidades a posteriori de Kripke, a semântica bidimensional também dá vazão a sérias objeções ao seu alegado caráter a posteriori. A interpretação das necessidades a posteriori via intensão secundária gera, no fundo, uma variedade de verdade analítica, ou verdade em função do significado. Isto significa que os enunciados “necessários a posteriori” devem sua força modal a um elemento semântico que traz, de fato, traços empíricos, mas que não deixa de ser, antes de mais nada, semântico. Neste PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA sentido, afirma Chalmers (1996, p. 62): Tanto a intensão primária quanto a intensão secundária podem ser pensadas como candidatas ao “significado” de um conceito. (...) Poderíamos pensar também as intensões primária e secundária como os aspectos a priori e a posteriori do significado, respectivamente. Se fizermos esta equação, ambas as intensões darão suporte a um certo tipo de verdade conceitual, ou verdade em virtude do significado. A intensão primária dá suporte a verdades a priori, tais como água é substância aquosa. Tal enunciado será verdadeiro a despeito de como o mundo atual resulte, embora ele não precise ser verdadeiro em todos os mundos não-atuais. A intensão secundária não dá suporte a verdades a priori, mas dá suporte a verdades que são o caso em todos os mundos possíveis, tais como “água é H2O”. Ambas a variedades qualificam-se como verdades em virtude do significado; elas são simplesmente verdades em virtude de diferentes aspectos do significado. Vejamos como isto se dá, exatamente. Já vimos que avaliamos a intensão secundária ou subjuntiva de uma expressão em um mundo contrafactual levando em conta que sua referência já foi fixada no mundo atual e a partir das essências – que não se confundem com intensões primárias, fenomênicas, embora possam ser descobertas por meio delas – daquilo que responde pelos nomes; o ponto é que esta avaliação é inteiramente a priori. Voltemos ao exemplo em questão: calor = movimento molecular. O que há de a posteriori aí? A resposta é: a descoberta empírica de que aquilo que chamamos de “calor”, e a que associamos a intensão primária sensação de calor (foi assim que fixamos a referência de “calor”), é o mesmo que movimento molecular. Mas isto é precisamente o que vimos não carregar nenhum elemento de necessidade: o que chamamos de “calor”, aquilo a que associamos a intensão primária sensação de calor pode, muito bem, ser a incidência de luz (o próprio Kripke é claro sobre isto.). 80 O elemento de necessidade está ligado estritamente à avaliação da intensão secundária em mundos contrafactuais, com a referência já fixada no mundo atual: dado que calor = movimento molecular, é inconcebível que não o seja. Esta inconceptividade se dá inteiramente a priori. Assim, como nos diz Chalmers, seria mais sensato falar-se de um significado empírico, ou empiricamente determinado, do que de uma necessidade a posteriori. Currie (2002, p. 201) tem uma maneira singela de colocar o mesmo: Eu sigo os bidimensionalistas ao negarem que há dois tipos de necessidade, uma metafísica e outra conceitual. A proposição necessária expressada por “água = H2O” é conceitualmente necessária. A questão é, que proposição é esta? Esta questão é respondida por investigação empírica, e a resposta é que é a proposição que é verdadeira somente se H2O é H2O. Ou seja, nos casos de necessidade a posteriori, o elemento empírico está presente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA na determinação da proposição – que é universo semântico; uma vez que a proposição esteja estabelecida, i.e., que saibamos o significado dos termos, a necessidade se dá por análise conceitual a priori. Tudo isto pode muito bem ser parafraseado a partir das próprias formulações de Kripke. Retomemos a tese central de Kripke acerca da necessidade metafísica da identidade entre designadores rígidos: (1) Se “a” e “b” são designadores rígidos e a = b, então ٱa = b. O que pode haver de a posteriori em instâncias desta lei? A tarefa empírica no reconhecimento de instâncias desta lei como necessária resume-se à aferição de que a = b, i.e. à aferição da verdade do antecedente da implicação. Mas esta aferição empírica, por si só, não é o que fundamenta, motiva ou justifica a crença na necessidade da identidade. Para constatarmos a necessidade da identidade, somos obrigados, em todos os casos, a utilizar o tradicional exercício de conceptividade (secundária). Chalmers (2002, p. 194) coloca o mesmo, da seguinte maneira: A semântica bidimensional em questão estará fundada em análise conceitual a priori somada a fatos não-modais acerca do mundo atual. (A primeira dimensão está fundada diretamente em condicionais a priori. A segunda dimensão está fundada em condicionais a priori, tais como “se água é H2O, é necessário que água é H2O”, somada a um fato não-modal empírico, tal como “água é H2O”.) 81 Por exemplo, a descoberta empírica de que Pelé = EAN não é aquilo que nos torna evidente ou nos leva a crer que ٱPelé = EAN. A passagem do antecedente para o conseqüente, em (1), é feita mediante o seguinte exercício de conceptividade: somos capazes de conceber que um certo indivíduo não seja ele mesmo? A resposta é: evidentemente, não. É óbvio que, após a determinação empírica da identidade a = b, a = b tem exatamente o mesmo status cognitivo de a = a – dado que, após a descoberta de que a = b, todas as intensões de a são transmitidas a b, e as intensões de b são transmitidas a a (será que sabemos algum fato sobre Pelé, que desconhecemos sobre EAN?). Decorre, então, que tem exatamente o mesmo status cognitivo que a=b a = a, ambos afirmando que uma coisa é necessariamente idêntica a si mesma, a partir de atividade conceitual a priori. A necessidade de a = b decorre das mesmas razões conceituais da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA necessidade de a = a. Aqui vale uma observação. Defensores da noção de necessidade a posteriori tendem a confundir saber o valor de verdade de uma proposição com saber o estatuto modal de uma proposição. Como coloca Casullo (2002, p. 3), “é importante distinguir entre saber o valor de verdade de uma proposição (i.e., se ela é verdadeira ou falsa) em oposição a saber seu status modal (i.e., se ela é necessária ou contingente). Embora 7 x 9 =63 seja uma verdade necessária, saber que ela é verdadeira não envolve saber que ela é necessária, como é ilustrado pelo caso de pessoas que sabem alguma matemática, mas nenhuma filosofia”. Por outro lado, é claro que se sabemos que p é necessário, então sabemos que p é verdadeiro. Concluindo: a “necessidade a posteriori” de identidades entre designadores rígidos estabelece nada mais do que a necessidade de que uma coisa seja idêntica a ela mesma: o movimento de moléculas é idêntico ao movimento de moléculas, Pelé é idêntico a Pelé. E a necessidade de que uma coisa seja idêntica a ela mesma depende estritamente de atividade conceitual. De fato, a noção de necessidade a posteriori é importante no que diz respeito à compreensão de idéias como essência material (e como a assumimos dentro de nossa semântica) e designador rígido. Não estamos negando isto. Mas sua análise deixa evidente que é falso dizer que “a ciência descobre verdades necessárias, a essência das coisas”, como coloca Putnam, ou que “verdades necessárias a posteriori são verdades necessárias no mais alto grau”, como coloca Kripke. As necessidades a posteriori não afirmam 82 nada além de: o que quer que tenha sido descoberto é necessariamente idêntico ao que quer que tenha sido descoberto. Será que há alguma opção que dê suporte para as afirmações de Putnam e Kripke acerca da força modal de necessidades a posteriori? Restam poucas hipóteses, todas pouco alentadoras e sem qualquer relação com a tese da necessidade a posteriori. Uma delas é que leis naturais são necessárias à moda determinista. Simplesmente não temos meios epistêmicos, sejam a priori, sejam a posteriori, de saber se o determinismo é verdadeiro. Esta é mais uma tarefa para um Deus leibniziano. E, mesmo que, de fato, a tese do determinismo seja verdadeira, ela já não tem mais nada a ver com as teses semânticas sobre as quais a noção de necessidade a posteriori de Kripke repousa.42 1.6 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Considerações Finais Neste capítulo 1, estabelecemos os alicerces para a construção de todo o restante desta tese. O resultado a que chegamos foi uma formulação mais precisa tanto da noção de conceptividade quando do princípio da conceptividade (CON≡POSS). Esta maior precisão nos permitirá lidar de modo direto e efetivo com as possíveis críticas a nossa abordagem, a serem discutidas no próximo capítulo. Vejamos, então, uma síntese dos pontos principais a que chegamos neste capítulo. Primeiramente, definimos conceptividade da seguinte maneira: Conceptividade é a capacidade de ser concebido. 42 Outra hipótese é, nas palavras de Sidelle (2002), a seguinte: “O argumento [a favor da necessidade de leis da natureza] não considera as leis da natureza diretamente, mas as propriedades governadas pelas leis. As propriedades – ou, de qualquer forma, estas propriedades – devem ser individuadas por seus poderes causais, e estes [poderes] são precisamente o que é especificado por suas leis. Logo, estas propriedades não podem falhar em serem governadas por estas leis; assim, nossas leis ao menos estão presentes em todos os mundo sonde estas propriedades são instanciadas – uma conclusão forte o suficiente – e alguém poderia pensar que não faz mal nenhum dizer que as leis estão presentes mesmo onde as propriedades não estão instanciadas: afinal, dada a natureza das propriedades, todos os contrafactuais implicados por estas leis estão presentes – por exemplo, se este objeto teve carga elétrica positiva, ele faria tal-e-tal (este contrafactual tem que ser verdadeiro se a carga positiva é individuada por todos os seus poderes causais, conforme a posição mantém)” (p. 322). Sidelle investe vigorosamente contra qualquer instância deste tipo necessidade de leis da natureza. Não nos interessa entrar nesta questão. Só devemos notar que, seja esta hipótese verdadeira ou não, ela não tem mais nada a ver com a idéia de necessidade a posteriori de Kripke, que é nosso objeto de discussão no presente. 83 Estabelecemos que a conceptividade aplica-se a situações, que são estados mentais qualitativos, portadores de condições de verdade, que medeiam o conhecimento modal de proposições. Chegamos assim à nossa noção de conceptividade: (C) uma situação S é concebível se e somente se S é capaz de ser concebida. Vimos ainda que esta definição da noção de conceptividade adapta-se bem ao universo semântico das proposições por meio da seguinte especificação: (C’) uma proposição p é concebível se e somente se somos capazes de conceber uma situação na qual p é verdadeira. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Assim, podemos falar livremente em “uma proposição ser concebível” ou em “uma situação ser concebível”, sem que isto traga contratempos. Estabelecemos, então, como princípio da conceptividade a afirmação (P) CON≡POSS, ou uma proposição p é concebível se e somente se p é possível. Em uma seção histórica, vimos como o princípio da conceptividade é adotado por vários filósofos da modernidade e empregado recorrentemente em argumentos de conceptividade nos mais variados contextos filosóficos. Este extenso emprego mostra como a conceptividade é portadora de condições de verdade, estando, portanto, apta a ser qualificada de verdadeira ou falsa. Vimos com base em Chalmers que o princípio da conceptividade (CON≡POSS) permanece intacto a vários contra-exemplos potenciais, se nos mantivermos fiéis às seguintes qualificações: CONprima facie ≡ POSSprima facie CONideal ≡ POSSideal 84 CONprimária ≡ POSSprimária CONsecundária ≡ POSSsecundária Embora o tratamento de Chalmers nos seja preferencial ao longo da tese, examinamos o tratamento de Yablo para a noção de conceptividade, que dispensa a distinção prima facie/ideal e trata a conceptividade como um termo de consecução. Neste tratamento, uma série de casos (e.g. conjecturas matemáticas) tratados como prima facie concebíveis por Chalmers são vistos como indecidíveis por Yablo. Este tratamento é igualmente adequado e não implica em contraexemplos ao princípio de conceptividade. O ponto em que Chalmers e Yablo realmente divergem é no tratamento das ditas necessidades a posteriori, que Yablo considera serem contra-exemplos à noção de conceptividade. Examinamos ainda a semântica bidimensional de Chalmers, a fim de termos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA em mãos uma semântica adequada às qualificações que a noção de conceptividade sofreu, em especial a distinção primária/secundária. Vimos, também, com base no bidimensionalismo, como enunciados necessários a posteriori não são nem tão necessários nem tão a posteriori como Kripke e Putnam alegam. Agora estamos prontos para lidar adequadamente com objeções que possam advir. Ao fazê-lo, esperamos aprofundar ainda mais os aspectos epistemológicos e fenomenológicos da noção de conceptividade. 2 O Princípio da Conceptividade: Objeções e Respostas 2.1 Observações Preliminares A noção de conceptividade e o princípio da conceptividade têm sido objeto de críticas reiteradas desde suas primeiras aplicações explícitas dentro da filosofia. Por exemplo, Reid objetou à utilização, por Hume, da conceptividade como critério de possibilidade, alegando que todo enunciado cujo significado PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA entendemos, já o concebemos. Assim, segundo Reid, se entendemos o significado de 2+2=5, isto quer dizer que concebemos a verdade de tal proposição, mesmo que ela seja necessariamente falsa. Afinal, se não pudéssemos entender/conceber este enunciado, como poderíamos aferir sua falsidade?1 A partir de fins do século XIX e ao longo de todo o século XX, com a aversão crescente ao psicologismo no âmbito das filosofias da lógica e da linguagem, tais objeções foram reforçadas. Algumas destas objeções incidem sobre a conceptividade como recurso epistemológico geral, enquanto outras são restritas ao caso da lógica. Neste capítulo, pretendemos dar conta das principais objeções globais ao princípio da conceptividade (CON≡POSS) presentes na literatura atual sobre o tema. As objeções direcionadas à aplicação deste princípio, no caso específico da lógica, serão tratadas na parte II, capítulo 8. As críticas diretas ao princípio da conceptividade (CON≡POSS) podem ter dois destinos diferentes: CON⊃POSS e POSS⊃CON. Nas seções 2.2, 2.3, 2.4, tratamos de objeções que incidem sobre CON⊃POSS, ao passo que, na seção 2.5, veremos críticas a POSS⊃CON. Fechamos o capítulo com um apanhado de nossas perdas e conquistas (2.8). É importante notar que este capítulo de objeções e respostas não pretende restringir-se a rebater as principais críticas à noção de conceptividade. As críticas 1 Para uma versão das críticas de Reid, ver Tidman (1994, p. 302). 86 e as subseqüentes respostas nos darão a oportunidade de aprofundar, de diferentes maneiras, a epistemologia e a fenomenologia da conceptividade. 2.2 “Somos Capazes de Crer no Impossível” Ao recuperarmos o princípio da conceptividade, CON≡POSS, comprometemonos com o princípio de que não podemos crer no impossível. Assim, se for mostrado que realmente podemos crer no impossível, ou seja, que existe uma proposição p tal que Con(p) ∧ Imp(p), então é claro que o princípio parcial da conceptividade CON⊃POSS terá sido refutado (nesta hipótese, vale sempre ressaltar, o princípio POSS⊃CON não terá sido refutado). Alguns pensadores PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA traçam exatamente esta linha de ataque contra CON⊃POSS. Um deles é Sorensen (2001). 2.2.1 Objeção: Vaguidade e Conceptividade Sorensen (2001) apresenta dois argumentos diferentes no intuito de mostrar que cremos no impossível. O primeiro deles é baseado em seus estudos sobre vaguidade e o segundo é uma prova de que necessariamente cremos em enunciados impossíveis.Vejamos inicialmente o primeiro argumento – o segundo será tratado na próxima seção. Termos vagos têm geralmente um núcleo de aplicação bem definido, em torno do qual há uma zona de penumbra, na qual sua aplicação é incerta ou indefinida. Se um termo T é vago, então ~T também será vago, o que faz da zona de penumbra uma zona de aplicação possível tanto de T quanto de ~T. A presença de termos vagos na linguagem natural acarreta uma série de paradoxos, dos quais um exemplo clássico é o paradoxo do monte de grãos de areia, também, chamado de paradoxo da sorite (do grego “soros”, monte):2 2 Não confundir este uso do termo “sorite”, com as formas de argumentos tradicionalmente denominadas por este mesmo nome, e que consistem em sucessivos silogismos sobrepostos, de modo que a conclusão (por vezes entimemática) de cada um deles é premissa para o seguinte, até 87 Um único grão de areia certamente não é um monte de grãos de areia. E a adição de um único grão não é suficiente para transformar um não-monte em um monte: quando temos uma coleção de grãos de areia que não é um monte, então a adição de um único grão não criará um monte. Desta maneira, adicionando sucessivos grãos, indo de 1 para 2 para 3, e assim por diante, nunca chegaremos a um monte. E ainda assim, sabemos que uma coleção de 1,000,000 grãos de areia é um monte, mesmo que não seja um monte enorme. (Rescher 2001, pp. 78-79).3 Rescher formaliza este argumento da seguinte maneira (onde “g” representa uma coleção de i grãos de areia e “M(g)” é a abreviação do seguinte enunciado: “o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA grupo g de grãos de areia é um monte”: (1) ~M(g1) um fato observável (2) M(g1,000,000) um fato observável (3) (∀i) [~M(gi) ⊃~M(gi+1)] um princípio geral aparentemente evidente (4) ~M(g1,000,000) de (1) e (3), por indução (5) (4) contradiz (2) Para evitar a contradição, devemos abandonar ou (1), ou (2), ou (3). Sorensen (2002, p. 1) explora este mesmo paradoxo, mas formulado como uma indução em sentido oposto, ou seja, subtraindo-se os grãos, ao invés de os adicionar: Base: uma coleção de um milhão de grãos de areia é um monte. Passo de indução: se uma coleção de n grãos de areia é um monte, então uma coleção de n-1 grãos também o é. Conclusão: uma coleção de um grão de areia é um monte. Aqui surge uma contradição entre o fato empírico, verificável por qualquer um de nós, de que um grão de areia não é um monte de areia, com a conclusão indutiva de que um grão de areia é um monte de areia. Para evitar esta contradição, devemos abandonar a base ou o passo de indução. Segundo Sorensen (2001, p. 1), o problema é que, ao abandonarmos o passo de indução (o que nos parece o mais natural, na medida em que ninguém está que se chegue a uma conclusão final. O termo “sorite” se aplica, neste caso, por se tratar de um monte, ou uma pilha de argumentos ou premissas. 3 Rescher atribui a primeira formulação deste paradoxo a Eubúlides de Mileto (nascido em ca. 400 a.c.), da escola megárica, conforme o relato de Diógenes Laércio (A Vida dos Filósofos). 88 disposto a conceder que uma coleção de um milhão de grãos de areia não seja um monte de grãos de areia), coisas estranhas acontecem: Se eu rejeito o passo de indução, eu aceito por conseguinte sua negação. A negação é verdadeira somente se há um valor para n tal que n grãos de areia é um monte e n menos um grãos de areia não é um monte. Em outras palavras, deve haver uma demarcação inequívoca além da qual um monte de areia erodindo torna-se um nãomonte. Que tratamento Sorensen dá para a questão? Ele não somente rejeita o passo de indução (ou, na formulação inversa de Rescher, a premissa (3)), como também aceita completamente a conseqüência desta rejeição, ou seja, ele aceita a existência de uma demarcação estrita entre monte e não-monte. Isto quer dizer que, para Sorensen, de fato há um ponto definido no qual um monte de grãos de areia é subtraído em um grão e torna-se um não-monte de areia. Sorensen estende PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA esta solução para todos os casos de vaguidade, como o caso do conceito de careca ou o caso do espectro de cores. Contudo, ele chama a atenção para o fato de nosso sistema cognitivo ser inapto para captar a demarcação entre um monte e um não-monte; e é justamente desta inadequação cognitiva que advém a aparência paradoxal das sorites. Portanto, para Sorensen, não é por culpa do mundo ou da linguagem que existem os paradoxos de vaguidade, mas por causa de uma limitação intrínseca à nossa cognição. Ele vê nesta idéia uma reencarnação de teses expostas inicialmente por Locke: Um número de lingüistas, filósofos e biólogos têm revivido a idéia de John Locke de que os seres humanos têm defeitos cognitivos em nível de espécie. Eles conjecturam que alguns problemas filosóficos não são intrinsecamente difíceis; as questões são irrespondíveis por seres humanos porque o Homo Sapiens não dispõe dos pré-requisitos conceituais. (Ibid., p. 3) Assim, segundo Sorensen, ao crermos, incorretamente, que não há uma fronteira absoluta entre as cores do espectro, “não estamos meramente deixando de perceber o limite entre o amarelo e o verde; estamos vendo a ausência de limites” (Ibid., p. 5). E mesmo sugestionados acerca da existência dos limites ignorados, permanecemos ignorando-os, não importa o quanto nos esforcemos para percebêlos. Isto quer dizer que não importa o quanto observemos e pensemos sobre montes de grãos de areia, pessoas calvas, cores, e seus respectivos casos limites: permaneceremos ignorantes dos limites reais para estes conceitos. 89 Para justificar isto, que considera um fato cognitivo, Sorensen lança mão de alguns exemplos clássicos da psicologia cognitiva, nos quais nossa inaptidão cognitiva para perceber limites com precisão ficaria evidente. Em primeiro lugar, há a figura de Müeller-Lyer. Neste caso, sabemos que as linhas são de mesmo tamanho (através da utilização de réguas), mas isto não faz com que deixemos de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA ver a linha superior maior que a inferior. Figura Mueller-Lyer. Outro caso semelhante é o da “divisória mais branca que o branco” entre as fileiras de barras. Divisória mais branca que o branco. 90 Relata Sorensen, sobre este caso: Você pode encobrir uma das fileiras, você pode ver que a divisória “mais branca que o branco” não é nada mais branca que o resto da página. Mas quando você desencobre a fileira novamente, a ilusão da divisória aparece novamente. O juízo visual de uma divisória é cognitivamente impenetrável. Continuamos a “ver” a divisória. (Ibid., p. 4) Porque temos estes desvios cognitivos? Sorensen apela à velha estória da adaptação evolutiva: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Nossos ancestrais arbóreos desenvolveram a visão de cores para discernir frutas, em um fundo pontilhado. Esta capacidade discriminatória é aumentada [ao longo do processo de aprendizado de cada indivíduo] através da ênfase em algumas diferenças e supressão de outras – um pouco como os processos que os astrônomos exploram com a tecnologia de imagens. À medida que alguns bits de informação são cultivados enquanto outros são excluídos, o perceptor adquire foco. Este processo deve ser rápido. Logo, o perceptor tem pouco controle sobre o que ele vê e tem pouca capacidade para “aprender a ver”. (Ibid., p. 5) Isto significa que, por exemplo, uma criança com uma mutação que a capacitaria a perceber, digamos, todos os “limites lógicos” teria um aprendizado mais demorado, na medida em que teria que dar conta cognitiva e lingüisticamente de uma gama enorme de fenômenos que são, do ponto de vista adaptativo, de pouca importância. Assim, as sorites paradoxais não são uma questão de inadequação da linguagem propriamente dita ao mundo, segundo Sorensen. Para ele, a linguagem é consistente, embora nosso domínio dela traga consigo, inevitavelmente, inconsistências, em função dos limites de nosso sistema representacional. Tais limites nos compelem a crer em proposições contraditórias, impossíveis. A conclusão de Sorensen a partir dos paradoxos das Sorites é, portanto, muito forte: a competência lingüística implica na crença em contradições. (Ibid., p. 57) Para entendermos exatamente como, na visão de Sorensen, os casos de vaguidade nos compelem a crer no impossível, voltemos ao argumento indutivo do monte: Base: uma coleção de um milhão de grãos de areia é um monte. Passo de indução: se uma coleção de n grãos de areia é um monte, então uma coleção de n-1 grãos também o é. 91 Conclusão: uma coleção de 1 grão de areia é um monte. Sobre este gênero de argumento, afirma Sorensen: A conclusão é analiticamente falsa. A premissa inicial [base] é analiticamente verdadeira. Logo, deve haver um condicional na cadeia indutiva que tem um antecedente analiticamente verdadeiro e um conseqüente analiticamente falso. Chamemos este condicional de X. Os condicionais materiais precedendo X têm antecedentes analiticamente verdadeiros e conseqüentes analiticamente verdadeiros. Logo, eles são todos analiticamente verdadeiros. Os condicionais que vêm após X têm antecedentes analiticamente falsos, e portanto também são analiticamente verdadeiros. Por conseguinte, o condicional X é a única premis-sa falsa. É uma falsidade analítica. (Ibid., p. 58) Assim, X é um enunciado falso em virtude do significado. Não obstante, segundo Sorensen, cremos a priori e justificadamente que X é uma verdade analítica, pois, como vimos, é inato a nosso sistema cognitivo não ser capaz de notar que a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA proposição X é falsa: (...) enunciados-limite [threshold] são falsos (sem serem tornados falso pelo mundo) e ainda assim incorrigivelmente cridos (sem o benefício da garantia empírica). (Ibid., p. 59) Desta maneira, a crença a priori em X é compulsória a todos nós, embora X seja falso em virtude do significado. Dado que enunciados falsos em virtude do significado são impossíveis, cremos a priori e incorrigivelmente em enunciados impossíveis: Con(X) ∧ Imp(X). 2.2.2 Objeção: uma Demonstração de que Podemos Crer no Impossível O segundo argumento de Sorensen contra a noção de conceptividade pretende ser uma prova não só de que é possível crer em proposições impossíveis, ◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp), como também de que é necessário que é possível crer em proposições impossíveis, ◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cpx). De acordo com Sorensen, a possibilidade da existência de impossibilidades que podem ser cridas é infalível, o que pode ser mostrado numa argumentação dotada de dois passos. Em primeiro lugar, a crença dele, Sorensen, de que é possível crer em impossibilidades é imune à crítica, na medida em que um 92 opositor que alegar a falsidade de sua crença compromete-se de imediato com a tese segundo a qual Sorensen crê em algo impossível. Neste sentido, afirma Sorensen: Eis um debate que eu não posso perder. Eu alego que é possível (ao menos desavisadamente [unwittingly]) crer no impossível, digamos, que há um maior número primo. O impossibilista4 objeta que estou equivocado. Movimento incorreto! Ao tentar me corrigir, o impossibilista concede que eu creio em uma proposição falsa. A proposição em questão (i.e. que impossibilidades podem ser cridas), se falsa, é necessariamente falsa. Logo, o impossibilista estaria concedendo que uma impossibilidade pode ser crida. (Ibid., p.125) Em segundo lugar, justamente esta afirmação imune à crítica, a saber, que um certo indivíduo (no caso, o próprio Sorensen) crê que é possível crer no impossível (ou seja, Ca[◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp)]) é utilizada como premissa única para uma prova de que é possível crer no impossível, i.e. ◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Neste sentido, ele afirma que “a crença em ‘algumas impossibilidades são críveis’ garante a sua própria verdade” (Ibid., p. 125); ou seja, a verdade de algumas impossibilidades são críveis está fundamentada no próprio fato de que Sorensen crê que algumas impossibilidades são críveis. Daí, ele finalmente conclui que é necessário que é possível crer no impossível, ◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cpx). Sorensen (ibid., pp. 125-126) monta uma prova disto em S5, que, como já vimos, é o sistema que aparentemente expressa de forma adequada o princípio de que a conceptividade implica em possibilidade: 1. Ca[◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp)] premissa.5 2. ~◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp) assunção para redução ao absurdo. 3. ~◊◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp) 2, O que impossível não é possivelmente possível. 4. ~◊◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp) ∧ Ca[◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp)] 5. ~◊m ∧ Cam 3,1 conjunção. 4, redescrição sinônima da proposição com um nome.6 6. (∃x)(~◊m ∧ Cxm) 5, generalização existencial. 7. (∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp) 6, generalização existencial. 4 No jargão de Sorensen, um impossibilista é aquele que acredita que não somos capazes de crer no impossível, a exemplo de mim mesmo. 5 O indivíduo a pode ser visto como o próprio Sorensen. 6 Aqui, a sentença ◊(∃p) (∃x) (~◊p ∧ Cxp) está sendo renomeada como “m”. 93 8. ◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp) 7, o que é atual é possível. 9. ~~◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp) por redução ao absurdo, de 2 a 8. 10. ◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp) 9, eliminação da dupla negação. 11. ◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cpx) o que é possível é necessariamente possível. Assim, sentencia Sorensen: “a crença na tese de que impossibilidades não podem ser cridas [IMP⊃INC] é uma instância sutil daquilo que ela proíbe!” (ibid. p. 126). Antes de finalizarmos esta seção, cumpre observar que o caminho traçado por Sorensen, a partir de sua crítica à noção de conceptividade, é sui generis. Diante das objeções que ele coloca, uma opção teórica natural que se lhe abre é simplesmente abandonar a lógica clássica em prol de alguma lógica alternativa que efetivamente dê conta de nossa crença em falsidades analíticas. Sorensen PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA reconhece a possibilidade de trilhar este caminho, mas a descarta. Ele defende que devemos manter a lógica clássica intacta, e para tanto ele recorre à idéia quiniana de rede de crenças:7 Não devemos abandonar a lógica clássica para resgatar hipóteses especulativas sobre como a linguagem opera. Uma mudança na rede de crenças deve ser feita na porção mais periférica disponível. Crenças sobre como a linguagem opera são muito mais periféricas do que crenças sobre a lógica. Afinal de contas, crenças anti-fronteiras [anti-boundary] emanam da filosofia da linguagem, não da lingüística ou outra disciplina científica. Em lugar de mudar a lógica, devemos mudar nossa opinião sobre como a linguagem opera. (2001, p. 8) 2.2.3 Resposta: o Esvaziamento da Noção de Crença Os dois argumentos apresentados por Sorensen, segundo os quais é possível crer no impossível, só fazem sentido ao se partir de uma noção muito fraca de crença, do ponto de vista fenomenológico e epistemológico. Ele dá várias amostras do quão fraca é sua noção de “crença”, a começar pela enunciação de sua tese de que podemos crer no impossível: Eu alego que é possível (ao menos desavisadamente) crer no impossível, digamos, que há um maior número primo. (2001, p. 124) 7 Ver Quine (1951), especialmente as seções finais do artigo. 94 É claro que, quando defendemos que conceptividade implica em possibilidade, estamos nos referindo a estados qualitativos da consciência, o que já exclui de antemão crenças desavisadas, implícitas, inconscientes, ou pressupostas. A visão de quem adota conceptividade como indicador de possibilidade é inteiramente compatível com a inconsistência de nosso emprego da linguagem (seja qual for a origem desta inconsistência: cognitiva, ontológica ou lingüística), que é, de fato, constatativa. A ciência oferece muitos exemplos de teorias que geram inconsistências internas ou inconsistências com outras teorias, mas que ainda assim funcionam bem quando aplicadas – e que por isto permanecem sendo empregadas. As diferenças epistemológicas entre a abordagem de Sorensen e a nossa podem ser postas nos seguintes termos: há diferentes atitudes proposicionais que podemos ter para com uma proposição. Dentre as várias espécies de atitudes PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA proposicionais, podemos, por exemplo, imaginar ou conceber uma proposição, por um lado, e conjecturá-la, por outro. Ao defendermos o princípio da conceptividade, o que defendemos é que não somos capazes de imaginar ou conceber proposições impossíveis. Assim sendo, concedemos que nossos estados mentais possam sugerir, supor, conjecturar, hipotetizar ou pressupor proposições impossíveis; o que negamos é que eles possam representar uma proposição impossível, ao menos na medida que nossa imaginação é fiel e exaustiva ao conteúdo proposicional.8 Há que se notar que, em muitos casos, autores que defendem ∃p Con(p) ∧ Imp(p) utilizam-se do termo “crença”, termo que guarda muitas ambigüidades no que diz respeito a seu caráter cognitivo, o que acaba por trazer muita confusão entre diferentes atitudes proposicionais. Portanto, somos capazes de formular a hipótese ou conjecturar a existência, por exemplo, de um quadrado redondo, para deduzir as conseqüências disto ou algo que o valha, sem nos comprometermos com a possibilidade da existência de tal figura. Ou seja, conceber no sentido epistemologicamente relevante é muito diferente de supor ou conjecturar; enquanto não concebemos o impossível, podemos livremente conjecturá-lo. Um exemplo corriqueiro disto é a formulação de hipótese para redução ao absurdo e a subseqüente dedução de uma contradição, 8 Esta afirmação é muito diferente da afirmação trivial de que nossos estados mentais são, eles mesmos, possíveis. 95 em demonstrações formais ou na linguagem natural. Um procedimento deste tipo não compromete quem o executa com a crença substancial em contradições. Sorensen não distingue minimamente as diferentes atitudes proposicionais (conceber ou imaginar, conjecturar, supor, hipotetizar, postular etc.), colocando-as todas sob a denominação de “crença” e tratando-as da mesma maneira. E faz pior, ao afirmar que “...a imaginação é a atitude proposicional menos obstruída ...”.9 Ao afirmar isto, ele parece querer dizer que a atitude proposicional menos restrita que se pode ter para com uma proposição é imaginá-la, sendo todas as outras implementos a partir dela. Ou seja, segundo Sorensen, se há uma atitude proposicional básica que posso ter para com uma proposição, esta atitude é imaginá-la. Assim, as várias atitudes a que nos referimos acima (conjecturar, hipotetizar etc.) seriam todas, no mínimo, uma variedade de imaginar, quando não um implemento. Nesta visão, por conseguinte, ao formularmos lingüisticamente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA uma hipótese para redução ao absurdo ou uma conjectura científica, já a imaginamos como possivelmente verdadeira. Esta é uma visão muito pouco plausível. Com um mínimo de atenção com relação ao emprego do termo “crença”, as duas objeções apresentadas por Sorensen tornam-se sem efeito como contraexemplos para nossa proposta. No caso do paradoxo da sorite, devemos, antes de mais nada, deixar em aberto a possibilidade de várias outras resoluções presentes na literatura. Esta é uma questão bastante viva, com várias propostas viáveis, cuja discussão aprofundada nos levaria muito longe de nossos objetivos.10 Mas, mesmo assumindo que a resposta de Sorensen seja a correta, nada do que ele diz implica que possamos conceber impossibilidades, no sentido epistemologicamente relevante. Ao contrário. Para Sorensen, as falsidades analíticas que cremos serem verdadeiras a priori têm um aspecto fenomênico que bloqueia nosso acesso a seu real valor de verdade (i.e., falso), dadas as limitações inerentes a nosso sistema cognitivo. O passo indutivo X, estipulado por Sorensen como analiticamente falso 9 Sorensen (2001), p. 128: “...imagination is the minimally encumbered propositional attitude ...” Por exemplo, Clark (2001, p. 69-76) oferece três possíveis tratamentos para a questão, enquanto que Rescher (2001, p. 77-83) traz o seu. O próprio Sorensen (2001, p. 2) relata a simpática proposta de W. D. Hart, segundo a qual um monte de areia é composto no mínimo de quatro grãos, três na base e um sobre os três. A razão para esta proposta parece ser que a quantidade de quatro é condição necessária para que quaisquer objetos amontoem-se de maneira tri-dimensional. 10 96 embora crido a priori como verdadeiro, é concebido ou imaginado como verdadeiro e consistente, e não como uma contradição ou uma falsidade analítica. Nossa resposta para o segundo argumento segue a mesma linha. Da premissa de que alguém crê que é possível crer no impossível, Sorensen deduz que é necessário que é possível crer no impossível. Ou seja, Se Ca[◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp)], então ◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp). O problema com este argumento é que a premissa só pode ser considerada verdadeira no sentido epistemologicamente vazio de Sorensen. Ele não apresenta nenhum subsídio epistemológico para que aceitemos que de fato alguém (no caso, ele) crê que é possível crer no impossível, num sentido mais robusto de crença. Para Sorensen, é quase como se o mero proferimento da premissa ou a simples alegação de sua verdade contasse como uma crença. E isto é o máximo que Sorensen faz, ou seja, ele anuncia que crê na PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA premissa. Em nosso sentido epistemologicamente relevante, a proposição Ca[◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp)] é simplesmente falsa, e esta falsidade não traz qualquer dos problemas levantados por Sorensen. Dado que Sorensen não crê que ◊(∃p)(∃x)(~◊p ∧ Cxp) é verdadeira em qualquer sentido epistemologicamente relevante, ele não está concebendo o impossível ao crê-la verdadeira.11 2.2.4 Objeção: Somos Capazes de Crer em Contradições Diferentemente de Sorensen, a partir da conclusão em comum de que podemos crer em impossibilidades (mais precisamente em contradições), Graham Priest segue exatamente o caminho do revisionismo lógico. Ele defende que “cada lógica encapsula uma teoria metafísica/semântica substancial” (Priest 1998, p. 414). Desta forma, dado que podemos crer em algumas contradições, para Priest a lógica que contém a teoria mais natural para modelar este fato de nossa razão tem que ser algum tipo de lógica para-consistente. Não pretendemos aqui fazer jus a todas as especulações de Priest e seus desenvolvimentos formais; o que queremos 11 O mesmo tipo de crítica inócua à noção de conceptividade com base em crenças epistemologicamente vazias é feito por Bealer (2002, p. 76). 97 é investigar suas alegações de que cremos em contradições, alegações estas que estão na base de sua adoção de metodologias para-consistentes.12 Priest (1998) dá vários exemplos de crenças em contradições. Ao primeiro exemplo: Eu saio do quarto; por um instante, eu estou simetricamente colocado, um pé dentro, e o outro fora do quarto, meu centro de gravidade situado no plano vertical que contém o centro de gravidade da porta. Eu estou dentro ou não-dentro do quarto? Por simetria, eu não estou nem dentro em vez de não-dentro, nem nãodentro em vez de dentro. A luz da pura razão, portanto, favorece somente duas respostas para a questão: eu estou ambos dentro e não-dentro, ou nem dentro nem não-dentro. (p. 415) Como estas duas respostas são contradições (p ∧ ~p e ~p ∧ ~~p), ele conclui que, de um modo ou de outro, estamos comprometidos com a crença em uma contradição. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Priest afirma ainda que uma aparente saída para este comprometimento com contradições acaba também por gerar contradição. Esta aparente saída examinada por ele consiste em afirmar que a proposição “a está dentro do quarto” não é nem verdadeira nem falsa. Ele mostra, através da simples aplicação do esquema-T a uma proposição p (isto é, T(‘p’) sse p, onde ‘p’ é um nome para a sentença “a está dentro do quarto”), que esta saída também acaba por gerar contradição. Para Priest, afirmar que uma proposição p não é nem verdadeira nem falsa consiste em afirmar que ~T(‘p’) ∧ ~T(‘~p’). O esquema-T para p é T(‘p’) sse p, enquanto que o esquema T para ~p é T(‘~p’) sse ~p. Assim, o lado esquerdo da conjunção é equivalente a ~p, enquanto o lado direito é equivalente a ~~p, formando novamente uma contradição. Aqui, Priest não faz jus ao preceito encontrado em muitos filósofos (Frege e, influenciado por ele, Austin, Chalmers, Chateaubriand e Strawson, para citar alguns) de que há sentenças que não são nem verdadeiras nem falsas. Priest lê este preceito como afirmando que ~T(‘p’) ∧ ~T(‘~p’); mas, neste caso, tanto p quanto ~ p resultam falsas, o que é muito diferente do que Frege tem em mente, ao supor sentenças sem valor de verdade. Contra a postura fregiana propriamente dita, ou ao menos mais próxima dela, Priest coloca o seguinte (e só): 12 Priest (1998) oferece uma interpretação em teoria dos modelos para um sistema de lógica proposicional para-consistente para ilustrar como a lógica pode tolerar contradições sem incorrer no fenômeno que chama de “explosão”. Este é o nome que Priest dá para a tese de que contradições implicam em qualquer coisa (a, ~a ├ b, para quaisquer a e b). Ver pp. 412-414 para o modelo proposto por Priest. 98 Uma manobra natural aqui é negar o esquema-T para p ou ~p (presumivelmente estas proposições se mantêm ou colapsam juntas). Mas com base em que, alguém pode argumentar neste sentido? “a está dentro da sala” é uma sentença perfeitamente ordinária do [português]. Ela tem significado, logo deve ter condições de verdade. (Ibid., p. 415, nota 6) Um segundo exemplo de crença em contradições levantado, mas não discutido em mais detalhes, por Priest, é o Paradoxo do Prefácio. Para entendermos este paradoxo, recorremos à formulação de Clark (2002): Autores freqüentemente escrevem em seus prefácios que haverá inevitavelmente erros no corpo do texto (...). Se o que eles escrevem é verdadeiro, haverá pelo menos um enunciado falso no livro; caso contrário, a afirmação prefacial é falsa. Dos dois modos, eles estarão comprometidos com uma falsidade, e devem ser culpados por inconsistência. E ainda assim, a afirmação feita no prefácio parece uma observação perfeitamente racional a ser feita. (p. 144).13 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Onde se encontra exatamente a alegada inconsistência? Ela nasce do fato de o autor crer implicitamente – caso contrário não as teria escrito – que cada uma das afirmações que ele faz ao longo do livro seja verdadeira, ao mesmo tempo em que concede, no prefácio, que ao menos uma delas é falsa: ∀p (Vp) ∧ ∃p ~(Vp). Portanto, seja o corpo do livro inteiramente verdadeiro ou não, haverá sempre pelo menos um enunciado p sendo considerado tanto verdadeiro quanto falso. Sobre este caso, Priest afirma: O Paradoxo do Prefácio mostra que pode ser muito racional ter crenças inconsistentes. Logo, a consistência não é uma restrição absoluta da racionalidade. Uma pessoa racional reparte [apportions] suas crenças de acordo com a evidência; e se há evidência de proposições inconsistentes, que assim seja. (p. 419-420).14 13 Um bom protótipo da afirmação prefacial é encontrado em Rescher (2001): “Eu entendo que, por causa da natureza complexa dos assuntos envolvidos, o texto do livro está fadado a conter alguns erros. Por eles eu me desculpo com antecedência”. (p. 213) Ver ainda Rescher (2001, p. 213-215) para um possível tratamento do paradoxo. 14 Sorensen expõe um paradoxo muito parecido como mais uma evidência de que cremos em contradições: “Há fundamentos independentes para pensar que pode haver uma contradição que alguém crê justificadamente que seja uma verdade lógica. Considere um estudante a quem é dado um teste de lógica sentencial. É exigido dele que escolha o maior número de verdades lógicas que ele possa detectar em uma lista. Ele sabe que a lista é composta somente de verdades lógicas e falsidades lógicas. O estudante crê em cada uma de suas respostas, p1, p2, ..., pn. Contudo, ele também crê que ao menos uma destas respostas é falsa, isto é, ele crê em ~(p1 & p2 & ... & pn)”(Sorensen 2001, p. 59). O que Sorensen alega é que seja qual for o resultado do exame, o estudante terá crido em uma falsidade lógica, já que, caso ele tenha selecionado todas as proposições corretamente em sua prova, então ~(p1 & p2 & ... & pn) será uma falsidade lógica crida por ele. E caso ele tenha selecionado incorretamente alguma proposição, então ele terá crido que ao menos uma falsidade lógica é uma verdade lógica, a saber, a própria proposição selecionada incorretamente. 99 2.2.5 Resposta: os limites da expressão lingüística; a Questão do Erro Quanto ao primeiro exemplo, segundo o qual podemos crer que “a está dentro do quarto e a está não-dentro do quarto” (o que evidenciaria que podemos crer em contradições), muito do que já dissemos sobre os pseudo-contra-exemplos de Sorensen ao princípio da conceptividade se aplica também a este caso. Se concebo alguém exatamente no meio de um portal (que é, no fundo, a descrição epistêmica que o próprio Priest oferece para seu exemplo), parte do corpo dentro e parte nãodentro do quarto, o estado fenomenológico mediante o qual represento esta situação não apresenta nada de inconsistente ou contraditório. Ou seja, nada há de contraditório nesta situação, do ponto de vista epistêmico ou fenomenológico, na PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA medida em que nada que tenha alguma propriedade e não tenha esta mesma propriedade se apresenta como estado consciente. O indivíduo situado no meio do portal não está no meio do portal e não no meio do portal, ao mesmo tempo e em todos os aspectos; ele está simplesmente no meio do portal. O exemplo de Priest talvez aponte para a inadequação de certos conceitos para descrever certas situações, e.g., a inadequação da relação estar dentro de quando aplicada a certos casos, mas não indica que a situação epistêmica seja contraditória. Uma evidência de que o caso que Priest traz é um exemplo de limitação lingüística, em vez de um exemplo de crença substancial no impossível, é que podemos encontrar uma forma lingüística livre de contradições para expressar exatamente a mesma situação. Foi isto que acabamos de fazer quando descrevemos a relação do indivíduo a com o portal como “a está no meio do portal”. A inadequação do exemplo de Priest é atestada ainda pelo fato de Priest ser obrigado a dar uma explicação um tanto elaborada para o significado da sentença “a está dentro e a está não-dentro do quarto”. A necessidade da explicação se dá pela seguinte razão: alguém que imagine a situação descrita por Priest dificilmente a descreverá como “a está dentro do quarto e a está não-dentro do quarto”; e alguém que leia ou ouça esta sentença dificilmente a entenderá espontaneamente da forma que Priest a interpreta. Isto, por si só, mostra que o exemplo dado é ad hoc, e um mau exemplo ad hoc. É provável que a qualquer situação epistêmica corresponda uma interpretação (no sentido informal) que gera uma sentença 100 contraditória, no sentido vazio de Priest. E isto não mostra nada acerca do que somos capazes de conceber ou não; mas talvez nos mostre o quão promíscuas encontram-se as relações entre lógica, linguagem e filosofia, no presente momento. O próprio Priest é bastante vago quanto ao sentido exato em que quer afirmar que somos capazes de crer em contradições. Ele defende a existência de tal capacidade nos casos de atitudes proposicionais mais fracas tais como hipóteses (o que não negamos), mas muitas vezes parecer pretender apontar para teses mais substanciosas, e certamente alguns de seus exemplos corroboram esta PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA pretensão. Uma passagem mostra bem esta dubiedade: Se pensamos em interpretações15 como representando situações sobre as quais raciocinamos, então interpretações do segundo tipo [i.e., para-consistentes] podem ser pensadas como representando situações “impossíveis” que são inconsistentes ou incompletas, tais como situações hipotéticas, contra-factuais, ou ficcionais, ou como situações sobre as quais temos informações incompletas ou inconsistentes. Alguém poderia bem supor que há, em algum sentido relevante, tais situações, e que elas desempenham um importante papel metafísico e/ou semântico. (Priest 1998, p. 414) Concordamos inteiramente com a primeira colocação, em toda a sua obviedade; é a segunda que recusamos veementemente e que permanece intocada pelas alegações de Priest. Assim como Sorensen, Priest tem a tendência de embaralhar os dois casos. 16 Ademais, a formulação aristotélica do princípio da não-contradição já dava plenamente conta do exemplo trazido por Priest: É impossível que um e o mesmo predicado se aplique e não se aplique, sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo, a um e ao mesmo sujeito.17 Ao anexar “ao mesmo tempo” e “sob o mesmo aspecto” à sua definição, Aristóteles cobre perfeitamente o contra-exemplo proposto por Priest, pois se podemos considerar ou dizer que “a está dentro do quarto e a está não-dentro do 15 “Interpretação” no sentido formal. A mesma dubiedade pode ser vista em Sorensen (2002, p. 340), que afirma sem rodeios: “em minha opinião, a única teoria que permite crença no impossível é a explicação lingüística do objeto da crença. Crer é crer em algo que lembra uma sentença – se não for uma sentença da linguagem natural, então uma sentença na linguagem do ‘pensamento’.” A partir destas colocações de ambos os pensadores, fica difícil entender porque eles se colocam oposição à tradição filosófica segundo a qual não somos capazes de conceber o impossível, tradição que assume uma noção de crença com um conteúdo epistemológico vigoroso. 17 Metafísica, 1005b19s, apud. Tugendhat 1996. 16 101 quarto”, isto se dá somente porque uma parte está dentro e somente dentro do quarto, e outra parte está não-dentro e somente não-dentro do quarto. Ou seja, com relação a diferentes aspectos (partes) do corpo do indivíduo a, a relação estar dentro do quarto se aplica, ou não, à exclusão de sua negação. Ainda, no nosso entender, estar dentro do quarto é estar inteiramente dentro do quarto e estar não-dentro do quarto é estar não inteiramente dentro do quarto. Assim, um indivíduo que está parcialmente dentro do quarto está não-dentro do quarto e uma bola de futebol que está parcialmente dentro do gol está não-dentro do gol. Não desejamos impor nossas intuições lingüísticas como as dominantes, mas ao menos temos a prudência de apresentá-las. Seja qual for a definição da relação estar dentro (do quarto) que Priest assume, ele não a analisa a priori ou oferece uma explicação a posteriori para ela. Seu ponto de partida é uma suposta simetria entre estar dentro e estar não-dentro. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA O mesmo esvaziamento epistemológico da noção de crença presente no caso acima e em tantos outros aparece no segundo exemplo de Priest: o paradoxo do prefácio. Neste caso, Priest alega que a crença prefacial de que pelo menos uma afirmação presente no livro é falsa choca-se inevitavelmente com a afirmação implícita ao longo de todo o livro de que cada um de seus enunciados é verdadeiro, resultando em uma inconsistência: ∃p ~(Vp) ∧ ∀p (Vp). No entanto, segundo Priest, é plenamente racional que tenhamos esta crença. O modo mais natural de se entender o que é geralmente dito em inúmeros prefácios é que erros foram cometidos ao longo do livro, e que destes erros resultam enunciados falsos. Assim, para entender o que está acontecendo no paradoxo do prefácio, devemos elucidar minimamente a seguinte questão: em que consiste um erro? Todos que abraçam uma visão epistemologicamente robusta de conceber têm um compromisso implícito de explicar bem em que consiste o erro, na medida em que ocorre comumente que as pessoas estejam convencidas de que, por exemplo, 9x9=89, embora esta proposição seja tão impossível (e, conforme IMP⊃INC, inconcebível) quanto 2+2=5. O que está acontecendo aqui, do ponto de vista epistemológico? 18 18 Brockhaus é um dos poucos autores a levantar de maneira clara a questão do erro como um problema para visões de pendores psicologistas: “Mas se a lógica é psicologia geral, então o que queremos dizer com pensamento ilógico ou errado? Compare; se um planeta recém descoberto “viola” a primeira lei de Kepler, então o que tomávamos como uma lei de fato não o é. Mas não reagimos de maneira paralela quando alguém comete uma falácia de negar o antecedente. Esta 102 Numa visão como a nossa, que considera que o entendimento não está longe da percepção e da imaginação, existem tantas situações epistêmicas erradas quanto existem fatos errados: nenhuma. A natureza simplesmente é, e portanto não pode estar errada.19 Concepções, imaginações, imagens mentais e dados sensoriais, como parte da natureza, também não podem estar errados; eles simplesmente são, e nada mais. Resta, então, compatibilizar esta visão com o fato mencionado no parágrafo anterior de que, em algum sentido, acreditamos na verdade de sentenças falsas. Observe que nossa análise do erro terá por objeto sentenças que são proferidas incorretamente, ao mesmo tempo em que têm como base algum elemento epistêmico (sensível ou imaginativo), ou seja, o erro em juízos amparados sensorialmente ou introspectivamente. Estes são os casos que desafiam o psicologismo; eles englobam erros no emprego da imaginação, erros em juízos a priori e erros na percepção sensorial, que para o psicologismo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA encontram fundamento no mesmo universo sensível. Por conseguinte, não estamos preocupados em fazer uma análise das crenças falsas em geral e como chegamos a elas; dentre estas estão assunções erradas, generalizações apressadas, além de todo o conjunto de falácias que a lógica informal contemporânea tem catalogado.20 A crença falsa em geral, ou seja, não condicionada epistemologicamente, não representa um desafio para a noção de conceptividade. Na análise do erro, a seguir, partimos da estruturação semântica fregiana: signo (ou sinal, ou termo, ou sentença)→sentido (ou intensão primária, ou proposição, ou pensamento)→referência (ou extensão, ou valor de verdade). A relação entre estes três elementos é sucintamente colocada por Frege nos seguintes termos, em “Sobre o Sentido e a Referência”: Por meio de um sinal, exprimimos seu sentido e designamos sua referência. (p. 67) falta de analogia entre “leis da mente” e leis físicas representa uma séria rachadura na fachada do psicologismo, que Frege será ligeiro em explorar” (1991, p. 505). No que se segue, pretendemos lançar luz nesta questão e mostrar que ela não é um problema para nossa abordagem. 19 Esta idéia já está presente num proto-empirista como Hobbes: “A sensação e a imaginação naturais não estão sujeitas a absurdos. A natureza em si não pode errar”. (Leviatã, parte 1, capítulo IV) 20 Duas referências clássicas acerca de falácias são Copi (1986) e Walton (1989). 103 (É claro que, em nossa visão, o veículo para um conteúdo cognitivo de um sentido é um estado mental qualitativo. Voltaremos a este aspecto subjetivo em outros momentos da tese). Em nossa visão, erros são resultantes basicamente de algum tipo de lapso no encadeamento entre os três elementos semânticos acima delineados, assumindo, portanto, basicamente duas formas. i) Em primeiro lugar, pode ocorrer, no âmbito de uma sentença, uma conexão incorreta de um signo a um sentido, ou seja, um signo ser evocado incorretamente no lugar de outro. Neste caso, trata-se de uma discrepância entre o que pensamos (que é correto) e a expressão lingüística do pensamento. Por exemplo: durante uma aula que profiro sobre a filosofia de Hobbes, me refiro a este filósofo através do termo “Locke”, dizendo: “Locke estava sob impacto da nova ciência quando escreveu Leviatã”. Eu queria dizer Hobbes, mas proferi o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA signo “Locke”. Quando sou corrigido nesta afirmação, quem a corrige o faz porque percebe que os sentidos por mim atribuídos a Locke são no fundo condizentes com Hobbes (mesmo não lhe sendo necessários, como mostrou Kripke), tais como ser o autor do Leviatã. Estes sentidos são, neste contexto, evidências epistêmicas que eu desejava referir-me a Hobbes, e não a Locke.21 Trata-se aqui de um erro material, de um engano. Ou seja, na sentença “Locke estava sob impacto da nova ciência quando escreveu Leviatã”, eu simplesmente coloquei o signo “Locke” num lugar indevido.22 Este é, não obstante, um tipo 21 Repare que o fato de “Hobbes” e “Locke” serem aqui designadores rígidos e, portanto, denotarem em geral um referente independentemente de sentidos a eles relacionados, não obsta em nada ao tipo de erro a que estamos nos referindo. Kripke assente ao fato de associarmos sentidos aos nomes próprios; é isto que fazemos o tempo todo com a linguagem natural, proferindo sentenças. O que ele nega é que o nome próprio denote através destes sentidos. 22 Saber os motivos de uma troca de signos desta natureza já é uma questão mais complicada. Uma tentativa digna de menção é levada a cabo por Freud em Psicopatologia da vida quotidiana, onde toda sorte de erros, lapsos, atos falhos são analisados à luz do subconsciente. Eis um de centenas de casos: “Proibira um dos meus doentes, que decidira romper com a amante, que se comunicasse telefonicamente com ela, pois qualquer conversa só poderia tornar mais difícil sua luta contra o hábito que contraíra em relação a essa mulher, e o tinha aconselhado a dar-lhe a conhecer a sua última decisão por carta, apesar da dificuldade em fazê-la chegar às mãos da senhora. À uma da tarde, ele vem ver-me para me anunciar que arranjou um meio de resolver a dificuldade e pergunta-me de passagem se pode invocar a minha autoridade médica. Pelas duas horas, estando ocupado a redigir a carta de ruptura, ele interrompe-se bruscamente e diz à mãe, que se encontrava a seu lado: “E dizer que me esqueci de perguntar ao Doutor se posso referir-me a ele”. Corre logo ao telefone, pede a comunicação e diz: “Posso ver o senhor Doutor depois do jantar?” “Estás louco, Adolfo?”, responde-lhe, com espanto, a própria voz que, segundo o meu conselho, não devia voltar a ouvir. Tinha-se muito simplesmente “enganado” e pedira [à telefonista] o número do telefone da amante, em vez do meu.” (1901, pp. 253-254) Os chamados “atos falhos” são resultado também de algum tipo de afloração do sub-consciente. 104 relevante de erro que pode ocorrer na expressão sentencial de proposições a priori. Eu posso, por exemplo, afirmar que a sentença 2x3=5 é verdadeira por evocar incorretamente o símbolo “x” de multiplicação no lugar do símbolo “+” de soma. ii) Em segundo lugar, podemos ainda relacionar incorretamente um certo conteúdo cognitivo aparente (sentido) a um referente, ou seja, supor que o referente correspondente ao conteúdo cognitivo é uma coisa, quando no fundo trata-se de outra. Este tipo de erro é uma decorrência natural de podermos atribuir uma mesma aparência a diferentes extensões. Por exemplo, podemos observar um objeto distante, reconhecê-lo primeiramente como sendo um boi, afirmar “aquilo é um boi”, mas, chegando mais perto, notar que se trata de uma pedra. Este não é um caso em que tenhamos “percebido incorretamente” um boi, no primeiro momento. Como Hobbes já havia afirmado, não há percepções (ou concepções) incorretas. O que ocorreu foi que uma aparência (sentido) atribuível ao conceito PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA de boi ou de pedra foi atribuída ao conceito boi por diferentes razões (e.g., o objeto estar localizado exatamente no mesmo lugar onde antes foi visto um boi, por assemelhar-se a um boi etc.). Chegando mais perto do objeto, novas características fenomênicas, antes não acessíveis, foram acrescentadas à aparência inicial (e.g. ser imóvel, não possuir focinho, chifres ou pernas etc.) e, desta forma, excluíram o conceito boi como referente e estabeleceram o conceito pedra como o referente mais provável. A aparência inicial, por si só, não estava errada, em qualquer sentido apropriado do termo “errado”. O que ocorreu é que a aparência fenomênica (sentido) foi atribuída ao referente incorreto (conceito boi), o que baseou epistemicamente a afirmação de que “aquilo é um boi”. O mesmo vale para qualquer elemento presente em uma situação concebida fenomenicamente: por si só, tais elementos não podem estar errados, mas somente a atribuição deles a algum referente. Noutras palavras, aparências podem ser ambíguas. Tendo em vista estas duas possibilidades de erro, fica claro que, sempre que cometemos erros, eles são epistêmica ou fenomenicamente inocentes. Não há aparências que aparentem diferentemente do que elas, as próprias aparências, realmente aparentam. Repare que esta análise permite, inclusive, que eu esteja errado acerca do conteúdo de meus próprios pensamentos (no sentido subjetivo). Todo pensamento tem uma aparência, que pode muito bem ser tomada como sendo um pensamento diferente do qual ela de fato é. Ou seja, um pensamento de primeira ordem, tomado agora como referente de um pensamento de segunda 105 ordem, pode ser incorretamente identificado por meio de um pensamento de segunda ordem (introspecção): por exemplo posso crer que quero ver um filme, mas na realidade não querer ver o filme. Este tipo de erro em estados mentais de segunda ordem (introspecção) com relação a estados mentais de primeira ordem é bastante discutido no âmbito da filosofia da mente.23 De posse de uma análise do erro, podemos agora voltar ao caso do paradoxo. Dada a nossa descrição do erro, a advertência do prefácio (∃p ~(Vp)) é mais bem lida como afirmando que alguma das duas discrepâncias acima pode ocorrer. Ou seja, (i) algum termo pode ter sido empregado incorretamente em lugar de outro; ou (ii) conteúdos cognitivos foram incorretamente associados a referentes. Mas isto é diferente de afirmar pura e simplesmente que algum conteúdo epistêmico específico, de um enunciado específico do corpo do livro, resulta em falsidade, o que faz da advertência prefacial muito mais fraca, do ponto PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA de vista epistêmico, que as afirmações do corpo do livro. Em termos de atitude proposicional: o que foi dito no prefácio é uma conjectura acerca de possíveis erros. Isto significa dizer que não há, no paradoxo do prefácio, um conteúdo cognitivo, uma aparência que esteja sendo negada e afirmada, haja erro ao longo do livro ou não. Não há, portanto, qualquer dificuldade para nossa tese. Ademais, o conteúdo epistêmico do livro inteiro, reunido, não pode ser objeto de uma única atitude proposicional, por uma razão óbvia: é demais para nossa mente formar um juízo uno do conteúdo de um livro inteiro. Assim, a proposição ∃p ~(Vp) ∧ ∀p (Vp) não está disponível epistemicamente, na medida em que ∀p (Vp), que corresponde ao conteúdo do livro inteiro, não nos está disponível por causa de nossas óbvias limitações cognitivas. Noutras palavras: mesmo havendo afirmações contraditórias no prefácio e no livro tomados conjuntamente, não temos acesso a um estado mental unificado desta totalidade. Ainda com relação ao paradoxo do prefácio, vale notar um curioso exemplo histórico. Trata-se das afirmações prefaciais de Wittgenstein, presentes no Tractatus. Talvez por estar alerta ao fato de que não podemos pensar o impossível ou uma contradição,24 Wittgenstein lá expõe o que pode ser 23 Ver Horgan e Tieson (2002, p, 526 e nota 22). Estes autores nos remetem a Siewert, C. (1998). The Significance of Consciousness, Princeton University Press, capítulos 1 e 2, para uma discussão desta questão. 24 “O pensamento contém a possibilidade da situação que ele pensa. O que é pensável é também possível” (Tractatus, 3.02). Esta é uma enunciação explícita de CON⊃POSS. 106 considerado uma excelente alternativa à tradicional afirmação encontrada nos prefácios, que se aproxima de nossa análise acima, e que evita completamente o paradoxo do prefácio: Se esta obra tem algum valor, ele consiste em duas coisas. Primeiramente, em que nela estão expressos pensamentos, e esse valor será maior quanto melhor expressos estiverem os pensamentos. Quanto mais perto do centro a flecha atingir o alvo. – Nisso, estou ciente de ter ficado muito aquém do possível. Simplesmente porque minha capacidade é pouca para levar a tarefa a cabo. – Possam outros vir e fazer melhor. Por outro lado, a verdade dos pensamentos aqui comunicados parece-me intocável e definitiva. Wittgenstein separa claramente a expressão lingüística do pensamento, que ele afirma estar incorreta, da aparência dos pensamentos (“a verdade dos pensamentos (...) parece-me intocável”), que crê ser verdadeira. Assim, ele PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA reconhece a possibilidade de que o que está dito em sua obra seja incorreto, sem recair no Paradoxo do Prefácio, ao notar que o pensamento que as palavras visam a expressar não está incorreto, embora sua expressão lingüística possa incorrer em erro. Este é justamente o caso (i) que estipulamos acima. Portanto, mesmo considerando a possibilidade de erro, não há qualquer contradição na colocação prefacial de Wittgenstein, mas sim a admissão metalingüística de que pode existir uma discrepância entre o que foi pensado e sua expressão lingüística. Creio que a sistematização que oferecemos para o tratamento do erro está plenamente disponível em “Sobre o Sentido e a Referência”. Já vimos que, nesta obra, Frege distingue três níveis semânticos: signo, sentido e referência (sentença, pensamento e valor de verdade). Embora Frege não discuta a questão do erro, fica evidente, dada a sua sistematização semântica, que erros podem ocorrer somente de duas formas diferentes: na cadeia sentença-pensamento e na cadeia pensamento e valor de verdade. Não há uma cadeia direta sentença-valor de verdade na qual incida um incorreção, pois estes dois elementos são sempre mediados por pensamentos na formação do que Frege chama de “juízo”. 2.3 “Somos Capazes de Perceber o Impossível” 107 Vimos em 2.2 que muitas das críticas à noção de conceptividade como indicação de possibilidade (CON⊃POSS) baseiam-se na idéia de que somos capazes de crer no impossível. Contudo, ficou claro que estas críticas partem de uma visão vazia de crença e que, neste sentido epistemologicamente fraco, de fato cremos em sentenças impossíveis e/ou contraditórias. E nisto não há novidade alguma. Há alguns autores, no entanto, que defendem que somos capazes de conceber, e mesmo perceber, o impossível, num sentido epistemologicamente relevante. Tidman encontra-se entre eles. Suas críticas continuam a incidir sobre CON⊃POSS, mas são dotadas de uma maior profundidade fenomenológica. 2.3.1 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Objeção: Somos Capazes de Ver o Impossível Tidman (1994) defende que somos capazes de imaginar e mesmo ver o impossível, baseado em desenhos de estados de coisas que, de alguma outra maneira, sabemos serem impossíveis. Alguns desenhos do artista plástico M. C. Escher são tidos por Tidman como ocorrências típicas de imagens do impossível: Em meu escritório eu tenho uma cópia impressa de “Ascendendo e Descendo”, que mostra monges subindo (e descendo) uma escada, e que embora continuem a subir (descer), chegam de volta a seus pontos de partida. (...) Me parece que a coisa natural a ser dita de tais desenhos é que eles são figuras de estados de coisas impossíveis. Mas, claro, dado que parece que podemos formar imagens mentais de estados de coisa impossíveis desta maneira, parece que podemos imaginar o impossível. (Tidman 1994, p. 300). Figura tipo escada de Escher, segundo Tidman. 108 Uma resposta possível para esta colocação de Tidman é que esta figura não representa de fato um estado de coisas impossível, pois podemos muito bem construir objetos tridimensionais reais (e portanto possíveis) que, de um certo ângulo, sejam semelhantes à escadaria de Escher. Assim, o desenho de Escher poderia ser visto como um desenho deste tipo de objeto tridimensional possível, e não de uma escada impossível. Contra esta possível resposta à sua objeção, Tidman argumenta de duas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA maneiras: Em primeiro lugar, mesmo que fosse possível uma escadaria que, quando vista de uma certa perspectiva, tivesse exatamente a mesma aparência da escadaria de Escher, a imagem de Escher não é uma imagem desta escadaria. Escher, muito claramente, pretende representar uma escadaria impossível. Vê-la de outra maneira é claramente vê-la de uma maneira estranha, não-natural. Segundo, tal manobra não salvará o apelo a imagens mentais como um teste para possibilidade. Pois suponha que tenhamos uma imagem tipo-Escher. Como podemos dizer do que esta imagem é? Por que não supor que a imagem da escadaria acima é uma imagem de uma escadaria tal que, embora você continue a subir, você chega de volta ao ponto de partida? Mesmo que ela pudesse ser uma imagem de outra coisa, ela também não é uma imagem disto? Se sabemos que esta escadaria não é possível, isto não deve ser por meio do apelo a algo diferente de nossa habilidade de formar imagens mentais? (p. 300-301) Nesta colocação, Tidman assume (corretamente) que um mesmo desenho pode ser interpretado como vários estados de coisas diferentes; ou seja, uma mesma figura gráfica pode gerar diferentes imagens mentais. Ele oferece, como evidência deste fato epistêmico, a conhecida figura do pato-coelho, empregada por Wittgenstein. Figura Pato-Coelho.25 25 Preferimos reproduzir a figura encontrada em Fourez (1995) do que a que o próprio Tidman apresenta, pela qualidade superior da ilustração da primeira. 109 Segundo Tidman, um dos responsáveis por esta possibilidade de múltiplas interpretações de uma mesma figura é o elemento intencional presente em imagens mentais. Este elemento determina, ao menos parcialmente, o que nossa imagem mental representa, e tem, portanto, um impacto cognitivo relevante: A raiz da objeção (...) é o problema trazido pelo elemento de intencionalidade envolvido em imagens mentais. Depende em parte de nós o que conta como uma imagem de um estado de coisas. Considere o exemplo de Wittgenstein de patoscoelhos. São eles patos, ou são eles coelhos? A resposta, parece, depende de nós. (Ibid., p. 301).26 Assim, com relação ao desenho da escadaria, de Escher, Tidman concede que podemos tomá-lo como uma imagem de algum objeto concreto possível, visto de um certo ângulo. Ocorre porém que, segundo Tidman, dado o componente intencional de nossas imagens mentais, podemos também ver a mesma figura PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA como a imagem de uma escada que está sempre subindo (ou sempre descendo). Por que uma interpretação deve se sobrepor à outra como a interpretação correta da figura? Diante desta pergunta, a estratégia que delineamos acima – interpretar a figura da escadaria como a imagem de um estado de coisas possível, em detrimento de uma interpretação que a veja como uma imagem do impossível – se mostra, aos olhos de Tidman, inteiramente impositiva e injustificada. Qualquer figura pode representar várias situações, possíveis ou impossíveis,27 de modo que, para determinar quais são possíveis e quais são impossíveis, é preciso um outro meio.28 (Vale lembrar, contudo, que há figuras que já têm sua interpretação fixada: fotografias. Uma fotografia determina obrigatoriamente como correta a imagem mental da situação fotografada, na medida em que são fotografias daquela situação. Por isto, fotografias são sempre figuras possíveis; variações na interpretação da fotografia devem ser descartadas como incorretas.) 2.3.2 Resposta: Inspecionando uma Imagem Mental 26 Muitos outros exemplos são fáceis de encontrar, a começar pelo cubo de Necker. Para começar, toda figura pode representar ao menos uma imagem possível, a saber, a imagem de si mesma (se a figura existe, é claro que, se ela pode gerar uma imagem, então esta imagem é possível). Nós defensores do princípio da conceptividade como evidência de possibilidade não estamos interessados neste sentido trivial de implicação de possibilidade a partir da conceptividade. 28 Segundo Tidman, este outro meio é a intuição modal. Ver Tidman (1996). 27 110 Em resposta à objeção de Tidman, defendemos que a escadaria impossível de Escher é concebível somente prima facie. Se considerarmos esta imagem (e não somente a respectiva figura) a partir de uma reflexão mais detida, secunda facie ou ideal, então fica claro que ela não se qualifica como uma imagem de uma escada que sobe ou desce perpetuamente. Casos como este – em que uma situação inconcebível idealmente se mostra prima facie concebível, mas que sucumbe a uma análise ou reflexão mais detida e epistemologicamente mais responsável – são comuns. Um exemplo típico, de que já tratamos, diz respeito ao logicismo de Frege, que é prima facie concebível, mas que se mostra inconcebível dentro de uma reflexão mais completa, em função do paradoxo de Russell. Do mesmo modo, a interpretação da figura desenhada por Escher como uma escadaria que está sempre subindo (ou descendo), após exame mais detido, se mostra inconcebível. (Como isto se dá exatamente, veremos um pouco mais abaixo). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Nossa posição é que cada imagem mental já definida, i.e. qualquer figura já interpretada como uma certa situação, conforme uma dada intenção (e.g., a figura pato-coelho já interpretada como coelho), deve poder ser inspecionada detidamente, de modo que seja checado se a imagem representa uma situação impossível ou não. Defendemos também que, de uma análise mais detida deste tipo não resulta qualquer exemplo de uma imagem impossível que possa atentar contra CON⊃POSS. Sorensen (2002) faz comentários que vão no mesmo sentido que os nossos. Ele, bem como Tidman, crê que existam figuras que sirvam de imagens do impossível ou mesmo que sejam inconsistentes. Não obstante, ele estabelece padrões muito mais altos do que aqueles oferecidos por Tidman para que aceitemos algo como uma imagem do impossível. Não exporemos todos os requisitos que Sorensen afirma que devem ser satisfeitos, mas apenas aquele que é pertinente ao questionamento que Tidman faz.29 Consoante conosco, Sorensen estabelece que todas as figuras candidatas a serem imagens do impossível devem estar abertas à inspeção: 29 É claro que podemos estabelecer os requerimentos para uma figura do impossível de modo tão severo, que seu cumprimento seja de início impossível. 111 Uma descrição de uma situação impossível deve ser detalhada o suficiente de maneira a transmitir a natureza da impossibilidade. O mesmo para uma figuração30 [de uma situação impossível]. A piada de Paul Tidman (1994) sobre um quadrado redondo viola este requerimento. _________________________ Quadrado redondo, visão lateral. Já que Hume não está presente para contestar a evasividade de Tidman, eu contesto em nome de Hume. Se perspectivas evasivas são permitidas, qualquer um pode “desenhar” qualquer coisa. • Qualquer coisa, vista de longe. Uma figuração genuína não deve colocar qualquer limite em detalhes potenciais. Eu não insisto em detalhes factuais ilimitados. Eu somente requeiro que o espécime esteja aberto para exame. (pp. 343-344) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Embora o exemplo da escadaria de Escher que estamos examinando não seja tão precário quanto o quadrado redondo ou qualquer coisa vista de longe, de fato não há tantas diferenças assim. Um exame mais cuidadoso da imagem da escadaria impossível, que vá além de uma mera inspeção prima facie superficial, evidencia que o lado a da figura é mais acuradamente descrito como uma seção da escada cujos degraus estão num sentido descendente enquanto a inclinação está num sentido ascendente. Este lado é o principal responsável, mas não o único, pela ilusão prima facie de que os monges estão sempre subindo (ou sempre descendo) a escadaria. Deve ser ressaltado que isto pode ser notado a partir de uma interpretação da figura como uma imagem de uma escada que sobe (ou desce) perpetuamente (e não como uma imagem de um outro objeto factível, visto de um ângulo pouco usual). Quando inspecionamos detidamente a imagem desta maneira, a impressão prima facie de que a escada sobe perpetuamente mostra-se inconcebível. Por outro lado, não há nada de inconcebível (e, portanto, de impossível) em haver uma escada cujos degraus estejam num sentido descendente, mas que a escadaria como um todo esteja inclinada para cima, de modo que quem quer que a percorra, de fato mantenha-se no mesmo nível; após a inspeção, nossa 30 O que Sorensen chama aqui de “figuração” está mais próximo do que temos chamado de “imagem mental” do que daquilo que temos chamado de “figura”, no contexto da discussão presente. 112 interpretação da figura tende a colapsar para uma escadaria com estas características. Salientamos que este tipo de inspeção está disponível para qualquer interpretação (ou imagem mental) obtida a partir da figura, partindo-se de qualquer intenção. Portanto, não somos culpados da alegada arbitrariedade na interpretação da figura. Isto é, no caso em questão, somos capazes de notar que a figura não é uma escadaria que sobe perpetuamente inspecionando-a como uma escadaria que sobe perpetuamente, e não como imagem de outro objeto. Do mesmo modo, as imagens mentais interpretadas, nascidas a partir da multiplicidade de intenções que podem ser relacionadas a uma mesma figura, devem todas poder ser inspecionadas livremente, ao limite ideal, a partir de nossas capacidades cognitivas mais básicas. É desta maneira que examinamos a conceptividade de uma imagem. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Assim sendo, ao contrário do que diz Tidman, não há imposição na escolha das interpretações de figuras, da parte dos defensores do princípio da conceptividade. A imposição fica por conta de Tidman, ao estipular que nossa intenção é capaz, quase que por si só, de determinar o que somos capazes de conceber. Segundo ele, pelo simples fato de sermos capazes de interpretar prima facie a figura como uma escada perpétua, somos obrigados a conceder que somos capazes de ver uma escada perpétua (e por extensão, quadrados redondos, ou ainda qualquer coisa à distância), a despeito do que uma análise mais acurada do que a imagem resultante possa revelar. E, nessa visão, nossas inspeções na própria figura interpretada como escada perpétua não têm o poder de desqualificar a figura como uma imagem de tal coisa, o que é inaceitável. 2.3.3 Observação: a Questão da Intencionalidade Em nossa resposta a Tidman, não nos opomos ao uso que ele mesmo faz da noção de intencionalidade. Ao contrário, endossamos a significância da intencionalidade na determinação do que estamos concebendo. No entanto, uma crítica adicional pode surgir a partir da posição que assumimos quanto à intencionalidade. Se a noção de intencionalidade é importante para determinar que imagem mental uma figura enseja (e.g., para determinar se a figura pato-coelho enseja a imagem 113 mental de um pato ou de um coelho), então não são somente os estados mentais intrínsecos os responsáveis pelo conteúdo do que concebemos: a intencionalidade também desempenha um papel central. Assim, se partirmos do pressuposto de que a intencionalidade e as qualidades intrínsecas de um estado mental são independentes, então o que responde pelo conteúdo de um ato mental não é totalmente dependente da fenomenologia deste ato mental: há também o aspecto intencional, não fenomênico. Esta crítica teria razão de ser, se não fosse por um fato: a intencionalidade também tem um aspecto fenomenológico, de modo que não a podemos separar da fenomenologia de imagens mentais. Posto de outra maneira, a intencionalidade de nossos estados mentais (aboutness) tem impacto fenomenológico sobre os PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA mesmos. Esta tese é defendida por Horgan e Tieson (2002): Advogamos por uma importante alegação sobre a interpenetração de fenomenologia e intencionalidade: Intensionalidade Fenomênica: Há um tipo de intencionalidade permeando a vida mental humana, que é constitutivamente determinada pela fenomenologia somente. (p. 520) Esta intencionalidade é narrow, ou seja, esta presente na própria constituição fenomenológica dos estados mentais, de modo que só temos acesso a ela por meio de introspecção. Ela é parte indissociável da fenomenologia. Horgan e Tieson (2002) tornam mais clara sua tese da Intencionalidade Fenomênica através de um experimento de pensamento: Assuma que duas criaturas sejam duplicatas fenomênicas somente no caso em que a experiência total de cada criatura, através de sua existência, é fenomenicamente exatamente similar à da outra. Podemos então enunciar a tese da intencionalidade fenomênica da seguinte maneira: há um tipo de conteúdo intencional, tal que quaisquer duas possíveis duplicatas fenomenais têm exatamente os mesmos estados intencionais vis-à-vis tais conteúdos. (p. 524) Ou seja, se duas pessoas partilham exatamente o mesmo estado mental, então elas partilham o mesmo estado intencional. Isto quer dizer que não somente elas estão pensando a mesma coisa, como também sobre a mesma coisa. E isto quer dizer ainda que aquilo sobre o que pensamos, aboutness, tem um aspecto fenomenológico que lhe é indissociável: se dois indivíduos têm exatamente o mesmo estado mental, então eles estão pensando sobre a mesma coisa. 114 Podemos ilustrar o caráter fenomênico da intencionalidade, fazendo um novo experimento de pensamento conjugando os experimentos de Horgan-Tieson e da figura pato-coelho. Suponhamos dois indivíduos A e B que observem a figura pato-coelho em condições hipotéticas idênticas (mesma posição, capacidade de visão etc.). Se A tem a imagem mental de um pato e B tem a imagem mental de um coelho, então eles têm intencionalidades distintas: para A, sua imagem mental é sobre um pato, e para B, sua imagem mental é sobre um coelho. Mas, se A e B têm a mesma imagem mental, digamos a de um pato, então eles necessariamente têm a mesma intencionalidade: ambas as imagens são sobre um pato. É claro, no entanto, que diferentes imagens mentais podem ser sobre a mesma coisa, i.e., podem ter a mesma intencionalidade, mas ser fenomenicamente distintas. Por exemplo, dois indivíduos podem ter uma imagem do sorriso de Giselle Bündchen (ou sobre o sorriso de Giselle Bündchen), mas estas imagens PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA podem muito bem ser distintas (provavelmente o serão). Mas, e este é o ponto, se dois indivíduos têm rigorosamente a mesma imagem mental do sorriso de Giselle Bündchen, então invariavelmente eles têm a mesma intenção. Conclui-se que uma diferença de intenção é sempre uma diferença fenomênica e uma identidade fenomênica é sempre uma identidade de intenção (embora a identidade intencional possa se dar por meio de estados mentais diferentes). O resultado disto é a completa inclusão da intencionalidade dentro do âmbito da fenomenologia. A questão da intencionalidade nos será de grande importância, quando tratarmos da fenomenologia das idéias gerais, ainda neste capítulo. 2.4 “Imagens Mentais são Imprecisas” Para que o princípio CON⊃POSS seja correto, é preciso que nossas concepções das situações sejam minimamente claras, a fim de proporcionarem condições de aferição da possibilidade da situação. Alguns autores questionam a precisão de nossas imagens mentais e afirmam que elas são vagas e mal definidas demais para darem conta de nossa epistemologia modal; para tanto, a faculdade do entendimento ou a intuição seriam mais apropriadas. 115 2.4.1 Objeção: Imagens Mentais São Mal Definidas Tidman (1994) é um daqueles que chamam a atenção para a imprecisão das imagens mentais. Esta imprecisão faria do exercício de conceptividade algo inútil, na medida em que nos faltaria uma capacidade de conceber situações que fosse potente o bastante a ponto de justificar uma crença modal. Para mostrar esta imprecisão, Tidman propõe um experimento de pensamento (façam-no!): PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Imagine um homem de pé em uma rua movimentada. Agora, considere questões da seguinte espécie, sobre a imagem que você teve inicialmente. Ele tinha um chapéu? De que cor eram seus olhos? Suas roupas? Quantas pessoas, veículos etc. estavam na imagem, além dele? Comumente, as pessoas não têm respostas definidas para questões deste tipo. Não é que a imagem contenha todas estas informações e normalmente nós simplesmente não notamos. Em vez disto, ocorre que imagens mentais são, por sua própria natureza, mal definidas e imprecisas. (p. 300) Tidman está chamando a atenção para um fato fenomenológico relevante. Realmente, nossas imagens mentais ou concepções mentais são, num certo sentido, imprecisas. Elas não são como fotografias dispostas em nossa consciência, prontas para inspeção introspectiva. Quando formamos uma imagem mental de uma situação particular, não configuramos uma situação particular em todos os detalhes, mas sim uma imagem vaga e fugidia. A questão é: o que este fato fenomenológico indica? Para Tidman, ele é razão suficiente para não depositarmos confiança modal na faculdade de conceber. 2.4.2 Resposta: Imagens Mentais são Imagens Arbitrárias Cremos que o fato fenomenológico acima reportado deva ser explicado de outra maneira. A imprecisão de nossas concepções deve ser vista como um indicador de que nossas faculdades da sensibilidade (percepção e concepção) e do entendimento, tradicionalmente separadas enfaticamente por filósofos racionalistas,31 estão muito mais próximas do que eles estariam dispostos a 31 Fora do âmbito do período histórico da modernidade (no qual os racionalistas são identificados nominalmente: Descartes, Leibniz, Espinoza e Kant), o termo racionalista sofre um grande esvaziamento em função da pulverização doutrinária em que vivemos. Cabe então um esclarecimento acerca do que queremos dizer com o termo “racionalista”. Tomando por base 116 aceitar. De fato, elas são contínuas. Assim sendo, quanto mais abstrato ou genérico aquilo do que formamos uma imagem, mais “imprecisa” e mal-acabada a imagem nos parecerá; e quanto mais particular aquilo do que formamos a imagem, mais precisa e vivaz ela nos parecerá. Sensibilidade e entendimento não são faculdades separadas, como Kant nos quis fazer crer. No que se segue, argumentaremos neste sentido, tendo como fio condutor a noção de idéia geral, de Locke, a qual eventualmente discutiremos. A continuidade fenomenológica entre sensibilidade (percepção e concepção) e entendimento pode ser vista se levarmos mais adiante o experimento de pensamento trazido por Tidman. Quando, conforme Tidman nos pede, imaginamos um homem de pé numa rua movimentada, não imaginamos um homem vestindo calça jeans e tênis, tomando um picolé, de olhos castanhos, nariz aquilino, pele clara etc. O que imaginamos é um homem de pé arbitrário, numa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA rua movimentada arbitrária. O dado interessante é que, o fato de não o imaginarmos trajando calça jeans ou calça de veludo não implica que não o imaginamos sem calça; o fato de não o imaginarmos de tênis ou descalço não implica que o imaginamos sem pé. O que Tidman toma por imprecisão é, na verdade, este traço arbitrário de nossa imaginação, que faz com que cada elemento que compõe a imagem esteja presente, não como algo específico ou particular (um homem específico, com roupas específicas, traços físicos específicos etc.), mas sim como uma representação genérica. Yablo (1993) faz um comentário que vai exatamente no sentido que estamos sugerindo. Ele enfatiza que quando imaginamos uma situação em que há um tigre atrás da cortina, não é preciso que tais elementos sejam imaginados de modo que somente um tigre em particular, uma cortina em particular etc. se enquadrem. Podemos muito bem imaginar um tigre sem que cada uma das propriedades que caracterizam os tigres estejam totalmente especificadas; isto permite que vários tigres particulares, com diferentes características específicas, possam se adequar à imagem. A questão Cassam (2000, passim) e Bealer (2001, p. 72-74), delineamos os principais traços doutrinários que doravante identificamos por meio deste termo: (a) a intuição racional é a fonte de todo o nosso conhecimento a priori (Cassam é mais comedido que Bealer, aceitando que ele seja talvez responsável por parte de nosso conhecimento a priori; (b) a intuição racional não é mediada ou dependente de estados mentais sensíveis, sendo, portanto, diferente dos procedimentos utilizados em experimentos de pensamento; (c) a intuição racional pode consistir em: i) ver, pela luz do entendimento (em oposição a qualquer faculdade imaginativa), que uma proposição é necessária; ii) ter um insight na natureza de entes abstratos ou um contato direto com tais entes; (d) intuição é uma atitude proposicional sui generis, diferente da crença, do juízo e do achar (guessing), por exemplo. Na presente tese, defendemos que todas estas posições são falsas. 117 central aqui é que, mesmo que o conteúdo de minha imaginação não especifique todas as características do tigre e sua posição, tais aspectos são pensados como definidos, e não como vácuos. Coloca Yablo: (...) mesmo que haja muito em minha situação do tigre que eu não tenha especificado por sua irrelevância para a proposição em questão (e.g., a distância entre o nariz do tigre e a cortina), eu ainda penso nestas coisas como totalmente definidas na própria situação. Assim, uma situação na qual o tigre se situa a nenhuma distância da cortina, supondo que se pode imaginar isto, não é o que tenho em mente. (1993, p. 27). Logo, para cada característica determinante para a situação imaginada (i.e., que faz dela uma situação de um tigre atrás da cortina, e não de outra coisa), não é preciso que a especifiquemos, mas somente que assumamos sua existência como não vácua. Ou seja, não é preciso que cada característica da imagem mental seja imaginada de maneira específica para que tenhamos acesso a um estado mental PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA qualitativo relativo a uma situação; tais elementos são preenchidos de modo arbitrário. É este elemento arbitrário que Tidman confunde com uma simples imprecisão. E quando penso em conceitos gerais ou os emprego? O que ocorre? Acreditamos que a explicação que acabamos de dar para a dita “imprecisão” de imagens mentais levantada por Tidman serve também para dar conta de boa parte da epistemologia de idéias gerais, bem de acordo com a visão de Locke. Vejamos. Lógicos e filósofos com pendores racionalistas tendem a definir conceitos como propriedades abstratas, conjuntos de objetos ou funções definidas sobre objetos. Na visão racionalista, nosso contato epistêmico com tais objetos ocorre de duas maneiras: através de intuição racional ou com base em alguma faculdade do entendimento, de caráter não sensível. Já os lógicos e filósofos de orientação nominalista associam conceitos à habilidade lingüística de empregar certas palavras com sucesso, dentro do contexto correto; em decorrência disto, em muitos casos, a abordagem nominalista vê a questão epistemológica como mal colocada. A partir destes dois pontos de vista, entender nosso contato epistêmico com conceitos como fenômenos mentais introspectáveis é considerado um erro e um arcaísmo ingênuo. Discordamos das abordagens descritas genericamente acima. Em nossa visão, nosso contato epistêmico com conceitos se dá da mesma maneira em que se 118 dá nosso contato epistêmico com situações sensíveis. Locke é a referência clássica aqui, com sua noção de idéia geral: defendemos que, para fins de testes de conceptividade, temos contato epistêmico com idéias gerais, correspondentes a conceitos. Assim como é inconcebível que a superfície da parede do meu quarto seja inteiramente branca e inteiramente azul, também é inconcebível que um quadrado seja redondo ou que p ∧ ~p. Com relação ao exemplo da parede do meu quarto, não há muita polêmica, mesmo para o racionalista, pois ela é um particular disponível perceptualmente; em virtude desta condição, a imagem mental correspondente nos é disponível para que possamos fazer o teste de conceptividade: conceber (ou ver) a parede como branca exclui concebê-la como azul. Cremos que grande parte dos filósofos concordaria com isto. Já com relação ao quadrado redondo ou p ∧ ~p, um racionalista (ou nominalista) questionaria: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA “como escrutinar um conceito por meio de uma imagem mental? A imagem mental de um quadrado não é uma imagem do conceito de quadrado, mas sim uma imagem de um quadrado em particular, com propriedades próprias, e, portanto, incapaz de representar o conceito geral de quadrado”. Ou, como colocaria Frege: “o conceito de quadrado não é quadrado”. É neste ponto que podemos ver que, o que Tidman chama de imagem imprecisa em seu exemplo de uma imagem de um homem em particular é, no fundo, uma imagem arbitrária que, não obstante, consegue representar ou simular epistemicamente as características que, por definição, todas as instâncias do conceito universal de homem de pé devem ter. Num certo sentido, conceitos universais são representáveis por imagens ultra-imprecisas, ou seja, com uma série de elementos “preenchidos” arbitrariamente. Isto quer dizer que podemos operar epistemologicamente (conceber, imaginar) com conceitos universais a partir da imagem de um indivíduo arbitrário que condensa as propriedades definitórias do conceito, sem nos comprometermos com propriedades nãodefinitórias, do mesmo modo que somos capazes de imaginar um homem de pé numa rua movimentada, sem nos comprometermos com a cor de seus olhos ou de sua roupa (que não fazem parte da idéia de homem). O que Tidman vê como defeito, no final das contas, é virtude: nossa capacidade de formar idéias gerais. A partir destes exemplos, vê-se como há um contínuo epistemológico desde a formação de imagens mentais de objetos particulares ou situações particulares até a formação de imagens mentais de conceitos ou situações universais. Em todos 119 os casos, temos uma imagem mental que responde epistemologicamente pelo conteúdo cognitivo da proposição. Se imaginamos Pelé de pé na Rua Visconde de Pirajá, há vários aspectos nos quais esta imagem bastante particular é determinada (deve ser um homem de estatura mediana, negro, com o mesmo penteado característico etc.) e infinitos outros sob os quais esta imagem é indeterminada ou arbitrária (pode estar de terno ou roupa esporte, sorrindo ou sério etc). Se imaginamos agora uma situação mais geral de uma pessoa qualquer de pé em uma rua qualquer, esta imagem também será determinada em um número finito de aspectos e indeterminada em um número infinito de outros aspectos. Quanto maior for o número de aspectos determinados e especificados da situação, mais sensível ela nos parecerá, fenomenologicamente; quanto menor for o número de aspectos determinados e especificados na imagem da situação, mais universal e menos sensível e figurativa a imagem nos parecerá. O erro epistemológico dos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA racionalistas foi, ao se depararem com nossa fenomenologia para conceitos, estipular uma outra faculdade, que responde cognitivamente pelo conhecimento a priori de conceitos universais: o entendimento. Esta faculdade seria não-sensível e independente de estados mentais. Ao estipularem tal faculdade, caem num vazio epistemológico e modal difícil de lidar. O que queremos colocar é que, tanto para particulares quanto para universais, temos estados mentais qualitativos que os simulam epistemologicamente, estados qualitativos estes que nos são disponibilizados por meio de introspecção. Estes estados qualitativos são aqueles que respondem por nossa cognição modal, através de testes de conceptividade (ou experimentos de pensamento). 2.4.3 Objeção: Idéias Gerais são Inconsistentes A visão de que idéias gerais podem ser expressas e, para todos os efeitos, simuladas epistemologicamente por meio de imagens mentais arbitrárias traz algumas críticas, sendo a mais famosa delas a crítica de Berkeley, segundo a qual tais objetos são inconsistentes. Relata-nos Sorensen (2001, p. 102): 120 Mas como George Berkeley (1710) primeiro enfatizou em sua crítica à teoria das idéias abstratas de John Locke, objetos arbitrários são incoerentes. Um F arbitrário tem todas e somente aquelas propriedades que são compartilhadas por todos os Fs. Logo, um número arbitrário é ou ímpar ou par. Ainda, ele não é nem ímpar nem par. Portanto, o princípio da bivalência implica que indivíduos arbitrários são logicamente impossíveis.32 O que ocorre aqui é que, todo número tem a característica de ser par ou ímpar. Logo, a idéia geral de número deve ser par ou ímpar: Pn ∨ In. Contudo, se idéia geral de número for par, isto se dá à exclusão de ser ímpar, e se for ímpar, isto se dá à exclusão de ser par. Daí, temos que a idéia geral de número não pode ser par ou ímpar: ~(Pn ∨ In). A conjunção destas duas características de idéias gerais resultaria em: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA (Pn ∨ In) ∧ ~(Pn ∨ In). Contradição. O caso clássico dos triângulos, trazido por Lowe (1995), serve como outro exemplo deste mesmo problema. Ao assumirmos idéias gerais como fruto do despojo de todas as propriedades não definitórias do conceito, então a idéia geral de um triângulo não pode conter a propriedade de ser escaleno, nem conter a propriedade de ser isósceles, nem a propriedade de ser eqüilátero. Mas acontece 32 Como nota Lowe (1995, p. 158), a noção de idéia geral em Locke oscila entre duas versões: (i) idéia geral como englobando todas as características existentes em todos os indivíduos que recaem sob o conceito que a idéia geral representa. Neste sentido: “[A idéia geral de triângulo] não deve ser nem oblíquo, nem retângulo, nem eqüilátero, equicrural, nem escaleno; mas todos e nenhum destes ao mesmo tempo.” (Ensaio, 4.7.9); e ainda: “[a idéia geral de triângulo é aquela] na qual algumas partes de várias idéias diferentes e inconsistentes são agrupadas.” (Ensaio, 4.7.9). (ii) Idéia geral como representando o núcleo definitório do conceito em questão comum a todos os objetos particulares que recaem sob o conceito, à exclusão de quaisquer propriedades peculiares que os objetos particulares podem ter. Neste sentido: “[As crianças], quando o tempo e uma maior familiaridade as faz observar que há muitas outras coisas no mundo que, em algumas concordâncias comuns de forma, e de várias outras qualidades, parecem seu pai e sua mãe (...) formam uma idéia, da qual eles encontram muitos particulares que partilham; e para isto eles dão o nome de homem. E então eles passam a ter nomes gerais, e uma idéia geral. Na qual eles não produzem nada de novo, mas somente deixam de fora aquilo que é particular na idéia complexa que elas tinham de Peter e James, Mary e Jane, e retêm somente o que é comum a todos eles.” (3.3.7) (grifos nossos). No sentido (i), a abstração é um processo de agregação de propriedades concebíveis do objeto (inclusive propriedades não definitórias); no sentido (ii), a abstração é um processo de eliminação de propriedades peculiares aos objetos particulares que recaem sob o conceito, i.e., de depuração, até que se forme uma idéia geral que se reduz às propriedades tomadas como definitórias. Tanto (i) quanto (ii) trazem problemas de inconsistência para a noção de idéia geral lockiana. Dado que (i) é obviamente inconsistente, e que a solução para este problema de (i) é recorrer a (ii), atemo-nos à noção (ii) (que é assumida por Sorensen) e em como podemos resolver o problema da inconsistência aqui. 121 que todo triângulo tem a propriedade de ser ou escaleno, ou isósceles, ou eqüilátero. Formalmente: ~(ESCt ∨ ISt ∨ EQt) ∧ (ESCt ∨ ISt ∨ EQt). Novamente, uma contradição. 2.4.4 Resposta: Idéias Gerais e Intencionalidade Para resolver o problema da inconsistência, podemos buscar subsídio em nossa discussão de Tidman (1994) sobre figuras e imagens, e ainda em Lowe (1995). Vimos que Tidman, baseado em Wittgenstein, estabelece distinção entre (i) figura PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA e (ii) imagem mental. As propriedades da figura são muito bem determinadas, até mesmo mensuráveis; já as propriedades de uma imagem mental dependem em larga medida de elementos intencionais, conforme as quais podemos dar diferentes interpretações para a mesma figura. O exemplo clássico é o patocoelho, no qual uma mesma figura dá vazão a duas imagens mentais distintas, ora de pato, ora de coelho. Lowe (1995, pp. 159-160) faz uma distinção semelhante a esta, entre (1) propriedades das próprias idéias e (2) propriedades que as idéias representam as coisas como as tendo. Segundo Lowe, as propriedades das idéias (o que Wittgenstein/Tidman chamaria de figuras) são sempre bem determinadas, enquanto as propriedades que as idéias representam as coisas como as tendo (ou, para Wittgenstein/Tidman, as imagens mentais, interpretadas, da figura) são variáveis, dependendo de elementos intencionais. Esta divisão é válida tanto para “conceptos” quanto para “perceptos” (i.e, para o que se apresenta na concepção e na percepção). Lowe ilustra sua distinção com uma figura de um homem, montada com pauzinhos (p. 160): 122 Figura de um homem montada com “pauzinhos”. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Sobre a figura, afirma Lowe: As propriedades do próprio desenho são perfeitamente determinadas: podem-se medir os vários comprimentos e ângulos das linhas envolvidas tão precisamente quanto se quiser. Mas quando nos perguntamos se a gravura representa um homem voltado em nossa direção ou em direção oposta, não podemos dar qualquer resposta correta. (p. 160) Seguindo a classificação de Wittgenstein/Tidman entre figura e imagem mental, podemos dizer que a figura do homem pode servir como imagem mental de um homem de costas ou de um homem de frente, conforme aspectos intencionais variáveis de nossa consciência.33 Mas será que não podemos também entender a figura simplesmente como a imagem de um homem, sem nos comprometermos com sua posição (de frente ou de costas)? Vimos por meio de um experimento de pensamento que somos capazes de imaginar um homem de pé numa rua movimenta, sem com isto termos obrigatoriamente imaginado um homem com olhos desta ou daquela cor, com ou sem chapéu, com a roupa desta ou daquela cor. Nesta linha de raciocínio, a figura do homem montada com “pauzinhos” pode servir como representação de homem em geral, omitindo sua posição por meio de uma depuração intencional. Enquanto um homem particular deve estar de frente ou não estar de frente, ser branco ou não ser branco, nossa idéia geral de homem, como imagem mental, pode muito bem não estar comprometida com estas propriedades. De maneira análoga, podemos formar uma 33 Neste ponto, a solução que adotamos para o problema passa a divergir em certos pontos daquela oferecida por Lowe (1995); não obstante, ela continua baseada nela (erros ou omissões são de nossa responsabilidade). 123 imagem mental de um triângulo, sem nos comprometermos intencionalmente com sua isoscilidade, equilateralidade, ou escalenidade (ou com a falta destas características). Este elemento intencional como depurador das idéias abstratas aparece também, implicitamente, em Lowe (1995). Ele detecta este tipo de depuração não somente no nível dos conceptos, mas também no nível dos perceptos, o que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA evidencia sua onipresença em nossa fenomenologia: Ainda em defesa de Locke, podemos indicar que a própria percepção – da qual idéias abstratas gerais são supostamente geradas – é um processo seletivo: ao observarmos um certo objeto, notamos algumas de suas propriedades, mas com respeito a outras, nós nem notamos que ele as tem, nem notamos que ele não as tem. Assim, não há razão pela qual não devamos reconhecer uma forma como sendo um triângulo enquanto simplesmente não atentamos se seus lados são, ou não, de igual medida: e assim, na medida que as idéias gerais abstratas lockianas são tidas como aquilo que explica nossas capacidades de reconhecimento perceptual, a “indeterminação” parece ser uma característica sua inteiramente apropriada. (p. 161). Estas observações de Lowe são amplamente corroboradas por ocorrências de nosso dia-a-dia. Eu posso muito bem encontrar um amigo na rua, conversar com ele por alguns minutos e, ao retornar para casa, não saber a cor da camisa que ele estava vestindo, mesmo embora eu saiba que ele estava de fato vestindo uma camisa e ela tenha estado dentro de meu campo de visão por vários minutos. E, mesmo com este “esquecimento”, posso imaginá-lo por ocasião da conversa que tivemos sem saber a cor de sua camisa, ao que não obsta o fato de toda camisa dever ser, necessariamente, verde, ou azul ou amarela etc. Isto quer dizer que sou capaz de imaginar (e perceber!) uma pessoa vestindo uma camisa, sem que esteja determinado na imaginação (ou na percepção) qual é a cor da camisa. Do mesmo modo, sou capaz de imaginar um triângulo, sem que esteja determinado qual é sua classificação (escaleno, isóceles ou eqüilátero). Este é um fato da consciência, e não uma hipótese. Por fim, vale lembrar que, como Horgan e Tieson (2002) estabelecem, a intencionalidade tem impacto fenomenológico. Isto concede às idéias gerais um aspecto fenomenológico bastante particular, na medida em que elas são intencionalmente hipertrofiadas (em virtude da grande quantidade de características que devem ser depuradas intencionalmente) e imagisticamente atrofiadas (dado que pouco sobra de propriedades sensíveis no estado mental). Em 124 contraste, concepções ou percepções de situações mais específicas e de caráter mais sensível têm o elemento intencional atrofiado (na medida em que há menos na imagem a ser composto arbitrariamente via intenção) e o elemento imagístico hipertrofiado (dado que a imagem é rica em elementos sensíveis). Estes traços fenomenológicos é que trouxeram muita confusão à epistemologia modal racionalista, e ocasionaram a divisão entre sensibilidade e entendimento. Com relação a Tidman, especificamente, sua confusão foi tomar a indeterminação e a arbitrariedade de imagens mentais como algum tipo de imprecisão mais corriqueira, à qual, de fato, tanto a percepção quanto a imaginação estão sujeitas. 2.5 “Há Situações Possíveis, embora Inconcebíveis” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Nas seções 2.2, 2.3 e 2.4, examinamos e buscamos responder a objeções ao princípio CON⊃POSS. Nesta seção, passamos a examinar objeções a POSS⊃CON (ou, mais comumente, na forma contrapositiva equivalente, INC⊃IMP). Objeções a POSS⊃CON assumem naturalmente a forma: há pelo menos uma proposição p tal que Poss(p) ∧ Inc(p). Sorensen, Tidman e Priest são os autores nos quais nos pautamos para conduzir nossa discussão. 2.5.1 Objeção: as Limitações Intrínsecas a Nossos Sentidos Seres humanos têm uma variedade limitada de sentidos ou sensações – 5, ao que me consta. É notório que existem vários animais que possuem sentidos que estão completamente ausentes no homem. Por exemplo, morcegos emitem sons que ecoam no ambiente que os circunda e em seguida são decodificados de maneira a gerar informações sobre este mesmo ambiente. Há também o caso dos pombos, que se orientam geograficamente a partir do campo magnético da terra. O problema é que não temos a menor idéia de como estes sentidos que nos são ausentes determinam as qualidades mentais intrínsecas dos seres que são dotados deles. Podemos, então, com naturalidade, dizer que o conteúdo destes sentidos nos são inconcebíveis ou inimagináveis; porém, sabemos, de um modo ou de outro, 125 por vias indiretas, que estes conteúdos sensíveis são possíveis. Há muitos outros exemplos deste tipo. Sorensen (1992, p. 37) traz o caso dos peixes, que têm linhas laterais ao longo de sua extensão corporal, que detectam os níveis de pressão da água. Além de sentidos que não possuímos, existem também limitações no sentidos que nós seres humanos possuímos, quando comparados ao mesmos sentidos existentes em outros animais. Por exemplo, cães são capazes de ouvir freqüências sonoras inaudíveis para o ser humano. Qual é a aparência destes sons, para a consciência de cães? Esta objeção é encontrada em Tidman (1994, p. 299): PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA (...) quando tento conceber o som que um cão ouve quando um apito para cães é soprado, eu imagino um som muito agudo. Mas o som que eu imagino não é o som que o cão ouve, já que eu estou imaginando um som que eu poderia ouvir. Então, parece que um grande número de estados de coisas são inconcebíveis somente porque estão fora do alcance da experiência humana possível. Há vários exemplos que vão na mesma linha, como as cobras, que enxergam comprimentos de onda que não detectamos com nossos aparato visual. Como tais comprimentos aparecem para as cobras, i.e., que cores são estas? Seja qual for a resposta, parece natural dizermos que tais extensões de nossos sentidos nos são inconcebíveis, na medida em que não podemos formar uma imagem (ou representação em geral) daquilo que não somos capazes de ter experiência sensorial.34 E ainda assim, são possíveis.35 2.5.2 Discutindo a Objeção: a Questão da Incompletude Começamos este trabalho com a hipótese de que o princípio da conceptividade irrestrito, CON≡POSS, é verdadeiro. Já empreendemos a defesa do princípio parcial CON⊃POSS, com todas as devidas qualificações. Contudo, temos que 34 Vale mencionar a recente descoberta de que 40% das mulheres percebem mais cores do que os homens e do que os 60% restantes das mulheres, devido a uma mutação no gene envolvido na produção do pigmento que absorve luz no espectro vermelho-alaranjado; esta mutação permite que elas distingam melhor as cores nesta faixa do espectro. Estipula-se que esta mutação foi selecionada e mantida por constituir-se numa vantagem para a coleta de frutas, tarefa destinada às mulheres na pré-história. Isto quer dizer que as mulheres com a citada mutação são capazes de ver e, possivelmente, conceber mais que outros seres humanos. (Ver www.ajhg.org, site do American Journal of Human Genetics.) 35 Ver ainda Hawthorne e Scala (1999, pp. 201-202) para outros casos de incompletude cognitiva, mas agora inversa: não sermos capazes de imaginar seres destituídos de um certo sentido que nós temos. 126 admitir, diante das evidências, que provavelmente POSS⊃CON é falso: os contraexemplos de Tidman e Sorensen nos levam a crer que há situações possíveis, embora inconcebíveis, a saber, aquelas representadas por estados mentais formados por seres dotados de sentidos distintos ou mais amplos que os nossos. Dizemos “provavelmente” porque não há como demonstrar efetivamente esta versão de ∃p Poss (p) ∧ Inc (p) neste caso em particular – como demonstrar que uma situação que me é epistemicamente inacessível não é concebível por mim? É possível, por exemplo, que toda a sensibilidade, em todos os seres, seja gerada a partir de um mesmo “vocabulário” sensível comum, e seja, assim, em princípio, acessível a todos os seres com consciência. Mesmo que hipóteses como esta não possam ser inteiramente descartadas, o mais prudente a fazer é recuar com relação a POSS⊃CON, tomada como uma tese geral. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Os problemas para nós, no entanto, não param por aí. Tidman (1994, p. 299) vê nos contra-exemplos a POSS⊃CON, sérios contratempos para as CON⊃POSS: Estes exemplos são problemáticos para a tese da conceptividade [CON⊃POSS] também. O problema aqui é que, numa interpretação [empírica] estreita como esta, a utilidade da tese da conceptividade [CON⊃POSS] fica severamente limitada. Muito do que acreditamos ser possível, não podemos imaginar. Nesta interpretação, o apelo à conceptividade não pode explicar nosso conhecimento de tais possibilidades.36 Se de fato é verdadeiro que há situações possíveis que nos são, de antemão, inacessíveis por meio de nossa faculdade de conceber, então mesmo que tudo que sejamos capazes de conceber seja possível, o apelo à conceptividade estará limitado pela existência de situações possíveis, embora inconcebíveis. Conceptividade seria uma noção, por assim dizer, incompleta. O problema da incompletude é percebido também por Priest (1998). Contra INC⊃IMP, Priest defende que talvez não percebamos empiricamente37 fatos contraditórios por razões meramente contingentes, e que, portanto, isto não deve ser razão suficiente para descartarmos uma situação como impossível. Seu alvo é o que ele chama de “argumento indutivo”, segundo o qual, se nunca testemunhei empiricamente uma situação contraditória, posso concluir que não são possíveis 36 Tidman (1994, p. 297) chama de “tese da conceptividade” a tese de que conceptividade implica em possibilidade [CON⊃POSS] e de tese da inconceptividade a tese de que inconceptividade implica em impossibilidade [INC⊃IMP]. 37 Assumimos aqui que Priest, quando fala em “perceber empiricamente”, refere-se tanto à perceptividade quanto à conceptividade, i.e., a estados mentais aparentes. 127 sentenças verdadeiras e falsas. Priest cita casos nos quais vê a possibilidade de ocorrência de crença racional em contradições, mesmo que não possamos observá-la diretamente: As falhas deste argumento [indutivo] são suficientemente evidentes (...). É muito claro que o argumento pode estar baseado no que Ludwig Wittgenstein chamou de “uma dieta inadequada de exemplos”. Talvez Sócrates esteja ambos sentado e nãosentado ao mesmo tempo: no instante em que ele levanta-se. Sendo isto instantâneo, não é algo que observemos. Podemos dizer que isto ocorreu somente por análise a priori. (p. 419) Assim, embora nos seja inconcebível ou imperceptível que Sócrates esteja ambos sentado e não-sentado, isto poderia muito bem ser verdadeiro e ser mostrado como tal por análise a priori. Conforme a posição de Priest, estaríamos nos precipitando em excluir a possibilidade disto a partir de nossa faculdade incompleta de conceber (ou perceber). Segundo ele, em muitos casos, somente a partir de análise PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA a priori podemos detectar a verdade ou falsidade (ou ambos) de certas sentenças. Para mostrar a incompletude da noção de conceptividade, Priest cita ainda um importante caso histórico: o princípio de Euclides segundo o qual o todo é maior que as partes. Segundo Priest, este seria um exemplo de como uma análise a priori refutou a verdade de uma sentença antes tida como evidente tanto por meio de introspecção quanto por indução empírica: Considere o princípio euclidiano de que o todo deve ser maior que as partes. Este princípio parecia ser óbvio para muitas pessoas, durante muito tempo. Contraexemplos aparentes eram conhecidos deste a Antigüidade tardia: por exemplo, o conjunto dos números pares parecia ter o mesmo tamanho que o conjunto de todos os números. Mas estes exemplos foram deixados de lado, e tomados como mostrando a incoerência da noção de infinito. No século dezenove, tudo isto mudou. Não há absolutamente coisa alguma de incoerente sobre este comportamento: ele é paradigmático para coleções infinitas. O princípio euclidiano é verdadeiro apenas para coleções finitas; e sua aceitação pelas pessoas deveu-se a um princípio indutivo exíguo a partir de casos não representativos. (Ibid., p. 419) Com este exemplo, Priest quer mostrar como nossa adoção irresponsável de INC⊃IMP motivou um abandono injustificado tanto da noção de infinito quanto da idéia segundo a qual a parte pode ter o mesmo tamanho que o todo. 2.5.3 Tratando a Questão da Incompletude da Conceptividade 128 Tidman e Sorensen por um lado, e Priest, por outro, apresentam duas variantes do problema da incompletude. No caso trazido por Tidman e Sorensen, a incompletude é apresentada como decorrente de nossa incapacidade de formar um estado mental dotado da mesma qualidade intrínseca de estados mentais que supomos existir em outros animais. Já no caso trazido por Priest, a incompletude é decorrente de uma limitação cognitiva quantitativa. Totalidades infinitas não são qualitativamente inconcebíveis; o problema é que seres humanos são seres limitados temporal e espacialmente em seu potencial cognitivo. Assim, por exemplo, é claro que podemos escrutinar os dez primeiros números naturais sem problema algum, mas, para escrutinar todos os números naturais, precisamos de um tempo infinito, ao longo do qual possamos empregar aquela mesma capacidade básica que nos permite escrutinar os dez primeiros números naturais, porém infinitas vezes (ou talvez ser um ser eterno, ou seja, fora do tempo, de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA modo a ser capaz de completar uma tarefa infinita). Isto é o que torna a concepção de grandezas infinitas inacessível para seres humanos. Examinemos mais de perto estas duas variedades de incompletude, começando por aquela oferecida por Priest. Ao trazer o caso da falsidade do princípio euclidiano, Priest está, de fato, chamando a atenção para limitações importantes de nosso aparato cognitivo. Empregam-se algumas noções dentro das ciências formais – sendo a noção de infinito o caso paradigmático – que fogem completamente à nossa capacidade de conceber. Não somos capazes de observar ou conceber, em sua inteireza, um conjunto infinito, o que faz com que propriedades inerentes a conjuntos infinitos não tenham o mesmo impacto cognitivo que outras propriedades finitas e humanamente delimitadas têm. Seria, para muitos, o caso de se postular, então, que as propriedades intrínsecas a conjuntos infinitos sejam apreendidas por faculdades não qualitativas; as duas maiores candidatas são as faculdades do entendimento e algum tipo de intuição intelectual (ou uma confluência de ambas). Não é preciso lançar mão destas faculdades mal-explicadas. O que ocorre aqui, na verdade, é que o que podemos conhecer a partir de nossos estados mentais qualitativos é estritamente circunscrito às informações que nos são disponibilizadas por tais estados. Este fato epistêmico acerca de nossa capacidade de conceber e nossa percepção sensorial é expressado por muitos filósofos dizendo-se que conceptividade (e perceptibilidade) é um termo de consecução (o 129 que os filósofos de língua inglesa chamam de success term).38 Isto explica perfeitamente porque Euclides estabeleceu, como um princípio, que o todo é maior que as partes: tudo o que ele jamais foi capaz de conceber ou ver eram grandezas finitas, o que corroborava este princípio. Até aí, estamos com Priest. A questão que nos interessa neste momento é: será que este passo de Euclides constitui-se num contra-exemplo ao princípio da conceptividade, mostrando que somos incapazes de conceber a verdade de pelo menos uma proposição possível (a parte tem o mesmo tamanho que o todo), e potencialmente de muitas outras? A resposta é não. Do ponto de vista epistemológico, conjuntos infinitos devem ser tratados como idealizações, i.e., ampliações e projeções a partir de nossas concepções mais simples e elementares, disponibilizadas por certo aparato matemático.39 Note que o que acabo de dizer é inteiramente neutro com relação ao estatuto ontológico de totalidades infinitas. Ou seja, dizer que não somos capazes PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA de conceber conjuntos infinitos e que eles são idealizações não significa dizer que não existem conjuntos infinitos (seja esta existência física, matemática ou absoluta); não desejamos nos comprometer com qualquer posição, num sentido ou noutro. Já colocamos, mas não custa lembrar: a noção de conceptividade não possui comprometimento ontológico. Assim sendo, a inconceptividade factual de conjuntos infinitos é inteiramente compatível com a quase total disparidade de visões acerca do estatuto ontológico destes entes, esposadas pelos mais diferentes pensadores e matemáticos.40 Na verdade, ela tem o potencial de explicar esta disparidade. A divergência é fruto, antes de mais nada, da ausência de respaldo epistêmico para conjuntos infinitos que seja mais que uma idealização. Como Shapiro (1997) mostra com clareza, diferentes filosofias da lógica nascem das diferentes concessões feitas à idealização de totalidades infinitas. Voltaremos a este ponto mais tarde, quando nos dispusermos a explicar porque não existe unanimidade na aceitação de princípios lógicos, o que gera diferentes filosofias da lógica (e.g. clássica e intuicionista). 38 Ver nossa discussão, em 1.4. Aliás, este é um dos motivos da existência da lógica: disponibilizar de modo rigoroso uma ampliação de nossas faculdades conceituais mais simples e elementares através de sucessivas operações as mais simples. Uma grandeza infinita também pode ser coerentemente vista como uma ampliação de nossas faculdades conceituais mais simples e elementares. 40 Ver Rucker (1982, p. 309, nota 34) para um quadro comparativo das visões de infinito de Robinson, Platão, São Tomás de Aquino, Brouwer, Hilbert, Russell, Gödel e Cantor. Cada um destes autores discorda de todos os outros com relação ao estatuto ontológico do infinito. 39 130 Concluímos que a espécie de incompletude apresentada por Priest é tratada de modo plenamente satisfatório com a noção de conceptividade ideal, sem qualquer prejuízo ontológico ou metodológico. Aquilo que concebemos com sucesso tem sua validade epistemológica circunscrita àquilo que condicionou a própria concepção. Para além de nossas capacidades, as idealizações preenchem as lacunas. Com relação ao tipo de incompletude trazido por Sorensen e Tidman, não nos está disponível o recurso a idealizações, pois, em que sentido idealizações a partir de nossos próprios sentidos básicos podem proporcionar a conceptividade (ideal) de sentidos que não possuímos? Este não é um caminho inteiramente fechado, mas no momento não há muitas perspectivas sobre como ele pode efetivamente ser trilhado. Logo, o tratamento deve ser outro. Para lidar com este caso, devemos, antes de tudo, lembrar que nossa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA intenção é recuperar a noção de conceptividade para sua utilização dentro da metodologia da lógica. Conforme já tivemos oportunidade de colocar, nossa tese é de que relações lógicas podem ser fundadas com base em estados mentais qualitativos, o que possibilita que a introspecção seja um método útil, dentro da lógica. Não estamos preocupados com a obtenção de conhecimento substantivo sobre o mundo natural ou metafísico. Por conseguinte, a questão no momento é: qual é o impacto que as objeções de Tidman e Sorensen têm sobre CON≡POSS, e seu possível emprego dentro da lógica? É claro que é indesejável para nós, amigos da noção de conceptividade, que as faculdades cognitivas humanas sejam incompletas para o tratamento de fatos naturais que temos outras razões para crer possíveis. Mas a incompletude com relação a fatos substantivos do mundo não refuta a tese de que dentro da lógica, que é nossa preocupação central, nossos estados mentais são a fonte e a justificação de nosso conhecimento modal. A razão disto é a que será apontada a seguir. Como já deixamos claro inúmeras vezes, estamos interessados em recuperar a noção de conceptividade com vistas ao emprego no contexto primitivo de codificação de linguagens lógicas e fundamentação de leis lógicas. Neste contexto (que demarcaremos com cuidado no capítulo 3), não há recursos formais para avaliar os poderes expressivos de uma linguagem lógica ou a validade de uma lei lógica; nossa tese é a de que, neste contexto, a noção de conceptividade é o 131 recurso que nos resta. Neste contexto primitivo, não faz qualquer sentido que se empreguem termos ou proposições que expressam conteúdos com os quais não temos contato epistêmico, por razões óbvias: tais termos ou proposições não servem para revelar como se comportam logicamente os termos ou proposições com os quais nós, seres humanos, temos contato. De que ajuda seria investigar os poderes expressivos e as leis lógicas da lógica proposicional levando-se em conta, por exemplo, a proposição r que expressa um conteúdo em termos do “radar” do morcego, se não temos acesso às condições de verdade de r, ou seja se não temos acesso a estados mentais que podem verificar ou falsificar r. Assim, é um postulado básico da lógica, no contexto primitivo informal em questão, que os termos e proposições expressem sempre conteúdos que nos são cognitivamente acessíveis. Caso contrário, o valor de verdade das proposições nos seria simplesmente inacessível. (Veremos na parte II que tanto Aristóteles quanto PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Frege assentem a este postulado.) Ademais, para a justificação de leis lógicas, o fundamental é que elas sejam válidas independentemente do assunto substancial de que tratam. Este traço das leis lógicas é geralmente caracterizado como “formalismo” ou “tópiconeutralidade”. Assim, o que se exige é que leis lógicas mantenham a validade, na substituição de quaisquer termos não-lógicos (ou, no caso da lógica proposicional, proposições) que por ventura ocorram na proposição. Portanto, o impacto de ∃p Inc(p) ∧ Poss(p) é, digamos, restringir o domínio de substituição, com relação a termos não-lógicos ou proposições. Mas, como esta restrição parece ser constitutiva de nosso aparato perceptual e conceitual, os possíveis contraexemplos oriundos de estados de consciência que nos são inalcançáveis também nos serão inalcançáveis, não afetando nossas leis lógicas. Por exemplo, talvez morcegos possam conceber situações contraditórias por meio de representações geradas pelo seu sentido de “radar”. Ou seja, talvez haja uma proposição r que expresse uma situação pensada em termos de “radar”, tal que ~(r ∧ ~r) seja falso [e (r ∧ ~r) seja verdadeiro]. Mas r não entra no domínio de substituição de p, na lei lógica ~(p ∧ ~p) dos seres humanos, pelo simples fato de r nos ser inconcebível, dado que somos destituídos de “radar”. Assim, ~(p ∧ ~p) continuará nos sendo uma lei lógica para os humanos, embora não o seja para o morcego. Isto 132 porque não somente os estados mentais substantivos relativos a r nos são vedados, mas também os possíveis contra-exemplos que eles por ventura possam ocasionar. Logo, nossa conclusão é a de que a incompletude levantada por Sorensen e Tidman é inócua para o emprego de CON≡POSS em lógica. É digno de nota que a linha de pensamento que leva Tidman e Sorensen à refutação de POSS⊃CON e à conseqüente incompletude de CON⊃POSS pode ir mais longe e levar a conseqüências mais graves e significativas, autorizando-nos a afirmar que há verdades naturais físicas possíveis, porém imperceptíveis: partículas quânticas (em certas interpretações teóricas) assumem um comportamento inconcebível e imperceptível, porém possível; a teoria física das super-cordas postula a existência de muitas dimensões a mais do que somos capazes de conceber e perceber; a geometria não-euclidiana e seus empregos na física talvez sejam indicação da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA existência de estados de coisas possíveis, embora inconcebíveis. Diante disto, vale reforçar: estes casos não são suficientes para um revisionismo lógico, a não ser que eventualmente venhamos a conceber qualitativamente situações que corroborem estas teorias, mas que vão de encontro à lógica. Como diz Putnam (1988a, p. 92), referindo-se ao comportamento de partículas subatômicas: É como o cartoon de Charles Addams, que representa um esquiador a descer uma colina e cujas marcas passam nos lados opostos de uma grande árvore. Nós não vemos o esquiador passar através da árvore – nunca vimos tal coisa, nem a vamos ver –, mas as marcas parecem obrigar à inferência de que o esquiador passou através da árvore antes de nós olharmos. Para que tais teorias tenham impacto na lógica, precisamos ver o esquiador atravessar a árvore, e não somente as marcas. É inegável que as objeções de Tidman e Sorensen nos trazem conseqüências desagradáveis. É possível que o princípio da conceptividade mais enunciado ao longo da história da filosofia seja POSS⊃CON (INC⊃IMP). Está presente desde a Antigüidade até a contemporaneidade a idéia de que o que quer que nossa mente repugne é impossível.41 Como as objeções nos mostram, esta é uma idéia falsa. Mas esta incompletude não deve nos esmorecer; é um fato da vida e do conhecimento, antes que uma objeção. 41 Encontramos traços dela, por exemplo, já em Heráclito (1980, p. 129, fragmento 113): “Pensar reúne tudo”; ou seja, tudo que é (possível), é pensável. Como já vimos, INC⊃IMP abunda especialmente na filosofia moderna. Ver os casos de Hume, Berkeley e Leibniz, no primeiro capítulo. 133 2.6 Considerações Finais Neste capítulo, nossa intenção foi: (a) responder às principais e mais comuns objeções ao princípio da conceptividade – muitas outras existem, mas acreditamos que, em larga margem, o tratamento oferecido aqui pode ser estendido para resolver muitos outros problemas; (b) a partir das respostas às objeções, aprofundar os aspectos semânticos, fenomenológicos e epistemológicos da noção de conceptividade. O princípio CON≡POSS não saiu intacto das objeções, sofrendo restrições e qualificações. A presente seção tem o intuito de apresentar sinteticamente nossa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA versão final do princípio da conceptividade. Eis as teses que mantemos: 1) Do princípio inicial CON≡POSS, tomado em geral, ficamos somente com CON⊃POSS – o princípio POSS⊃CON foi abandonado em virtude de contraexemplos bastante plausíveis, embora não finais, de que ∃p Inc(p) ∧ Poss(p). 2) Não há qualquer contra-exemplo para CON⊃POSS, se atentarmos para as qualificações introduzidas por Chalmers somadas às qualificações que fizemos ao longo do capítulo 2. Portanto, ~∃p Con(p) ∧ Imp(p). Como resultado, não somos, de modo algum, capazes de conceber proposições impossíveis, assumindo-se uma noção fenomenologicamente robusta de conceber. 3) Com o abandono de POSS⊃CON, tudo leva a crer que a faculdade de conceber é incompleta: há possibilidades que fogem à nossa capacidade de conceber. Este fato traz importantes conseqüências para a bela idéia de que nossas limitações cognitivas são informativas. 4) Grandezas infinitas não são propriamente exemplos de incompletude de nossa faculdade de conceber, na medida em que ela pode ser suprida por meio de idealização. 5) A simples existência da incompletude não é barreira para a utilização da conceptividade dentro da metodologia da lógica. Ao que tudo indica, a incompletude atinge somente nosso conhecimento substantivo sobre o que é possível, e se isto tiver alguma repercussão para a lógica, jamais saberemos, pois 134 não terá impacto em nossa concepção e, por conseguinte, na análise das condições de verdade de uma proposição. 6) Por motivos semelhantes, também POSS⊃CON foi salvo, quando restrito a contextos primitivos informais da lógica. Conseqüentemente, em se tratando deste contexto, permanece vigente o princípio CON≡POSS. (Aliás, veremos que Aristóteles e Frege defendem este tipo de completude). 7) Podemos crer em proposições impossíveis ou contradições, somente num sentido vazio de crença. Ou seja, podemos ter atitudes proposicionais “fracas” (conjectura, compreensão, suposição, hipótese), mas jamais atitudes proposicionais “fortes” (conceber, imaginar) dirigidas a proposições impossíveis ou contraditórias. 8) A noção de conceptividade não possui comprometimento ontológico de espécie alguma, sendo, portanto, compatível com uma grande variedade de posturas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA metafísicas. 9) A intencionalidade de nossos estados mentais tem um caráter fenomenológico, o que a torna de grande importância para a aplicação do princípio da conceptividade (CON⊃POSS), principalmente para erradicar o caráter ambíguo de figuras e para a construção de idéias gerais. 10) Idéias gerais são mediadas por estados mentais qualitativos modalmente informativos. Tal espécie de idéia não é inconsistente, havendo abundantes evidências fenomenológicas para isto. Este é o patrimônio básico com o qual avançamos para a parte II desta tese, na qual buscamos mostrar o lugar da noção de conceptividade dentro da lógica. É importante ressaltar que, em nosso tratamento dos problemas apresentados ao longo deste capítulo, mantivemo-nos sempre no nível fenomenológico. Mesmo quando apelamos a conceitos teóricos como abstração, permanecemos sempre fiéis a um princípio metodológico: certificarmo-nos de que há respaldo fenomenológico para a introdução e o desenvolvimento de tais conceitos teóricos. Vimos, com base em Lowe (1995), que a abstração é um processo corriqueiro em nossa fenomenologia, ocorrendo tanto a partir de perceptos quanto de conceptos. Vimos também, com base em Horgan e Tieson (2002), que a intenção tem impacto fenomenológico, mesmo quando o “dado” estritamente sensível é o mesmo. Jamais passamos ao nível do mentalismo, ou 135 seja, das estruturas transcendentais, ou de outro tipo, da mente. Veremos, no capítulo 8, que há razões para reservas com relação a qualquer tipo de mentalismo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA em lógica. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA PARTE II: CONCEPTIVIDADE E LÓGICA 137 3 O Lugar da Conceptividade dentro da Lógica 3.1 Observações Preliminares Neste capítulo, nosso objetivo principal é expor a hipótese de que a noção de conceptividade ocupa um lugar central em certas práticas presentes dentro do que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA chamamos propriamente de “lógica”. Para tanto, devemos buscar uma caracterização aceitável de lógica, de modo a demarcar, com um mínimo de clareza, em que consiste “fazer lógica”. Isto será feito na seção 3.2, tomando por base a prática efetiva dos lógicos. Já na seção 3.3, buscamos encontrar, dentro do universo de tarefas lógicas delineado em 3.2, uma tarefa específica na qual cremos ser imprescindível a utilização da noção de conceptividade como critério de possibilidade. Esta seção será, portanto, uma apresentação e uma explicação da tese geral de que a lógica emprega a noção psicologista e introspectiva de conceptividade – tese que será defendida no restante deste trabalho. Nela, defendemos que a noção de conceptividade tem um lugar cativo dentro da tarefa de codificação de linguagens lógicas. Em 3.4, encerramos o capítulo sintetizando as principais conclusões a que chegamos, o que prepara o terreno para todo o desenvolvimento seguinte desta tese. O presente capítulo é fundamental por ser uma introdução a toda a parte II da tese, na qual examinamos em detalhes como a noção de conceptividade faz parte da metodologia da lógica, em especial das metodologias da lógica de Aristóteles e de Frege. Ele tem, portanto, a função de estabelecer e dar plausibilidade à hipótese polêmica que subjaz a todo o restante da tese, a saber, que figuras do vulto de Aristóteles e Frege (e Boole e Peirce), os mais importantes codificadores da sintaxe lógica atual e de outrora, empregaram a noção psicologista de conceptividade no contexto epistemológico primitivo que 138 estabeleceremos. Logo, num certo sentido, defendemos que estes autores são psicologistas. 3.2 Caracterização da Lógica a partir de sua Práxis Caracterizar genericamente a lógica é hoje em dia uma tarefa inglória, dada a extensão dos métodos utilizados neste ramo do conhecimento. Um primeiro problema é distingui-la da matemática. Seria possível fazê-lo? Conforme reza a definição romântica, “Lógica é o estudo sistemático da estrutura de proposições e das condições gerais de inferência válida através de um método que se abstrai do conteúdo ou assunto das proposições e lida somente com sua forma lógica”.1 As dimensões que a meta-matemática toma ao longo do século XX, porém, tornam a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA definição de Church um pouco vaga. Chateaubriand (2001) é capaz de dar uma definição mais ampla, que destaca o elemento essencial ligado à lógica: “na prática atual, a lógica emerge como uma multiplicidade de sistemas formais conceitualizados lingüistica e matematicamente” (2001, p. 13). De um modo geral, a lógica lida com sistemas formais e apresenta-se hoje como uma disciplina de índole inteiramente matemática, ou seja, não tem necessariamente um objetivo fundacionista\filosófico ou relação com qualquer atividade que vá além da produção de artefatos matemáticos e sua aplicação dentro do universo estritamente técnico ou mesmo tecnológico. Chateaubriand detecta ainda um núcleo de conceitos semânticos ligados à noção de interpretação de um sistema formal que recebem um tratamento sistemático dentro da lógica: função de denotação, satisfação, verdade, conseqüência lógica e verdade lógica: O estudo sistemático destas noções e de suas interconexões pertence à teoria da prova, teoria dos modelos, e teoria da recursão, que são áreas centrais da lógica e basicamente ramos da matemática. Como uma ciência, a lógica é supostamente uma combinação destas teorias, e não propriamente lógica proposicional e lógica de predicados. (ibid., p. 13). Dentro deste amplo universo ligado a sistemas formais, podemos nos perguntar: concretamente, que tarefas ou atividades pode um lógico executar? 1 “Logic”, artigo escrito por Church para a Enciclopédia Britânica de 1958, apud. Kneebone (1963), p. 6. 139 Sem dúvida que são muitas. Aqui vão algumas que ninguém negaria serem práticas lógicas. Em primeiro lugar, podem-se formular sistemas formais. Um sistema lógico consiste numa linguagem formal (alfabeto e regras de formação para fórmulas), somada a um conjunto de axiomas2 e a regras de inferência. Desde Aristóteles até bem recentemente, a idéia de formular sistemas lógicos esteve ligada fundamentalmente à tentativa de captar por completo a noção de conseqüência lógica, a exemplo dos empreendimentos de Aristóteles, Leibniz, Frege e Russell.3 Uma segunda tarefa a ser executada pelo lógico está intimamente ligada à primeira, embora com ambições mais humildes: criar formalismos, não que captem a noção de conseqüência lógica em geral, e sim relações lógicas existentes no interior de fragmentos da linguagem natural. Daí resulta a extensa família de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA lógicas hoje existentes, criadas para diversos fins. Em terceiro lugar, há a tarefa de elaborar semânticas, i.e. interpretações para sistemas das mais variadas naturezas. Isto significa atribuir significados aos símbolos, condições de verdade a sentenças e definir conseqüência lógica para conjuntos de fórmulas. O modo genérico como isto é feito é fruto da obra de Tarski, principalmente;4 mas, para cada linguagem particular, pode-se elaborar 2 Há também os sistemas de dedução natural, que não possuem axiomas. Para simplificarmos nossa discussão, assumiremos os sistemas axiomáticos como o padrão genérico de sistemas formais. 3 A noção de sistema lógico, da forma como definimos, nasce com Frege, mas é possível percebêla presente já na teoria do silogismo de Aristóteles, de modo consciente. Ver Mates (1967, pp. 262-263). Há bastantes discussões sobre como enxergar a lógica aristotélica a partir da visão contemporânea de lógica, sendo Aristotle’s Syllogistic from the Standpoint of Modern Formal Logic, de Lukasiewicz, um clássico da matéria. 4 Shapiro (1997) conta uma história completamente diferente da versão corrente acerca do aparecimento do que hoje chamamos de “semântica formal”. Embora um pouco inverossímil e ufanista, vale a pena a enunciarmos: “Na América, as primeiras décadas do século XX viram a emergência de uma escola de estudos fundacionais. Os membros, intitulados “teóricos da postulação americanos” [american postulate theorists], incluía Huntington, E. H. Moore, R. L. Moore, Sheffer e Veblen. Seu programa era axiomatizar vários ramos da matemática, tais como a geometria, a aritmética e a análise, e então estudar suas axiomatizações enquanto tais. Sua perspectiva era ainda mais meta-teorética do que a de seus congêneres do outro lado do Atlântico. Huntington estabeleceu que sua axiomatização da análise é categórica, e Veblen fez o mesmo para sua axiomatização da geometria. Cada um deles toma seu resultado como estabelecendo que a teoria tem “essencialmente somente uma” interpretação”. “As noções de conseqüência e satisfação, da teoria dos modelos, emerge através deste trabalho. Em seu discurso presidencial de 1924 para a sociedade matemática americana, Veblen anuncia que ‘a lógica formal deve ser assumida pelos matemáticos. O fato é que não existe uma lógica adequada no presente momento, e a menos que os matemáticos criem uma, ninguém mais o fará’. Muitas mentes extraordinárias, incluindo o estudante de Veblen, Alonzo Church, aceitaram o chamado. Estes lógicos e seus estudantes deram origem à teoria dos modelos e à teoria da prova, 140 uma ou mais semânticas, de modo que podemos distinguir perfeitamente bem a tarefa de definir os conceitos semânticos para qualquer linguagem dada (como fez Tarski) e a tarefa de fornecer uma semântica particular para uma dada linguagem, que está ao alcance de qualquer um. Circunscrevemos estas duas atividades diferentes ao título de “tarefa semântica”. Todas as tarefas até agora descritas são, ao menos parcialmente, nãoinferenciais. E nem por isto deixam de ser atividades que o lógico, na condição de cientista, executa. É certo dizer-se que nestas tarefas estão presentes também elementos inferenciais, mas sempre há nelas a referência, explícita ou implícita, a fatos (lingüísticos ou não) ou a intuições como amparo metodológico insubstituível. Defendemos que o que acabamos de afirmar está para além das várias possíveis visões acerca da natureza da lógica e não tem qualquer natureza polêmica – é constatativo. Isto é, tais tarefas só fazem sentido com referência a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA alguma intuição lingüística ou racional, estrutural/esquemática, perceptual, a fatos lingüísticos ou a algum outro dado pré-teorético não-dedutivo. Isto posto, fica fácil perceber o principal foco de divergências doutrinárias entre as diferentes correntes da filosofia da lógica e da matemática: a natureza dos fatos pré-teoréticos. Assim, onde possivelmente um platonista acredita que tais tarefas partem da existência e auto-imposição de objetos abstratos à nossa cognição, um intuicionista de segunda geração talvez acredite que tais tarefas têm como pedra de toque os usos de linguagem e o que as condiciona contingentemente. Por outro lado, um conceitualista acredita que tais tarefas só podem ser desempenhadas com referência a fatos particulares da consciência através de introspecção ou reflexão, sendo nossa capacidade de escrutinar nossos estados mentais com vistas à capacidade de nossa mente em formar conceitos, ou sua repulsa em fazê-lo, um elemento metodológico fundamental. Esta é a tese que estamos defendendo.5 como as conhecemos hoje. Coffa escreveu que ‘nas primeiras décadas de nosso século, a lógica evoluiu, ajustando-se à imagem de conhecimento que emergiu da geometria’.” 5 Esta versão do conceitualismo que esposamos diverge significativamente do conceitualismo tradicional, inclusive o medieval, segundo o qual; “não há universais e a suposta função classificatória dos universais é de fato atendida por conceitos particulares dentro da mente” (Butchvarov 1995). Não vamos tão longe a ponto de dizer que não existem universais, mas somente que, se eles existem, eles se nos revelam por meio da fenomenologia da conceptividade que foi delineada na parte I, e que, se eles não existem, então a lógica está condicionada tãosomente ao universo desta mesma fenomenologia. Assim, o que rejeitamos é a possibilidade de a lógica livrar-se deste condicionamento conceitual de fundo psicológico. 141 Em contraste com as três tarefas não-inferenciais delineadas acima, que não pretendemos que sejam exaustivas, há ainda as tarefas inferenciais típicas da lógica. Assim, toda a sorte de demonstrações efetuadas dentro ou fora do sistema, a partir de axiomas e regras de inferência previamente conhecidos ou definidos, não questionados, formalizados ou não, constitui esta tarefa. Quando pensamos em lógica, pensamos primeiramente neste tipo de tarefa, que de fato corresponde à maior parte da atividade lógica em geral: fazer lógica nos parece, antes de mais nada, deduzir. 3.3 Conceptividade: Validação de Axiomas e Codificação de Linguagens Lógicas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Já nos encontramos em condições de qualificar melhor nossa tese, no que concerne ao lugar que a noção de conceptividade tem dentro do universo da lógica. Defendemos que o recurso à noção de conceptividade é um elemento metodológico essencial para a realização de certas tarefas lógicas nãoinferenciais acima delineadas. O lugar exato da conceptivi-dade nestas tarefas ficará claro ao longo desta seção. Deve ficar claro, desde já, que não defendemos que deduções formais ou não-formais sejam efetuadas através do apelo à noção de conceptividade. A fenomenologia das deduções parece ser muito diferente da fenomenologia da modalidade. Em primeiro lugar, estruturas puramente sintáticas parecem ter um papel importante aqui, em contraste com a epistemologia rica em conteúdo semântico própria ao emprego da noção de conceptividade (isto não quer dizer que excluímos noções semânticas do processo de dedução). Em segundo lugar, deduções partem de axiomas e regras de inferência já conhecidos (mesmo que não-formalizados) – não justificamos ou questionamos a validade de uma regra de inferência ao mesmo tempo que a utilizamos. Estes dois elementos nos levam a crer que, em qualquer uma das atividade inferenciais que citamos acima, o princípio da conceptividade (CON≡POSS) está ausente. Restringindo o campo de aplicabilidade da noção de conceptividade a tarefas não-inferenciais, somos deixados com um universo ainda amplo demais de atividades: justificar a validade de axiomas e regras de inferência, analisar o 142 conteúdo de proposições e estabelecer suas condições de verdade, elaborar a semântica para uma linguagem, dentre muitas outras, são atividades que se utilizam obrigatoriamente de modos de justificação que não são e não podem ser estritamente inferenciais. Onde, dentro deste campo variado de atividades nãoinferenciais, é defensável que a noção de conceptividade tenha um emprego metodológico? Chalmers (1996) e Kneebone (1963) têm uma boa proposta, que segue a linha que estamos sugerindo. Vejamos. Chalmers define uma noção de possibilidade lógica extraída diretamente da noção de conceptividade, e então estipula que esta noção de possibilidade pode ser PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA a base para a justificação de axiomas e regras de inferência: Pode-se pensar sobre ela [possibilidade lógica] como possibilidade no sentido mais amplo, correspondendo grosso modo à conceptividade, um tanto não condicionada pelas leis de nosso mundo. (...) Para determinar se é logicamente possível que alguma afirmação seja verdadeira, as limitações são principalmente conceituais. (...) Este tipo de possibilidade é comumente chamado de possibilidade “lógica no sentido amplo” [“broadly logical” possibility] na literatura filosófica, em oposição à possibilidade “estritamente lógica” [“strictly logical” possibility], que depende de sistemas formais. Nota 6: A relação deste tipo de possibilidade com deducibilidade em sistemas formais é sutil. É defensável que os axiomas e as regras de inferência de sistemas formais específicos sejam justificados precisamente em termos de uma noção anterior de possibilidade lógica e necessidade lógica. (p. 35 e para a nota, p. 362) Kneebone (1963) também sugere a presença de metodologia introspectiva na validação de axiomas e regras de inferência. Para tanto, ele preocupa-se primeiro em ampliar consideravelmente o escopo do que devemos entender por “lógica”: A lógica, tomada no sentido mais amplo, é aquela parte da filosofia que trata da cogência do raciocínio; e sua tarefa dual é analisar a estrutura do pensamento reflexivo, como existente no mundo, e formular princípios gerais pelos quais a validade do pensamento atual pode ser julgada. A teoria do argumento dedutivo é, portanto, uma parte muito limitada da lógica, pois o pensamento reflexivo também inclui não somente a totalidade do raciocínio indutivo como também uma boa porção do discurso de um caráter menos formal, que no entanto tem a intenção de prover suporte racional para sua conclusão. (p. 359; grifos nossos) Kneebone segue esclarecendo o conceito de pensamento reflexivo como sendo “toda a atividade mental empreendida deliberadamente para a obtenção de conhecimento, ou ao menos para chegar a um juízo meditado sobre o que pode ser 143 razoavelmente aceito como verdadeiro” (ibid.). Ele classifica o pensamento reflexivo em manipulativo e dialético. No primeiro caso, a validade do raciocínio pode ser avaliada pelo critério da lógica formal, i.e., é formalizável, enquanto, no segundo caso, não existe um critério desta natureza para sua avaliação. Temos, então, segundo Kneebone, o pensamento reflexivo-dialético como um modo legítimo de estabelecermos autonomamente a validade de um pensamento atual, e assim situá-lo, ou sua forma abstrata, como um princípio lógico que poderá servir como um axioma ou uma regra de inferência. Argumentos de conceptividade enquadram-se muito bem na categoria de pensamento reflexivo-dialético de Kneebone. As propostas de Chalmers e Kneebone de aplicação de noções modais informais para justificar axiomas e regras de inferência são, contudo, um pouco simplistas. O próprio desenvolvimento das ciências formais ao longo dos séculos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA XIX e XX trata de desbancar o modelo de conhecimento matemático, derivado da visão axiomática tradicional de Euclides, segundo a qual estabelecemos intuitivamente (i.e., não-formalmente) a verdade dos axiomas, que se constituem em princípios fundamentais de todo conhecimento sobre uma certa matéria, e a partir deles derivamos todo o restante. Acerca disto, Sorensen (2001) bem coloca: Em vez de provar a proposição [o postulado da paralela] por reductio ad absurdum, Gerolamo Saccheri inadvertidamente inaugurou as geometrias não-euclidianas. A utilidade da geometria riemanniana na teoria da relatividade levou os matemáticos a retirarem a alegação de que os axiomas são sempre certezas auto-evidentes. Agora é tido como permissível ter axiomas que têm meramente um grau suficientemente elevado de plausibilidade a priori. (p. 104) A partir do desenvolvimento das geometrias não-euclidianas, o método axiomático ganha em flexibilidade, na medida em que se manipulam, se rejeitam ou se aceitam os axiomas não somente a partir do grau de evidência intrínseca a eles, mas também conforme os resultados ulteriores obtidos a partir dos axiomas, além de se levar em consideração outros valores teóricos. Um axioma A1 aparentemente plausível pode ser excluído por trazer conseqüências indesejáveis, enquanto um axioma A2 aparentemente menos plausível pode ser adotado por trazer conseqüências desejáveis. Sorensen associa estes novos procedimen-tos incorporados pela axiomática ao método do equilíbrio reflexivo, de Nelson Goodman: 144 Em um comentário clássico sobre a lógica, Goodman nota que trabalhamos avançando e retrocedendo, ajustando princípios a intuições e intuições a princípios. (Ibid., p. 105) Gödel (1944) faz comentários que vão na mesma direção das observações de Sorensen e Goodman. Analisando o tratamento que Russell dá à epistemologia da matemática, quando este a compara com a epistemologia das ciências naturais, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA ele afirma: Ele [Russell] compara os axiomas da lógica e da matemática com as leis da natureza, e a evidência lógica com percepção sensorial, de modo que não é preciso que necessariamente os axiomas sejam evidentes em si mesmos, mas sim que sua justificação resida (exatamente como na física) no fato de que eles tornem possível para essas “percepções sensoriais” serem deduzidas; o que, claro, não excluiria que elas também tivessem um tipo de plausibilidade intrínseca similar àquela da física. Eu penso que (dado que “evidência” seja entendido num sentido suficientemente estrito) essa visão tem sido em larga margem justificada por desenvolvimentos subseqüentes, e é de se esperar que será ainda mais no futuro. Tem acontecido que (sob a assunção de que a matemática moderna é consistente) a solução de certos problemas aritméticos requeira o uso de assunções que transcendem essencialmente a aritmética, i.e., o domínio do tipo de evidência elementar indisputável que pode ser mais apropriadamente comparada com a percepção sensorial. Além do mais, parece provável que para decidir certas questões da teoria dos conjuntos abstrata e mesmo para certas questões relacionadas da teoria dos números reais, novos axiomas, baseados em idéias até agora desconhecidas, serão necessários. É claro que, em tais circunstâncias, a matemática pode perder uma boa parcela de sua “certeza absoluta”, mas, sob a influência da crítica moderna ao fundacionismo, isso já aconteceu em boa medida. (p. 449) Nas ciências naturais, as teorias não são desenvolvidas a partir de dados sensoriais. Na física relativista, por exemplo, o que há inicialmente são hipóteses acerca da geometria do espaço-tempo, nada evidentes ou respaldadas na percepção sensorial. As percepções sensoriais só têm um papel relevante no momento em que a teoria é posta à prova, quando checamos se a partir da teoria é possível dar-se conta dos fenômenos físicos, ou, como diz Gödel, “deduzir as percepções sensoriais” corretas. Segundo Gödel, nas ciências formais aconteceria o mesmo. Os axiomas de uma dada teoria seriam certas hipóteses não necessariamente logicamente evidentes, mas que devem ser capazes de produzir enunciados logicamente evidentes, quando então sabemos que a hipótese (e a teoria) é apropriada. Sorensen, Goodman e Gödel têm toda a razão em suas afirmações. Intuição, auto-evidência, conceptividade ou algo equivalente é muito pouco para situarmos uma proposição como base de um sistema axiomático, no presente momento do 145 desenvolvimento das ciências formais. Pode-se mesmo incluir uma proposição entre os axiomas a despeito de sua falta de evidência, se isto for pragmaticamente vantajoso num momento posterior.6 Assim, temos que ter cuidado ao estipular o emprego metodológico da noção de conceptividade dentro da lógica: a questão é um pouco mais complexa do que Chalmers (1996) coloca, quando diz que “é defensável que os axiomas e as regras de inferência de sistemas formais específicos sejam justificados precisamente em termos de uma noção anterior de possibilidade lógica e necessidade lógica” (p. 362, n. 6). Devemos, então, procurar um nicho, dentro das atividades lógicas que delineamos mais acima, no qual não haja outra opção metodológica à qual recorrer a não ser o apelo a um recurso inteiramente não-dedutivo, de caráter reflexivo, tal como a noção de conceptividade. É dentro deste nicho que podemos defender a aplicabilidade da noção de conceptividade dentro da lógica. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Este nicho consiste na tarefa de codificação de linguagens lógicas. Duas perguntas básicas decorrem imediatamente desta colocação: (a) Em que consiste esta tarefa; (b) o que nos faz crer que a noção de conceptividade seja importante dentro dela? Em resposta a (a), podemos dizer que codificar uma linguagem lógica consiste em definir um sistema lógico com poderes expressivos sem precedentes. Os dois principais exemplos disto são, naturalmente, Aristóteles e Frege. Aristóteles é quem traz a idéia de que, dentro de um universo de discurso, podemos isolar padrões gramaticais que resguardam a relação de conseqüência lógica. Ele vê com clareza que, no universo de discurso das proposições categóricas e do que hoje chamamos de silogismos categóricos, há formas gramaticais – certos modos e figuras dos silogismos – que garantem a relação de conseqüência e outras que não o fazem. A partir deste reconhecimento, Aristóteles examina combinatorialmente e cataloga todas as possíveis relações inferenciais válidas dentro do universo de discurso previamente dado das proposições e silogismos categóricos. Aí nasce a idéia de codificação de uma linguagem lógica. É claro que, antes de Aristóteles, já havia a noção intuitiva de conseqüência 6 Segundo relata Sorensen (2001, p. 7), o famoso economista Milton Friedman teria dito que aceita os axiomas da economia por causa de suas conseqüências verdadeiras, e não porque eles são verdadeiros. 146 lógica, mas Aristóteles é o primeiro a buscar, dentro das formas gramaticais apenas, aquilo que sustenta a relação de conseqüência. Já Frege cria um sistema no qual o universo de discurso é muito mais amplo do que aquele estipulado por Aristóteles, ao descobrir uma série de recursos expressivos que possibilitam codificar formalmente novos extratos da linguagem e, por conseguinte, novas formas gramaticais dedutivas. São bem conhecidas as inovações trazidas pela linguagem de Frege: é totalmente simbólica, recursivamente definível e inteiramente destituída de ambigüidades; faz uma distinção clara entre a forma lógica e o conteúdo dos pensamentos; expressa com acuidade relações binárias, terciárias etc.; substitui a tradicional análise sentencial em termos de sujeito e predicado por uma análise em termos de função e conceito; faz uma análise revolucionária da quantificação.7 É justo qualificar Frege como o maior revolucionário da lógica, à exceção de Aristóteles. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Notemos que, dentro filosofia da lógica, pouca atenção tem sido dada ao momento em que se cria uma linguagem lógica renovada. Neste sentido, coloca Haaparanta (1988): Não há muitos filósofos que tenham tentado dar uma explicação natural para os milagres da lógica do século dezenove. Sabemos que uma lógica radicalmente nova ganhou vida nestes dias. Mas pouco foi dito, se é que algo foi dito, sobre as motivações destas inovações. (p. 73) Isto é ainda mais surpreendente quando temos em vista o fato de que a maior contribuição daqueles que são considerados os dois maiores lógicos, Aristóteles e Frege, é precisamente a codificação de uma linguagem lógica. De fato, há quem identifique a lógica com esta tarefa: O que a lógica faz é estudar noções que não eram previamente reconhecidas de modo algum, ou, se reconhecidas, usadas somente heuristicamente, e não feitas um objeto de estudo detalhado; entre elas, noções filosóficas tradicionais. (Kreisel 1969, p. 84) Aliás, o próprio Frege vê sua conceitografia como um avanço científico (ver Begriffsschrift, pp. 6-7), e crê que ela tenha sido seu principal legado (Escritos Póstumos, p. 184): O que posso considerar como o resultado de meu trabalho? 7 Aqui estão listadas somente as principais contribuições de Frege para a lógica dedutiva, no sentido estrito. 147 [ago. 1906] Ele é quase completamente ligado a minha conceitografia. um conceito construído como uma função. uma relação como uma função de dois argumentos. a extensão de um conceito ou classe não é a coisa primária para mim. insaturação ambos no caso de conceitos e de funções. a verdadeira natureza do conceito e da função reconhecida. estritamente, eu deveria ter começado mencionando a barra de juízo, a dissociação da força assertórica do predicado... Modo hipotético da composição da sentença... Generalidade... Sentido e referência... A razão da negligência desta importante dimensão da lógica talvez seja a enorme ênfase dada, no âmbito da filosofia contemporânea, à separação entre contexto de descoberta e contexto de justificação, situando a elaboração de linguagens lógicas inteiramente dentro do contexto de descoberta. Com esta ênfase, desprezou-se em lógica tudo aquilo que não tem a ver com resultados PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA formais e que possa portanto envolver processo introspectivos ou reflexivos, sob o temor do rótulo de psicologismo. (É de se notar, no entanto, que a crítica de Haaparanta deve ser dirigida sobretudo à análise da obra de Frege. Com relação aos comentadores de Aristóteles, eles abordam a descoberta da teoria dos silogismos como uma contribuição lógica e se dedicam a explicá-la de um modo que não encontramos paralelo entre a maior parte dos comentadores de Frege.) Em resposta à questão (b) posta mais acima, i.e., a importância da noção de conceptividade para a tarefa de codificação lógica, devemos antes de tudo lembrar que Aristóteles e Frege, na iminência de suas descobertas, encontravam-se em posições epistemológicas muito parecidas. Isto porque a inexistência de um universo formal prévio determina, em ambos os casos, a “ineliminabilidade” de um procedimento informal de inspeção para avaliar as qualidades expressivas e semânticas (por exemplo, a validade ou invalidade de certas proposições e a ausência de ambigüidade) da nova linguagem. Por exemplo, no caso da lógica aristotélica, temos hoje em dia meios formais simples para determinar que Bárbara é uma forma de silogismo válido. Em comparação, Aristóteles teve que decodificar esta forma e determinar informalmente que ela é válida. Igualmente, quando Frege (1879, p. 15) afirma a validade da lei de modus ponens em sua linguagem, ele não o fez com respaldo de qualquer recurso formal; ele só pôde inspecionar informalmente esta lei. É claro que ele sabia que modus ponens era uma lei válida antes de elaborar sua conceitografia; o que ele não sabia era se sua 148 codificação era capaz de expressar esta lei com acuidade, ou seja, que a candidata à expressão de modus ponens de sua linguagem resultaria válida. Não há como escapar do fato de que, em algum momento, Frege pára e pensa sobre a validade de modus ponens conforme a expressa em sua notação ou sobre as qualidades expressivas das funções em geral etc. Assim sendo, temos em ambos os casos um momento epistemológico com a mesma característica de informalidade, dada a inexistência de um universo formal prévio a que se possa recorrer: o momento de codificar uma nova linguagem formal. É a existência deste nicho epistemológico absolutamente informal que nos faz crer na importância da conceptividade para a lógica. Acreditamos que, neste nicho, a noção de conceptividade desempenhe o papel de guia epistemológico (fonte e justificação) para a noção de possibilidade, e nesta condição, é fundamental para a inspeção da capacidade de expressão e da semântica de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA estruturas lingüísticas formais. Ou seja, cremos que, dentro de um universo exclusivamente informal, a noção de conceptividade é o único recurso para que se possam examinar as características expressivas de uma nova linguagem.8 A existência de um universo informal dentro da lógica não é novidade. Mas, como vimos acima nos casos de Chalmers e Kneebone, o que se faz geralmente é identificar este universo com a validação de axiomas e regras de inferência em linguagens já conhecidas. O que estamos buscando é mudar o foco da discussão, da validação de axiomas e regras de inferência para uma atividade que é puramente lógica e puramente informal (ao contrário da validação de axiomas, que, como vimos, depende também de resultados formais anteriores e posteriores). O que enfatizamos, no caso da codificação de linguagens lógicas, é que a informalidade não têm remédio: o pensamento informal é um parâmetro inamovível. 3.4 Considerações Finais 8 Não há dúvidas de que, além de Aristóteles e Frege, outros pioneiros da lógica estenderam os domínios de linguagens formais, e assim ampliaram as possibilidades de dedução formal. Os formuladores da lógica estóica, Boole e Peirce são exemplos óbvios. 149 As conclusões a que chegamos neste capítulo são simples e diretas, e esclarecem a hipótese a ser perseguida ao longo de todo o restante desta tese. Concluímos que há um nicho dentro da lógica, vista como ciência, no qual o lógico não está preocupado em deduzir ou demonstrar coisa alguma; sua preocupação é a de codificar uma linguagem lógica. A codificação lógica coloca o lógico em uma posição epistemológica muito especial, na qual não há qualquer parâmetro formal para a avaliação de seus resultados. Trata-se de uma posição epistemológica análoga àquela de um “legislador” da linguagem cratílico, na qual necessariamente ele teve de conhecer as coisas de modo não-lingüístico antes de batizá-las com os nomes adequados: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA É óbvio que teremos de procurar fora dos nomes alguma coisa que nos faça ver sem os nomes qual das duas classes é a verdadeira, o que ela demonstrará indicando-nos a verdade das coisas. (438 d-e) A análise filosófica e epistemológica deste momento é importante porque ela tem o potencial de revelar as faculdades cognitivas essenciais para a construção da lógica em geral. Neste sentido, defendemos nos capítulos subseqüentes desta tese que a noção de conceptividade é a faculdade cognitiva fundamental para a codificação de novas linguagens lógicas, dadas as peculiaridades deste momento epistemológico. Como isto se dá exatamente, será mostrado quando nos voltarmos para as descobertas de Aristóteles e, principalmente, de Frege. Nossa escolha não é arbitrária: estes são os maiores legisladores da lógica. Para aqueles que acham que a tarefa de codificação que delineamos acima não é lógica, só resta uma advertência: eles devem riscar definitivamente Aristóteles e Frege da lista dos grandes lógicos, na medida em que seu legado consiste basicamente na elaboração de um novo código lingüístico que garante conseqüência lógica. É corriqueiro hoje em dia que se desenvolvam provas, no sentido estrito, mais fortes e mais informativas do que as que estes dois lógicos desenvolveram. 4 Conceptividade na Epistemologia e na Lógica de Aristóteles 4.1 Observações Preliminares A obra de Aristóteles ocupa um lugar central em nosso projeto. Como pioneiro primordial da lógica, ele encontra-se precisamente na inflexão histórica em que se PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA dá a passagem de uma abordagem informal do raciocínio e do método para uma abordagem formal lógico-dedutiva. Todos os outros desenvolvimentos da lógica ainda podem ser vistos, com justiça, como um desdobramento da lógica aristotélica. Desta forma, se defendemos que a noção de conceptividade tem importância na codificação de linguagens lógicas, não podemos deixar de buscar na obra de Aristóteles respaldo para nossa tese. Assim, condizente com o papel central de Aristóteles, nosso objetivo geral neste capítulo é mostrar como a noção de conceptividade esteve presente na codificação de sua lógica formal. Para tanto, devemos mostrar a aceitação de CON≡POSS por Aristóteles, bem como que este princípio esteve, de algum modo, presente na codificação da lógica aristotélica. Consideramos, por conseguinte, que nossa primeira tarefa é mostrar que Aristóteles aceita o princípio da conceptividade; em 4.2, investigamos a possibilidade de se atribuir CON≡POSS a Aristóteles. Tomando como base o tratado De Anima e os Segundos Analíticos, mostramos como as teorias da mente e do conhecimento de Aristóteles, em especial a faculdade da intuição, recepcionam com naturalidade o princípio da conceptividade (CON≡POSS). 151 Já em 4.3, examinamos em primeiro lugar as fontes1 para a formulação da lógica formal de Aristóteles, em especial da teoria dos silogismos. A lógica formal de Aristóteles inclui uma definição de conseqüência lógica, distinta pela clareza, e uma série de padrões gramaticais de inferência. Onde Aristóteles busca subsídios para o desenvolvimento de uma lógica com estas características? Nossa resposta, adiantamos, é que a fonte primordial para a codificação aristotélica é a dialética. Ainda em 4.3, destacaremos a importância do fator modal dentro da lógica de Aristóteles, na codificação e no teste da validade das formas lógicas. Em 4.4, procuramos finalmente integrar a lógica formal aristotélica ao universo regido pela faculdade intuitiva (noésis), de modo a deixar claro que a noção de conceptividade é efetivamente empregada na codificação lógica de Aristóteles. O fundamento para nossa hipótese de que a faculdade intuitiva é empregada na codificação da lógica tradicional é o fato de Aristóteles ter sido PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA obrigado a lidar com o reconhecimento imediato de relações necessárias entre formas proposicionais – ele não tinha outras opções epistemológicas; sendo o conhecimento imediato do que é necessário (do ser que não pode deixar de ser o que é) o objeto típico da intuição, a lógica deve ser considerada também como objeto típico da faculdade da intuição. E, sendo a faculdade da intuição uma faculdade plenamente compatível com CON≡POSS, teremos, então, uma forte indicação de que Aristóteles emprega a conceptividade dentro do universo da lógica. Antes de nos lançarmos aos nossos intentos, temos que fazer algumas advertências. A complexidade e a amplitude da obra de Aristóteles nos permitem, no âmbito desta tese, somente oferecer uma sugestão hipotética, porém concreta e 1 O sentido do termo “fonte” nesta sentença, e na maior parte do restante desta tese, é diferente do sentido que temos atribuído a este termo até aqui. Até o presente momento, temos usado o termo “fonte” no sentido epistemológico tradicional ou próximo a ele, como sinônimo de origem do conhecimento. É neste sentido que se diz, por exemplo, que se reconhecem basicamente duas fontes ou origens do conhecimento, a experiência empírica e a razão (ver Hessen 1987, pp. 59-85). É neste sentido também que temos afirmado que a conceptividade é a fonte (além de justificação) do conhecimento modal: o conhecimento modal nasce da conceptividade. O novo sentido de “fonte” que aparece neste momento diz respeito à origem dos recursos expressivos, formais, sintáticos, mas também teóricos ou filosóficos, que um autor toma emprestado de outros autores para desenvolver sua linguagem lógica. É neste sentido que se pode dizer que a dialética platônica foi fonte para a codificação da teoria dos silogismos de Aristóteles e que a linguagem funcional da aritmética e a visão de juízos de Kant foram fontes para a codificação da conceitografia de Frege. O contexto indicará o significado de “fonte” que temos em mente em cada ocasião; quando isto não ocorrer, o indicaremos. 152 bem fundada, de como se dá a codificação de sua lógica, em conformidade com o princípio da conceptividade. Não nos arrogamos ter efetuado uma análise exegética aprofundada, e tampouco pretendemos aqui estar enunciando qualquer novidade; em vez disso, baseamo-nos amplamente em análises acerca da descoberta das formas de silogismo feitas por comentadores tradicionais (Bréhier, De Corte, Hamlyn, Hintikka, Jannone, Kneale e Kneale, Lalande, Porchat, Ross, Taylor, Tricot), sempre amparados pela obra de Aristóteles. O que pretendemos é dar uma ênfase diferenciada à leitura da obra lógica e epistemológica de Aristóteles, na qual o emprego da noção de conceptividade dentro da lógica possa aparecer com clareza. Outra advertência relevante diz respeito a que obras do Corpus cobriremos ao longo deste capítulo. O Organon (principalmente os Analíticos) e a obra De Anima são nossas principais fontes primárias da lógica e da psicologia de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Aristóteles, respectivamente; cremos que esta escolha seja condizente com nosso objetivo de conectar lógica e epistemologia, embora estejamos conscientes da pulverização temática existente nas obras de Aristóteles e do conseqüente risco de omissões e erro de nossa parte. Assumimos o risco face à centralidade do autor para nosso intento. 4.2 A Epistemologia Modal de Aristóteles Nesta seção, dedicamo-nos a discutir a epistemologia modal de Aristóteles, tendo em vista os seguintes três objetivos: (a) mostrar que Aristóteles aceita CON≡POSS; (b) examinar a noção de necessidade de Aristóteles; (c) mostrar que a faculdade da intuição, compatível com CON≡POSS, é a responsável pelo conhecimento imediato do necessário, dentro do sistema aristotélico. Assim, nossa primeira e mais urgente tarefa, nesta seção, é examinar a epistemologia modal de Aristóteles de modo a mostrar como ela está em pela harmonia com CON≡POSS (4.2.1). Em seguida (4.2.2), voltamo-nos para a noção 153 de necessidade de Aristóteles, a fim de mostrarmos como ele entendia esta noção. Se a noção de necessidade servirá de elo entre intuição e lógica em nosso projeto, não poderíamos prosseguir sem ter um mínimo de clareza acerca do que Aristóteles quer dizer com esta noção. Por fim, em 4.2.3, mostramos que Aristóteles guarda para a cognição imediata (não-inferencial) do necessário a faculdade da intuição, que, como já terá sido mostrado (em 4.2.1), é absolutamente compatível com o princípio da conceptividade. 4.2.1 O Princípio CON≡POSS em Aristóteles Se queremos mostrar que a noção de conceptividade tem um lugar cativo dentro da lógica aristotélica – nosso objetivo principal neste capítulo –, é prudente que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA nos preocupemos, antes de tudo, em mostrar que Aristóteles subscreve ao princípio CON≡POSS. Isto é o que nos propomos a defender na presente seção. Esta questão é extremamente difícil de tratar, pois, como é sabido, os gregos não têm por hábito fazer referência explícita ao que ocorre em sua subjetividade, ou seja, fazer uma descrição reflexiva ou introspectiva do que se passa na consciência, mesmo que reconheçam com clareza a existência desta mesma subjetividade. Ao contrário do que ocorre com os filósofos da modernidade, não é comum encontrar um argumento de conceptividade no âmbito da filosofia antiga. Contudo, este fato não é, por si só, razão para excluir a hipótese da existência da noção de conceptividade dentre os gregos, mas sim para nos fazer perceber que o modo como os gregos estruturam sua epistemologia não deixa lugar para a referência a ocorrências mentais em contextos argumentativos; isto é muito diferente de dizer que os gregos não reconhecem a existência de ocorrências mentais, o que é simplesmente um absurdo. O tratamento que os gregos dispensam à mente está conectado de maneira indissociável à física e à ontologia. Neste sentido, coloca Jannone, na introdução à sua tradução da obra De Anima: 154 O conjunto dos escritos psicológicos de Aristóteles situa-se na articulação da física e da metafísica e, na medida em que o dualismo alma-intelecto2 permanece sem solução, a psicologia permanece dividida entre as duas ordens do saber. (p. VIII) Assim, o mental é pensado por Aristóteles sempre em conexão com a física e a metafísica, em suma, com a realidade. Daí colocar De Corte (1934): A vida mental, segundo Aristóteles, não é uma atividade apartada em um isolamento que não seria mais que um regresso estéril e impossível de si a si, mas uma ε̉νέργεια [energeia] auto-perfeccionante condicionada pela relação metafísica da mente com a matéria, que exprime a unidade de um sujeito cujo ato ou a forma não se separa do corpo. (p. 127) Este ponto de partida investigativo de Aristóteles – de que nossa vida mental é determinada pelos mundos físico e metafísico – faz com que não tenha cabimento falar em conceptividade como fonte autônoma de conhecimento. O que podemos conceber, ou não, é, para Aristóteles, sempre pensado a partir daquilo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA que determina nosso pensamento. Ou seja, o estudo da subjetividade começa, em Aristóteles, não a partir do sujeito, mas sim daquilo que determina os estados mentais do sujeito: o mundo real. Uma observação que vai neste sentido é feita por De Corte (1937): (...) é no conhecimento do objeto tal como ele se oferece aos graus diversos segundo o estágio inteligível no qual ele se encontra, às apreensões da inteligência [nous], que devemos encontrar a exibição da função essencial da inteligência, que se quer conhecer. Noutros termos, para conhecer a função da inteligência, Aristóteles parte, com confiança, do objeto, e não, como a maior parte dos filósofos modernos, da inteligência ela mesma. (p. 144) Esta subordinação da mente subjetiva ao mundo objetivo fica clara no seguinte fragmento da Metafísica: Que as qualidades sensíveis não existam, isto pode ser verdadeiro (pois elas não são mais que impressões do ser que sente), mas o que não pode não existir, mesmo que não houvesse sensação, são as coisas que servem de substrato às qualidades sensíveis, e que produzem a sensação. Pois enfim a sensação não é sensação dela mesma, mas existe ainda alguma outra coisa fora da sensação, alguma coisa que é necessariamente anterior à sensação. Pois aquilo que move é anterior àquilo que é movido. (∋5, 1010b 30, apud. De Corte 1937, p. 147.) O pressuposto metodológico de Aristóteles de privilegiar, em seus estudos sobre a mente, o objetivo, em detrimento do universo subjetivo, o faz dispensar a 2 Pode parecer estranho falar-se de “dualismo alma-intelecto”. Mas quando se tem em conta que a alma é, para os gregos, uma totalidade que inclui capacidades, potencialidades e funções fisiológicas, psicológicas e físicas, a expressão fica clara. 155 introspecção como modo privilegiado de investigação da mente, assim como o faz ignorar argumentos de conceptividade. Enquanto, na presente tese, desejamos fundar a lógica na noção de conceptividade, Aristóteles funda tanto nossas capacidades conceituais quanto a lógica no ser. Como, então, saber se Aristóteles aceitaria a tese CON≡POSS? É claro que, dado que defendemos que as noções modais são todas redutíveis à noção de conceptividade, cremos também que o emprego reiterado da noção de necessidade na lógica aristotélica seja uma evidência do lugar da noção de conceptividade em suas descobertas lógicas. Mas, como acabamos de ver, dados os hábitos teóricos dos gregos, e de Aristóteles em particular, a ligação entre conceptividade e necessidade não tem como se revelar explicitamente nos textos de Aristóteles. Apesar destes percalços metodológicos, cremos que podemos apontar com clareza alguns traços que indicam a aceitação de CON≡POSS por Aristóteles, sem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA deixarmos de levar em conta a própria conexão que Aristóteles faz entre ontologia e mente. Para tanto, buscamos expor alguns elementos pontuais dentro da visão aristotélica de mente que são suficientes para mostrar que Aristóteles corrobora CON≡POSS. Tais pontos são: (1) em primeiro lugar, procuramos elementos que indiquem a própria aceitação, por Aristóteles, de que o que podemos pensar3 é possível (CON⊃POSS) ou, o que dá no mesmo, de que não podemos pensar o impossível (IMP⊃INC); (2) em segundo lugar, buscamos também dados que nos mostrem que Aristóteles aceita que todo pensamento é dotado de qualidades intrínsecas (qualia); isto aproximaria mais a versão da tese CON⊃POSS que Aristóteles hipoteticamente aceita de nossa própria versão; (3) em terceiro lugar, procuramos na obra de Aristóteles a aceitação da idéia de que há uma continuidade entre sensação, imaginação e intuição (aisthesis, 3 Aqui, “pensar” e “pensamento” devem ser entendidos em seu sentido genérico, de atividade mental subjetiva, englobando tanto a sensação (aisthesis) quanto a imaginação (phantasia) e a intuição ou inteligência (noésis). Estas são as três faculdades cognitivas reconhecidas por Aristóteles em De Anima, além das arcaicas faculdades da nutrição, da locomoção e do desejo. Alguns comentadores, em alguns momentos, usam “pensar” para se referir à faculdade intuitiva. Quando isto ocorrer, indicaremos. 156 phantasia e noésis), reforçando ainda mais nossa alegação de que Aristóteles aceita CON⊃POSS; (4) em quarto lugar, buscamos a idéia de que a conceptividade tem relevância semântica (i.e., que uma situação concebida pode ser aptamente qualificada de verdadeira ou falsa), o que faria dela uma candidata ao significado intensional de enunciados lógicos, em Aristóteles; (5) por fim, procuramos mostrar que Aristóteles crê que as faculdades cognitivas humanas (sensação, imaginação e intuição) são completas e que, portanto, ele aceita a tese POSS⊃CON. Isto nos dará a equivalência CON≡POSS no âmbito da obra de Aristóteles. (Que, como já tivemos a oportunidade de mostrar, as PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA faculdades humanas não sejam de fato completas não é relevante aqui; o que queremos mostrar é que Aristóteles assume que elas o sejam e raciocina em conformidade com esta assunção.) Com relação a (1), não podemos buscar a aceitação de CON⊃POSS por Aristóteles diretamente em formulações presentes em sua obra, pois, como vimos há pouco, Aristóteles parte do pressuposto de que os estados mentais subjetivos estão sempre subordinados àquilo que os causou. Nosso caminho é, portanto, buscar no objeto as características que, reproduzidas ou transmitidas à mente, determinam que tudo que seja concebível seja possível. Defendemos a hipótese de que, dado que, em Aristóteles, as ocorrências de estados mentais subjetivos estão sempre subordinadas a um objeto existente que as causa, segue-se que as leis que regem a existência do objeto regem também as ocorrências destes mesmos estados dele resultantes (sensação, imaginação e intuição). Vejamos uma passagem na qual De Corte (1937) segue este caminho exegético na análise do papel do ser na intuição (ou inteligência ou ainda intelecção): Para além da sensação e da matéria conceitual que ela [a sensação] lhe fornece, a inteligência [nous] percebe o ser e as necessidades inteligíveis que dele procedem: o objeto primeiramente conhecido por ela é o ser, não sob seu aspecto analógico, mas sob seu aspecto concreto, na medida em que ele impregna a quididade dos objetos sensíveis que fornecem à ciência seu ponto de partida e que ele [o ser] constitui o pano de fundo abstrato e universal que a inteligência, faculdade do 157 abstrato e do universal, apreende em primeiro lugar na origem de sua intelecção. (p. 159) Se o que é apreendido pela inteligência é o ser que constitui a concretude dos objetos da percepção, isto quer dizer que o que não tem ser não pode ser apreendido por ela; do que se segue que o que é impossível (de ser) é inconcebível ou impensável. Isto é o que conclui De Corte, respondendo àqueles que afirmam que o pensamento (em sentido genérico) comporta contrários (e.g., Protágoras): O pensamento seria certamente impossível se ele tivesse que ter como objeto os contrários: para se manifestar, ele deve se apoiar sobre a plena unidade do ser, (...). (Ibid.)4 De Corte está atribuindo a Aristóteles a corroboração ao princípio IMP⊃INC (ou CON⊃POSS). É importante ressaltar que a subordinação ao ser não se dá somente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA na sensação (aisthesis), mas também na imaginação (phantasia) e na intuição ou inteligência (noésis): em todos os casos, o conteúdo do pensamento (em sentido genérico) está subordinado às leis do ser. Visto o ponto (1), chegamos então ao ponto (2), ou seja, temos que mostrar que, para Aristóteles, há em todos os tipos de pensamento – sensação (aisthesis), imaginação (phantasia) e intuição (noésis) – qualidades intrínsecas que respondem pelo estatuto modal daquilo que é pensado. Com relação à sensação e a imaginação, jamais houve qualquer dúvida de que estas formas de pensamento têm por base qualidades intrínsecas, e que estas qualidades são as responsáveis pelos respectivos conhecimentos modais. Algumas passagens textuais de Aristóteles encerram a questão. Sobre a sensação, ele afirma: De uma maneira geral, para toda sensação, deve-se entender que o sentido é a faculdade apta a receber as formas sensíveis sem a matéria, da mesma maneira que a cera recebe a impressão do anel sem o ferro nem o ouro – e se ela recebe a impressão do ouro ou do bronze, não é enquanto ouro ou enquanto cobre. Similarmente, também em cada caso o sentido é afetado por aquilo que tem cor ou sabor ou som, mas por estes não enquanto eles são o que cada um deles é dito ser, mas somente na medida em que ele tem tal qualidade e em virtude de sua forma (De Anima, II 12 424 a 17-25) No que concerne à imaginação, o seguinte fragmento confirma sua base sensível: 4 Sobre este ponto, De Corte nos remete à Metafísica Z 13 1039 a 7. 158 (...) a imaginação é pensada como sendo um tipo de movimento, não ocorrendo separada da percepção sensorial, mas somente nas coisas que percebem e com respeito a coisas das quais há percepção (...) – este movimento não pode existir separado da percepção sensorial ou em coisas que não percebem. (ibid., III 3 428 b 10-16) Fica claro que imaginamos por meio de qualidades sensíveis perceptuais. Os elementos qualitativos e sensíveis da imaginação ficam ainda mais claros em uma análise etimológica na qual Aristóteles traça a origem da palavra “phantasia” à palavra “phaos” (luz) (ibid., III 3 428 b 30).5 Devemos nos voltar agora para a faculdade da intuição (ou inteligência) a fim de mostrar que, também neste caso, a faculdade em questão tem um fundo sensível e qualitativo. Começamos, mais uma vez, com a exegese de De Corte para mostrar que a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA inteligência realiza-se por meio de dados sensíveis: É conhecida a oposição clássica entre Platão e Aristóteles ou, para colar uma etiqueta, entre os inteligíveis separados e os inteligíveis imanentes aos objetos materiais. Se as constatações experimentais que Aristóteles sublinhou ao afirmar o constante paralelismo do sensível e do inteligível e a dependência do segundo em relação ao primeiro são verdadeiras, deve-se dizer com ele que o objeto formal da inteligência é o ser inteligível, incluídos aí os dados da sensação (...). Portanto, é dentro do ser sensível que o conceito se encontra realizado e é a potência sensível que entra em contato com ele. (p. 129, grifos nossos). Ou seja, é por meio de nossa potência sensível, nossa capacidade de imaginar, que temos contato epistêmico com conceitos. Há passagens de Aristóteles que corroboram amplamente esta interpretação: Dado que não há objeto atual que, segundo todas as aparências, tenha existência separada de grandezas sensíveis, é dentro das formas sensíveis que os inteligíveis existem, tanto quando se fala de abstrações quanto das qualidades e atributos de objetos sensíveis. Por esta razão, se não se tiver qualquer sensação, tampouco se poderá ter nada a aprender nem compreender; e quando contemplamos [theorein], contemplamos simultaneamente uma imagem, pois imagens são como percepções [aisthemata], exceto por serem sem matéria. (De Anima, III 8 432 a 3-432 a 15, grifos nossos). Segundo De Corte, Aristóteles vai muito além de identificar uma simultaneidade do inteligível e do imaginável; em Aristóteles, há elementos que o levam a crer que a intuição é uma variedade de imaginação: 5 Não estamos corroborando a etimologia fornecida por Aristóteles, por muitos criticada. 159 Aristóteles não chega a falar de uma imaginação de caráter intelectual, phantasia logistike? Todo ato do pensamento compreende uma apresentação da realidade objetiva e uma apreensão desta mesma realidade: do que se segue que a operação intelectual (noein) abarca dentro da unidade dinâmica de seu desenvolvimento a imaginação (phantasia) que lhe oferece uma matéria e a consciência (hypolepsis) que a apreende como inteligível. (...) Dentro do ato vital de intelecção, as duas faculdades se encontram, portanto, estritamente ligadas e se penetram reciprocamente. (p. 175) Mais uma vez, há respaldo convincente no De Anima para defendermos uma conexão sólida e consistente entre imaginação e intuição, na qual a imaginação é o meio através do qual se obtém conhecimento intuitivo. Vejamos algumas passagens que corroboram esta conexão. Em primeiro lugar, há uma passagem curta na qual Aristóteles afirma que há uma imaginação específica à razão (ao lado de uma imaginação dedicada à percepção). Esta é a phantasia logistike ou PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA imaginação lógica à qual De Corte se refere: Toda imaginação diz respeito ao raciocínio ou à percepção. Os outros animais compartilham também da última. (III 10 433 b 28-30) Em outro trecho, Aristóteles assume que a intuição (ou intelecção) é um tipo de imaginação (para então examinar se, neste caso, a intuição é dependente do corpo ou não): (...) a intelecção parece eminentemente própria à alma; mas se esta atividade é ela mesma um ato da imaginação ou não pode ser exercida sem a simultaneidade da imaginação, ela não poderá tampouco efetivar-se independentemente do corpo. (I 1 403 a) Uma passagem final não deixa sobra de dúvidas sobre a dependência cognitiva dada intuição, com relação à imaginação: Para a alma pensante, imagens servem como percepções. E quando ela afirma ou nega o bem ou o mal, ela o evita ou o busca. Logo, a alma jamais pensa sem uma imagem. (III 7 431 a 12-17) Aqui, Aristóteles chega a dar um exemplo: quando afirmamos que algo é bom, nossa alma busca a imagem do bem, quando negamos o bem, a alma evita a imagem do bem. Isto é o que ocorre em todos os pensamentos, segundo nos diz o fragmento (o que inclui a intuição). Repare ainda que o exemplo que ele dá diz respeito a conceitos muito abstratos e difíceis de dar conta sensivelmente, o bem e o mal, objetos típicos do pensamento intuitivo. 160 Temos material literal mais que suficiente para evidenciar que Aristóteles de fato associava ocorrências mentais sensíveis ou qualitativas a qualquer variedade de pensamento, mesmo a intuição mais abstrata (noésis). Outro elemento presente na obra de Aristóteles que aproxima sua visão da mente de nossa própria visão é sua tese clássica segundo a qual há uma continuidade entre percepção e intuição. Assim, não somente ocorre que a intuição em Aristóteles se sirva da imaginação; é por meio de abstração a partir de percepções particulares que chegamos a ser capazes de intuir universais, a formar conceitos. Isto equivale ao ponto (3), acima proposto. Não nos prenderemos neste item (3), na medida em que a tese da abstração (ou indução) de universais a partir de particulares é uma tese clássica do aristotelismo, razoavelmente familiar: repetição da sensação; conservação das sensações repetidas na memória (uma espécie de imaginação); criação de uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA “imagem genérica” (ou “universal”, ou “noção”) despojada do que por ventura seja individual, um quase conceito; intuição da forma pura.6 Restringimo-nos somente a expor uma passagem na qual fica claro que, “para o estagirita, a alma percebe as formas inteligíveis através das formas sensíveis e que a aisthanesthai é a condição, material sem dúvida, mas necessária, para o conhecimento” (De Corte 1937, p. 42). Uma passagem dos Segundos Analíticos nos basta para deixar claro que o processo de abstração aristotélico, esboçado acima, extrai a forma pura (aquilo que é intuído pelo intelecto) do particular sensível, ou seja, que a forma pura se encontra geneticamente ligada ao sensível: Embora o ato da percepção tenha por objeto o indivíduo, a sensação não deixa de ter por objeto o universal: é o homem, por exemplo, e não o homem Cálias. Após, dentre estas primeiras noções universais, uma nova reordenação é produzida dentro da alma até que se reordenem enfim as noções indivisíveis e verdadeiramente universais: assim, tal espécie de animal é uma etapa rumo ao gênero animal, e esta última noção é ela mesma uma etapa rumo a uma noção mais alta. É portanto evidente que é necessariamente a indução que nos faz conhecer os princípios, pois é desta maneira que a sensação, ela mesma, produz em nós o universal. (II, 19, 100 b, grifos nossos.) Em quarto lugar, conforme o o item (4) acima disposto, devemos apontar evidências de que o universo das qualidades sensíveis tem relevância semântica 6 Para a formulação clássica, ver por exemplo o capítulo final dos Segundos Analíticos (livro II, capítulo 19) e fragmento abaixo. 161 para Aristóteles. Ou seja, as imagens mentais são verdadeiras ou falsas. Voltemos ao De Anima: Se a imaginação é a operação em virtude da qual uma imagem determinada se apresenta a nós e se, ao enunciarmos esta definição, excluirmos da palavra imagem todos os sentidos metafóricos, a imaginação deve assumir um lugar entre as faculdades ou habitus [esis] que nos permitem discernir e assim afirmar o verdadeiro ou o falso (...). (De Anima, III 3 428 a 1-5)7 De acordo com esta passagem, a imaginação tem relevância semântica, ou seja, pode estruturar-se como um crença com pretensões à verdade, e desta maneira como o significado de uma sentença. Sendo a imaginação parte constitutiva da intuição, que tem acentuado valor epistemológico para Aristóteles (e.g., no reconhecimento dos primeiros princípios ou na procura do termo médio), pode-se concluir com naturalidade que qualidades sensíveis têm relevância para a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA determinação do verdadeiro e do falso no âmbito da intuição. Logo, as faculdades cognitivas da imaginação e da intuição possibilitam o discernimento do verdadeiro e do falso por meio de qualidades intrínsecas (que isto ocorra na sensação, não precisa sequer ser objeto de discussão). Ainda sobre o ponto (4), adicione-se à evidência já apresentada o fato de Aristóteles estruturar sua semântica, na abertura da obra Da Interpretação, colocando as afecções da alma como aquilo que as expressões lingüísticas expressam, ou seja, seu significado: Os sons emitidos pela voz são os símbolos dos estados da alma, e as palavras escritas os símbolos das palavras emitidas pela voz. E mesmo que a escritura não seja a mesma em todos os homens, as palavras faladas tampouco são as mesmas, embora os estados da alma dos quais estas expressões são os signos imediatos sejam idênticos para todos, como são idênticas também as coisas do que estes estados são imagens. Este assunto foi tratado em nosso livro Da Alma, pois ele interessa a uma disciplina diferente. (1 16 a 1-10)8 Como se não bastassem todas estas evidências, a relevância semântica da imaginação sensível (presente também na intuição) faz-se presente num método de prova adotado e prescrito pelo próprio Aristóteles: a ectesis. Vejamos a explicação de Leibniz para o procedimento de ectesis: 7 Ao contrário do que ocorre nas outras passagens que citamos, a tradução de W. D. Hamlyn difere significativamente daquela de Jannone; seguimos a tradução do último. 8 Tricot e Ross (1937, p. 10, nota) nos remetem ao De Anima, a III 6. 162 Os geômetras, em suas demonstrações, apresentam primeiramente a proposição que deve ser provada, e para chegar à demonstração, eles expõem por alguma figura aquilo que é dado: é isto que se chama de ectesis. (Nouv. Essais, livro IV, ch. XVIII, § 1, apud. Lalande 2002). O que é empregar uma figura ou um indivíduo paradigmático, senão um experimento no qual o estado qualitativo do indivíduo (sua experiência empírica ou imaginativa da figura) justifica uma asserção? Isto não seria uma espécie de experimento de pensamento? Como coloca Ross (1949), seguindo esta linha, ectesis é, nos Primeiros Analíticos, precisamente o emprego da imaginação: A natureza do procedimento de exposição (ectesis) é como se segue: se, por exemplo, todo S é P e todo S é R, “tome” um dos S’s, e.g. N; então N será P e também R, de modo que a conclusão algum R é P será confirmada. O apelo aqui não é à experiência atual, mas à imaginação (...).9 (pp. 35-36) Trata-se, portanto, de uma prova a partir de uma instância representativa geral, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA que em Aristóteles tem um caráter sensível. Posto de modo direto: Aristóteles aceita o que hoje chamamos de experimentos de pensamento como prova, no sentido estrito, tanto quanto aceita, por exemplo, o procedimento de redução ao absurdo.10 Temos então mais uma indicação da relevância semântica de qualidades intrínsecas. Pode-se dizer que este tipo de procedimento é o que há de mais próximo, em Aristóteles, ao que temos chamado de “argumento de conceptividade”. Por fim, no que diz respeito ao item (5), temos que mostrar que Aristóteles aceita POSS⊃CON, o que nos dará o princípio CON≡POSS por inteiro, no âmbito de seu pensamento. Para mostrarmos a completude da conceptividade em Aristóteles, temos antes que fazer uma brevíssima observação sobre a teoria aristotélica da sensação. Como sintetiza Ross (1949, p. 137), para Aristóteles a sensação é um processo no qual coisas distintas tornam-se semelhantes; assim, a mão torna-se semelhante ao quente, o olho torna-se semelhante à cor, a língua torna-se 9 A forma em questão, AAI da 3ª figura, só é valida aceitando-se a implicação existencial de enunciados universais. É interessante notar que o próprio procedimento de tomar um S já dá conta da existência de um S, o que explica, em parte, porque para Aristóteles há implicação existencial em enunciados universais; i.e., esta é uma decorrência do próprio método de ectesis que ele está empregando. 10 Algumas passagens nas quais Aristóteles emprega ou se refere à ectesis, nos Primeiro Analíticos: I, 2, 25 a, 15-20 (Aristóteles oferece uma prova por ectesis); I, 6, 28 a, 23 (Aristóteles afirma que a ectesis, junto com a redução ao absurdo, pode ser usada como método de redução de silogismos da terceira figura à primeira figura); I, 6, 28 b 14 (idem). 163 semelhante ao sabor etc. O que subjaz a tal explicação da sensação é, segundo Jannone (1995, p. X), o princípio segundo o qual “o semelhante é conhecido pelo semelhante”. Não se pode dizer muito mais que isto acerca da noção de sensação em Aristóteles sem que se entre em arcaísmos fisiológicos. Dada a visão de sensação de Aristóteles, para que as faculdades cognitivas sejam todas completas, é necessário que os órgãos sensoriais possam tornar-se semelhantes a todas as coisas, de modo que todas as coisas sensíveis possam ser imaginadas, e enfim todos os seres inteligíveis possam ser intuídos. Que nossas faculdades cognitivas sejam assim completas está claro na seguinte passagem de De Anima (III 8 431b 21-25): PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Diremos novamente que a alma é, em um sentido, todos os seres. Os seres com efeito são ou sensíveis ou inteligíveis: a ciência se identifica de alguma maneira aos objetos do saber como a sensação aos objetos sensíveis.11 (grifos nossos) Assim, a alma tem o potencial de se assemelhar (ou talvez ser) todos os seres, sejam sensíveis, sejam inteligíveis. A tese da completude da conceptividade em Aristóteles, principalmente no que diz respeito aos objetos da intuição, é reforçada ainda por outra colocação: Mas dado que nenhum objeto, ao que parece, pode existir separado das grandezas sensíveis, é nas formas sensíveis que as inteligíveis existem, tanto aquelas chamadas abstrações quanto aquelas que são qualidade e atributos de objetos sensíveis. (De Anima III 432 a) Fica claro que todos os objetos ou seres têm um traço sensível mediante o qual podemos conhecê-los por meio da sensação e, ulteriormente, chegar ao conhecimento da forma por meio da indução. Temos, assim, CON≡POSS em Aristóteles. Encerramos esta seção, mas não sem antes fazermos uma observação colateral. O texto De Anima tem sido injustamente posto em segundo plano, dentro dos estudos da lógica aristotélica (mas não no estudo de sua psicologia; nomes como Brentano e Cassirer escreveram obras dedicadas inteiramente a este 11 A título de curiosidade, vale notar a observação de Aristóteles (De Anima I 5 410 b 5-10) sobre a visão de Empédocles, segundo a qual os seres humanos têm uma capacidade cognitiva mais ampla que Deus, dado que Este não conheceria o ódio (não pode ser ou se assemelhar ao ódio). Portanto, na visão de Empédocles, há uma curiosa inversão da posição, mais comum ao longo da história da filosofia, segundo a qual Deus teria poderes cognitivos mais amplos que os humanos. Nos termos em que estamos problematizando a questão, para Empédocles, o princípio POSS⊃CON seria válido para os seres humanos, mas inválido para Deus. 164 texto de Aristóteles). Esta negligência vem de longa data. Ainda na Antigüidade, a existência de uma referência ao De Anima em Da Interpretação pareceu motivo suficiente para Andrônico (séc. I a.c.) negar a autenticidade da última obra: não encontrou nada em De Anima que justificasse a referência.12 Deve ter-lhe parecido suspeito que uma obra lógico-semântica estabelecesse uma conexão explícita com um estudo do gênero do De Anima. Como acabamos de ver, temos bons motivos para crer na verdade do inverso. Nossa conclusão, após a discussão dos pontos (1) a (5), é a de que o princípio CON≡POSS é recepcionado com naturalidade pela psicologia e pela semântica de Aristóteles: (1) as leis do pensamento espelham as leis do ser (2) todo pensamento tem um caráter sensível; (3) todo pensamento origina-se na percepção; (4) estados mentais sensíveis têm relevância semântica; (5) nossas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA faculdades cognitivas (sensação, imaginação e intuição) são completas. 4.2.2 A Noção de Necessidade nos Segundos Analíticos Na presente seção, passamos ao largo de qualquer discussão mais detida da noção de necessidade (anagche) que Aristóteles emprega em suas obras de caráter metafísico. Dado o eixo epistemológico de nosso tratamento da lógica aristotélica, interessa- nos saber como a noção de necessidade é vista a partir do prisma da ciência aristotélica. Assim, tomamos como base para nossa discussão os Segundos Analíticos. Nosso interesse na noção de necessidade decorre do fato de ela ser o elemento comum aos princípios da ciência e às formas lógicas válidas, o que torna possível a constatação de que a faculdade da intuição empregada no conhecimento dos princípios da ciência seja também empregada na lógica, dentro do contexto primitivo que temos ressaltado. Logo, não podemos prosseguir sem examinar o que Aristóteles quer dizer com “necessário”. Nos Segundos Analíticos, encontramos algumas variações no tratamento dispensado por Aristóteles para a noção de necessidade: há desde uma enunciação bastante simples e resumida até uma análise um pouco mais detalhada desta noção. O tratamento mais simples é enunciado de passagem em vários momentos 12 Ross (1949, p. 10). 165 do texto, como se Aristóteles quisesse somente relembrar ao leitor o que ele tem em vista com o emprego do termo “necessidade”, sem precisar entrar em maiores detalhes. Neste caso, “necessário” quer dizer simplesmente o que não pode ser de outra maneira. A seguir apresentamos três exemplos deste tratamento simples: Dado que é impossível que o objeto da ciência entendida no sentido absoluto seja outro do que ele é, o que é conhecido por ciência demonstrativa será necessário. (I, 4, 73 a 20) Se a ciência demonstrativa parte de princípios necessários (dado que o objeto da ciência não pode ser outro do que ele é) (...) (I, 6, 74b, 5-6) A ciência e seu objeto diferem da opinião e seu objeto, no que a ciência é universal e procede por proposições necessárias, e que o necessário não pode ser diferente do que ele é. (I, 33, 88b 30) Um tratamento um pouco mais detido de Aristóteles o conduz a levar em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA consideração a noção de atributo essencial.13 Apresentamos a seguir um exemplo deste tratamento: Mas dado que são necessários, dentro de cada gênero, os atributos que pertencem essencialmente a seus sujeitos respectivos enquanto tais, é claro que as demonstrações científicas têm por objeto as conclusões essenciais e se fazem a partir de premissas elas mesmas essenciais. (I, 6, 77 a 29-31) Não há diferenças significativas entre o tratamento anterior, mais simples, e este que acabamos de enunciar, na medida em que atributo essencial pode muito bem ser entendido como um atributo sem o qual a coisa deixa de ser o que ela é: dizer que se uma coisa não é uma figura plana então ela não é um triângulo é o mesmo que dizer que ser uma figura plana é uma característica essencial do triângulo. Este entendimento de um atributo essencial como equivalente a um atributo sem o qual a coisa deixa de ser o que ela é está presente de forma muito clara em outra passagem dos Segundos Analíticos: A ciência apreende o atributo animal, por exemplo, de tal sorte que ele não pode não ser animal (...) É por exemplo (...) a apreensão do animal como um elemento essencial do homem. (I, 33, 89 a, 33-35; grifos nossos) Por fim, há o tratamento analítico e detalhado que Aristóteles consagra à noção de necessidade, dentro dos Segundos Analíticos. Todo o quarto capítulo do livro I desta obra é destinado ao estudo do caráter necessário de proposições; é 13 “Essência” é a tradução de Tricot para ti esti. 166 neste capítulo que Aristóteles estipula três características básicas da necessidade: “(a) atribuído a todo sujeito, (b) por si e (c) universalmente” (I, 4, 73 a, 25). No que se segue, oferecemos, em linhas gerais, o que Aristóteles compreende por cada um destes três elementos. Para o elemento (a), ser atribuído a todo sujeito, Aristóteles dá a seguinte explicação: Por afirmado da totalidade do sujeito, eu entendo o que não é nem atribuído a algum caso deste sujeito à exclusão de outro, nem atribuído a um certo momento à exclusão de outro. (Ibid.) Ou seja, um atributo necessário é atributo de todos os sujeitos que têm o atributo, ao mesmo tempo e a todo o tempo; assim, eu, um homem, sou necessariamente um animal neste momento, e o mesmo ocorre com todos os homens, em todos os PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA momentos; o fato de um homem ser animal não exclui que todos os outros homens sejam animais. Já para (b), o por si, Aristóteles dá a explicação a seguir: São por si, em primeiro lugar os atributos que pertencem à essência do objeto. (I, 4, 73 a 34) Não há dúvida aqui: Aristóteles está se referindo ao caráter essencial do atributo: o que faz autonomamente uma coisa o que ela é. Já o elemento (c), a universalidade, não passa de um amálgama ou uma decorrência dos outros dois:14 Chamo universal o atributo que pertence a todo sujeito, por si, e enquanto si mesmo. (I, 4, 73 b 26) O resultado desta análise mais detida não traz um grande aprofundamento ou uma clareza maior do que suas conceituações sintéticas de necessidade (não pode não ser o que não é ou o que é essencialmente); de fato, ela redunda nestes mesmos elementos. Outras investigações sobre a noção de necessidade contidas nas obras de Aristóteles vão no sentido de desenvolver uma ontologia. Isto ocorre notadamente na obra Metafísica. Estes desenvolvimentos, condizentes com o realismo 14 Neste sentido, afirma Tricot que “a universalidade de uma noção freqüentemente não é mais que uma conseqüência, uma prova de sua necessidade, para Aristóteles” (Segundos Analíticos, p. 27, nota 5). 167 epistemológico de Aristóteles, nos levam além da exposição prima facie que esta noção tem nos Analíticos. Para os fins a que nos propomos, esta noção de necessidade dada por Aristóteles, com vistas à ciência e aos seus princípios, bastanos: esta é a noção de necessidade presente na lógica aristotélica, de viés, sobretudo, epistemológico. 4.2.3 A Intuição como a Faculdade do Conhecimento do Necessário Já vimos que Aristóteles subscreve a CON≡POSS. Vimos também que Aristóteles tem uma visão da noção de necessidade na qual se destacam as teses de que o que é necessário não pode ser de outra maneira e de que ser necessariamente é ser essencialmente. Para encerrarmos nossa discussão sobre a epistemologia modal PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA em Aristóteles, resta-nos expor a faculdade cognitiva que ele estipula para o conhecimento direto (não-demonstrativo) do que é necessário, ou seja, do que é essencialmente e que não pode ser outro. Este é o objetivo desta seção. Na visão de Aristóteles, quando buscamos conhecer diretamente a essência de um conceito, digamos, do conceito de homem, deparamo-nos com o fato de que esta essência não pode ser demonstrada (ver Segundos Analíticos, Livro II, capítulos 4 e 9), não pode ser provada por divisão (Ibid., Livro II, capítulo 5), não pode ser provada por silogismo hipotético (Ibid., Livro II, capítulo 6), não pode ser definida (Ibid., Livro II, capítulo 7). Esta opacidade da noção de essência e do conhecimento necessário só é vencida pela faculdade cognitiva mais alta da epistemologia aristotélica, a faculdade da intuição (noésis). É somente por meio dela que somos capazes de conhecer diretamente “o que é e não pode deixar de ser o que é”. Isto ficará claro a partir da exposição sintética do funcionamento do sistema científico aristotélico que empreendemos. No sistema de Aristóteles, a intuição é a faculdade responsável pelo conhecimento não-formal, não-dedutivo dos princípios científicos necessários. A ciência constrói-se por meio de silogismos necessários, que devem partir de princípios eles mesmos não-demonstráveis, sob pena de regresso ao infinito. O ponto de parada, a base do sistema, são as premissas fundamentais a partir das 168 quais a ciência erige-se por meio de demonstrações. Estas premissas são conhecidas por meio da intuição, como coloca Aristóteles:15 E, dado que, à exceção da intuição, nenhum gênero de conhecimento pode ser mais verdadeiro que a ciência,16 é uma intuição que apreenderá os princípios. (Segundos Analíticos, II, 19, 100b, 10-13) Sendo a intuição a faculdade “mais verdadeira” e a base para a ciência, ela se ocupa do conhecimento direto do que é necessário: É claro que a ciência não se ocupa delas [das coisas contingentes] (...) Estas coisas não são objeto de intuição (entendo por intuição um princípio de ciência), nem de ciência não-demonstrativa, que consiste na apreensão da premissa imediata. (I 33, 88b, 34) A intuição é, portanto, uma faculdade que se presta ao conhecimento imediato (não-demonstrativo) do que é necessário (dos fundamentos da ciência). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA De posse da epistemologia modal de Aristóteles, voltamo-nos agora para sua lógica, de modo a evidenciar os recursos formais que servem de substrato para sua codificação, bem como a mostrar a importância da noção de necessidade neste empreendimento. 4.3 A Lógica Formal de Aristóteles: suas Fontes e a Importância da Necessidade Notoriamente, Aristóteles é aquele que, com os Primeiros Analíticos, inaugura a lógica como o estudo das práticas dedutivas. O que isto quer dizer, exatamente? A resposta a esta pergunta fica mais fácil se atentarmos, antes, para o que a afirmação não quer dizer. Certamente, dizer que Aristóteles inaugura a lógica não quer dizer que Aristóteles emprega, antes de qualquer um, argumentos logicamente válidos ou que ele é o pioneiro em estudos filosóficos acerca deste 15 Aristóteles distingue entre princípio e axioma. Um princípio é uma proposição indemonstrável de uma ciência, que deve obrigatoriamente figurar como premissa de um silogismo demonstrativo. Já axiomas são princípios que podem ser comuns a mais de uma ciência (por exemplo, a lei da não-contradição), e, nas palavras de Aristóteles, “com ajuda dos quais é feita a demonstração” (Segundos Analíticos, I 7 75 b 1). 16 Aristóteles muitas vezes exclui os princípios da própria ciência, quando então “ciência” (episteme) assume o significado de conhecimento adquirido por demonstração. Mas, em outras vezes, fala em ciência no sentido lato, abarcando o conhecimento dos princípios. Ver Porchat (2000, p. 82-83). 169 tipo de argumento. Como notam Kneale e Kneale (1968, pp. 3-24), o emprego e o estudo filosófico da noção de conseqüência lógica eram comuns na geometria e na metafísica anteriores e contemporâneas a Aristóteles. Em metafísica, o exemplo óbvio é Platão, que, como colocam Kneale e Kneale, preocupa-se intensamente com questões da seguinte natureza: (1) A que é que se pode corretamente chamar verdadeiro ou falso? (2) Que alegação é que torna possível uma inferência válida, ou, o que é uma relação necessária? (3) Qual é a natureza da definição e o que é que definimos? (1968, p. 19) O que distingue Aristóteles como o pioneiro da lógica é o fato de ele formular claramente algo que podemos chamar de “sistema dedutivo”. Já vimos que, hoje em dia, um sistema dedutivo é entendido como uma linguagem (alfabeto de símbolos e regras de formação) somada a axiomas e regras de inferência PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA formuladas na linguagem. É claro que, tomando isto ao pé da letra, Aristóteles não formula um sistema lógico propriamente dito. Não obstante, Aristóteles define um universo de discurso e os procedimentos inferenciais corretos dentro deste universo. De um ponto de vista histórico e conceitual, isto é suficiente para legitimar a afirmação de que Aristóteles formulou, sim, um sistema dedutivo. Basicamente, isto quer dizer que Aristóteles realiza de maneira clara e explícita ao longo do Organon, e notadamente nos Primeiros Analíticos, ao menos duas coisas: (i) define uma noção de conseqüência lógica (informal e autônoma), epistemologicamente relevante, que serve como critério universal para a validade de argumentos; (ii) estabelece (ou tenta estabelecer) um universo de discurso e, dentro dele, caracteriza descritivamente certas estruturas lingüísticas que têm a ambição de garantir que quaisquer argumentos que encarnam tais estruturas sejam válidos (corretude), e que todos os argumentos válidos do universo de discurso tenham estas estruturas (completude). Isto equivale efetivamente a codificar uma linguagem lógica. 170 Vemos, em 4.3.1 e 4.3.2, as fontes das quais Aristóteles se serviu para chegar a (i) e (ii). Ficará claro que a dialética platônica é o substrato fundamental do qual Aristóteles extraiu recursos para a formulação tanto de (i) quanto de (ii). Em 4.3.3, enfatizamos a importância da noção de necessidade para a lógica aristotélica: ela é parte do critério geral de conseqüência lógica e, nesta condição, o instrumento epistemológico básico mediante o qual Aristóteles examina a validade dos procedimentos formais que ele codifica. Por conseguinte, pretendemos mostrar que a noção de necessidade é central tanto para a tarefa (i) quanto a tarefa (ii) de Aristóteles. 4.3.1 A Dialética como Fonte para a Definição de Conseqüência Lógica PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA No que diz respeito ao ponto (i), devemos primeiramente observar que não há sombra de dúvidas de que Aristóteles tinha uma consciência clara da noção de conseqüência lógica quando da elaboração da teoria dos silogismos. No início dos Primeiros Analíticos, encontramos uma definição de conseqüência clara e bemacabada: Silogismo17 é o discurso no qual, sendo certas coisas assumidas, alguma coisa diferente se segue necessariamente delas, através somente das coisas que são assumidas. (P. A., 24 18) Esta definição de conseqüência lógica, na qual o elemento de necessidade aparece com clareza, responde pelo item (i), acima, ou seja, a consciência de uma noção de conseqüência lógica prévia a ser modelada. É somente a partir da posse de uma definição de conseqüência lógica epistemologicamente relevante e criteriológica que Aristóteles tem condições de lançar-se nas investigações formais que dão origem à teoria dos silogismos, pois é esta definição que estabelece o próprio objeto de estudo da lógica. Nossa questão é: como Aristóteles chega a esta definição, na qual o elemento de necessidade se faz presente? 17 Em geral, Aristóteles usa o termo syllogismos como sinônimo de “argumento dedutivo válido”, ou seja, um argumento no qual a conclusão é uma conseqüência lógica das premissas. Hoje em dia, contudo, o termo “silogismo” é empregado para designar qualquer argumento, válido ou inválido, constituído de três proposições (em geral categóricas), das quais duas são premissas e a terceira é a conclusão. 171 Uma definição acabada de conseqüência lógica, na qual o elemento de necessidade encontra-se enunciado com clareza, não aparece no pensamento grego antes de Aristóteles tê-la proposto. De fato, a própria noção de necessidade parece ter sido esclarecida primeiramente por Aristóteles, conforme afirmam Kneale e Kneale (1968): Ora, se a investigação do gênero que chamamos Lógica começou neste contexto [de exposições iniciais de demonstrações geométricas], que partes da lógica, tal como a conhecemos, poderemos esperar ver formuladas nestas exposições primitivas? (...) dentro das proposições gerais (i.e., proposições acerca de todos os indivíduos de uma espécie) esperaríamos que se desse atenção especial àquelas proposições que são necessariamente verdadeiras. (...) não é natural, evidentemente, que os gregos fossem capazes de formular a distinção com clareza quando começaram a fazer geometria; como veremos, Aristóteles teve que se esforçar bastante para o fazer.18 (pp. 7-8, grifos nossos) Na ausência de uma fonte direta, é difícil dizer como Aristóteles PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA efetivamente chegou a sua definição de conseqüência lógica, ou seja, saber como ela lhe ocorreu. A tese aceita por Bréhier (2001, pp. 159-162), Hintikka (1997, pp. 242-243) e Kneale e Kneale (1968, p. 35) é que é a partir das investigações do método dialético, empreendidas nos Tópicos, que Aristóteles chega a sua lógica formal propriamente dita (quadrado de oposições, teoria dos silogismos); parece não haver muitos conflitos sobre isto na literatura (como logo veremos). Mas, destes autores, somente Hintikka (1997) se aventura a formar uma hipótese mais vigorosa sobre como o quesito necessidade torna-se explicitamente uma parte integral das investigações de Aristóteles ao ser agregado à noção de conseqüência lógica: [Nos Tópicos], Aristóteles não queria somente estudar jogos interrogativos de busca de conhecimento [knowledge-seeking interrogative games] por propósitos teóricos abstratos. Ele queria mostrar como vencer tais jogos. Ele estava preocupado com as estratégias de interrogar (e de responder). Hoje todo advogado que já tenha interrogado uma testemunha sabe qual é o princípio estratégico (e tático) mais importante da interrogação inquisitiva. É ser capaz de antecipar a resposta daquele que responde. “Jamais faça uma pergunta (em um interrogatório de tribunal) se você não sabe qual será a resposta”, diz o velho provérbio. A grande descoberta de Aristóteles foi que há questões sim-ou-não cuja resposta é completamente previsível. Elas são perguntas cuja resposta é, como poderíamos colocar, logicamente implicada pelas respostas anteriores. Por sua importância estratégica, Aristóteles começou a estudá-las, o que, é claro, correspondeu ao 18 Lembremos que a distinção entre possibilidade e contingência também veio não sem dificuldades, como mostram as confusões que Aristóteles faz com estes conceitos em Da Interpretação 22 a 15, onde ele afirma que da possibilidade segue-se a contingência, ignorando, assim, possibilidades necessárias. 172 estudo das inferências lógicas. Ele começou a investigar o que, nas respostas anteriores, gerava por necessidade uma nova resposta, a identificar diferentes passos pergunta-resposta com tal necessidade, a formular regras para elas, e assim por diante. Esta é a maneira mediante a qual Aristóteles foi levado do estudo dos jogos interrogativos ao estudo da lógica formal. (pp. 242-243) Hintikka está colocando que, observando o modelo de inquirição dialética da Academia, Aristóteles percebe que eram feitas perguntas cujas respostas eram previsíveis. Previsíveis por quê? Porque as respostas eram necessárias, dado o compromisso com respostas a perguntas anteriormente feitas. Ora, isto não é, senão, a característica de necessidade presente na definição de conseqüência lógica. Assim, o quesito necessidade apresenta-se a Aristóteles primeiramente como parte de um recurso argumentativo presente na dialética mediante o qual um argumentador é capaz de coagir seu interlocutor a aceitar sua tese. Um tipo de coação racional. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA É muito fácil encontrar na obra de Platão exemplos do tipo de cogência dialética a que Hintikka se refere, que se deixam estruturar de modo silogístico: Sócrates: Então? Não dissemos há instantes que a virtude é um bem? E não devemos reter essa hipótese de que ela é um bem? Mênon: Devemos. Sócrates: Ora, se é possível a existência de um bem distinto da ciência, pode muito bem ser que a virtude não seja uma ciência; mas, se não houver nenhum bem que não seja abrangido pela ciência, segue-se que está certa a nossa hipótese de que a virtude é uma ciência. Não te parece? Mênon: Necessariamente. (87c-d) Está claro que Platão, por meio de perguntas sim-ou-não, conduz Mênon a reconhecer que a virtude é uma ciência. Ele estabelece como premissas hipotéticas que A virtude é um bem. Todo bem é uma ciência. A partir daí, Platão coloca, também em caráter hipotético, que A virtude é uma ciência, perguntando, em seguida, se Mênon concorda com esta afirmação, ao que Mênon responde que sim. Esta resposta de Mênon é inteiramente condicionada pelo que 173 Platão havia antes assumido como premissa, pelo simples fato de que, se aceitamos que a virtude é um bem e que todo bem é uma ciência, segue-se necessariamente que a virtude é uma ciência (é um silogismo da forma Bárbara). Em nossos termos: é inconcebível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. A tese de Hintikka de que a noção de conseqüência lógica (e em particular, o quesito necessidade aí presente) nasce a partir das investigações de Aristóteles sobre a dialética encontra respaldo também na cronologia das obras que compõem o Organon. Embora mais acima tenhamos oferecido a definição de conseqüência lógica presente já nos Primeiros Analíticos, encontramos uma definição de conseqüência lógica em Tópicos (I 1 100 a 25), obra que é anterior aos Primeiros Analíticos; esta definição é idêntica àquela encontrada nos Primeiros Analíticos. Segundo Ross (1949), o livro I dos Tópicos é escrito depois da descoberta do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA silogismo, mas antes da redação dos Primeiros Analíticos: A obra [Tópicos] parece recair em duas partes principais – (1) Livros II a VII 2, o tratado original, uma coleção de topoi ou lugares comuns de argumentos, emprestados em larga medida da Academia; esta seção parece ter sido escrita antes da descoberta do silogismo. (2) Livros I, VII 3-5 e VIII, uma introdução e uma conclusão escritas após a descoberta do silogismo, mas antes da escrita dos Analíticos.19 As Refutações Sofísticas são provavelmente anteriores aos Tópicos, mas posteriores aos Analíticos. (p. 56) Diante das evidências e da cronologia estipulada por Ross, torna-se ainda mais plausível que, ao tempo em que escrevia as obras Tópicos (livros II-VII) e Refutações sofísticas, Aristóteles tenha deparado-se com o tipo de necessidade ou cogência racional que há pouco analisamos. O passo seguinte de Aristóteles é, de posse da noção de conseqüência lógica, lançar um olhar mais apurado sobre as estruturas argumentativas e selecionar os traços que garantem conseqüência lógica. Isto equivale a dizer que ele passa a codificar as estruturas lingüísticas que garantem validade lógica. É para a tarefa (ii), ou seja, a codificação do sistema, que nos voltamos agora. 4.3.2 Dialética como Fonte Formal para a Lógica de Aristóteles 19 No mesmo sentido, Bréhier (2001, p. 154). 174 A codificação lógica de Aristóteles compreende fundamentalmente três aspectos: (1º) a estruturação das proposições categóricas (universal afirmativa, universal negativa, particular afirmativa e particular negativa, hoje identificadas pelas letras A, E, I e O); (2º) o estabelecimento do quadrado de oposições, e mediante ele, de uma série de inferências imediatas formais entre proposições das quatro formas; (3º) o principal, a elaboração da teoria dos silogismos, na qual Aristóteles expõe uma série de padrões de inferência a partir de pares de premissas categóricas. Como já afirmamos, estas três descobertas podem ser vistas como a definição de um universo de discurso (proposições categóricas) e, dentro dele, a caracterização descritiva de certas estruturas lingüísticas que têm a ambição de garantir que quaisquer argumentos que as encarnam sejam válidos (corretude), e que todos os argumentos válidos tenham estas estruturas (completude). Isto equivale PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA efetivamente a codificar uma linguagem lógica. Novamente, há bastantes e fortes indícios de que é principalmente o estudo da dialética platônica, em vez do estudo da demonstração matemática, que guia Aristóteles no caminho da codificação de seu sistema. O que pretendemos fazer, nesta seção, é mostrar como cada uma das três contribuições de Aristóteles remonta a aspectos bem definidos da dialética platônica. Ao fazermos este percurso de volta à dialética, esperamos estar elucidando, ao menos em parte, as fontes formais ou sintáticas para a codificação aristotélica. Como já colocamos, não esperamos estar revelando qualquer novidade; baseamo-nos, em verdade, em comentadores tradicionais. Em primeiro lugar, devemos nos perguntar: como Aristóteles chega às quatro proposições categóricas, que constituem-se nos tijolos básicos de seu sistema, ou seja, seu universo de discurso? Segundo Bréhier (2001, p. 156), é na dialética platônica que Aristóteles encontra as estruturas gramaticais das proposições categóricas (A, E, I e O). Ainda conforme o comentador francês, estas quatro formas foram extraídas da chamada protasis presente no método dialético de Platão. Uma protasis é “uma afirmação que se apresenta à aprovação de um interlocutor” no contexto dos diálogos platônicos (ibid.). Esta afirmação estrutura-se sempre como uma problema acerca do pertencimento, ou não, total ou parcial, de um atributo a um sujeito. Estas variedades de problema são, com 175 efeito, as formas proposicionais com as quais Aristóteles trabalha, como coloca Bréhier (ibid.): (...) a divisão clássica em proposições universais (afirmativas ou negativas) e particulares (afirmativas ou negativas) se apresenta de início como a divisão dos problemas; todo problema consiste, com efeito, em se perguntar se um atributo pertence (ou não pertence) ao todo (ou a uma parte) de um sujeito, o que dá a fórmula das quatro proposições. Bréhier nos remete ao capítulo 1 do livro II dos Tópicos, onde encontramos a seguinte afirmação de Aristóteles: Os problemas são, uns universais, outros particulares: universais, como, por exemplo, todo prazer é um bem, nenhum prazer é um bem; particulares, como, por exemplo, algum prazer é um bem e algum prazer não é um bem. (II 1 108 b 35-109 a) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Aqui, Aristóteles classifica os problemas exatamente da mesma maneira que viria a classificar as proposições categóricas nos Primeiros Analíticos; e a discussão que se segue à colocação acima diz respeito a maneiras de refutar ou confirmar uma proposição-problema (que, como logo veremos, é o que leva Aristóteles ao quadrado das oposições). É de se notar ainda que, quando redigiu o livro II dos Tópicos, Aristóteles ainda não tinha elaborado a teoria dos silogismos (ao contrário do que acontece com o livro I, parte do VII e VIII). Isto quer dizer que a citação acima é testemunha do momento em que Aristóteles está desenvolvendo as reflexões que o levarão aos Primeiros Analíticos, momento estes em que está a refletir sobre a dialética. Em segundo lugar, outra parte importante da lógica formal aristotélica cujo desenvolvimento tem raízes na dialética são as inferências imediatas entre as quatro formas de proposições categóricas, que Aristóteles discute em Da Interpretação. Estas inferências imediatas são definidas como oposições20 entre as proposições, nas quais sempre uma é afirmativa e a outra negativa (ver Da Interpretação, capítulo 6). Em Da Interpretação, Aristóteles não reconhece todas as oposições que hoje se reconhecem dentro da lógica clássica tradicional através do quadrado de oposições; ele reconhece a relação entre contrários (A-E) e contraditórios (A-O e E-I), mas ignora as subcontrárias (I-O).21 Ignora também as relações de subalternação e a superalternação, mas isto é compreensível, dado que 20 21 Antithesis. Contradição: antiphasis; contrariedade: enantiosis. 176 as proposições presentes nos pares A-I e E-O não são um a negação do outro, não sendo portanto, a rigor, opostas. Curiosamente, contudo, há o reconhecimento da subalternação nos Tópicos, quando Aristóteles afirma que “quando tivermos provado uma afirmação universal afirmativa, teremos também provado a atribuição particular afirmativa; do mesmo modo, quando provamos uma atribuição universal negativa, teremos provado também a atribuição particular negativa” (II 1 109a 1-5). O desenvolvimento das oposições em Da interpretação também tem raízes na dialética. Aristóteles sistematiza as oposições especialmente com vistas a uma análise dos recursos formais envolvidos na prova por reductio ad impossibile, um procedimento recorrente dentro da dialética platônica. Esta espécie de prova consiste em assumir uma hipótese, derivar-lhe uma proposição impossível (ou oposta, no sentido aristotélico) e, daí, concluir que a hipótese inicial é falsa.22 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Segundo Kneale e Kneale, o interesse de Aristóteles em desenvolver o quadrado de oposições em Da Interpretação tem como motivo justamente esclarecer o dispositivo exato mediante o qual se opera uma refutação, tendo em vista os argumentos do tipo reductio ad impossibile: (...) uma vez que a discussão é para ser efetuada sob a forma de diálogo com os interlocutores defendendo teses opostas, há imenso interesse na questão “Qual é a afirmação contraditória de uma dada afirmação?”. E isto porque é essencial determinar em que ponto é que um interlocutor foi refutado pelo seu opositor. Isto conduz à doutrina do quadrado de oposições, a contribuição principal do De Interpretatione para a lógica. (1968, p. 35)23 Logo, assim como Aristóteles esquematiza as quatro formas básicas de proposições categóricas a partir dos possíveis modos de se colocar uma questão (protasis) no âmbito da dialética, o prosseguimento natural de suas investigações é estabelecer como uma questão pode ser refutada – que é o comportamento padrão de Sócrates e Platão. Por exemplo, para uma problema proposto na forma proposicional universal afirmativa, a refutação deverá ser por meio de uma universal negativa (contrária) ou particular negativa (contraditória). Aliás, o 22 Kneale e Kneale (1968, p. 11) notam, porém, que nem todo argumento que Platão reconhecia como reductio ad impossibile (apagoge eis adyaton) derivava uma impossibilidade ou contradição para, então, negar a hipótese inicial; em muitos casos, Platão chegava tão-somente a uma falsidade. Para um exemplo disto, ver a passagem clássica de A República, Livro I, 331, acerca do problema da “devolução da arma a seu devido dono”. 23 No mesmo sentido, ver Bréhier (2001, p. 159), embora ele contextualize de modo mais amplo, apontando a relevância das oposições para o método dialético em geral. Este autor lembra ainda as oposições entre termos, estudadas nas Categorias, capítulo 8. 177 interesse específico de Aristóteles nas refutações explica as ausências das relações “verticais” no quadrado de oposições do Da Interpretação: as proposições verticais são incapazes de se refutar. Em terceiro lugar, há a teoria dos silogismos. Seu desenvolvimento também pode ser remetido diretamente a elementos específicos da dialética platônica. A relação que há entre o quadrado de oposições e os argumentos do tipo reductio ad impossibile é semelhante à relação que há entre a teoria dos silogismos e o procedimento de divisão e classificação (diairesis kai synagoge, doravante simplesmente “divisão”); isto é, o procedimento de divisão platônico também exerceu influência na lógica de Aristóteles como fonte formal ou gramatical para a elaboração da teoria dos silogismos. Como é sabido, este procedimento, presente no Platão maduro, consiste no desmembramento de um conceito mais geral em conceitos mais restritos através de dicotomias, a fim de chegar à definição de um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA certo conceito, que se situa ao fim do processo, por meio da cadeia de seus determinantes. Taylor (1955) tem uma excelente descrição do método: Em princípio, o procedimento é o seguinte. Se desejamos definir uma espécie x, começamos tomando alguma classe ampla e familiar a, da qual x é claramente uma subdivisão. Então elaboramos uma divisão da classe inteira a em duas subclasses exclusivas b e c, distintas pelo fato de que b possui, enquanto que c carece de alguma característica B a qual sabemos estar presente em x. Chamamos b de divisão direita, e c de divisão esquerda, de a. Agora abandonamos a divisão esquerda c, e passamos a subdividir a divisão direita b com base no mesmo princípio anterior, e este processo é repetido até chegarmos a uma divisão direita que podemos ver, por inspeção, que coincide com x. Se agora selecionamos a classe mais ampla original a e enumeramos em ordem as sucessivas características pelas quais cada uma das sucessivas divisões direitas foi demarcada, temos uma caracterização completa de x; x foi definido. (p. 377) O exemplo clássico de Platão, presente no Sofista, é o seguinte:24 24 Extraímos o esquema de Taylor (1955, p. 378); um esquema semelhante pode ser encontrado também em Kneale e Kneale (1968, p. 12 ), embora incompleto. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA 178 técnicas ┌────┴────┐ de produzir de adquirir ┌──────────┴┐ de adquirir por de adquirir por consentimento captura ┌─────────┴┐ por captura por captura aberta (combate) furtiva (caça) ┌──────────────┴─┐ de seres inanimados de seres vivos ┌────────────────┴─┐ de animais de animais terrestres marinhos ┌─────────┴─┐ de pássaros de peixes ┌─────────┴─┐ por redes por assalto ┌────────┴──┐ de noite de dia ┌─────────┴─┐ assalto assalto por cima lateral (com tridente) (com vara e anzol) Se aplicarmos a explicação de Taylor para o método ao exemplo acima, temos como a classe mais ampla a, a classe das técnicas, da qual partimos, e, por sucessivas divisões, chegamos à espécie x, assalto lateral (ou simplesmente a pesca com vara e anzol). Findo o processo de divisão, temos, subindo a partir de x pelos ramos à direita, a definição de pesca com vara e anzol, ou seja, aquilo que ela é; no percurso paralelo, pelo lado esquerdo, temos o que a pesca com vara e anzol não é. Segundo Kneale e Kneale (1968), o procedimento platônico de divisão é uma das inspirações para a teoria dos silogismos aristotélica: Parece muito provável que a maneira pela qual [Aristóteles] apresentou a sua teoria foi determinada por reflexão sobre o método platônico da divisão. (...) Aristóteles chama a atenção corretamente (...) para que este método não é um método de demonstração. (...) O método de Platão (...) é simplesmente um método de exposição ou clarificação pelo qual podemos articular o nosso pensamento. Mas parece ter sugerido a Aristóteles o contorno geral do raciocínio silogístico. (p. 70)25 25 No mesmo sentido, Bréhier (2001, pp. 160-161). 179 Que tipo de influência o procedimento de divisão poderia ter sobre a teoria dos silogismos de Aristóteles? Um elemento que está presente em ambas as técnicas é o fato de elas tratarem de sucessivas inclusões conceituais (grosso modo). O método da divisão consiste basicamente em analisar um conceito em conceitos cada vez menos gerais que estão incluídos nele(s), até que se chegue a um conceito de extensão mais restrita, que está incluído em todos os conceitos que ocorreram ao longo do percurso. E esta relação de sucessivas inclusões entre conceitos está presente na forma de silogismo mais importante para Aristóteles: Bárbara. Um silogismo da forma Todo M é P Todo S é M Todo S é P PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA pode ser muito bem entendido como uma relação de inclusão conceitual análoga ao método de divisão. Partimos do conceito mais geral P (o termo maior), que inclui o conceito M (termo médio). Esta é a premissa maior. Incluído no conceito M, temos o conceito S (termo menor), como reza a premissa menor. A conclusão é a de que o conceito S, o menos geral de todos, está incluído no conceito P, o mais geral de todos. Assim, a relação entre os termos P-M-S do silogismo Bárbara é a mesma que a relação entre a- b-...-x. que encontramos no esquema da divisão platônica. Nos dois casos, há uma relação de transitividade entre os termos, e isto é parte integral de ambos os métodos: se S (x) está contido em M (b) e M (b) está contido em P (a), então S (x) está contido em P (a). Como notam Kneale e Kneale (1968, p. 75), justamente esta transitividade explícita deve ter sido responsável por Aristóteles ter considerado o silogismo da forma Bárbara como o mais perfeito e completo. Daí Aristóteles esforçar-se para reduzir as outras formas de silogismo à forma Bárbara, fazendo com que ela ocupe um lugar privilegiado dentro do sistema lógico Aristotélico. 180 4.3.3 A Importância da Necessidade na Lógica Aristotélica Acabamos de ver que a dialética é a fonte tanto para a definição de conseqüência lógica quanto para os desenvolvimentos estritamente formais de Aristóteles. Agora, nosso intento é mostrar como o elemento modal foi fundamental para que Aristóteles desempenhasse as tarefas (i) e (ii) que acabamos de delinear, ou seja, para definir a noção de conseqüência lógica e para a codificação de estruturas gramaticais que garantissem conseqüência lógica. Com relação ao papel epistemológico da noção de necessidade para a definição de conseqüência lógica, é difícil exagerar sua importância. Como foi mostrado a partir de Hintikka (1997), Aristóteles é levado à noção de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA conseqüência lógica em virtude da cogência racional que percebe em argumentos pragmáticos. Esta cogência vem a ser identificada por Aristóteles como a própria noção de necessidade, e torna-se parte da clássica noção de conseqüência lógica presente tanto nos Tópicos quanto nos Primeiros Analíticos. Assim, a necessidade intuída por Aristóteles em certos argumentos é transformada em critério mediante o qual se pode distinguir um certo conjunto de argumentos como corretos. É, antes de tudo, um critério epistemológico e informal. Este poderia ter sido o fim da história. Aristóteles poderia ter-se dado por satisfeito em detectar o elemento epistemológico que faz certos argumentos serem válidos e outros inválidos. Mas Aristóteles faz de sua noção de conseqüência (necessária) um guia epistemológico não somente para dizer quais argumentos são corretos e quais são incorretos. Ele vai além, e faz desta noção de conseqüência um guia epistemológico para a detecção das formas gramaticais que garantem que um argumento é correto, e, ao fazê-lo, inaugura a lógica. Como vimos há pouco, as formas gramaticais já estavam disponíveis na dialética platônica, nas problematizações, nos argumentos e nos métodos empregados por Platão. A codificação lógica de Aristóteles consiste em expor a estrutura gramatical das proposições categóricas e em determinar as formas válidas de argumentos categóricos, ou seja, “dizer por que meios, quando e como todo silogismo é produzido” (Primeiros Analíticos I 4 25b 25-27). 181 Aqui, novamente, a noção de necessidade é central. Somente através deste elemento modal Aristóteles é capaz de executar seu projeto de determinar quais são as formas de todo silogismo, isto é, as formas de todo argumento válido. Como enfatizamos no capítulo 3, em sua posição epistemológica, ele não tinha qualquer outro elemento para distinguir formas válidas de formas inválidas; este papel foi desempenhado pelo critério informal de necessidade. Isto significa que ele teve que inspecionar formas de argumentos categóricos, a fim de detectar seu status modal.26 Somente este critério informal permite-lhe determinar, por exemplo, a forma Bárbara como um silogismo: Se A é afirmado de todo B, e B de todo C, necessariamente A é afirmado de todo C. (Primeiros Analíticos, I 4 25b 37-40) Assim sendo, ressaltamos mais uma vez a centralidade do elemento de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA necessidade para a lógica de Aristóteles. Não é difícil supor que este elemento será também o indício principal da presença da noção de conceptividade no âmago da lógica aristotélica. 4.4 Intuição e Conceptividade e Lógica em Aristóteles O problema agora é: para além dos indícios que encontramos nas seções anteriores, como fazer uma conexão mais próxima entre a noção de conceptividade e a lógica aristótélica? Isto é, conforme a tese que estamos defendendo nesta parte II – de que a noção de conceptividade tem lugar dentro da metodologia da lógica –, temos que dar alguma evidência mais concreta de que a noção de conceptividade, que vimos fazer parte do universo psicológico e semântico de Aristóteles, conecta-se com a necessidade empregada dentro da codificação lógica por ele empreendida. Para tanto, formulamos o seguinte argumento. Para Aristóteles, o único modo de conhecer imediatamente ou diretamente (i.e., não-demonstrativamente) o que é necessário é por meio da faculdade da intuição; dado que as formas lógicas válidas (necessárias) que ele codifica só podem ser conhecidas e identificadas como necessárias de modo 26 De fato, ele inspeciona algumas formas; outras ele deduz por redução ao absurdo ou por ectesis. Não devemos nos esquecer, porém, que o método de ectesis é, por sua própria conta, um emprego da imaginação. 182 informal e direto,27 concluímos que estas formas lógicas são um objeto legítimo de conhecimento da faculdade intuitiva. A conclusão é que o conhecimento modal subjacente à codificação lógica nasce da intuição, que, por sua vez, tem raízes sensíveis e fenomenológicas totalmente harmônicas com CON≡POSS. Esta é a evidência mais forte que podemos encontrar de que Aristóteles emprega CON≡POSS em sua lógica, sem exercermos violência exegética. Para fazermos este caminho, primeiro mostramos em 4.4.1 a lacuna cognitiva que a lógica representa para a ciência e para as faculdades cognitivas aristotélicas; já em 4.4.2, preenchemos esta lacuna do modo como acabamos de indicar, isto é, mostrando como a lógica aristotélica pode ser aptamente considerada objeto da intuição, uma faculdade cognitiva sujeita à noção de conceptividade. Isto faz da intuição a faculdade cognitiva mais afeita ao PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA “conhecimento lógico”, mesmo que isto tenha sido ignorado por Aristóteles. 4.4.1 Uma Lacuna na Visão de Conhecimento de Aristóteles Recobremos rapidamente as conclusões a que chegamos, nas duas seções precedentes (4.2 e 4.3). Com relação à psicologia e à semântica de Aristóteles, vimos, em 4.2, que, dado o fato de que tudo o que percebemos é existente e tudo que imaginamos e intuímos tem como base sensível o que percebemos, só podemos pensar o que pode existir ou ser. O que é concebível, é possível (CON⊃POSS). Vimos também que, para Aristóteles, tudo que é existente é sensível, o que garante a completude de CON⊃POSS e o princípio CON≡POSS em sua inteireza. Já em nosso exame das fontes das descobertas da lógica tradicional (4.3), vimos que Aristóteles parte fundamentalmente do estudo prático de argumentos, empreendido nos Tópicos. Ao longo deste estudo, Aristóteles se depara com o fato de que, na dialética platônica, há argumentos cogentes: dado que as premissas (repostas a perguntas anteriores) são verdadeiras, o indivíduo inquirido compromete-se inevitavelmente com a conclusão. Este elemento cogente é o que Aristóteles identifica como o caráter necessário de certos argumentos. Aristóteles, 27 Ao menos as formas mais básicas, como Bárbara. 183 então, passa a examinar estes argumentos, a fim de agora detectar os elementos que garantem o caráter de necessidade; percebe, então, haver certas relações gramaticais (estrutura sujeito-predicado), que por sua vez determinam relações conceituais (oposição entre formas sentenciais, inclusão transitiva entre conceitos) que garantem que certos argumentos tenham caráter necessário. Com base nestas relações gramático-conceituais características da dialética de Platão – em particular, o elenchus ou refutação por meio de argumentum ad impossibile e o método de definição por divisão – Aristóteles desenvolve uma teoria de esquemas formais dedutivos, principalmente nos Primeiros Analíticos. De posse destas constatações, nos pareceria óbvio que Aristóteles estipulasse que o reconhecimento direto e informal – i.e, sem contar o procedimento de redução ao absurdo ou outros – da validade de uma forma de argumento necessária se desse por meio de alguma faculdade intelectual de que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA ele dispõe em seu universo psicológico ou epistemológico. Acontece que, para nosso desapontamento, não há uma palavra sequer nos Analíticos ou no De Anima acerca da faculdade que Aristóteles utilizou para determinar que uma forma lógica, e.g. Bárbara, é uma forma válida. A razão deste vácuo epistemológico é mais bem entendida a partir da seguinte colocação de Porchat (2000): (...) não se falará, com propriedade, de “ciência lógica”, no aristotelismo. (...) opondo-se à doutrina da Antiga Academia, rejeitando a divisão xenocrática das ciências em Física, Ética e Lógica, Aristóteles exclui a lógica de seu sistema do saber e não a faz figurar na famosa divisão tripartite das ciências em teóricas, práticas e poiéticas; é que, nela, vê, como os comentadores gregos souberam reconhecer, antes um instrumento (=organon) que uma parte da filosofia, um instrumento de que nos serviremos para promover o advento do saber científico e filosófico, um conjunto de técnicas que preparam o homem para sua atividade de conhecer. Pelo seu mesmo caráter propedêutico a todas as ciências, pela sua mesma universalidade “formal” e “vazia”, que não a faz saber de um objeto determinado, não poderia a lógica constituir uma ciência nem integrar a Sabedoria: ela é tãosomente o objeto de uma Paidéia. (pp. 399-400) É claro que, se, como coloca Porchat, a lógica não é uma ciência (episteme) para Aristóteles, não há que se falar em princípios ou leis lógicas (como os modernos diriam) a serem conhecidos diretamente; logo, tampouco há que se falar em uma faculdade cognitiva para reconhecer a validade de tais princípios. Contudo, a despeito do lugar que Aristóteles estabelece para a lógica em sua divisão disciplinar (ou sua ausência nesta divisão), o fato é que uma faculdade para reconhecer a validade de uma forma lógica determinada tem que ter existido. 184 Como deixamos claro no capítulo 3, reconhecer a validade de uma forma lógica no contexto primitivo de uma codificação lógica não se confunde com deduzir formalmente com base em uma forma lógica (ou regra de inferência) previamente conhecida;28 não se confunde também com a dedução informal de uma proposição com base em outras proposições, como já fizera incansavelmente Platão e muitos outros antes, na medida em que aqui a forma lógica nem mesmo é reconhecida; tampouco se confunde com o método aristotélico de busca do termo médio existente entre dois conceitos, pois aqui também já se pressupõe o conhecimento da forma lógica em questão. Estamos em busca da faculdade que permite a Aristóteles “dizer por que meios, quando e como todo silogismo é produzido” (Primeiros Analíticos I 4 25-27), proposta primordial dos Primeiros Analíticos. Ou seja, estamos em busca daquilo que permite a Aristóteles afirmar como necessária, por exemplo, a regra estritamente formal do silogismo Bárbara. Saber PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA que esta forma é necessariamente válida em todos os casos é efetivamente ter um conhecimento direto de um fato necessário acerca de como propriedades ou conceitos se relacionam, não obstante a falta de perspectiva epistemológica de Aristóteles acerca disto. O caráter de necessidade da relação entre premissas e conclusão na forma Bárbara simplesmente não é analisado dentro do universo da ciência aristotélica.29 Isto é, há aí uma necessidade, um “ser que não pode deixar de ser o que é”, que não é tratado por Aristóteles como um objeto de conhecimento. 4.4.2 Lógica e Intuição Esta seção consiste na formulação de um único argumento estendido acerca da obra de Aristóteles, com vistas a preencher a lacuna epistemológica que acabamos de detectar, e ao mesmo tempo deixar clara a presença de CON≡POSS na lógica Aristotélica. De fato, este argumento esteve implícito ao longo do capítulo, e tudo 28 Para isto, Aristóteles de fato prevê uma faculdade: a dianóia ou inteligência discursiva. É por meio dela que deduzimos formalmente. Ver Segundos Analíticos, I, 1, 71 a, e nota 2 de Tricot. 29 Não devemos confundir esta necessidade com a necessidade da proposição que figura como conclusão; Aristóteles tem esta diferença clara o suficiente a ponto de lhe permitir afirmar que nem sempre a conclusão de um silogismo é necessária (apesar de por vezes se confundir nos silogismos modais), mesmo sendo o argumento válido (e portanto necessário), como ocorre no caso dos silogismos dialéticos ; ver Primeiros Analíticos, livro I, capítulo 1. 185 que faremos nesta seção é juntar as peças, de modo a torná-lo claro. O argumento tem uma estrutura bastante simples: se o conhecimento imediato do que é necessário se dá sempre por meio da faculdade intuitiva (noésis), então se o “conhecimento lógico” tem como objeto relações formais necessárias indemonstráveis e imediatas, podemos concluir que a faculdade cognitiva empregada no conhecimento lógico imediato das formas válidas é a intuição, uma faculdade totalmente de acordo com CON≡POSS. Já foi estabelecido por nós em 4.2.3 que, na visão de Aristóteles, a intuição é a faculdade da apreensão imediata do que é necessário. Vimos que, sendo a intuição a faculdade “mais verdadeira”, ela se ocupa do conhecimento direto das PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA premissas que formam a base para a ciência: É claro que a ciência não se ocupa delas [das coisas contingentes] (...) Estas coisas não são objeto de intuição (entendo por intuição um princípio de ciência), nem de ciência não-demonstrativa, que consiste na apreensão da premissa imediata. (I 33, 88b, 34) Se, como Aristóteles coloca, “jamais se pensa ter uma simples opinião quando se pensa que a coisa não pode ser de outra maneira: pelo contrário pensa-se ter ciência” (I 33 89a 5-9), então tudo que é necessário é parte da ciência (ou um princípio da ciência):30 ou é sujeito a ser demonstrado, ou é sujeito a ser intuído. Assim, sendo, a necessidade presente na enunciação das formas dedutivas válidas, sendo indemonstrável, deve ser objeto da intuição. Do mesmo modo que “a ciência apreende o atributo animal (...) de tal sorte que ele não pode não ser um animal” (S. A. I 33 89 a 32-35), a intuição apreende a forma Bárbara, de tal sorte que se todo A é B e todo B é C, é necessário que todo A é C, ou seja, a conclusão não pode deixar de ser verdadeira, sendo as premissas verdadeiras. Ora, já vimos em detalhes (em 4.2.1) que a faculdade da intuição aristotélica goza de características que a tornam totalmente compatível com o princípio da conceptividade (CON≡POSS): (1) com base na unidade do ser, o que é impossível não pode ser pensado (o que inclui o intuído); (2) a faculdade da intuição é exercida com base em qualidades mentais intrínsecas; (3) a intuição é contínua com sensibilidade perceptual; (4) a intuição tem relevância semântica; (5) ela é completa. 30 Aristóteles também estabelece, no mesmo capítulo 33, que todo objeto da ciência é o necessário, fazendo a equivalência completa. 186 Por conseguinte, tudo nos leva a crer que a ausência de uma faculdade para o “conhecimento lógico” em Aristóteles deve ser suprida com a noésis, uma faculdade em plena harmonia com a noção de conceptividade. Ross (1949, p. 35) tem um comentário que corrobora nossa proposta de que a intuição é a faculdade empregada por Aristóteles para conhecer os padrões de silogismos válidos, em certos casos: Ao lidar com a primeira figura, Aristóteles vê que a discriminação entre as figuras válidas e as inválidas é uma questão de intuição direta – que percebemos diretamente que em alguns casos a conclusão segue-se e que em outros não. Entretanto, Ross não se pronuncia acerca de como encaixar a intuição de formas lógicas válidas na epistemologia de Aristóteles. Cremos ter apresentado uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA hipótese plausível. 4.5 Considerações Finais No tratamento epistemológico da ciência oferecido por Aristóteles nos Segundos Analíticos, encontramos a justificativa para o conhecimento autônomo de princípios demonstrativos necessários (premissas para silogismos demonstrativos): a intuição. Encontramos também a justificativa para a verdade necessária que figura como conclusão de um silogismo demonstrativo: as premissas necessárias do silogismo. O que não encontramos é uma justificativa para o reconhecimento de formas gramaticais como garantidoras de conseqüência lógica. Este universo epistemológico, que Porchat apelida de “conhecimento lógico”, é solenemente ignorado por Aristóteles. O que fizemos ao longo de todo este capítulo foi tentar suprir esta lacuna, com base numa característica comum aos princípios científicos estudados por Aristóteles e ao “conhecimento lógico” por ele ignorado: o caráter necessário. Se os princípios da ciência, por serem necessários (não podem deixar de ser o que são), são reconhecidos e justificados pela faculdade da intuição, é natural assumirse, com base na obra de Aristóteles, que o “conhecimento lógico”, igualmente necessário, deva também ser justificado com base nesta mesma faculdade. Isto está de acordo com a visão de Aristóteles, na medida em que, para ele, tudo que é 187 necessário (que não pode não ser o que é) é objeto da ciência (S.A., I 33 89 a 510). A intuição é, com todas as características sensíveis que perfilamos, o que permite ver, num caso e no outro, o estatuto necessário destas relações conceituais. A conexão da faculdade da intuição com nosso objeto de estudo, a noção de conceptividade, é dada pela seção 4.2, na qual vimos, com base principalmente no De Anima, que todas as faculdades cognitivas mentais que o ser humano tem (percepção, imaginação e intuição ou inteligência) são faculdades sensíveis e condicionadas de modo a não permitir que concebamos o impossível, ou que o possível não seja concebido. Junto com as características semânticas destas faculdades, isto é suficiente para defendermos a adoção, por Aristóteles, do princípio CON≡POSS, dentro do universo primitivo de codificação de linguagens lógicas, a fim de testar as propriedades lógicas de seu sistema. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Por fim, podemos apresentar uma cronologia hipotética relativa à invenção da lógica formal (em particular a teoria dos silogismos) por Aristóteles: 1º- interesse prático pela argumentação; 2º- observação de que há, no âmbito da dialética, argumentos que são cogentes: a conclusão não pode deixar de ser verdadeira, assumindo-se as premissas verdadeiras; 3º- a partir desta cogência (e para captá-la), formulação da noção de conseqüência lógica, na qual se destaca o elemento de necessidade; 4º- busca na dialética elementos sentenciais formais que garantem conseqüência lógica a) protasis → formas das proposições categóricas; b) reductio ad impossibile (ou elenchus) → quadrado de oposições; c) método de divisão (diairesis) → forma transitiva básica dos silogismos; 5º- investigação das qualidades lógicas das diversas formas de silogismo por meio da noção da intuição (conceptividade) – além do emprego de outras formas de prova (reductio ad impossibile e ectesis, a última também um tipo de emprego da imaginação); aqui, a intuição é empregada para determinar quais formas são válidas e quais são inválidas. 188 Esta cronologia está organizada não somente em sucessão temporal pura e simples, mas também em sucessão epistemológica, ou seja, nenhum passo poderia ter sido dado antes daquele que lhe antecede ou depois daquele que lhe sucede PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA (por exemplo, o 2º passo não poderia ter sido dado antes do 1º ou após o 3º). 5 Uma Avaliação Crítica da Epistemologia de Frege 5.1 Observações Preliminares Se defendemos que a noção de conceptividade tem um lugar cativo dentro da metodologia da lógica, sendo empregada na codificação de linguagens lógicas, é claro que não podemos deixar de mostrar que aquele que codificou o essencial da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA linguagem lógica contemporânea, Frege, emprega a noção de conceptividade para fazê-lo. Como mostrar isto? Dado que Frege é parcimonioso em comentários quanto ao modo como chega à linguagem do Begriffsschrift, o melhor que podemos fazer é: (i) compatibilizar a noção de conceptividade com sua lógica e sua filosofia, ou seja, encontrar um lugar natural para esta noção dentro dos conceitos semânticos e epistemológicos empregados por Frege; e (ii) mostrar, em caráter hipotético, como a noção de conceptividade é efetivamente empregada por Frege, em sua lógica. Este percurso é longo e será feito em três capítulos (capítulos 5, 6 e 7), dos quais os dois primeiros, o presente e o que a ele se segue, buscam conciliar a epistemologia de Frege com a noção de conceptividade, enquanto o último (capítulo 7) busca uma reconstrução da codificação lógica de Frege, indicando aí o papel da noção de conceptividade. No presente capítulo, já com vistas à harmonização da noção de conceptividade com a visão de Frege, buscamos encontrar e explorar dificuldades e incongruências presentes na visão epistemológica “oficial” de Frege. Estas dificuldades são tomadas por nós como evidências da inadequação do tratamento epistemológico que Frege dedica à lógica. Buscamos também elementos positivos, que indicam a possibilidade de aproximarmos algumas abordagens estritamente fregianas de nossa tese da conceptividade. O resultado do capítulo será, por conseguinte, uma avaliação crítica da epistemologia de Frege, na qual 190 serão ressaltados os elementos da epistemologia “oficial” de Frege que devem ser mantidos e aqueles que devem ser abandonados, se pretendemos conciliá-la com a noção de conceptividade. Com isto, preparamos o caminho para mostrar a presença da noção de conceptividade em Frege (capítulo 6) e, a partir daí, para uma tentativa de reconstrução da codificação lógica de Frege através da noção de conceptividade (capítulo 7). Começamos este capítulo mostrando dois pontos de partida de Frege, que condicionam sua visão epistemológica: a idéia recorrente de que a lógica é objetiva e a intenção de não se comprometer com posições filosóficas doutrinárias (seção 5.2). A ênfase na objetividade e o desinteresse em desenvolver uma filosofia mais robusta condicionam a aridez da epistemologia de Frege e fazem com que suas reflexões epistemológicas estejam sujeitas a algumas incongruências e omissões. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Nas seções 5.3 a 5.6, discutimos e exploramos estas dificuldades, bem como acertos no tratamento epistemológico de Frege. Em 5.3, discutimos a epistemologia do pensamento fregiana; em 5.4, discutimos a noção de representação fregiana; em 5.5, examinamos a noção de juízo de Frege; já em 5.6, discutimos o papel da linguagem natural dentro da metodologia da Frege. É a partir das discussões epistemológicas destes temas (pensamento, representação, juízo e linguagem natural) que, nas considerações finais (5.7), reuniremos o que consideramos erros e acertos da epistemologia fregiana. O resultado será uma maior ênfase nas noções de representação e juízo, em detrimento da noção de pensamento, dentro do universo epistemológico de Frege. 5.2 O Ponto de Partida de Frege: a Objetividade da Lógica Nosso propósito, nesta seção, é explicar o que Frege entende por “objetivo”, e como esta noção pode ser considerada um primitivo epistemológico de sua abordagem ao conhecimento da lógica e da aritmética. Desejamos também mostrar como o lugar privilegiado ocupado pela noção de objetividade determina alguns traços importantes do pensamento fregiano, em particular a sua aversão a posições filosóficas doutrinárias e a aridez de sua epistemologia. Para mostrar isto, tomamos como base principalmente o texto Os Fundamentos da Aritmética, 191 por ser o lugar no qual Frege discute mais profusamente questões de epistemologia. Nos Fundamentos, Frege afirma enfaticamente a natureza lógica e objetiva da aritmética, ao mesmo tempo em que rejeita a idéia de que qualquer elemento subjetivo ou psicológico possa ter alguma relevância na fundamentação da aritmética. É assim que, ao longo da obra de Frege, o objetivo se opõe ao subjetivo e ao psicológico. O psicológico, para Frege, abarca sensações, imagens mentais internas e representações. O motivo assinalado por Frege para a irrelevância destes elementos para a lógica é o fato de serem instáveis, ao passo que objetos e conceitos matemáticos objetivos são estáveis (1884, p. 201). A estabilidade dos objetos e conceitos matemáticos parece constituir uma certa invariabilidade conjugada com uma abertura constante, que os permite serem apreendidos por PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA qualquer pessoa. Quando fala de estabilidade, Frege parece ter como modelo a própria percepção empírica, uma vez que ele traça um paralelo entre proposições matemáticas e objetos da percepção: Devemos lembrar-nos que, pelo que parece, uma proposição não deixa de ser verdadeira se paro de pensar nela, tanto quanto o Sol não se aniquila se fecho os olhos. (1884, p. 202) Mais além, Frege traça novamente o mesmo paralelo: Que y siga após x na série-φ é algo que em geral absolutamente nada tem a ver com nossa atenção e suas condições de deslocamento, mas é uma questão objetiva, do mesmo modo que uma folha verde reflete certos raios luminosos, atinjam eles meus olhos ou não, provoquem sensação ou não ... (1884, p. 262) Assim, tanto para proposições matemáticas quanto para objetos da percepção, há estabilidade, invariância e independência permanentes dos objetos do conhecimento, com relação ao sujeito que os conhece. Aparentemente, esta estabilidade é a garantidora da objetividade da matemática e da percepção empírica de objetos físicos, ou seja, garantidora de sua “independência com respeito a nosso sentir intuir, representar, ao traçado de imagens internas a partir de lembranças de sensações anteriores...” (1884, p. 226). A distinção entre subjetivo/psicológico e objetivo repercute na separação realizada por Frege entre o modo como chegamos ao conteúdo do juízo e a justificação do juízo. Esta é, claramente, uma reformulação das noções de quid 192 facti e quid juris, de Kant. No primeiro caso, temos como determinantes as condições psicológicas, físicas e fisiológicas mediante as quais formamos um juízo, enquanto, no segundo caso, os fundamentos lógicos sobre os quais se assenta a justificação da verdade de um juízo. No primeiro caso, estamos no plano do subjetivo e, no segundo, no plano do objetivo. A justificação de enunciados matemáticos encontra-se inteiramente no segundo caso. Como exemplo de confusão entre contexto (subjetivo) de descoberta do conteúdo e contexto (objetivo) de justificação, Frege oferece o caso de Schröder, que apresenta em sua lógica o axioma único, que afirma o seguinte: os sinais permanecem cravados na memória e, mais ainda, no papel, ao longo de uma inferência. Segundo Frege, estabelecer uma consideração desta natureza como um axioma é uma confusão entre razão demonstrativa e condições internas ou externas da produção de uma demonstração. Estipular que os símbolos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA permaneçam os mesmos ou que nossa memória não nos traia é estabelecer certas condições subjetivas para a obtenção do conhecimento, o que não tem nada a ver com a justificação objetiva do conhecimento com base em outras proposições. É claro que as condições subjetivas estabelecidas por Schröder procedem: variações nas marcas gráficas que formam os símbolos de fato teriam conseqüências graves para uma demonstração. O problema com o axioma de Schröder é, para Frege, sua inclusão dentro do sistema, i.e. como parte da razão demonstrativa, em vez de sua aceitação tácita como um princípio epistêmico geral que rege ou garante nosso acesso subjetivo ao conteúdo de uma demonstração lógica.1 Frege, ao traçar um linha divisória entre condições objetivas e subjetivas de conhecimento, parece cair em contradição. Ele afirma, por um lado, que se a matemática fosse de algum modo dependente da psicologia humana, então entes matemáticos, como números, só poderiam ser objetos privados a cada indivíduo, a exemplo de sua dor, sua fome, de sua sensação de cor e som (1884, p. 270). Portanto, segundo Frege, a sensação de cores e sons é subjetiva. Por outro lado, 1 De fato, Frege (1892, p. 196) parece aceitar estas condições, quando afirma que, em se tratando da palavra escrita, “pode-se passar em revista uma concatenação de pensamentos mais de uma vez sem precisar temer alterações, e examinar a fundo sua força conclusiva”; e ainda, quando afirma: “Uma outra vantagem do sinal escrito é sua maior duração e imutabilidade. Também nisto assemelha-se ao conceito, como este deve ser, tanto menos decerto ao fluir incessante do curso de nosso pensamento. A escrita oferece a possibilidade de conservar muitas coisas presentes ao mesmo tempo, e ainda que não possamos em cada momento manter sob os olhos mais do que uma pequena parte delas, retemos contudo uma impressão geral das demais, que, quando precisarmos, estarão imediatamente à nossa disposição” (ibid, p. 197). Estas passagens aproximam-se bastante de formulações do axioma único de Schröder. 193 Frege, ao afirmar a objetividade da matemática, também faz analogias com a percepção sensorial para ilustrar tal objetividade – como vimos um pouco acima. Como é possível, então, ele descartar as sensações de cor ou de som como subjetivas? Podemos ver que não há incongruência nenhuma se levarmos em conta a seguinte afirmação de Frege: O fundamento da objetividade [dos números] não pode estar na impressão sensível, que, enquanto afecção de nossa alma, é totalmente subjetiva, mas, tanto quanto posso perceber, apenas na razão. (1884, p. 227) Frege diferencia o objeto de conhecimento, de caráter objetivo, da afecção subjetiva em nossa alma que este objeto provoca. Fica claro então que, na ocorrência de uma percepção sensorial, de um lado está o objeto da percepção, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA que é objetivo, e de outro a sensação produzida por ele, que é subjetiva. Ele chama o objeto da percepção de “representação objetiva” e a sensação produzida pelo objeto de “representação subjetiva” (F.A., p. 227, e nota 48). Podemos, então, organizar coerentemente a analogia entre ciências empíricas e ciências formais de Frege mediante o seguinte esquema: ciências formais ciências empíricas objetos e conceitos matemáticos objeto da percepção leis psicológicas de associação sensação (afecção da alma) representação objetiva representação subjetiva A fim de evitar confusões, Frege usa o termo “representação” somente no sentido subjetivo, o que seguiremos ao longo de toda a nossa discussão sobre Frege. Por fim, devemos lembrar que, para Frege, “objetivo” não quer dizer estritamente concreto ou real: 194 Distingo o objetivo do palpável, espacial e efetivamente real. O eixo da Terra e o centro da massa do sistema solar são objetivos, mas preferiria não chamá-los de efetivamente reais como a própria Terra. (1884, p. 227) A partir desta observação, conceitos e objetos lógicos podem ser considerados naturalmente como objetivos, sem requerer grandes contorcionismos metafísicos. A natureza última de conceitos lógicos, porém, não é tratada por Frege. Via de regra, não somente nos Fundamentos, mas ao longo de toda a sua obra, Frege se contenta em afirmar a objetividade do conhecimento lógico e aritmético, sem marcar posição filosófica alguma. Isto nos leva a crer que, para Frege, a objetividade é um primitivo filosófico ou epistemológico. Para além deste ponto, a filosofia perde o interesse para Frege, por motivos, cremos, mais prosaicos do que se aceita geralmente: o público-alvo primário de Frege são os matemáticos, e não os filósofos. Alguns indicadores disto podem ser encontrados PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA em traços gerais da obra de Frege: pudor filosófico quase imaculado; assunção burocrática de um contexto kantiano de discussão; o fato de jamais ter investigado uma posição doutrinária que não fosse com o objetivo explícito de refutá-la (o idealismo, por exemplo); o fato de jamais ter se filiado a uma posição filosófica doutrinária positiva. Sem falar no fato de que, na introdução aos Fundamentos, Frege praticamente desculpa-se por estar tratando de temas filosóficos. Isto deixa evidente o público que ele tem em vista, em primeiro lugar. Este desinteresse por posições filosóficas doutrinárias tem um efeito no mínimo curioso sobre os comentadores de Frege: quase todas as possíveis posições filosóficas doutrinárias objetivistas são atribuídas a ele. Ele é classificado, por exemplo, como: realista (Michael Dummett), idealista objetivo (Hans Sluga), idealista na primeira fase e realista na segunda (Michael Resnik), platonista (Oswaldo Chateaubriand) e transcendentalista kantiano com tonalidades mentalistas (Philip Kitcher). Como já colocamos, acreditamos que a verdade, nisto tudo, está mais próxima do que defende Paul Benacerraf: Frege não está nem aí para posições filosóficas doutrinárias. O que há de comum entre todas as posições filosóficas atribuídas a Frege? Em todas elas, a lógica e a aritmética são objetivas; e Frege não quer realmente estabelecer mais que isto, em suas discussões de cunho filosófico. Como observação final, notamos que, de modo coerente com a própria indiferença doutrinária de Frege, e diferentemente da grande maioria dos 195 comentadores, não temos a intenção de imputar-lhe qualquer posição doutrinária ao longo desta tese. Relembremos que nosso intento principal nesta parte II permanece descritivo. Ou seja, procuramos, em alguma medida, desvendar o que Frege faz para descobrir a nova lógica, e mostrar como a noção de conceptividade está presente neste processo. É claro que, seja lá o que ele tenha feito ao realizar sua revolução, isto terá sido em larga margem independente da doutrina filosófica que ele crê ou deixa de crer. Platonistas, idealistas, transcendentalistas, psicologistas, empiristas e céticos pensam todos da mesma maneira e são dotados das mesmas faculdades cognitivas,2 a despeito do que eles digam acerca de como pensam ou de quais são as faculdades cognitivas humanas preponderantes. Aqui, a noção de conceptividade se mostra extraordinariamente adequada, na medida em que ela não possui comprometimento ontológico. Ou seja, ao compatibilizarmos os procedimentos de Frege com a noção de conceptividade (no capítulo 6), não o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA estaremos comprometendo com qualquer doutrina. 5.3 Epistemologia do Pensamento Nesta seção, pretendemos discutir e avaliar criticamente a epistemologia do pensamento, segundo Frege. É na epistemologia que a aridez filosófica de Frege se faz presente de maneira clara. Ele não desenvolve qualquer visão epistemológica acabada para lidar com noções que ele mesmo introduz: sentidos e pensamentos. Como conhecemos um pensamento? Uma das poucas hipóteses que Frege propõe para suprir este problema é a visão segundo a qual a linguagem3 é a fonte do conhecimento de pensamentos. Em 5.3.1, apresentamos esta proposta fregiana. Em seguida, passamos a mostrar alguns problemas com esta visão: a assunção de que a apreensão de um pensamento só se dá por meio da linguagem (5.3.2); a assunção de que a estrutura do pensamento é isomorfa à estrutura da linguagem (5.3.3); e por fim, a indecisão de Frege quanto à nossa capacidade ou incapacidade de pensar o impossível (5.3.4). 2 Ao menos, esta é uma hipótese de trabalho central para a ciência e para a filosofia, cuja negação torna sem sentido estas duas atividades. 3 Ao longo de toda a seção 5.3, assumimos que “linguagem” é a linguagem já arregimentada e livre de imperfeições, estruturada em termos funcionais, embora os exemplos discutidos estejam em linguagem ordinária. Assumimos isto em benefício de Frege, sem o que suas teses não são sequer inteligíveis. 196 5.3.1 A Linguagem como Fonte Epistemológica4 do Pensamento Nosso intuito, em 5.3.1, é expor a idéia fregiana de que conhecemos um pensamento através da linguagem, bem como articular esta idéia com a noção de juízo, com vistas à sua correta delimitação. Na semântica de Frege, pensamentos são sentidos ou conteúdos cognitivos de sentenças (notadamente sentenças assertivas, que é o caso que nos interessa). A despeito do que a palavra “pensamento” possa sugerir, Frege entende por pensamento “não o ato subjetivo de pensar, mas seu conteúdo objetivo, que pode ser a propriedade comum de muitos” (1892b, p. 67, nota 1).5 O pensamento expresso por uma sentença é fruto do sentido dos termos que a compõem; mas, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA enquanto os sentidos de termos têm como referência objetos ou funções, a referência de pensamentos são valores de verdade (o Verdadeiro ou o Falso). Há uma profusão de discussões acerca da noção de pensamento fregiano, da qual passaremos ao largo; no que se segue, simplesmente assumiremos um conhecimento básico desta noção (para uma rápida apresentação das noções de sentido e pensamento, ver capítulo 1 desta tese). Desejamos fundamentalmente apresentar e discutir um pressuposto epistemológico assumido por Frege (em seus últimos artigos escritos em vida) que está na origem de muitos mal-entendidos, alguns dos quais perduram até hoje. Encontramos esta pressuposição exposta claramente em suas obras póstumas: (...) que um pensamento do qual somos conscientes esteja conectado em nossa mente com uma sentença ou outra é necessário para nós humanos. Mas isto não jaz na natureza do pensamento, e sim em nossa própria natureza. Não há contradição em supor que existam seres que sejam capazes de apreender o mesmo pensamento que nós, sem precisar de revesti-lo com uma forma lingüística. (...) Mas ainda assim, para nós seres humanos, há esta necessidade. (1977a , p. 269) Neste trecho, fica claro que, segundo Frege, não há outro meio de nós seres humanos compreendermos um pensamento, ou seja, de termos contato epistêmico 4 Aqui, “fonte epistemológica” assume o sentido tradicional de origem cognitiva. O termo do português “pensamento” sugere mais fortemente um viés psicologista do que o termo “Gedanke” do alemão, ou mesmo “thought”, do inglês. “Pensamento” nos remete diretamente ao ato de pensar, enquanto “Gedanke”, por ser originado do particípio do verbo “denken” (que em português é “pensado”) nos remete àquilo que é pensado, ou seja, ao objeto do pensamento. 5 197 com um pensamento, a não ser através de sua forma lingüística. A idéia de que pensamentos nos são disponibilizados por sua forma lingüística aparece em obras de Frege publicadas em vida: O mundo dos pensamentos tem um modelo no mundo das sentenças, expressões, palavras e sinais. À estrutura do pensamento corresponde a combinação de palavras em uma sentença; e aqui a ordem não é, em geral, indiferente. À dissolução ou destruição de um pensamento deve corresponder, em conformidade, a fragmentação das palavras em partes, tal como acontece, e.g., quando uma sentença escrita no papel é cortada com uma tesoura, de modo que, em cada pedaço do papel esteja a expressão para a parte de um pensamento. (1919a, p. 123) É bem verdade que, aqui, ao contrário do que ocorre um pouco acima, Frege não chega a colocar que pensamentos só nos podem ser apresentados a seres humanos por meio de uma roupagem lingüística. Mas a idéia de que há um isomorfismo entre o mundo lingüístico e o mundo dos pensamentos é forte o suficiente para PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA estabelecer a forma das sentenças como fonte (no sentido tradicional) privilegiada do conhecimento dos pensamentos. É importante notar, também, que Frege não faz da linguagem somente um meio de comunicar ou incitar a compreensão dos pensamentos. Está claro, nas colocações de Frege, que encontramos o pensamento nos próprios objetos lingüísticos: palavras, sinais, sentenças, estruturação sintática dos termos etc. Sendo as passagens que selecionamos todas da fase pós-paradoxo, deve-se observar que não há, na obra lógica pregressa de Frege, indicações de como símbolos são responsáveis por apresentar os pensamentos. As teses da linguagem como fonte (no sentido tradicional) de conhecimento e do isomorfismo ganham vulto na fase final da obra de Frege.6 Por que Frege se vê forçado a afirmar que seres humanos têm contato com pensamentos necessariamente por meio de formas lingüísticas? O fato é que Frege, ao enfatizar continuamente a objetividade da lógica, coloca-se num vazio epistemológico tão grande que ele não tem resposta para perguntas simples, tais 6 Esta omissão inicial fez com que pelo menos um comentador da obra de Frege pré-paradoxo afirmasse apressadamente que, para Frege, podemos formar juízos na ausência de linguagem: “É claro que a atividade de julgar, como aquela de designar, não está confinada a instâncias de utilização de um nome – por exemplo escrevê-lo ou proferi-lo em voz alta – estes são meramente casos particulares conspícuos de atividades que podem ser, ou que poderiam ser imaginadas, sendo conduzidas sem a aparência de qualquer expressão lingüística como veículo intermediário”. (Furth 1964, p. l) Este comentário está incorreto, se quer estabelecer um pressuposto aceito por Frege. Se, para Frege, a linguagem é um pressuposto epistemológico para o pensamento e o pensamento um pressuposto para o juízo (ver 1892b, pp. 70 e 86), a linguagem também é um pressuposto para o juízo, ao contrário do que defende Furth. 198 como: como conhecemos um pensamento? Uma resposta possível, da qual, como vimos, muitos se servem hoje em dia, é o apelo à noção de intuição imediata. Mas, para quem está escrevendo com um olho no matemático (e outro no filósofo), a estipulação de uma faculdade que nos dê contato direto com algum tipo de realidade deve ter parecido deveras exótica (há, porém, o caso de Cantor), além de trazer compromissos filosóficos muito fortes para o temperamento de Frege. Logo, tudo nos leva a crer que a única opção satisfatória para as intenções e tendências de Frege seja a linguagem, dado o seu caráter público e objetivo; todos a podem ver ou ouvir. Frege (1919) deixa claro e inequívoco o papel epistemológico central que a linguagem desempenha no reconhecimento do pensamento, dentro de sua visão: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA O pensamento, em si imperceptível pelos sentidos, é vestido com a roupagem perceptível de uma sentença, e por meio dela somos capazes de apreendê-lo. (p. 5, grifos nossos) Para que não reste dúvidas acerca do real alcance epistemológico da roupagem lingüística para Frege, é importante que distingamos minimamente pensamento de juízo.7 Nos dizeres de Frege, um juízo deve ser entendido como um “progresso do pensamento para seu valor de verdade” (1892b, pp. 70 e 86). Assim, julgar é algo muito diferente de entender ou postular um pensamento. Para além de meramente entender o conteúdo cognitivo de uma sentença, quando julgamos, estamos reconhecendo que um pensamento é verdadeiro. É com base nas noções de pensamento e juízo que Frege diferencia os atos de pensar, julgar e asserir: (...) distinguimos: (1) a apreensão de um pensamento – pensar, (2) o reconhecimento da verdade de um pensamento – julgar, (3) a manifestação deste juízo – asserir. (1919, p. 7) Embora esta distinção só seja posta de forma totalmente explícita em “Pensamentos”, ela já é reconhecível em Begriffsschrift, embora de forma confusa,8 na distinção entre conteúdo e juízo. Mas, mesmo lá, pelo menos em um lugar a diferença entre juízo e pensamento se faz transparente: 7 Discutiremos a noção de juízo fregiana com mais cuidado, ainda neste capítulo. A confusão, segundo próprio Frege (1893, pp. xviii-xix), consiste em amalgamar pensamento e referência sob a noção de conteúdo. Neste caso, é difícil ver como o juízo pode ser um trajetória do pensamento para o valor de verdade, ao mesmo tempo em que acrescenta alguma coisa ao mero 8 199 De um juízo não podemos dizer propriamente que ele significa ou que ele é expressado. Com certeza, temos um pensamento dentro do juízo, e isto pode ser expresso; mas temos mais, nomeadamente, o reconhecimento da verdade de um pensamento. (1879, p. 11, nota 8) Fica claro então que, para Frege, podemos pensar, ou seja, apreender um pensamento (compreender o que uma proposição quer dizer) sem reconhecer sua verdade ou falsidade. Estes são, por assim dizer, dois “momentos” diferentes. Frege é coerente e explícito sobre a questão em “Negação”, onde afirma: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Em muitos casos, claro, um destes atos [apreender um pensamento e julgar que um pensamento é verdadeiro] segue tão diretamente ao outro que eles parecem fundirse em um ato; mas não é assim em todos os casos. Anos de investigação laboriosa podem vir entre apreender um pensamento e reconhecer sua verdade. É óbvio que aqui o ato de julgar não forma o pensamento ou põe suas partes em ordem; pois o pensamento já estava lá. (1919a, p. 127) Além da separação clara entre pensar (apreender o significado) e julgar (reconhecer a verdade), a distinção entre pensamento e juízo tem mais uma conseqüência epistemológica importante. Não ocorre somente que possamos apreender o pensamento de uma sentença, sem sabê-la verdadeira ou falsa; podemos apreender pensamentos impossíveis ou contraditórios. Isto está presente em vários textos de Frege. Por exemplo, ele afirma o seguinte em Os Fundamentos da Aritmética, ao comentar a definição de zero: 0 é o número que convém ao conceito “diferente de si próprio”. Talvez estranhe-se que eu fale aqui de conceito. Objetar-se-á talvez que ele contém uma contradição e faz lembrar os velhos conhecidos ferro de madeira e círculo quadrado. Ora, julgo que eles não sejam tão maus quanto se imagina. De fato, úteis a bem dizer nunca serão; mas tampouco podem trazer algum mal, desde que não pressuponha que algo caia sob eles; e para isso não é suficiente o simples uso dos conceitos. Que um conceito contenha uma contradição, nem sempre é tão evidente que dispense investigação; para investigá-lo é preciso antes possuí-lo e tratá-lo logicamente como outro qualquer. Tudo o que, do ponto de vista da lógica e no que concerne ao rigor da demonstração, se pode exigir de um conceito é sua delimitação precisa, que fique determinado, para cada objeto, se cai ou não sob ele. Ora, esta exigência é estritamente satisfeita por conceitos que contêm contradição, como “diferente de si próprio”; pois sabe-se, a respeito de todo objeto, que ele não cai sob este conceito. (1884, p. 258) 9 ato de reconhecer o conteúdo cognitivo da sentença. Pareceria que o mero apreender do conteúdo já ensejaria, por si só, o reconhecimento de sua verdade, tornando a noção de juízo inútil. Ainda, segundo Frege (1891, p. 46), este problema permaneceu até Os Fundamentos da Aritmética (inclusive), onde o que Frege subsume sob a noção de conteúdo judicável era também um amálgama de pensamento com valor de verdade (e.g. p. 255). 9 Ver ainda Fundamentos, pp. 270-271. 200 A possibilidade de sermos capazes de pensar o falso e o impossível é condizente, ainda, com o caráter prescritivo, em vez de descritivo, que a lógica como ciência assume para Frege. É óbvio que, se a lógica é prescritiva, assume-se que podemos pensar incorretamente, o que inclui pensar contraditoriamente. Voltaremos a discutir o tratamento que Frege dispensa aos pensamentos impossíveis em vários momentos. 5.3.2 Há Pensamento na Ausência de Linguagem? Como acabamos de ver, Frege estipula a linguagem como a fonte epistemológica por excelência para o conhecimento de pensamentos. Nossa intenção, no que se PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA segue, é discutir alguns problemas epistemológicos que este tratamento traz. Há tipos diferentes de problemas que, não obstante, nos levam a um mesmo lugar: a insuficiência da tese de que a estrutura da linguagem é o meio pelo qual conhecemos um pensamento. Um problema inicial a ser examinado é que, ao contrário do que Frege diz, está longe de ser verdadeiro que pensamentos só possam assumir forma lingüística, seja em animais, seja em seres humanos. Hoje em dia, é bastante claro do ponto de vista experimental e do ponto de vista comportamental que animais têm atitudes proposicionais bastante complexas (e.g. dúvida, descontentamento), incluindo juízos (crença na verdade de um fato), sem terem como intermediária qualquer roupagem lingüística, ao menos no sentido de uma linguagem pública perceptível estruturada sintática e semanticamente, como quer Frege. Se de fato animais formam juízos, isto indica que animais têm pensamento (conteúdos cognitivos proposicionais), mesmo destituídos de linguagem “pública”. A razão desta inferência é que, assumindo-se a própria visão de Frege, se juízos são o progresso de pensamentos para seu valor de verdade, então necessariamente juízos, em sua progressão ao valor de verdade, pressupõem pensamentos. Dado que animais formam juízos e outras atitudes proposicionais, não se pode negar que eles devem também apreender pensamentos. 201 Que animais formem juízos mesmo na ausência de linguagem ainda é condizente com a visão de Frege, pois, como vimos na seção anterior, ele afirma que possivelmente outros seres sejam capazes de apreender um pensamento sem a mediação de uma roupagem lingüística, mas não seres humanos. Contudo, é claro que também seres humanos formam juízos sem a mediação de linguagem. Isto é atestado com facilidade por alguns fatos cognitivos. Em primeiro lugar, há o fato corriqueiro de que seres humanos, muitas vezes, querem dizer algo, mas não encontram palavras para fazê-lo. Seja por um vocabulário ou conhecimento gramatical limitado, seja por simples esquecimento, é comum para um ser humano se encontrar na situação na qual ele tem um juízo (cujo pensamento respectivo ele tem claro para si), deseja expressar este juízo, mas não tem o conhecimento de uma forma lingüística para fazê-lo. Por vezes nos esquecemos de uma palavra; outras vezes, não conseguimos ver qual é a estrutura PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA sintática mais adequada para expressar um pensamento (e.g., em sentenças muito longas e complexas), embora tenhamos claro qual seja este pensamento. Se isto é verdade, ou seja, se muitas vezes nos tornamos conscientes de um conteúdo cognitivo na ausência de uma roupagem lingüística, esta roupagem não pode ser o único acesso epistemológico para pensamentos. Outras evidências da falsidade da hipótese de que pensamentos só podem ser estruturados lingüisticamente advém da simples observação de nosso comportamento, no dia-a-dia. Temos o relato lúcido de Tieson e Horgan (2002), no qual a separação entre pensamento e linguagem fica bastante clara: Pense, por exemplo, em cozinhar, limpar a casa, ou trabalhar em uma garagem ou oficina de carpintaria. Em qualquer uma destas atividades, você pode espontaneamente se mover a fim de retirar uma ferramenta que está fora de alcance. Há algo que é como pensar [There is something that is like to think] que uma certa ferramenta está bem naquele lugar – dentro do armário, digamos – mas tais crenças são tipicamente não-verbalizadas, nem vocalmente, nem subvocalmente, nem por meio de uma imagética verbal. Suas energias verbais poderiam, neste ínterim, estar direcionadas para uma discussão filosófica com um amigo, ininterrupta por sua seleção de ferramentas apropriadas. (p.523) Vê-se que, com um mínimo de bom-senso, a idéia de Frege (que parece ter sido aceita pelo primeiro Wittgenstein e por Dummett), segundo a qual o pensamento está subordinado epistemologicamente à linguagem, é simplesmente implausível. 202 Dadas as evidências, não é demais afirmar que a visão exposta por Frege, segundo a qual seres humanos apreendem pensamentos somente por meio da roupagem da linguagem, é simplesmente incorreta. É claro que as abordagens teóricas lingüísticas para a explicação de nossa cognição de pensamentos desenvolveram saídas para lidar com todos os fatos evocados acima. Uma delas é afirmar que animais (superiores) são, no final das contas, dotados de linguagem, na medida em que possuem as atitudes proposicionais que relatamos acima – seria algum tipo de linguagem do pensamento, mas não deixaria de ser linguagem. Braddon-mitchell e Jackson PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA (2000) descrevem resumidamente uma abordagem deste tipo: Crença na ausência de linguagem é possível. Um cão pode crer que há comida na tigela em sua frente. Com vistas a isto, filósofos têm procurado explicações da crença que permitam um papel central para sentenças – não pode ser por acidente que encontrar a sentença correta é a maneira de capturar o que alguém crê – enquanto que se permite que criaturas sem uma linguagem [pública] possam ter crenças. Uma maneira de se fazer isto é entender crenças como relações com sentenças inscritas, de alguma maneira, no cérebro. Nesta visão, embora cães não tenham uma linguagem pública, na medida que eles têm crenças eles têm algum do tipo sentença em suas cabeças. (p. 82) Ora, esta saída para salvar a linguagem como o meio de conhecimento e veículo de pensamentos (fregianos) é totalmente inútil para Frege, ao privar a linguagem justamente do elemento que fez com que Frege a estipulasse para tal papel: sua publicidade e objetividade. Lembremos que Frege afirma que é “por meio da roupagem lingüística sensível que apreendemos o pensamento” (1919, p. 5). 5.3.3 Estrutura do Pensamento vs. Estrutura Sentencial Outro problema, tanto para a visão de que seres humanos podem conhecer um pensamento através somente de sua forma lingüística quanto para a visão de que a forma lingüística é um modelo isomórfico que espelha o pensamento, é posto claramente por Bell (1996). Trata-se do fato de que um pensamento, um conteúdo cognitivo, pode ser expresso por muitas sentenças diferentes, com diferentes estruturas sintáticas. Bell (1996) dá exemplos bastante claros de sentenças da linguagem ordinária nas quais isto ocorre: 203 Me parece que (...) o que quer que eu represente [entertain] mentalmente quando abro meu escritório, esperando encontrar meu escritório ocupado pela mobília usual, livros, e outras coisas amontoadas, e me deparo, ao invés disto, com o recinto inteiramente vazio, eu poderia expressar isto igualmente bem por meio de qualquer uma das seguintes sentenças: (1a) O recinto está vazio (1b) Nada há no recinto (1c) O número de coisas no recinto é zero (1d) Tudo do recinto se foi. Aqui temos quatro sentenças com estruturas muito diferentes. Algumas são quantificadas, outras, não; algumas envolvem negação, outras não; algumas envolvem somente predicados de um lugar, outras somente predicados de dois lugares, e assim por diante. (pp. 586-587) É fácil formular casos semelhantes ao descrito por Bell, como, por exemplo, os enunciados PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA (2a) a > b, (2b) b < a. Neste caso, há duas sentenças estruturalmente diferentes, porém com o mesmo conteúdo cognitivo. Não se trata somente de uma implicar a outra; a questão é que não há como apreender o conteúdo cognitivo de uma sem, por isto mesmo, apreender o conteúdo cognitivo da outra. Dado este fato, a tese fregiana do isomorfismo torna-se difícil de ser sustentada. Se há várias formas gramaticais capazes de expressar um mesmo pensamento, como o conhecimento do pensamento pode advir de uma sentença que lhe é isomórfica? Todavia, pode-se questionar a validade desta crítica, da seguinte maneira: será que de fato todas as variantes, tanto (1a), (1b), (1c) e (1d), quanto (2a) e (2b), são estruturas lingüísticas de um mesmo pensamento? Como relata Bell, Dummett, em apoio a Frege, está convencido de que não. Para Dummett, há um princípio, chamado “princípio K”, que garante que os pensamentos relativos a sentenças diferentes resultem diferentes: (K): Se uma sentença envolve um conceito que outra sentença não envolve, as duas sentenças não podem expressar o mesmo pensamento ou ter o mesmo conteúdo. (Bell 1996, p. 588) Assim, (2a) seria diferente de (2b) por apresentar conceitos diferentes, a saber, as relações maior que e menor que. O mesmo ocorreria com o exemplo dado por 204 Bell, em função das diferenças gramaticais e conceituais relatadas pelo próprio. Neste sentido, Dummett afirma: (...) não se pode dizer que alguém apreendeu um pensamento de que um certo político é desonesto, por exemplo, se ele não possui o conceito de desonestidade. Dado que a posse do conceito é essencial para a apreensão do pensamento, o pensamento não pode ser identificado com um pensamento que pode ser apreendido por alguém que não possui o conceito. (Dummett, “More about Thoughts”, in Frege and Other Philosophers, Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 295, apud. Bell 1996, pp. 592-593) O que Dummett parece estar dizendo aqui é que é possível que um certo indivíduo x apreenda perfeitamente o pensamento expresso pela sentença (3a) Caio não é honesto, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA mas não apreenda o pensamento expresso pela sentença (3b) Caio é desonesto, por não possuir o conceito de desonestidade. Ou seja, se um indivíduo x apreende (3a), mas não apreende (3b) por não possuir o conceito de desonestidade, então a apreensão de (3a) é acessível a x enquanto a apreensão de (3b) lhe é inacessível. Isto seria, então, uma evidência de que a introdução de um novo termo, e com isto de um novo conceito, traz, ipso facto, impacto ao nível do pensamento: (3a) e (3b) não podem ser sentenças diferentes para pensamentos iguais. O mesmo aconteceria com os grupos de exemplos (1) e (2). Assim sendo, de fato, as sentenças diferentes corresponderiam a pensamentos diferentes. No entanto, Bell bem detecta no argumento de Dummett um problema de circularidade. Dummett assume, de antemão, que a estrutura da sentença é um bom guia para revelar a estrutura conceitual intrínseca ao pensamento – que é o que deseja provar. Somente com esta assunção, o princípio K (se uma sentença envolve um conceito que outra sentença não envolve, as duas sentenças não podem expressar o mesmo pensamento ou ter o mesmo conteúdo) tem o efeito desejado por Dummett: nova estrutura sentencial, novo pensamento. Sem a assunção irregular, torna-se plenamente possível que, por exemplo, a ignorância do indivíduo x acerca do conceito de desonestidade seja simplesmente uma 205 ignorância acerca de qual sentido é associado ao termo “desonesto”, em vez de uma ignorância acerca do conceito em si. Isto é, sem a assunção de Dummett de que a estrutura sentencial revela a estrutura conceitual, dado que x apreende o sentido de não ser honesto em (3a), sua ignorância acerca do sentido de ser desonesto em (3b) pode ser reduzida à ignorância acerca do sentido associado a “ser desonesto”, e não uma ignorância acerca do sentido de ser desonesto: este último é simplesmente não ser honesto, que x conhece muito bem (analogamente, não saber que o termo “macaxeira” tem o mesmo sentido de “aipim” é diferente de desconhecer o conceito macaxeira). Assim, Dummett não fornece nenhuma razão autônoma para que aceitemos que o conceito ser desonesto é diferente do conceito não ser honesto, e que por isto só apreendemos o sentido de (3b) quando apreendermos o significado isolado de ser desonesto. Isto porque Dummett não oferece condições para diferenciarmos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA a ignorância de um conceito da ignorância de que um certo termo está ligado ao conceito; estes dois aspectos epistemológicos confluem-se somente sob a assunção de que a estrutura gramatical é isomorfa à estrutura do pensamento. Com a desqualificação das evidências de Dummett, tende a ir por água a baixo o princípio (k), e junto com ele, a tese de que sentenças são evidência uma epistemológica autônoma para a apreensão de pensamentos. Frege e Dummett defendem que um pensamento é estruturado a partir dos sentidos constituintes da mesma maneira que uma sentença é estruturada a partir dos termos constituintes e que apreendemos o conteúdo cognitivo de um pensamento via estrutura sentencial perceptível isomórfica a ele. Neste sentido, Frege afirma em “Compound Thoughts” que “[podemos] distinguir partes do pensamento correspondentes às partes de uma sentença, de modo que a estrutura da sentença pode servir como um modelo da estrutura do pensamento”. Acabamos de ver que faltam razões independentes mínimas para se aceitar que haja o alegado isomorfismo; pelo contrário, as evidências apontam para a existência de múltiplas sentenças contendo o mesmo conteúdo cognitivo. Por conseguinte, torna-se pouco plausível que nosso contato epistêmico com pensamentos se dê por meio da roupagem sentencial perceptível de sentenças, pois, na ausência do isomorfismo, como esta roupagem poderia, por si só, ser reveladora de um conteúdo cognitivo? 206 5.3.4 Podemos Pensar o Impossível? Os problemas epistemológicos gerados pela noção de pensamento de Frege não param por aí. Concentramo-nos agora em mostrar como Frege tem uma postura dúbia acerca de nossa capacidade de pensar o impossível. Vimos que Frege estipula que somos capazes de pensar o impossível, ou seja, podemos apreender o pensamento de uma sentença impossível (ver Fundamentos da Aritmética, p. 258). De fato, em determinado momento, Frege estipula que a lógica é prescritiva sobre juízos, e, ao fazê-lo, ele concede que podemos até mesmo julgar o impossível como verdadeiro: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Das leis da verdade seguem-se prescrições sobre o asserir, pensar, julgar, inferir. (Frege 1919, p. 1) A idéia de que a lógica é prescritiva sobre pensamentos está mais uma vez nas páginas introdutórias do Grundgesetze, onde Frege afirma: Será admitido por todos desde o início que as leis da lógica devem ser princípios guia para o pensamento na obtenção da verdade; entretanto isto é facilmente esquecido, e o que é fatal aqui é o duplo significado da palavra “lei”. Em um sentido, uma lei afirma o que é; em outro, ela prescreve o que deve ser. Somente no segundo sentido as leis da lógica podem ser chamadas “leis do pensamento”: na medida em que elas estipulam o modo que se deve pensar. (1893, p. 12) É evidente que, ao se assumir que há certas leis que prescrevem como devemos formar um juízo ou pensamento, se está se admitindo que estas leis podem ser violadas, o que significa que se pode julgar ou pensar de maneira não condizente com a própria lei. A maneira de Frege expressar isto é através de uma de suas várias analogias, desta vez dotada de uma nuance poética: Se ser verdadeiro é, portanto, independente de ser reconhecido [como tal] por alguém, então as leis da verdade não são leis psicológicas: elas são pedras limite dispostas em uma fundação eterna, as quais nosso pensamento pode exceder, mas jamais remover. (Ibid., p. 13; grifos nossos) Entretanto, em várias outras oportunidades, Frege nega, explicita ou implicitamente, que possamos pensar o impossível ou julgar o impossível como verdadeiro. Um primeiro caso importante é encontrado em Os Fundamentos da 207 Aritmética, no qual Frege compara a epistemologia da geometria com aquela da aritmética: Do ponto de vista do pensamento conceitual, pode-se sempre assumir o contrário deste ou daquele axioma geométrico, sem incorrer em contradições ao serem feitas deduções a partir de tais assunções contraditórias com a intuição. Esta possibilidade mostra que os axiomas geométricos são independentes entre si e em relação às leis lógicas primitivas, e portanto sintéticos. Pode-se dizer o mesmo dos princípios da ciência dos números? Não teríamos uma total confusão caso pretendêssemos rejeitar um deles? Seria então ainda possível o pensamento? O fundamento da aritmética não é mais profundo que o de todo saber empírico, mais profundo mesmo que o da geometria? As verdades aritméticas governam o domínio do enumerável. Este é o mais inclusivo; pois não lhe pertence apenas o efetivamente real, não apenas o intuível, mas todo o pensável. Não deveriam portanto as leis dos números manter com as do pensamento a mais íntima das conexões? (1884, p. 217, grifos nossos) Há elementos suficientes para nos permitir afirmar que Frege, no trecho acima, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA não permite que possamos pensar o impossível (num sentido geral de pensar – a separação precisa entre pensamento e juízo só é feita posteriormente, em “Sobre o Sentido e a Referência”, como já colocamos anteriormente). Ou seja, Frege, no trecho acima transposto, em algum sentido difícil de compreender por inteiro, abraça nosso velho princípio CON⊃POSS. Isto está claro o suficiente na pergunta retórica: “seria então [na hipótese de rejeição de leis da lógica] ainda possível o pensamento?”; ou ainda, quando Frege estipula que existe a mais íntima relação entre as leis dos número e as leis do pensamento (ver partes da citação acima em itálico). O último trecho da citação acima é notável; nele Frege fala em leis do pensamento justamente do modo que repudiaria mais tarde, em “Sobre o Sentido e a Referência”, no Grundgesetze, em “Pensamentos”, e em tantos outros lugares. Ou seja, ele deixa claro o suficiente que acredita que as leis que regem os processos mentais são as mesmas que regem as leis dos números – que relação mais íntima poderia existir entre estes dois universos? Esta idéia reaparece mais além, nos Fundamentos, quando Frege afirma: As leis numéricas não são propriamente aplicáveis às coisas exteriores: não são leis da natureza. São porém aplicáveis a juízos que valem para coisas do mundo exterior: são leis das leis da natureza. Não afirmam uma conexão entre fenômenos da natureza, mas uma conexão entre juízos; e entre estas incluem-se também as leis da natureza. (Ibid., p. 267) 208 Aqui, novamente, as leis da lógica são apresentadas como descritivas das conexões entre juízos, de modo análogo ao que as leis da natureza aplicam-se a conexões entre fenômenos da natureza. No Grundgesetze, há também a presença de discussões nas quais Frege aceita que não podemos julgar o impossível como verdadeiro. Isto ocorre quando, numa longa e confusa passagem, ele discute e critica a lógica de Erdmann por seu psicologismo. Segundo Frege, de acordo com a teoria de Erdmann, “é possível que homens ou outros seres (...) sejam capazes de efetuar juízos contraditórios com nossas leis da lógica”. Num trecho, Frege compara sua posição com a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA posição de Erdmann, no tocante a esta possibilidade: O lógico psicologista poderia somente reconhecer o fato [de que outros seres são capazes de formar juízos contraditórios] e dizer simplesmente: aquelas leis são válidas para eles, estas leis são válidas para nós. Eu diria: temos aqui um tipo de loucura desconhecida até o momento. Qualquer um que entenda as leis da lógica como leis que prescrevem o modo no qual alguém deveria pensar – como leis da verdade, e não leis naturais do modo como seres humanos tomam uma coisa como verdadeira – perguntará: quem está certo? As leis de tomar como verdadeiro de quem estão de acordo com as leis da verdade? O lógico psicologista não pode fazer esta pergunta; se ele a fizesse, ele estaria reconhecendo leis da verdade que não seriam leis da psicologia. (1893, p. 14, grifos nossos) 10 Neste primeiro trecho, é difícil atravessar a retórica de Frege e ver exatamente o que ele quer dizer, quando afirma: “temos aqui um novo tipo de loucura”, referindo-se aos que seriam hipoteticamente capazes de fazer juízos contraditórios. Uma possibilidade é uma simples atitude chauvinista de Frege: se há um ser desviante que reconhece a proposição p como verdadeira enquanto nós reconhecemos p como contraditória, então eles estão errados e nós estamos certos; há algum tipo de defeito cognitivo, loucura, no ser desviante. Nesta hipótese, Frege estaria assumindo que não somos capazes de formar juízos contraditórios com uma lei da lógica, ou seja, julgar o contraditório como verdadeiro. Neste caso, para Frege, quem reconhece as leis da verdade não é capaz de admitir que 10 Este trecho tem sido objeto de discussão entre vários autores. Baker e Hacker (1989, p. 88) são bastante críticos acerca desta discussão e acusam Frege de dogmatismo. Apontam também que hoje em dia esta discussão tem relevância graças ao advento das lógicas alternativas. Sobre o mesmo trecho, Dwyer (1989, p. 157, nota 42) afirma que “esta dimensão psicológica inevitável da discussão é tal que Frege nunca está confortável com ela, e, em última análise, nunca enfrenta de frente, por todo o seu antipsicologismo explícito”. Picardi (1994, 219, nota 12) é mais condescendente, ao afirmar que perguntas pelo validade dos princípios, correntes hoje em dia, eram “estranhas ao modo de pensar de Frege”. Esta discussão fregiana é, ainda, a fonte de diversas reflexões de Wittgenstein em seu Remarks on the Foundations of Mathematics (seções 155-156). O que parece comum a todos os comentadores é a visão de que Frege não enfrenta a questão diretamente. No que se segue, damos nossa própria visão da questão. 209 elas sejam falsas – “as leis de tomar como verdadeiro” de seres desviantes só podem ser falsas. A crítica de Frege ao psicologista, neste trecho, parece ser dirigida principalmente ao fato de ele não assumir a existência de leis prescritivas da verdade como sustentáculo objetivo e autônomo para balizar os juízos, e não a afirmação de que as leis da lógica são coincidentes com as leis do pensamento – Frege parece estar disposto a reconhecer, junto com os psicologistas, que não podemos julgar contrariamente às leis da verdade, na medida em que qualifica como loucos os seres que, por hipótese, possam fazê-lo. Assim, o real problema com o psicologismo é, para Frege, a ausência da postulação de um critério objetivo e autônomo para as leis da verdade, o que, segundo Frege, torna impossível para o psicologista perguntar-se sobre quem está correto, o ser “ortodoxo” ou o ser “desviante”. Já para Frege, esta pergunta é natural, pois ele PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA tem um critério absoluto e independente do sujeito para responder a esta pergunta. Logo, o problema com o psicologismo, para Frege, não é tanto epistemológico, mas sim ontológico, dizendo respeito à assunção, ou não, de sustentáculo objetivo para a lógica. Que este seja o caso é confirmado pelo modo como Frege encerra a discussão, afirmando que a fonte da discussão é a diferença de visão acerca da verdade: “para mim o que é verdadeiro é algo objetivo e independente do sujeito que julga; para o lógico psicologista, não”. (Grundgesetze, p. 15). Mas a passagem em questão permanece bastante confusa, na medida em que Frege parece não levar a cabo o experimento de pensamento que ele mesmo propõe. Se amanhã eu passar a julgar que 2+1=4 é verdadeiro em virtude desta proposição ser corroborada por meus estados mentais e experiências empíricas ou cálculos que eu executo – do mesmo modo que estes mesmos estados mentais corroboram meu juízo presente de que 2+1=3 –, que motivos ou critérios exteriores eu teria para não reconhecer a verdade de 2+1=4? De minha parte, eu reconheceria que 2+1=4; como não fazê-lo? Nesta situação, o que faria Frege? Que outro critério autônomo ele teria para permanecer afirmando que 2+1=3? Ele não tem como responder a esta pergunta, a não ser dizer: “a proposição correta é aquela que está de acordo com as leis da verdade”. Mas são justamente as leis da verdade, e o modo de conhecê-las, que estão em jogo no experimento de pensamento. 210 Parece-nos que Frege percebe o problema em que ele se pôs: ele defende como incoerente a posição do psicologista, segundo a qual não há um critério objetivo e autônomo para determinar se um juízo é verdadeiro ou não, mas ele é incapaz de fornecer um critério que seja independente da própria capacidade de formar juízos, que ele mesmo reconhece como psicológica, para determinar se um juízo está conforme o que chama de “leis da verdade”. A lógica é a saída mais evidente; mas como, então, justificar os axiomas e as regras de inferência assumidos pela lógica? Frege reconhece que se coloca num beco sem saída, ao afirmar no parágrafo seguinte: A questão por que e com que direito reconhecemos uma lei da lógica como verdadeira, a lógica pode responder somente reduzindo-a a outra lei da lógica. Onde isto não é possível, a lógica não pode dar qualquer resposta. (Ibid., p. 15) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA É então que Frege finalmente considera explicitamente nossa capacidade de conceber como um recurso para suprir a lacuna deixada por sua abordagem, mas não a aceita (nem a rejeita): Se nos distanciarmos da lógica, poderíamos dizer: somos compelidos a formar juízos por nossa própria natureza e por circunstâncias externas; e se o somos, então não podemos rejeitar esta lei – da identidade, por exemplo. Devemos reconhecê-la, a menos que desejemos reduzir nosso pensamento a uma confusão e finalmente renunciar a todo e qualquer juízo. Não contestarei nem apoiarei esta afirmação; enfatizarei, meramente, que o que temos aqui não é uma conseqüência lógica. O que é dado não é uma razão para algo ser verdadeiro, mas para o tomarmos como verdadeiro. (Ibid., p. 15) Nesta citação, Frege não se compromete com o princípio da conceptividade (mas tampouco o rejeita); o importante, na visão de Frege, é que, mesmo que este princípio seja verdadeiro, ele não é suficiente como uma justificação aceitável para a verdade de uma proposição. Para Frege, só fazem jus ao termo “justificação” relações inferenciais entre enunciados; estados mentais não contam como tal. Novamente, Frege deixa claro que, em se tratando de justificação, o importante é que se estipule um suporte objetivo para a crença; na ausência deste, o melhor que temos a fazer é nos calar. Mas o mais curioso é o que vem logo a seguir, no desdobrar da discussão: Frege afirma claramente que lhe é inconcebível (com subjetivismo e tudo) que juízos verdadeiros sejam tomados como falsos: 211 (...) esta impossibilidade de rejeitarmos a lei em questão [lei da identidade] não nos impede de supor seres que a rejeitem; o que ela nos impede é de supor que estes seres estejam certos ao fazê-lo. Ao menos, isto é verdadeiro de minha parte. (Ibid., p. 15) A impossibilidade de rejeitar uma lei nos impede de supor que seres [desviantes] estejam certos em rejeitá-la: INC⊃IMP. No jargão de Yablo, Frege está dizendo, na citação acima, que é crível (believable) um ser que forme um juízo no qual a lei da identidade é falsa, mas que é inconcebível um tal juízo. Ou seja, podemos imaginar um ser que se comporte como se a = a fosse falso; porém, não podemos imaginar uma situação que verifique a ≠ a.11 Esta aceitação implícita de diversas versões do princípio da conceptividade (CON≡POSS), ora de CON⊃POSS, ora de INC⊃IMP, tem feito alguns autores notarem que, em se tratando de modalidade, Frege é de fato psicologista. Neste PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA sentido, afirma Haaparanta (1988a): O que é importante e um tanto surpreendente nas afirmações feitas por Frege e Schröder sobre modalidade é que eles concordam com o tratamento dos lógicos psicologistas das noções modais. Mesmo que Frege ataque pesadamente o psicologismo, que tenta reduzir leis lógicas a leis psicológicas e finalmente a fatos empíricos, ele aceita e adota as alegações do lógico psicologista sobre modalidades. (p. 256) Veremos, ao longo desta tese, muitas outras afirmações que corroboram esta colocação. É difícil avaliar se Frege se dá conta, ou não, de que, quando um psicologista afirma que a lógica trata das leis do pensamento, ele tem em mente, em muitos casos, nossa capacidade de conceber. Frege parece associar o psicologismo sobretudo a noções como hábito, indução empírica, ou coisa que o valha, além das alegações de que sentidos são idéias.12 Embora Frege rejeite reiteradamente que sentidos sejam idéias, ele poderia muito bem aceitar que sentidos revelam-se por meio de idéias, e que juízos impossíveis não se nos podem revelar por meio de idéias. Vale lembrar que um dos alvos prediletos de 11 Stroud (1965) discute uma questão semelhante presente em Remarks on Foundations of Knowledge, de Wittgenstein, onde o último afirma que somos capazes de conceber que nossas leis da aritmética sejam falsas, na medida em que podemos muito bem imaginar situações dentro das quais há um indivíduo que se comporta (conta, soma) de modo conflitante com a aritmética vigente. Mas, ao contrário de Frege, Wittgenstein parece não dar importância ao fato de que não podemos imaginar situações nas quais nossa aritmética é falsa, e que isto é o relevante para o status modal da matemática. A importância da distinção feita por Yablo entre crer e conceber reside em deixar evidente a diferença entre estes casos. 12 Ver nossa discussão sobre o antipsicologismo de Frege, no capítulo 8. 212 Frege é J. S. Mill, um notório indutivista, que, entretanto, não aceita o princípio da conceptividade; para Mill, podemos pensar o impossível. Em seus ataques ao psicologismo, o alvo primário de Frege não é a noção de conceptividade. A partir de nossa discussão, fica claro que Frege tem uma atitude dúbia com relação a nossa capacidade de pensar o impossível (ou sua falta) ou julgar uma impossibilidade como verdadeira: em certos momentos, parece aceitar que possamos formar juízos contraditórios, mas em outros rejeita esta possibilidade. É possível, porém, tratar esta dubiedade dentro do universo filosófico de Frege. Já tivemos a oportunidade de observar que, em “Pensamentos”, Frege distingue: Pensar: apreender um pensamento; Julgar: reconhecer a verdade de um pensamento; PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Pensar, neste caso equivale a compreender o significado de uma proposição. Assim sendo, é claro que somos capazes de pensar o impossível, e.g. 2+2=5, uma vez que somos capazes de compreender o significado desta afirmação. Já julgar pode ser visto como equivalente a conceber uma situação, no sentido epistemologicamente forte e relevante, conforme temos enfatizado ao longo desta tese. É um procedimento de caráter psicológico e subjetivo, que nos leva do sentido ao valor de verdade. Esta divisão de trabalho está presente de modo claro somente em “Pensamentos”, embora esteja implícita já em “Sobre o Sentido e a Referência”, e mesmo no Begriffsschrift (embora tenha sido um tanto negligenciada nos Fundamentos), a despeito do fato de que Frege não tenta jamais resolver a dubiedade para a qual estamos chamando a atenção por meio dela. A existência deste possível tratamento não nos deve desviar a atenção do fato de que Frege não consegue manter a coerência desta divisão de trabalho ao longo de sua obra, como pôde ser visto em nossa explanação. Isto é, ele fala em pensar, ou pensamento, num sentido próximo ao sentido psicológico de julgar, bem como fala em julgar num sentido próximo ao de pensar. 5.4 Epistemologia da Representação 213 Outro foco potencial de discussões, no contexto da epistemologia de Frege, é sua visão de representação. É difícil encontrar um pensador que tenha a faculdade da representação em mais baixa conta que Frege. Para ele, esta é uma faculdade menor, epistemologicamente inócua, praticamente um efeito colateral do conhecimento, que não merece uma reflexão um pouco mais cuidadosa. Também aqui Frege parece esposar visões epistemológicas que trazem alguns problemas. Nosso objetivo principal no que segue é: expor de modo sucinto a visão fregiana de representação, contrapondo-a a sua noção de pensamento (5.4.1); oferecer uma crítica a esta visão, mostrando que ela traz incoerências (5.4.2). 5.4.1 A Noção de Representação de Frege PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Ao longo de toda a sua obra, Frege reconhece a existência de representações (Vorstellungen, muitas vezes também traduzido como “idéias”), mas as descarta como epistemologicamente irrelevantes dentro da lógica. Em sua visão, aquilo que determina o significado (num sentido amplo) de um termo são o sentido e a referência, sendo a representação algum tipo de epifenômeno epistemologicamente estéril. Segundo Frege, portanto, representações não desempenham qualquer papel cognitivo de importância para a lógica, não passando de um acompanhamento de nossos pensamentos ou juízos. Dada a sua ênfase na objetividade, uma razão óbvia para Frege repudiar o valor epistemológico das representações é seu caráter subjetivo. Representações são produto da mente humana e, por isto, dependentes e acessíveis somente à mente de quem as produz. Em comparação, como já vimos, pensamentos são objetivos e estáveis, o que quer dizer que são independentes de sujeitos cognoscitivos e estão abertos à apreensão de todos. Em “Pensamentos”, Frege delineia algumas características decorrentes do caráter subjetivo de representações: Primeiro: representações não podem ser vistas, tocadas, ou cheiradas, ou saboreadas, ou ouvidas. (...) Segundo: representações são algo que nós temos. Temos sensações, sentimentos, humores, inclinações, desejos. Uma representação que alguém tem pertence ao conteúdo de sua consciência (...). 214 Terceiro: representações necessitam de possuidores. Coisas do mundo exterior são, ao contrário, independentes. (...) Quarto: toda representação tem somente um possuidor; não há dois homens que tenham a mesma representação. (...) (1919, pp. 14-15) Com relação aos pensamentos, em virtude de sua objetividade, a estória é bem diferente: Nem tudo é uma representação. Logo, posso também reconhecer pensamentos como independentes de mim; outros homens podem apreendê-los tanto quanto eu; posso reconhecer uma ciência na qual muitos podem estar engajados em pesquisa. Não somos possuidores de pensamentos, como somos possuidores de representações. Não temos um pensamento como temos, digamos, uma impressão sensorial, mas também não vemos um pensamento como vemos, digamos, uma estrela. Assim, é recomendável escolher uma expressão especial; a palavra “apreensão” sugere-se a si mesma, para o propósito. Deve corresponder, então, ao apreender de pensamentos, uma capacidade mental especial, o poder de pensar. (Ibid., pp. 24-25) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA A análise da obra de Frege nos mostra que ele introduz a noção de representação exclusivamente para diferenciá-la da noção de pensamento e para enfatizar que, em se tratando de lógica, a primeira é irrelevante, ao passo que a segunda é fundamental.13 5.4.2 A Noção de Representação de Frege é Sustentável? Em Os Fundamentos da Aritmética, encontramos ataques muito fortes contra a noção de representação. Dentre as várias críticas que Frege desfere contra esta noção, encontra-se uma em particular que merece ser analisada, por sua falta de plausibilidade e por estar em conflito com outras afirmações de Frege, como logo veremos: Bem freqüentemente somos conduzidos pelo pensamento até muito além do representável, sem perder com isto a base para nossas conclusões. Ainda que seja impossível para nós homens, ao que parece, pensar sem representações, sua conexão com o que é pensado pode contudo ser inteiramente exterior, arbitrária e convencional. (1884, p. 248, grifos nossos.) A idéia de que uma representação possa ser inteiramente exterior, arbitrária e convencional é muito estranha. Se a levarmos a cabo, então poderemos apreender o pensamento de que um gato está sobre o telhado e associar a este pensamento a 13 Para mais uma comparação explícita entre representação e pensamento, ver Frege (1891a, p. 79). 215 representação de um elefante sobre o sofá, sem que aí haja qualquer gênero de impropriedade cognitiva. A propósito deste tipo de discrepância, Frege dá o exemplo da discordância entre o sentido de Terra e a imagem mental que temos da Terra: descobrimos, relatamos e comunicamos pensamentos verdadeiros sobre a Terra, mesmo não tendo uma representação apropriada do aspecto sensível deste objeto. Esta é a regra, antes que a exceção, para Frege: Embora nossa representação freqüentemente não convenha de modo algum ao que pretendemos, emitimos juízos dotados de grande certeza sobre um objeto como a Terra, mesmo quando está em questão sua grandeza. (Ibid., p. 248)14 Para Frege, portanto, é como se tivéssemos não somente duas faculdades cognitivas diferentes, mas dois universos cognitivos paralelos em sua ocorrência temporal, porém independentes: o pensar e o representar (há trechos em que ele PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA chega a lamentar a existência da faculdade da representação). Para mostrar o problema com a abordagem de Frege acima reproduzida, devemos primeiro nos reportar mais uma vez à distinção entre contexto de descoberta do conteúdo e contexto de justificação. Em Os Fundamentos da Aritmética, Frege distingue estes dois contextos da seguinte maneira: Não raramente obtém-se antes o conteúdo de uma proposição e, em seguida, por vias diferentes e mais árduas, conduz-se sua demonstração rigorosa, por meio da qual freqüentemente toma-se também conhecimento de suas condições de validade de modo mais preciso. Tem-se em geral que distinguir a questão de como chegamos ao conteúdo de um juízo da questão do que justifica nossa asserção. (1884, p. 6) É a partir desta distinção que, como é bem sabido, Frege defende que a questão da justificação de uma proposição logicamente verdadeira não tem relação com representações, intuições ou quaisquer elementos de cunho subjetivo e psicológico associados à proposição. Frege dá a entender, entretanto, que a observação empírica é importante para chegarmos ao conteúdo de um juízo: Perguntar-se-á talvez como a aritmética poderia existir se não pudéssemos distinguir pelos sentidos absolutamente nada, ou apenas três coisas. Para nosso conhecimento das proposições aritméticas e suas aplicações, uma tal situação seria certamente um tanto delicada; mas também para sua verdade? Se uma proposição é chamada de empírica porque tivemos que fazer observações para tomar consciência 14 Neste exemplo, devemos evidentemente levar em conta que Frege escreve no fim do século XIX. 216 de seu conteúdo, a palavra “empírico” não está sendo empregada no sentido em que se opõe a priori. É neste caso formulada uma asserção psicológica, que concerne apenas ao conteúdo da proposição; se este é verdadeiro, é algo que não entra em questão. (ibid., p. 212) Assim, segundo Frege, embora informações empíricas sejam irrelevantes para a justificação de proposições lógicas, elas têm importância, talvez propedêutica, heurística ou pedagógica, para tomarmos consciência do conteúdo destas proposições (ou de algumas delas). Neste sentido, ele dá o seguinte exemplo (o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA contexto é a discussão da definição do número 1): Talvez não seja supérfluo notar que a legitimidade objetiva da definição do 1 não pressupõe nenhum fato observado [nota do autor: Proposição sem generalidade.]; pois facilmente este problema é confundido com a necessidade de certas condições subjetivas serem preenchidas para que a definição nos seja possível, e com o fato de sermos levados a ela por percepções sensíveis. Isto pode sempre acontecer, sem que as proposições derivadas deixem de ser a priori. É também uma destas condições, por exemplo, que pelo cérebro circule sangue em quantidade suficiente e do tipo certo – ao menos pelo que se sabe; mas a verdade de nossa última proposição não depende disto; ela permaneceria verdadeira ainda que isto não mais ocorresse (...). (pp. 260-261) Com esta posição, Frege parece ter-se colocado em uma situação teórica difícil de ser sustentada. O problema é: como dados empíricos podem contribuir para a formação do conteúdo cognitivo de uma proposição, que por sua vez não tem qualquer traço sensível? Conforme o próprio Frege afirma, a formação de um conteúdo cognitivo, de um pensamento, não pode decorrer de uma contribuição dos dados empíricos para nossas representações, na medida que, como ele coloca, representações podem ser “inteiramente arbitrárias e convencionais” e, portanto, irrelevantes para o conteúdo cognitivo de uma proposição. Se, como coloca Frege, posso fazer matemática de modo correto ao mesmo tempo em que associo, por exemplo, ao 1 uma imagem mental não-condizente com 1, onde está a importância dos dados empíricos para o contexto de descoberta ou formação do conteúdo? Um dado empírico, por si só (i.e., sem acompanhamentos transcendentais, estruturais, platônicos etc. – é claro que se pode sempre inflacionar o universo empírico com estes elementos), só pode contribuir para a formação de conteúdos sensíveis, ou seja, representações; representações, por sua vez, são irrelevantes para a apreensão do conteúdo cognitivo de um pensamento, na visão de Frege; assim, não há ponte possível entre dados empíricos e o conteúdo de pensamentos, segundo a posição que Frege assume. Mas não é o 217 próprio Frege que afirma que dados empíricos são importantes para a descoberta do conteúdo de um pensamento? É ele que nos diz, na citação acima, que há “a necessidade de certas condições subjetivas serem preenchidas para que a definição [do número 1] nos seja possível”, e que somos “levados a ela por percepções sensíveis”. Por outro lado, se há alguma ponte entre dados empíricos e cognição de um pensamento, então fica difícil ver como as relações entre representação e pensamento podem ser “inteiramente arbitrárias e convencionais”, como Frege defende: elas devem ter, assim como o universo empírico, alguma conexão necessária com a cognição de pensamentos (mesmo que tal ponte se dê através de elementos estruturais, platônicos ou transcendentais – uma representação que fosse fiel ao menos com relação a estes elementos já não seria “inteiramente arbitrária e convencional”). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Assim sendo, Frege mantém duas teses (A) e (B) que são incompatíveis. São elas: (A) representações e pensamentos são inteiramente independentes entre si, i.e., pode não haver qualquer componente sensível no conteúdo cognitivo de um pensamento (Fundamentos da Aritmética, p. 248). (B) dados empíricos são relevantes para a formação do conteúdo cognitivo de um pensamento (Fundamentos da Aritmética, pp. 260-261); Esta incompatibilidade reside no fato de que, se aceitamos (A), segue-se que dados empíricos são irrelevantes para a formação do conteúdo cognitivo de um pensamento, o que contradiz (B) – afinal que contribuição poderiam dar? Se aceitamos (B), segue-se que há algum componente sensível nos pensamentos, o que contradiz (A). Frege quer manter ambas as afirmações conjuntamente, o que não é possível; ele deve abandonar uma delas. Mas qual? É claro que nós, como amigos da noção de conceptividade, acreditamos ser mais natural e plausível que Frege aceite (B) e a conseqüência de que as representações são relevantes para a epistemologia do pensamento. A aceitação de (A) traz conseqüências muito implausíveis: a faculdade de pensar torna-se, sob esta hipótese, destituída de 218 impacto sobre nossos estados mentais qualitativos. Em última análise, sob a hipótese (A), Frege seria obrigado a repudiar sua própria afirmação de que representações, assim como a circulação do sangue em nosso cérebro, são “condições subjetivas” para que cheguemos ao pensamento, pois elas seriam totalmente dispensáveis para a cognição de um pensamento. Frege guarda para os pensamentos a faculdade especial de apreensão de pensamento, à qual, como vimos, alude constantemente ao longo de sua obra, sobretudo a partir de “Sobre o Sentido e a Referência”. A razão de Frege estipular esta faculdade já está clara, porém, nos Fundamentos: a objetividade do conteúdo cognitivo de um pensamento, que determina que nosso contato com ele deve ocorrer de modo distinto de nossas faculdades subjetivas. É claro que discordamos que esta faculdade de apreensão, seja lá o que ela for, possa ser totalmente independente das faculdades sensíveis desprezadas por Frege (“intuir, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA representar, traçado de imagens internas a partir de lembranças de sensações anteriores”, Ibid., p. 226). Ao contrário: com Aristóteles, acreditamos que nossas faculdades racionais estão profundamente arraigadas em nossas faculdades sensíveis. Acreditamos, além disto, que as dificuldades epistemológicas de Frege decorrem precisamente de negar isto a todo o custo. 5.5 Epistemologia do Juízo Nosso objetivo, neste capítulo, é delinear as principais características da noção de juízo fregiana. Já aqui ficará claro que a noção de juízo fregiana tem características que a aproximam de nossa noção de conceptividade; incidentalmente assinalaremos estas aproximações, que serão tratadas de modo mais detido no próximo capítulo. Em “Sobre o Sentido e a Referência” a introdução da noção de juízo é precedida pela constatação de Frege de que o sentido de uma sentença, seu pensamento, é insuficiente, do ponto de vista epistemológico, para a obtenção de conhecimento; este deve ser complementado pelo valor de verdade do pensamento. É então que, num fragmento bem conhecido, Frege afirma: 219 (...) o pensamento, isoladamente, não nos dá nenhum conhecimento, mas somente o pensamento junto com sua referência, isto é, seu valor de verdade. Os juízos podem ser encarados como uma trajetória de um pensamento para seu valor de verdade. (1892b, p. 70) Neste artigo, Frege tem pouco mais a dizer sobre a noção de juízo, e enfatiza seu caráter “peculiar e incomparável” (Ibid., p. 70); em “Negação”, Frege qualifica ainda o juízo como “primitivo e indefinível” (p. 126). Apesar de Frege considerar impossível uma definição propriamente dita de juízo, há uma série de características que Frege atribui aos juízos, ao longo de toda a sua obra. Vejamos as principais delas. Uma primeira característica é bastante óbvia: para Frege, o juízo é epistemologica-mente mais rico que o pensamento tomado isoladamente; ou, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA julgar é mais que apreender um pensamento: Um juízo para mim não é a mera apreensão de um pensamento, mas o reconhecimento de sua verdade. (1892b, p. 69, nota 3) Em seus Escritos Póstumos, encontramos mesmo a visão de que “conhecer é reconhecer a verdade de um pensamento” (p. 267); ou seja: conhecer é formar juízos. Isto não quer dizer que apreender um pensamento seja epistemologicamente insignificante; pelo contrário: no universo da investigação científica, temos que primeiro apreender o pensamento daquilo que desejamos demonstrar para, então, formarmos o juízo de sua verdade. Uma segunda característica dos juízos, para Frege, é que eles são o mesmo que o ato de julgar. Frege deixa claro que, em contraste com um pensamento (que não se confunde com o ato subjetivo de apreender um pensamento), um juízo é o próprio ato de reconhecimento subjetivo da verdade de um pensamento: Estamos provavelmente mais de acordo com o uso ordinário se tomarmos um juízo como sendo o ato de julgar, como um salto é o ato de saltar. (1919a, p. 126 nota *)15 Este elemento subjetivo faz do juízo um ato psicológico interno e individual: O ato de julgar é um processo psíquico, e como tal precisa de um sujeito judicante como seu possuidor; a negação, por outro lado, é parte de um pensamento, e como tal, como o próprio pensamento, não necessita de qualquer possuidor, não deve ser reconhecida como um conteúdo de uma consciência. (ibid., p. 128) 15 Ver ainda 1919, p. 7 e 1977a, pp. 1 e 267, dentre outros lugares. 220 Aqui, Frege é bastante explícito com relação ao que quer dizer quando se refere a um juízo: um processo psíquico, um conteúdo da consciência. (Estaríamos indo muito longe se falássemos em estados mentais qualitativos?) Uma terceira característica de juízos, já evidenciada pelo fragmento acima, é que, ao contrário do que ocorre com pensamentos, não há juízos negativos, isto é, o reconhecimento do Falso. Julgar é sempre reconhecer um pensamento como verdadeiro. Uma pergunta pode aparecer neste ponto: não ocorre por vezes que, no ato de julgar, reconhecemos um pensamento como falso? Ou seja, assim como julgamos, também não negamos? Por exemplo, ao me deparar com 2+5= 9, não produzo o juízo de que este pensamento é falso? A resposta de Frege é que, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA neste caso, produzimos um juízo de que a negação deste pensamento, ou seja, ─┬─ 2+5=9, é verdadeira. Desta forma, ele se livra de ter que lidar com juízos negativos; afinal, o que seria um estado da consciência que nega um pensamento? Por fim, temos uma quarta característica, decorrente da terceira: há uma utilização, dentro do conceito de juízo, da noção de verdade, que difere da visão de Frege da Verdade e da Falsidade como objetos lógicos. Ao afirmar que um juízo é o reconhecimento de um pensamento como verdadeiro (e jamais como falso), esta ocorrência de “verdadeiro” não parece ser a mesma da ocorrência de “Verdadeiro” como objeto lógico, como denotação de pensamentos, mas sim de um traço epistemológico positivo característico do juízo – não há juízos falsos ou negativos. Nesta assimetria, talvez haja uma sugestão que aponte para uma semelhança do juízo com nossa noção de conceptividade, na medida em que exclui a possibilidade de formarmos juízos necessariamente falsos. Embora possamos pensar que 2+3=6, não podemos formar um “juízo negativo” correspondente a este pensamento. 5.6 A Linguagem Natural na Metodologia de Frege Um dado que intriga qualquer leitor da obra de Frege é sua atitude aparentemente ambígua perante a linguagem natural (o que inclui a linguagem ordinária). Há 221 momentos em que Frege apela explicitamente a este expediente, a fim de justificar alguma afirmação sobre a lógica ou sobre o significado; em outros momentos, repudia a linguagem natural como amparo metodológico, em decorrência de suas imprecisões e incorreções. Dado que, ao longo da obra de Frege, podemos encontrar várias colocações num sentido e noutro, merece ser examinada sua atitude perante a linguagem natural. Examinaremos tanto as passagens de sua obra que desqualificam a linguagem natural (5.6.1) quanto passagens que a empregam como um recurso metodológico apropriado e legítimo (5.6.2). Por fim, com base nestes exames prévios, dedicamo-nos a encontrar o lugar da linguagem natural dentro da metodologia de Frege (5.6.3). 5.6.1 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA As Críticas de Frege à Linguagem Natural Um dos motivos que leva Frege a formular sua linguagem lógica é a visão de que a linguagem natural não é apropriada para levar a cabo as formas demonstrativas próprias da aritmética. Neste contexto, Frege deixa claro seu descontentamento com as limitações da linguagem natural em vários trechos do Begriffsschrift. Este descontentamento pode ser visto com clareza já no prefácio desta obra, onde Frege considera a possibilidade de que sua lógica seja útil para o filósofo por livrá-lo do julgo das palavras: Se é uma das tarefas da filosofia romper com o domínio das palavras sobre o espírito humano, pondo às claras as concepções erradas que, através do uso da linguagem, muitas vezes quase inevitavelmente emergem no que concerne às relações entre conceitos, e libertando o pensamento daquilo que somente os meios de expressão da linguagem ordinária, constituídos como são, sobrecarregam-no, então minha ideografia, desenvolvida para estes propósitos, pode tornar-se um instrumento útil para o filósofo. (1879, p. 7) Em particular, Frege afirma que a estrutura sujeito/predicado é muito restrita para expressar uma série de inferências que se mostram evidentemente válidas, mas que não se enquadram na lógica tradicional de enunciados categóricos. Desde o começo de sua obra revolucionária, ele tem consciência de suas inovações na estruturação formal das proposições: [Os] desvios do que é tradicional encontram sua justificação no fato de que a lógica tem, até agora, sempre seguido a linguagem e a gramática ordinárias muito de 222 perto. Em particular, creio que a substituição dos conceitos sujeito e predicado por argumento e função, respectivamente, resistirá ao teste do tempo. É fácil ver como considerar um conteúdo como uma função de um argumento conduz à formação de conceitos. (Ibid.) A desconfiança com relação à linguagem natural aparece novamente em Os Fundamentos da Aritmética. Frege procura corroboração, dentro da linguagem natural, para a idéia de que números são atributos de conceitos, e não de objetos. Ele coleta alguns casos em que sua tese é confirmada, mas admite que, no geral, a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA linguagem natural não se apresenta conforme a tese que defende: Outra corroboração da idéia de que o número é atribuído a conceitos pode ser encontrada no uso da língua alemã, no fato de se dizer: zehn Mann, vier Mark, drei Fass. (Nota do tradutor: Literalmente: dez homem, quatro marco, três barril; tratase de casos excepcionais em que o substantivo se mantém no singular.) O singular pode aqui indicar que é visado o conceito e não a coisa. A vantagem deste modo de expressão evidencia-se particularmente no caso do número 0. Por outro lado, a linguagem atribui decerto número a objetos, não a conceitos: diz-se “o número das balas”, como “o peso das balas”. Assim, fala-se aparentemente de objetos, quando na verdade quer-se enunciar algo de um conceito. Este uso lingüístico é enganador. (1884, p. 243) O que Frege deseja colocar é que, a despeito do que ocorre em muitos casos dentro da linguagem natural, números são atributos de conceitos, e não de objetos. Flexionando para o plural a palavra que exprime o conceito do qual um número é atributo, como ocorre em “seis balas”, a linguagem natural instaura uma “ilusão” de que estamos falando de objetos, ilusão para a qual temos que estar alertas. Em “Sobre o Sentido e a Referência”, Frege detecta mais um comportamento indesejado da linguagem natural. Ocorre que, muitas vezes, mais de um sentido é associado a um mesmo termo, o que seria uma violação do comportamento semântico padrão ou desejável: Certamente deveria corresponder, a cada expressão, que pertença a uma totalidade perfeita de sinais, um sentido determinado; mas, freqüentemente, as linguagens naturais não satisfazem a esta exigência e deve-se ficar satisfeito se a mesma palavra tiver sempre o mesmo sentido num mesmo contexto. (1892b, p. 63) Um modelo de linguagem para a aritmética deve estar livre deste tipo de variação quanto ao sentido, segundo Frege. Já em “Negação”, Frege discute as dificuldades de aferir se um pensamento é negativo ou afirmativo, e daí questiona a significância desta distinção. Ele coloca mais uma vez que a linguagem (natural) não deve ser o critério para 223 determinar a natureza do juízo (ou pensamento), na medida em que um juízo pode ser afirmativo, mesmo contendo uma negação presente dentro si. No contexto desta discussão, Frege deixa entrever que a linguagem não é o primitivo metodológico do qual ele parte em suas investigações lógicas: Sou a favor do abandono da distinção entre juízos ou pensamentos negativos e afirmativos até que tenhamos um critério que nos capacite a distinguir com certeza em qualquer caso dado, entre um juízo negativo e um juízo afirmativo. (...) No presente, eu ainda duvido que isto será alcançado. O critério não pode ser derivado da linguagem; pois linguagens são indignas de confiança, em questões lógicas. De fato, não é a última das tarefas do lógico indicar os percalços postos pela linguagem no caminho do pensador. (1919a, pp. 125-126) Esta é uma amostragem limitada das críticas recorrentes que Frege faz à linguagem natural. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA 5.6.2 Emprego Metodológico da Linguagem Natural por Frege As colocações acima deveriam ser suficientes para estabelecermos que, para Frege, a linguagem natural não é amparo para decidir acerca de questões lógicas. Mas devemos levar em conta o fato de que Frege lança mão, inúmeras vezes, da linguagem natural como evidência da correção ou incorreção de uma tese. Alguns exemplos extraídos de sua obra deixam inequívoco este recurso. Em Os Fundamentos da Aritmética, em busca da resposta para a pergunta sobre se os números são propriedades de objetos ou de conceitos, Frege recorre ao emprego dos números no contexto da linguagem ordinária, a fim de encontrar respaldo para a tese de que números são propriedades de conceitos: A fim de iluminar a questão, será conveniente examinar o número no contexto de um juízo no qual se evidencia sua espécie original de aplicação. Se, observando o mesmo fenômeno exterior, posso dizer de modo igualmente verdadeiro: “isto é um grupo de árvores” e “isto são cinco árvores”, ou “aqui há quatro companhias” e “aqui há 500 homens”, o que varia não é o objeto singular nem o todo, o agregado, mas sim minha maneira de denominar. No entanto, isto é apenas índice da substituição de um conceito por outro. Impõe-se assim, como resposta à primeira questão do parágrafo anterior, que a indicação numérica contém um enunciado sobre um conceito. (1884, p. 240) A possibilidade de nos referirmos usualmente à mesma coisa através de conceitos diferentes, que determinam, por sua vez, cardinalidades diferentes, é tida por 224 Frege como uma evidência de que números são propriedades de conceitos. Vale ressaltar que Frege se refere aos exemplos como casos da “espécie original de aplicação” dos números, como se o emprego primitivo no contexto da linguagem ordinária tivesse a capacidade de iluminar o problema. O apelo ao uso lingüístico, agora mais sutil, também está presente em “Sobre o Sentido e a Referência”, no momento em que Frege rebate possíveis PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA críticas céticas ou idealistas à sua noção de referência: Idealistas ou céticos terão, talvez, objetado há longo tempo: “você fala, sem maiores delongas, da lua como um objeto; mas como sabe que o nome “a lua” tem de fato alguma referência? Como sabe que alguma coisa, o que quer que seja, tem uma referência?” Respondo que não é nossa intenção falar da nossa representação da lua, nem nos contentamos apenas com o sentido quando dizemos “a lua”; pelo contrário, pressupomos uma referência. Seria positivamente entender mal o sentido da sentença “a lua é menor do que a Terra” admitir-se que é a representação de lua o que está em questão. Se isso é o que queria o locutor, ele deveria usar a locução “minha representação de lua”. Naturalmente, podemos estar enganados quanto à pressuposição de uma referência, e tais enganos têm, de fato, ocorrido. Mas a pergunta de se sempre nos enganamos quanto a isto pode ficar aqui sem resposta; basta, por ora, indicar nossa intenção ao falar ou ao pensar, para justificar que falemos da referência de um sinal, mesmo que tenhamos de acrescentar a ressalva: caso tal referência exista. (1892b, p. 67) Ou seja, dentro da linguagem natural, quando empregamos um nome próprio, está pressuposto que existe um objeto respondendo por este nome. Segundo Frege, isto é suficiente para estipularmos, dentro da semântica, que regularmente (mas não sempre) a um termo corresponde uma referência. É desta maneira que Frege não resolve, mas neutraliza possíveis críticas céticas ou idealistas: que haja de fato referências respondendo pelos termos da linguagem, ou não, é uma questão que não precisa de uma resposta absoluta dentro da semântica; basta a constatação de que o emprego da linguagem pressupõe esta existência e que a linguagem não faz sentido sem esta pressuposição, e tomar isto como ponto de partida para a análise semântica. Esta postura de Frege é que possibilita a Dummett colocar que “ele [Frege] começa tomando a teoria do significado como a única parte da filosofia cujos resultados não dependem dos resultados de qualquer outra parte, mas que subjaz a todo resto” (1973, p. 669).16 Em “Sobre o Conceito e o Objeto”, Frege mais uma vez apela à linguagem natural em busca de legitimidade para uma tese semântica. Ele defende que uma 16 Mas, ver severas e pertinentes críticas de Dwyer (1989) a Dummett. Voltaremos a esta questão na conclusão final desta tese. 225 construção precedida por um artigo definido deve ter como referência um objeto; ele deixa claro que suas alegações neste sentido não devem ser vistas como uma definição, mas sim como indícios oriundos da linguagem, que evidenciam algumas características básicas das noções lógicas de conceito e objeto. Desta maneira, Frege afirma o seguinte sobre sua hipótese: Kerry defende que nenhuma regra lógica pode ser baseada em distinções lingüísticas; mas minha própria maneira de fazê-lo é algo que ninguém que estabelece estas regras pode evitar; pois não podemos nos entender uns com os outros apartes da linguagem, e então, no final das contas, devemos sempre nos apoiar no entendimento das palavras, inflexões, construção sentencial de outras pessoas, essencialmente do mesmo modo que no nosso. Como eu disse antes, eu não estava tentando dar uma definição, mas somente dicas; e para isto, eu apelei ao sentimento geral pela língua alemã. Aqui, é muito de meu proveito que haja tão bom acordo entre distinções lingüísticas e aquelas reais. (1892, p. 45) Neste trecho, pode-se ver que, para Frege, o entendimento lingüístico partilhado, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA tendo como base o “sentimento geral” pela língua, é um recurso metodológico proveitoso e uma evidência a ser levada em conta na análise lógica. 5.6.3 O Valor Metodológico da Linguagem Natural para Frege Dadas as duas atitudes de Frege perante a linguagem natural, a pergunta óbvia a ser feita é: como dar coerência às afirmações de Frege sobre a linguagem? Como conciliar o caráter ilusório e enganador da linguagem natural, freqüentemente lembrado por Frege ao longo de seus escritos, com o fato de Frege recorrer inúmeras vezes a estruturas gramaticais da linguagem natural como evidência para uma tese? Enfim, qual é o valor metodológico da linguagem natural para Frege? A análise dos trechos acima mostra que, para Frege, a linguagem natural jamais aparece como critério metodológico último, capaz de determinar uma dada questão lógica. Se em determinados momentos Frege detecta erros na linguagem natural e em outros ele indica que a linguagem natural corrobora suas teses, então é necessário haver um critério epistemológico exterior à linguagem natural que determine quando seu emprego é correto e quando seu emprego é incorreto. Caso contrário, simplesmente não haveria como estabelecer que um uso da linguagem não é condizente com o modo como o pensamento é estruturado, como Frege faz inúmeras vezes. 226 A existência deste critério exterior fica cristalina no fim da última citação acima, quando Frege afirma que por detrás de seu apelo ao sentimento geral pela língua alemã está o fato de suas distinções lingüísticas estarem de acordo com as “distinções reais”. O importante para Frege são, portanto, as distinções reais, que são independentes de distinções lingüísticas. Nos momentos em que percebe que as distinções reais repercutem corretamente nas distinções lingüísticas, Frege se vê legitimado a usar a linguagem natural como evidência, como ocorre no caso da prefixação de artigos definidos, indicando que a expressão denota um objeto.17 Presumivelmente, o que Frege chama de “distinções reais” está presente no nível do pensamento, é objetivo, e responde pelo sentido de termos e sentenças. Assim, a utilização da linguagem natural por Frege tem como objetivo revelar algum aspecto que lhe é independente, mas que ela pode tornar mais claro ou evidente. Como a linguagem natural é partilhada por uma certa comunidade, o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA apelo ao seu emprego pragmático é uma maneira muito efetiva de Frege explicar e fazer valer suas teses. Ou seja, a linguagem natural tem, para Frege, valor heurístico, como meio de esclarecer o modo pelo qual noções do tipo conceito, objeto, função ou sentido funcionam; mas a maneira correta como estas noções são organizadas em uma semântica “científica” não pode ter a linguagem natural como critério último de correção. De fato, o apelo à linguagem natural é, no fundo, um apelo à imaginação partilhada. Se isto é verdade, então o emprego metodológico da linguagem natural, por Frege, pode ser visto como um apelo a experimentos de pensamento. Dedicamos o restante desta seção para mostrar isto. Como coloca Sorensen (1992, p. 42), “por séculos filósofos tem apelado a: o que diríamos?”. A filosofia analítica, por sua vez, só fez aumentar a utilização deste tipo de recurso, para uma grande variedade de atividades. Como o próprio Sorensen coloca: ... filósofos analíticos fazem uso profuso de experimentos de pensamento porque ele é o teste natural para as práticas classificatórias que constituem a análise conceitual: definição, delegação de questão, extrair distinções, elaborar condições 17 Mesmo neste caso, Frege se vê obrigado a nos lembrar de alguns contra-exemplos, como os casos em que o artigo definido é utilizado para indicar um indivíduo paradigmático e, desta maneira, todos os membros da classe daquele indivíduo, como por exemplo: o elefante é um mamífero. Neste caso, deseja-se dizer que todos os elefantes são mamíferos. “Elefante”, neste contexto, mesmo com a presença de um artigo definido, é um conceito. Sem falar no próprio problema trazido por Kerry: a expressão “o conceito ...”. 227 de adequação, questionar nossas implicações, propor provas de possibilidade, enxergar padrões de inferência. (ibid., p. 15) Não há filosofia analítica sem experimento de pensamento.18 Frege, o principal semeador da filosofia analítica, faz do uso corrente da linguagem natural um poderoso instrumento de teste e avaliação de suas análises conceituais, consciente que está de que “não podemos nos entender uns com os outros apartes da linguagem, e então, afinal de contas, devemos sempre nos apoiar no entendimento das palavras, inflexões, construção sentencial de outras pessoas, essencialmente do mesmo modo que no nosso”. Nada melhor, então, do que recorrer à linguagem ordinária, a fim de deixar minimamente claro uma certa distinção ou uma tese semântica ou mostrar sua eficácia. Este é, por conseguinte, o modo de explicar o apelo à linguagem natural por Frege: são tipos de experimentos de pensamento. Em seus experimentos de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA pensamento envolvendo a linguagem ordinária, Frege utiliza-se fundamentalmente do apelo às duas seguintes questões: (a) “o que diríamos nesta hipótese?” ea (b) “ao afirmarmos ‘....’, o que queremos dizer?”.19 Na variedade (a), assumimos uma hipótese descrita epistemicamente ou fenomenologicamente e nos perguntamos qual é a expressão lingüística que melhor se ajusta à hipótese, ou se uma certa expressão lingüística em particular se 18 Assim como Yablo detecta uma esquizofrenia filosófica com relação à noção de conceptividade, Sorensen detecta atitude parecida com relação a experimentos de pensamento: “O cético analítico acerca de experimentos de pensamento tende a violar sua própria proibição, uma vez que ele pare de falar sobre filosofia e comece a fazer filosofia. Na medida em que ele luta por clareza de discurso, ele aproxima-se da órbita de outros mundos possíveis. Para onde mais ele deve se voltar, para testar definições, teses de implicação e alegações de plausibilidade? Contudo, esta hipocrisia é de conforto somente marginal para o filósofo analítico tradicional. Tu quoque é uma falácia, afinal de contas. Os céticos estão livres para reiterar a linha dura. Mas o fato é que ser tão difícil praticar o que você prega é evidência contra o que você prega” (1992, p. 19). 19 Estas duas hipóteses que oferecemos não pretendem ser exaustivas quanto à formulação de experimentos de pensamento, mas sim exaustivas quanto à formulação de experimentos de pensamento que empregam a linguagem ordinária como ponto de partida ou de chegada. É claro que há experimentos de pensamento que se dão somente no nível cognitivo, como é o caso da própria conceptividade. A distinção entre (a) e (b) não se encontra na obra de Sorensen, e é de nossa inteira responsabilidade. 228 ajusta à hipótese descrita. Trafegamos, neste caso, da hipótese epistêmica para a formulação lingüística. Este é, tipicamente, um método empregado pela chamada filosofia da linguagem ordinária. Vejamos um exemplo de Ryle (inserimos comentários explicativos entre colchetes): Suponhamos um homem que, fugindo aterrorizado de um touro furioso, cruze a linha de partida de uma pista de corrida no instante em que soa o tiro de pistola e, em seu terror, alcance a fita de chegada à frente dos corredores [esta é a hipótese epistemicamente descrita]. Diríamos que ele venceu a corrida? [esta é a expressão cuja adequação está sendo examinada] Ou que, como não sabia que uma corrida estava sendo realizada, ou, seja como for, não tinha a intenção de concorrer em velocidade com quem quer que fosse a não ser o touro, e portanto não estava na corrida e não a venceu? (...) Tendemos a exigir alguma intenção ou propósito de um corredor ou jogador antes de usar os verbos de término “vencer” e “dar um xeque-mate” [este é o resultado do teste]. (1954, pp. 167-168) A partir da situação epistemicamente descrita (um indivíduo correndo de um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA boi...), Ryle se pergunta acerca do emprego do termo “vencer” na situação descrita; sua resposta é negativa pois o emprego adequado de “vencer” requer uma intenção por parte do vencedor. Vale a pena transcrevermos um outro exemplo de (a), desta vez apresentado por Sorensen, extraído diretamente da obra de Austin: Você tem um jumento, assim como eu, e eles pastam no mesmo campo. Chega o dia em que nutro desgosto pelo meu. Vou-me para atirar nele, engatilho, atiro: o bruto cai sobre sua trilha. Eu inspeciono a vítima, e descubro para meu horror que ele é seu jumento. Eu apareço em sua porta com os restos e digo – o que? Eu digo “parceiro, sinto muito, etc. Eu atirei em seu jumento... por acidente? Ou por engano”? Novamente, como antes, vou atirar em meu jumento, engatilho, atiro – mas quando o faço, a besta move-se, e para meu horror a sua cai. De novo a cena na porta – o que eu digo? “por engano”? ou “por acidente”? (“Plea of Excuses”, In Philosophical Papers, p. 133, apud. Sorensen 1992, p. 44) Aqui, temos duas descrições epistêmicas de situações (nas quais um indivíduo quer atirar em seu jumento, mas acerta o jumento do vizinho...), mediante as quais Austin se pergunta qual é a expressão mais adequada a cada uma delas: “por engano” ou “por acidente”. Já na variedade (b) de experimento de pensamento lingüístico, parte-se de uma expressão lingüística e investiga-se, a partir de seu uso reiterado pela comunidade lingüística, em que contexto epistemológico ou fenomenológico ela se enquadra com naturalidade. Trafega-se, portanto, da expressão lingüística para a situação epistêmica. Este pode muito bem ser o ponto de partida para o exame de 229 um conceito. Este método também é caro a filósofos da linguagem ordinária. Tomemos mais um exemplo de Austin: Quando fazemos uma afirmação do tipo “Há um pintassilgo no jardim” ou “ele está zangado”, há um sentido no qual queremos dizer que temos certeza disso ou sabemo-lo (...), embora o que queremos dizer num sentido similar e mais estrito é apenas que acreditamos. (“Outras Mentes”, p. 88) O que Austin quer dizer é que as sentenças que ele apresenta engendram não somente crença, como também a certeza de sua verdade. Já temos exemplos suficientes ilustrativos tanto de (a) quanto de (b) – outros tantos podem ser encontrados com facilidade dentro da filosofia analítica. São nosso pão de cada dia. Antes de voltarmos a Frege, entretanto, vale lembrar que certos filósofos da linguagem ordinária, e Austin em particular, ao aplicar o método do experimento de pensamento que descrevemos, não tinham a intensão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA de “mostrar à mosca o caminho para fora da garrafa”. A filosofia não é, para Austin, um desfazer de equívocos, somente; avanços autênticos em nossa compreensão do mundo e da realidade podem ser feitos: Quando examinamos o que se deve dizer e quando se deve fazê-lo, que palavras devemos usar em determinadas situações, não estamos examinando simplesmente palavras (ou seus “significados”, ou seja lá o que for isto), mas sobretudo a realidade sobre a qual falamos ao usar estas palavras – usamos uma consciência mais aguçada das palavras para aguçar nossa percepção (...) dos fenômenos. (Philos. Papers., p. 182, apud. Marcondes 1990) O próprio Austin aquiesce à denominação de seu método como “fenomenologia lingüística”, mas depois recusa este título por considerá-lo pomposo demais.20 O importante é que, para Austin, o fundamental são as “distinções reais”, e não as “distinções lingüísticas”, como afirmaria Frege. A colocação de Austin reforça a visão de que boa parte dos métodos da filosofia da linguagem ordinária é adequadamente interpretada como experimentos de pensamento, como defendemos junto com Sorensen. As evidências mostram também que a visão segundo a qual a linguagem ordinária trata tão-somente de análise de significado (ou mesmo a própria filosofia analítica, como é o caso de Dummett 1973, p. 667) é incorreta, a não ser que se amplie bastante o que se entende por análise de significado, de modo a abarcar todo o universo epistemológico da imaginação e 20 Stumpf (1989, p. 470) 230 dos experimentos de pensamento que estão presentes dentro da metodologia da filosofia da linguagem ordinária. Voltando a Frege, ele usa experimentos de pensamento tanto do tipo (a) quanto do tipo (b) e, como Austin, vê neste método uma maneira de se ganhar clareza sobre nosso conhecimento sobre o mundo extralingüístico; não obstante, reiteramos, a linguagem natural em si jamais é considerada por Frege fonte de conhecimento. Resta-nos, então, somente rastrear as ocorrências de (a) e (b) na obra de Frege. Como exemplo de (a) (“o que diríamos nesta hipótese?”), voltamos a um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA exemplo que já empregamos para outros fins: A fim de iluminar a questão, será conveniente examinar o número no contexto de um juízo no qual se evidencia sua espécie original de aplicação. Se observando o mesmo fenômeno exterior posso dizer de modo igualmente verdadeiro: “isto é um grupo de árvores” e “isto são cinco árvores”, ou “aqui há quatro companhias” e “aqui há 500 homens”, o que varia não é o objeto singular nem o todo, o agregado, mas sim minha maneira de denominar. (Os Fundamentos da Aritmética, p. 240) Neste caso, temos uma situação epistêmica única, um mesmo “fenômeno exterior”, que pode ser adequadamente descrito de (pelo menos) duas maneiras, nas quais estão presentes palavras-conceito diferentes (“companhias” e “homens”) e respectivos numerais diferentes (“quatro” e “500”). Para Frege, este experimento de pensamento é evidência de que números são conceitos de conceito, e não de objetos: Impõe-se assim, como resposta à primeira questão do parágrafo anterior, que a indicação numérica contém um enunciado sobre um conceito. (Ibid.) Como exemplo de (b) (“ao afirmarmos ‘.....’, o que queremos dizer?”), oferecemos as colocações de Frege em “Sobre o Sentido e a Referência”, que sugerem a existência de uma pressuposição de que nomes próprios designam algo:21 Respondo que não é nossa intenção falar da nossa representação da lua, nem nos contentamos apenas com o sentido quando dizemos “a lua”; pelo contrário, pressupomos uma referência. Seria positivamente entender mal o sentido da sentença “a lua é menor do que a terra” admitir-se que é a representação de lua o que está em questão. (p. 67) 21 Já citamos esta passagem anteriormente; a repetimos a fim evitar retrocesso no texto. 231 Ou seja, quando falamos “a lua é menor do que a terra”, estamos pressupondo a existência de uma referência; a mera representação da lua não nos satisfaz quando proferimos esta sentença. Frege utiliza-se novamente do modelo (b), quando volta a discutir a noção de pressuposição, no mesmo artigo: Quando se assere que “Kepler morreu na miséria”, pressupõe-se que o nome “Kepler” designa algo (...). (p. 75) 22 Além destes casos, muitas das discussões de Frege sobre discurso direto e indireto partem de como devemos entender uma asserção proposta, para daí tirar conclusões substanciais. Podemos concluir, a partir da discussão acima, que para Frege a linguagem natural pura e simples, ou o mero emprego da linguagem natural, não é fonte de conhecimento autônomo de noções lógicas ou semânticas. O mesmo pode ser PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA dito, em muitos casos, dos filósofos da linguagem ordinária. A linguagem é um meio de evidenciar dados ou distinções epistemológicas ou fenomenológicas substanciais subjacentes à linguagem, partilhados por todos que dominam e empregam a linguagem. Isto é textual em Austin, sobretudo. Pode-se ver também que há uma ligação estreita entre experimentos de pensamento e conceptividade. Invariavelmente, o que chamamos de experimento de pensamento utiliza-se de conteúdos fenomenológicos, o que quer dizer que, conforme a tese que defendemos, experimentos de pensamento empregam concepções mentais: isto é, experimentos de pensamento podem também ser chamados de experimentos ou testes de conceptividade. Isto não quer dizer que todo experimento de pensamento seja um experimento para determinar o status modal de um enunciado, mas sim que todo experimento de pensamento envolve o ato de conceber ou imaginar. Como acabamos de ver, isto ocorre mesmo dentro dos métodos próprios à filosofia da linguagem ordinária, tida muitas vezes como a parte da filosofia analítica mais puramente lingüística. Tendo este fato em vista, a visão histórica segundo a qual Frege foi um agente de uma suposta “virada 22 Strawson (1952), influenciado por Frege, utiliza-se desta noção a fim de atacar a teoria das descrições de Russell (1905, 1919). Sobre esta discussão específica e outros desenvolvimentos da noção de pressuposição dentro da filosofia da linguagem contemporânea, ver também Neale (1990, p. 53-55). Em particular, Neale apresenta uma boa definição de pressuposição presente na literatura: p pressupõe q sse q é uma precondição para a verdade e para a falsidade de p. Segundo esta definição, sem a pressuposição de q, p não terá valor de verdade. Isto parece bem de acordo com o que Frege coloca em “Sobre o Sentido e a Referência”. Aliás, solução semelhante é oferecida por Austin, para quem, não sendo preenchida a pressuposição, o ato de fala é malsucedido. 232 lingüística” deve ser revista com cuidado. Ao que tudo indica, ele tem os pés fincados na tradição epistemológica, como o tem a própria filosofia analítica. 5.7 Considerações Finais Para finalizar nossa análise crítica da visão epistemológica de Frege, podemos reunir os pontos dificultosos, por um lado, e os pontos positivos, por outro, que encontramos na epistemologia de Frege. Isto nos fará ver com mais clareza as modificações que devem ser feitas na epistemologia de Frege, de modo a torná-la mais condizente com a noção de conceptividade. Antes, contudo, temos que observar que as críticas que tecemos são aquelas que consideramos mais importantes para o desenvolvimento de nossa tese. Há vários problemas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA tradicionais envolvendo as noções semânticas de Frege que não foram objeto de tratamento aqui, como, por exemplo, o critério de identidade entre sentidos e pensamentos. A primeira dificuldade para Frege consiste no fato de ele defender que, nos seres humanos, pensamentos estão sempre conectados com sentenças. Esta é uma posição difícil de ser aceita, levando em conta evidências comportamentais ou introspectivas. Na verdade, não é necessário muito mais que bom senso para que se perceba quão implausível é esta hipótese. Outro problema que encontramos no tratamento epistemológico que Frege concede aos pensamentos é o fato de ele crer que pensamentos são sempre isomorfos a sentenças. Esta seria nossa porta de entrada para o contato epistêmico com pensamentos, segundo Frege. A discussão empreendida por Bell (1996) sobre a relação entre estruturas sentenciais e estruturas do pensamento deixa claro os problemas existentes nesta visão. Não é difícil encontrar sentenças diferentes, com sintaxe e semântica diferentes, que expressam o mesmo pensamento. Isto é um forte indicador da deficiência da visão de Frege. Em terceiro lugar, temos também a implausível visão de Frege de que a lógica é uma ciência inteiramente prescritiva, i.e., prescritiva sobre pensamentos e sobre juízos. O problema com esta visão é: como é possível a lógica ser prescritiva sobre juízos? Como posso formar um juízo (por definição, reconhecer como verdadeiro) de que 3+1=9? E, se a lógica é inteiramente prescritiva sobre 233 nossos juízos e pensamentos, como afirma Frege, então como podemos nos certificar que nosso juízo sobre a validade de uma lei lógica é correto? O único caminho proposto por Frege para a obtenção deste conhecimento é justamente a estrutura lingüística, mas esta é, ao que tudo indica, uma canoa furada. Como colocamos no capítulo 3, a lógica deve necessariamente ser descritiva e epistêmica em algum nível; caso contrário, não teríamos como reconhecer uma lei lógica como válida. Aristóteles não poderia, então, ter decodificado Bárbara, e Frege não poderia ter avançado em relação à lógica Aristotélica com sua análise funcional e sua teoria da quantificação. Quando reconhecemos que uma lei da lógica é válida no contexto primitivo de codificação, descrevemos, e para que este reconhecimento ocorra, deve existir um critério autônomo para determinar a validade. Nossa proposta é obviamente a noção de conceptividade. Com a estipulação de que a lógica é prescritiva sobre juízos e pensamentos, Frege se PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA coloca numa situação difícil com relação a esta questão. Um quarto problema presente na visão epistemológica de Frege é seu inteiro desprezo pela noção de representação. Para ele, representações podem ser completamente insignificantes e indiferentes para o conteúdo cognitivo de uma sentença, ou seja, para o pensamento. Esta visão traz conseqüências implausíveis, como, por exemplo, a possibilidade de apreender um pensamento ao mesmo tempo em que se forma uma representação que não se relaciona com o pensamento: posso apreender o pensamento de que o quadrado é vermelho ao mesmo tempo em que formo a representação de um triângulo amarelo, associada ao pensamento, sem que haja aí qualquer gênero de erro. O desprezo pela representação é conflitante, inclusive, com o papel que o próprio Frege atribui ao universo empírico na formação ou descoberta do conteúdo de um pensamento. Como o universo sensível pode contribuir para a formação de um conteúdo cognitivo inteiramente não-sensível? O que teria feito com que Frege defendesse ao longo de sua trajetória um conjunto de teses epistemológicas tão dificultosas? Acreditamos que a razão das teses exóticas de Frege devem-se à ênfase descabida que ele deposita na objetividade. Esta noção, que não recebe qualquer análise filosófica detalhada para além da que expusemos acima (ver 5.2), tem o status de valor teórico absoluto para Frege, acompanhando-o ao longo de todo o seu percurso filosófico. É com base nesta noção que Frege crê ser capaz de passar ao largo de doutrinas 234 filosóficas, e falar para um público de matemáticos. É a partir da objetividade que ele crê ser capaz de dispensar total e absolutamente o valor de representações sensíveis dentro de sua epistemologia. É por sua crença na objetividade que Frege acha também que pode dar conta do conhecimento dos pensamentos a partir da estrutura gramatical pública da linguagem. Enfim, a ênfase reiterada na objetividade dos pensamentos cria, para Frege, uma lacuna epistemológica difícil de ser tratada. Há, não obstante os problemas acima delineados, pontos positivos na epistemologia de Frege, que nos conduzirão a uma conciliação de Frege com a noção de conceptividade. Em primeiro lugar, ao postular a divisão entre pensamento e juízo, Frege torna possível que entendamos e lidemos com pensamentos contraditórios ou impossíveis, sem com isto nos obrigar a aceitar que sejamos capazes de conceber PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA o impossível. Embora Frege seja relutante quanto a esta capacidade, sua estruturação semântica é hábil para lidar com a questão: podemos pensar o impossível, mas não podemos formar juízos do impossível. Isto faz com que Frege algumas vezes aceite o princípio de conceptividade (veremos mais casos no próximo capítulo), embora não reconheça aí uma justificação no sentido próprio do termo. Em segundo lugar, em continuidade com o primeiro ponto, temos em Frege o conceito epistemologicamente rico de juízo. Um juízo constitui-se num ato psicológico subjetivo, identificado com o próprio conteúdo de uma consciência, que contém a chave para a conceptividade e para a modalidade, em Frege. Enquanto apreender um pensamento não passa da compreensão do sentido de uma dada sentença (embora mesmo Frege pareça às vezes querer dizer mais que isto em suas discussões), um juízo é identificado com o reconhecimento da verdade de um pensamento, ou seja, com o próprio conhecimento. De modo condizente com nossa noção de conceptividade, Frege indica algumas vezes que não podemos formar um juízo do contraditório. Embora ele deposite todo o peso de justificação nos pensamentos, acreditamos que seja interessante trazer parte deste peso para os juízos, notadamente no contexto primitivo da lógica que nos concerne. É isto que faremos no próximo capítulo. Outro ponto positivo a ser ressaltado na epistemologia de Frege é seu tratamento coerente e eficiente do recurso metodológico à linguagem natural. Em 235 momento algum, Frege dá a entender que a linguagem natural é o critério último para definir questões lógicas. Isto não tira os méritos explanatórios e elucidativos que o apelo à linguagem natural pode ter; muito pelo contrário, Frege está plenamente consciente destes méritos e emprega a linguagem natural com desenvoltura em vários experimentos de pensamento. Este emprego parece, aliás, ter influenciado de maneira determinante o desenvolvimento da filosofia da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA linguagem ordinária, em meados do século XX. 6 Para uma Noção de Conceptividade em Frege 6.1 Observações Preliminares Neste capítulo, buscamos conciliar a noção de conceptividade com as categorias epistemológicas presentes na obra de Frege. Entretanto, há uma dificuldade inicial nesta busca: como é constatável a partir de nossas discussões precedentes, não há PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA na epistemologia “oficial” de Frege a categoria de conceptividade. Como realizar, então, a conciliação a que nos propomos? Em primeiro lugar, examinamos a obra de Frege em busca de seu tratamento (implícito ou “extra-oficial”) dispensado à noção de conceptividade. Neste sentido, veremos que estão presentes em Frege diversos exemplos de apelo ao princípio CON⊃POSS (6.2). Em 6.3, mostramos não somente que Frege emprega CON⊃POSS, como também que ele assume que nossas faculdades cognitivas são completas, fechando com o princípio CON≡POSS. É a partir desta constatação da existência de uma noção de conceptividade psicologista e modal “extra-oficial” na obra de Frege que, em 6.4 e 6.5, buscamos compatibilizar e conciliar o universo teórico de Frege com a noção de conceptividade. O que faremos é, por meio de alguns ajustes, encontrar um lugar para a noção de conceptividade dentro do universo teórico utilizado por Frege. A adaptação a ser realizada terá como base o resgate das noções de representação e juízo fregianas para o emprego em epistemologia e lógica: forjamos uma nova noção de juízo na qual a trajetória do pensamento até o valor de verdade é feita via representação. Então, em 6.6, compatibilizamos esta noção revisada de juízo com a noção de conceptividade primária ou epistêmica de Chalmers e com a idéia de que 237 podemos associar intensões (funções de mundos ou situações possíveis para valores de verdades) a pensamentos. Preocupamo-nos ainda em examinar o tratamento fregiano das noções modais, de modo a mostrar como ele é inteiramente compatível com a revisão que estamos propondo, justamente por seus traços psicologistas (6.7). Nas considerações finais, fazemos um apanhado de nossa tentativa de harmonização (6.8). Deve ficar claro desde já que, neste capítulo, diminuímos o peso da noção de pensamento dentro da epistemologia fregiana e enfatizamos a noção de juízo, que tem um caráter psicológico e modal especialmente afeito à noção de conceptividade. Esperamos fazer isto com o mínimo de violência exegética que nos for possível às noções propriamente fregianas e com base textual na obra de Frege. É abundante, na obra de Frege, a ocorrência dos termos “conceber” e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA “pensar”, dotados do viés psicologista que estamos enfatizando. Em virtude deste emprego recorrente, sentimo-nos autorizados a empreender a conciliação entre a noção de conceptividade e as noções epistemológicas fregianas “oficiais” de juízo e representação. Isto abrirá o caminho para que, no próximo capítulo, tentemos, em caráter hipotético, refazer o percurso de Frege na descoberta de sua conceitografia, tendo como base sua epistemologia revisada. 6.2 “Conceber” e Conceber na Obra de Frege Ao contrário do que ocorre com termos como “pensar” (denken), “julgar” (urteilen), “asserir” (behaupten) e suas inflexões, não há uma análise aprofundada do termo “conceber” (begreifen), dentro da obra de Frege.1 Não obstante, os termos “conceber” e “concebível” (begreiflich) aparecem um número não negligenciável de vezes, em contextos epistemológicos bem definidos, dentro da obra fregiana. Nossos esforços, no que se segue, são dirigidos tanto para entender 1 As traduções da terminologia fregiana clássica são hoje em dia bem padronizadas e não levantam maiores problemas para além da mera escolha vocabular (com a possível exceção do termo Vorstellung, ora traduzido como “idéia”, ora como “representação”, a última de cunho mais kantiano). É com base nestas traduções bem estabelecidas que nossa discussão subseqüente se desenvolve. Embora o termo “begreifen” não seja objeto de discussão por Frege ou seus comentadores, não há razão para crer que este termo não tenha sido traduzido como conceive ou “conceber” (não checamos obra por obra). 238 o que Frege pretende dizer quando emprega o termo “conceber” (e suas inflexões), quanto para investigar se estes empregos aproximam-se do nosso emprego. Ficará evidente que Frege de fato tem uma noção de conceptividade psicológica e modal. Frege não é absolutamente silencioso com relação à noção de conceptividade. Há um único lugar em suas obras lógico-semânticas no qual ele indica o que devemos entender pelo termo “conceber”: As metáforas que subjazem às expressões que usamos quando falamos em apreender um pensamento, em conceber, apropriar-se, assimilar, entender, em capere, percipere, comprehendere, intelligere, põem a questão essencialmente na perspectiva correta. O que é apreendido, apropriado, já está lá e tudo que fazemos é nos apossar disto. (1977a, p. 137) Assim, pelo que podemos entender deste trecho, conceber é, para Frege, o mesmo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA que pensar ou apreender um pensamento (como coloca Frege 1919, p. 7, pensar é “a atividade de apreender um pensamento”). A questão agora é: será que a interpretação do termo “conceber” como pensar é compatível com o emprego que Frege faz de “conceber” (e suas inflexões) ao longo de sua obra? A resposta é não, como veremos em breve. Antes, porém, nos esforçamos para dar sentido à visão “oficial” de conceber como apreender um pensamento. Frege enfatiza em várias partes de suas obras que não há nada que impeça que pensemos o impossível, ou que apreendamos um pensamento impossível. Já tivemos a oportunidade de ver que, segundo Frege, podemos apreender pensamentos contraditórios, e que não há qualquer mistério nisto. A importância de podermos apreender pensamentos falsos e contraditórios está posta claramente, por exemplo, em “Negação”: (...) nem todos os pensamentos são verdadeiros. O ser de um pensamento não consiste em ser verdadeiro. Devemos reconhecer que há pensamentos neste sentido, já que usamos perguntas no trabalho científico; pois o investigador deve algumas vezes se contentar com levantar a questão, até que ele seja capaz de respondê-la. Ao levantar a questão, ele está apreendendo um pensamento. (...) Pensamentos que talvez revelem-se falsos mais tarde têm um uso justificável na ciência, e não devem ser tratados como destituídos de ser. Considerem uma prova indireta; aqui o conhecimento da verdade é obtido precisamente através de nossa apreensão de um pensamento falso. (1919a p. 119) Assim sendo, Frege reconhece que podemos apreender pensamentos falsos ou contraditórios, e dá dois exemplos disto: perguntas (do tipo sim-ou-não) 239 levantadas dentro do contexto de um trabalho científico, que posteriormente revelam-se falsas; contradições, que são usadas ao longo de provas indiretas. E, se para ele conceber é apreender um pensamento, então é evidente que somos capazes também de conceber pensamentos falsos ou contraditórios. Mas neste caso, se considerarmos que mesmo contradições são concebíveis, o que poderia ser considerado inconcebível ou impensável, dentro da visão oficial de Frege? A resposta é: algo do qual não se é capaz de formar um pensamento. Portanto, de acordo com esta postura, não há pensamentos inconcebíveis, na medida em que o que é inconcebível é justamente aquilo que falha em formar um pensamento. O pensável ou concebível é, desta maneira, algo que se presta a formar um pensamento, ou aquilo que é passível de se tornar um pensamento, mesmo que um pensamento contraditório ou impossível. O termo com o qual Frege, em suas obras iniciais, se refere a esta possibilidade de formar pensamentos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA (e portanto juízos) é “conteúdo judicável”. O problema é que, quando examinamos a obra de Frege, não são fáceis de encontrar empregos de “concebível” ou “inconcebível” que estejam de acordo com este emprego. Conseguimos selecionar um emprego de “concebível” no qual este termo parece significar ser um conteúdo judicável (o contexto da citação é a crítica de Frege contra aqueles que defendem uma aritmética formal, que se reduz a regras manipulação de símbolos comparáveis às regras de um jogo de xadrez; neste caso, não haveria pensamentos subjacentes aos símbolos): ... uma aritmética sem pensamento como seu conteúdo será também destituída da possibilidade de aplicação. Por que nenhuma aplicação de uma configuração de peças de xadrez pode ser feita? Obviamente, porque ela não expressa pensamento algum. Se ela o fizesse e todo movimento de xadrez conformando às regras correspondesse à transição de um pensamento a outro, aplicações do xadrez seriam também concebíveis. (“Frege Against the Formalists”, p. 187; grifo nosso.)2 Aqui, quando Frege nos dá a entender que aplicações do xadrez são inconcebíveis, ele pode ser interpretado como afirmando que não podemos formar pensamentos com conteúdo cognitivo que sejam aplicáveis à realidade, a partir das regras do 2 No mesmo texto, temos outro emprego de “concebível” que pode ser interpretado como ser um conteúdo judicável: “Se [a aritmética formal] é um jogo com peças, ela contém teoremas e demonstrações tanto quanto o jogo de xadrez. Claro que pode haver teoremas na teoria do xadrez – mas não no próprio xadrez. A aritmética formal conhece nada mais que regras. Contudo, a teoria formal da aritmética é concebível, e nela existirão teoremas afirmando, e.g., que podemos mover certos grupos de figuras de acordo com as regras de um jogo” (“Frege Against the Formalists”, p. 188). 240 xadrez (vale notar que, na passagem acima, “concebível” pode muito bem ser lido simplesmente como possível, em desacordo, portanto, com o emprego oficial de Frege – estamos sendo condescendentes com a leitura oficial de Frege). Neste sentido de “inconcebível”, seria também inconcebível algo do tipo: ├─ casa. Sobre este caso, afirma Frege: Nem todo conteúdo pode tornar-se um juízo quando ├─ é escrito antes de seu signo; por exemplo, a idéia “casa” não torna-se. Distinguimos, portanto, conteúdos que podem tornar-se um juízo daqueles que não podem. (Begriffsschrift, pp. 1112)3 O que está em jogo, nesta primeira interpretação do termo “concebível” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA (i.e., a interpretação oficial), é, por conseguinte, se um certo conteúdo cognitivo é judicável ou não-judicável. Casa, mesmo sendo um conceito dotado de conteúdo cognitivo, é, no sentido fregiano de “pensar” ou “conceber”, impensável ou inconcebível, ou seja, não é um conteúdo judicável (ao menos até os Fundamentos – ver nota acima). Algo inconcebível seria, então, algo que vai de encontro à sintaxe dos pensamentos, digamos. Esta noção de conceber está em plena harmonia com o fato de Frege afirmar que podemos conceber ou pensar uma contradição.4 3 O que Frege aceita como conteúdo judicável, porém, varia ao longo de sua obra. Um trecho de Os Fundamentos da Aritmética reforça a posição de Frege presente no Begriffsschrift, com relação a que tipos de conteúdos podem ser considerados conteúdos judicáveis: “Se na proposição “A Terra tem mais massa que a Lua” [separamos “a Terra” e “a lua”] ao mesmo tempo, permanece um conceito relacional, que por si só tem tão pouco sentido quanto um conceito simples: requer complementação para tornar-se um conteúdo judicável” (1884, p. 255). Contudo, Frege parece ter mudado de idéia posteriormente, passando a aceitar conceitos puros como conteúdos judicáveis. Por exemplo, em “Função e Conceito”, Frege aceita com naturalidade que “2” possa figurar como um conteúdo judicável: “Além do mais, ─┬─ 2 é o Verdadeiro, dado que ─── 2 é o falso: ├┬─ 2, i.e., 2, não é o Verdadeiro” (1891, p. 35). Na apresentação do sistema do Grundgesetze, Frege dá o mesmo exemplo (p. 39). A mudança parece ser que, enquanto anteriormente Frege exigia uma estrutura sentencial para um pensamento figurar como conteúdo judicável, a partir de “Função e Conceito” Frege passa a considerar todos os conteúdos (e não somente aqueles com estrutura sentencial) como possíveis juízos; aqueles sem estrutura sentencial são considerados todos como denotando o Falso, enquanto que sua negação denota o Verdadeiro. Neste caso, a idéia que estamos sugerindo de que Frege tem uma noção furtiva de conceptividade ganha ainda mais força, dado que, nos escritos pós “Função e Conceito”, a ocorrência de “concebível” e correlatos só poderá ter a leitura segundo nossa compreensão modal deste termo, e jamais como conteúdo judicável. 4 Em seus Escritos Póstumos, encontramos outras utilizações da expressão “impossível de pensar” condizentes com a definição fregiana de “pensar” e “conceber” como apreender o pensamento: “Conceitos não podem estar nas mesmas relações com objetos. Não seria falso, mas impossível de 241 Ocorre no entanto que, na grande maioria das ocorrências de “conceber” (e suas inflexões), dentro da obra de Frege, fica claro que ele assume que há pensamentos ou conteúdos judicáveis inconcebíveis. E este é nosso gancho para a atribuição a Frege de uma noção de conceptividade. Nestes casos, “conceber” se aproxima muito do uso subjetivo e modal que temos enfatizado ao longo desta tese. Vejamos um exemplo extraído de seus Escritos Póstumos, no qual Frege está discutindo se verdades são atributos de sentenças ou de pensamentos: Além do mais, é claro que nós não atribuímos verdade às séries de sons que constituem uma sentença, mas ao seu sentido; pois, por um lado, a verdade de uma sentença é preservada quando ela é corretamente traduzida em outra linguagem, e, por outro lado, é ao menos concebível que as mesmas séries de sons tenham um sentido verdadeiro em uma linguagem e um sentido falso em outra. (1977a, p. 129) Aqui, o mais natural é ler a expressão “concebível” como verdadeiro em uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA situação epistemicamente pensada, ou simplesmente como possível, do que como pode ser um conteúdo judicável. Frege está considerando e acatando a hipótese na qual é concebível (possível) que “as mesmas séries de sons tenham um sentido verdadeiro em uma linguagem e um sentido falso em outra”. Neste caso, não faz sentido algum ler “concebível” como sinônimo de ser um conteúdo judicável ou apreensível como um pensamento. Apresentamos um exemplo adicional da ocorrência do termo concebível dentro da obra de Frege, que se aproxima do que entendemos por este termo (há muitos outros). Neste trecho, o termo “concebível” é empregado explicitamente como sinônimo de possível: Se uma verdade é um axioma ou não (...), isto depende do sistema, e é possível que uma verdade seja um axioma em um sistema e não o seja em outro. Isto é, é concebível que haja uma verdade A e uma verdade B, cada uma das quais pode ser provada da outra em conjunção com verdades C, D, E, F, enquanto que as verdades C, D, E, F não são suficientes por si sós para provar A ou B. Se agora C, D, E, F podem servir como axiomas, então temos a escolha de considerar A, C, D, E, F como axiomas e B como um teorema, ou B, C, D, E, F como axiomas, e A como um teorema. Podemos ver daí que a possibilidade de um sistema não exclui necessariamente a possibilidade de um sistema alternativo, e que podemos ter uma escolha entre sistemas diferentes. Assim, é somente relativo a um sistema particular que podemos falar de algo como um axioma. (1977a, p. 205-206)5 pensá-los fazendo-o” (p. 120). Ou seja, conceitos não podem nutrir entre si a relação de identidade, por exemplo, na medida em que esta é uma relação entre objetos. Assim, neste caso, segundo Frege, é impossível pensar uma identidade entre conceitos por razões estritamente gramaticais. 5 Observe, incidentalmente, que esta observação de Frege vai ao encontro das conclusões a que chegamos no capítulo 3, sobre a aplicação da noção de conceptividade ao estabelecimento de axiomas ou verdades primitivas. Como Gödel, Goodman e Sorensen, Frege bem reconhece que o 242 Aos que afirmarem que, neste trecho, por “concebível” Frege quer simplesmente dizer possível, num sentido não psicológico, vale lembrar que, para Frege, conceitos modais são essencialmente psicologistas, e, aliás, por isto mesmo não merecem lugar em sua lógica e sua epistemologia oficiais (voltaremos a este ponto dentro em breve). Neste sentido, temos o suporte de Haaparanta (1988a): Mesmo que Frege critique severamente todos os esforços para reduzir leis lógicas a leis psicológicas, ele restringe noções modais a nosso conhecimento do reino da psicologia, da mesma maneira que o fazem os psicologistas. Frege não crê que pensamentos sejam necessários ou possíveis como tais, mais insiste que eles sejam necessários ou possíveis para nossas mentes privadas. O que Frege rejeita obstinadamente, no que diz respeito a verdades lógicas, ele aceita no caso de juízos modais. (p. 257) Somos então levados a crer que, nas passagens acima, Frege faz um claro apelo a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA CON⊃POSS, muito conforme a suas próprias visões sobre modalidade.6 Nossa conclusão é que, na obra de Frege, além de um emprego regular de “conceber”, compatível com suas outras noções teóricas “oficiais” e antipsicologistas, há uma utilização de “concebível” e, como vimos no capítulo precedente, mesmo de “pensável”, que é incompatível com as definições teóricas tradicionais de Frege, que não é objeto de análise pelo próprio e que não encontra lugar em sua epistemologia oficial. Esta utilização foge do tratamento teórico que Frege propõe para os termos “pensar” e “conceber” como a apreensão de um pensamento objetivo, e tem as mesmas características que a noção de conceptividade que temos defendido ao longo desta tese: implicações modais e caráter psicologista. Isto quer dizer que se constituem num apelo a CON⊃POSS. Se pretendemos resgatar a noção de conceptividade dentro da lógica e conciliá-la com as noções tipicamente fregianas, a constatação de uma utilização furtiva deste recurso epistemológico e modal é nosso passaporte para esta inclusão. estabelecimento de uma verdade como um axioma vai muito além de ela ser evidente e de sermos capazes de a reconhecermos autonomamente. 6 Este tipo de emprego está presente em muitos outros lugares. Eis algumas ocorrências que merecem exame: “Função e Conceito”, p. 23; “Frege on Definitons” pp. 187, 188; 1977a, pp. 79, 80, 82, 129, 137, 143, 148, 205, 238. Isto sem mencionar as inúmeras vezes que Frege se utiliza da noção de conceptividade de modo implícito, como no caso do Grundgesetze (p. 14), que discutimos a anteriormente, onde Frege diz que ajuizar o impossível seria considerado por ele doença exótica que não poderia compreender. Há ainda utilizações de “impensável” (Begriffsschrift p. 18, Grundgesetze p. 31), “imaginável” (1977a, p. 75), “Impossível de pensar” (1977a, p. 120), “absurdo” (1977a, p. 148). (Não incluímos utilizações retóricas deste termo, que também estão presentes na obra de Frege.) 243 6.3 CON≡POSS em Frege Acabamos de constatar a anuência implícita a CON⊃POSS por Frege, decorrente de seu reiterado uso deste princípio e de sua visão psicologista da modalidade. Mas será que podemos encontrar evidências também de que Frege assume que este princípio é completo? Ou seja, será que Frege corrobora CON≡POSS por inteiro? A resposta é sim. Apresentamos duas evidências para isto. À primeira evidência. Em “Diálogo com Pünjer sobre a Existência”, Frege defende que “é pleonástico dizer de algo que ele pode ser experienciado” (P.W., p, 53), e que “dizer que uma coisa pode ser experienciada não é caracterizá-la de maneira alguma” porque “dizendo isto não aprendemos nada de novo sobre o assunto” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA (ibid., p. 54).7 Já vimos que esta posição é, por seus próprios deméritos, incorreta: por exemplo, partículas subatômicas provavelmente existem, assim como ocorrências mentais com as quais não temos contato; no entanto, não somos capazes de experienciá-las etc.8 E, ao contrário do que supõe Frege, se por ventura alguém amanhã descobrir um modo de experiênciá-las, isto seria algo de novo que aprenderíamos sobre elas. Mas estas colocações mostram que Frege subscreve, sem restrições, a POSS⊃CON: para ele, nossas faculdades de perceber e imaginar são completas. Vale notar que, como vimos no capítulo 2, isto é razoável de ser assumido em lógica, pois só lidando com conteúdos experienciáveis somos capazes de investigar as condições de verdade das proposições. A segunda evidência trata-se de um emprego perfeito de INC⊃IMP no contexto de uma argumento de conceptividade particularmente claro e direto: Poder-se-ia imaginar a introdução, algum dia, de novos numerais, do mesmo modo que, e.g., os numerais arábicos sucederam os romanos. Ninguém irá supor seriamente que desta maneira adquiriríamos novos números, com propriedades ainda a serem investigadas. Assim, devemos distinguir entre numerais e o que eles representam [stand for]; e assim sendo, devemos reconhecer que as expressões ‘2’, 1+1’, ‘3-1’, ‘6:3’ representam [stand for] a mesma coisa, pois é inconcebível onde a diferença entre eles poderia residir. (1891, p. 23) 7 Estas colocações referem-se tanto a perceptos quanto a conceptos, na medida em que elas são feitas antes que Pünjer diferenciasse, dentro do diálogo, dois tipos de idéias, “aquelas que originam-se do ego somente, e aquelas que são formadas através de algo afetando o ego” (ibid., p. 54). 8 Ver 2.5. 244 Este trecho é notável não somente por constituir-se num apelo explícito a INC⊃IMP, como também por reunir todas as características epistemológicas que, como temos enfatizado, estão presentes em apelos clássicos à noção de conceptividade: recurso a estados mentais, relevância modal, emprego da inconceptividade como justificação de proposições (argumento de conceptividade). Neste trecho, a inconceptividade de 2 ≠ (1+1) ≠ (3-1) ≠ (6:3) é usada explicitamente como premissa ou justificativa para 2 = (1+1) = (3-1) = (6:3), dentro de uma estrutura francamente justificacional (está presente no trecho o tradicional indicador de premissa “pois” precedendo a afirmação de inconceptividade). Em suma, trata-se de um apelo argumentativo explícito ao princípio INC⊃IMP. Acreditamos que estas duas evidências sejam suficientes para mostrar que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Frege adota CON≡POSS por inteiro, mesmo que isto não esteja presente em sua epistemologia oficial. 6.4 Resgatando a Noção de Representação de Frege No capítulo anterior, vimos que Frege adota, nos Fundamentos, uma posição muito pouco plausível com relação à noção de representação (ou idéia), na qual ela pode ser absolutamente arbitrária e irrelevante do ponto de vista epistemológico. No entanto, em escritos posteriores, Frege passa a não fazer mais afirmações tão fortes, e algumas vezes parece conceder que a noção de representação não seja inteiramente irrelevante. Vale a pena, então, discutirmos alguns indicadores positivos de que Frege assume uma posição mais razoável acerca do papel epistemológico das representações. É com base nestes indicadores que faremos mais tarde um resgate da noção de representação, junto à noção de juízo, para o emprego em epistemologia modal. Em “Sobre o Sentido e a Referência”, encontramos alguns destes indicadores positivos. Lá Frege encerra sua discussão sobre a noção de representação da seguinte forma (indexamos com numerais arábicos para facilitar nossa alusão posterior): 245 Podemos agora admitir três planos de diferença entre palavras, expressões e sentenças completas. A diferença envolve (1) no máximo as representações, ou (2) o sentido, mas não a referência, ou, finalmente, (3) também a referência. (1892b, p. 66) Os três planos de diferença entre palavras estipulados por Frege podem ser organizados conforme o esquema a seguir: (1) representação diferente, sentido igual, referência igual; (2) representação diferente, sentido diferente, referência igual; (3) representação diferente, sentido diferente, referência diferente. Vejamos exemplos destes três planos de diferença entre palavras. Exemplo para (1): duas pessoas associam o mesmo sentido a “Pelé”, digamos o camisa 10 de 70, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA que para ambas determina a mesma referência, Pelé; não obstante, para cada uma delas, a imagem mental associada será diferente (por exemplo, para uma, Pelé dando um soco no ar, e para outra, Pelé chutando a gol). Exemplo para (2): duas pessoas que usam “Pelé” para denotar a mesma referência, Pelé, mas associam ao termo “Pelé” sentidos diferentes (e.g. o camisa 10 de 70 e o camisa 10 de 58), bem como associam a este termo representações diferentes (Pelé ao 29 anos e Pelé aos 17 anos). O caso (3) se dá na hipótese de termos diferentes dotados de sentido e referência diferentes; assim, temos como exemplo os termos “Pelé” e “Garrincha”, que têm representações, sentidos e referências diferentes, como é facilmente constatável.9 Este modo de Frege estabelecer possíveis diferenciações entre palavras é muito coerente e natural. Nele, uma representação pode estar associada a somente um sentido, e nenhum outro mais, do mesmo modo que um sentido pode estar associado a uma referência somente. Isto faz de uma representação algo capaz de determinar unicamente uma referência, conforme o seguinte esquema: representação Ä sentido Ä referência. É bem verdade que, nesta esquematização, várias representações podem ser associadas a um mesmo sentido, mas isto não representa problema algum, assim 9 Há ainda os casos de homonímia, mas estes casos são pouco importantes. 246 como não há problema em vários sentidos poderem ser associados a uma referência. De fato, a relação entre representação e sentido é, neste caso, a mesma que entre sentido e referência: trata-se de uma relação muitos-um. Temos, então, o seguinte esquema, que expressa perfeitamente as três possibilidades relatadas por Frege, no qual podemos ver como uma representação é capaz de denotar somente uma referência: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA RepresentaçãoÊ Ê SentidoÊ È Ê RepresentaçãoÈ Ê Referência RepresentaçãoÊ È Ê È SentidoÈ È RepresentaçãoÈ Em outra passagem de “Sobre o Sentido e a Referência”, Frege corrobora esta estruturação, e parece não subscrever à visão que encontramos nos Fundamentos, que permite a relação um-muitos entre representação e sentidos: Até num mesmo homem, nem sempre a mesma representação está associada ao mesmo sentido. A representação é subjetiva: a representação de um homem não é a mesma de outro. Disto resulta uma variedade de diferenças nas representações associadas ao mesmo sentido. (1892b, p. 64-65) Aqui, Frege refere-se ao fato de que representações diferentes podem estar associadas ao mesmo sentido, em indivíduos diferentes. Esperamos ter deixado claro que isto não é empecilho para que uma representação possa denotar unicamente. A sistematização das noções de representação, sentido e referência que acabamos de oferecer choca-se com o tratamento fregiano das representações que examinamos no capítulo anterior. Relembremos o comentário crítico sobre a noção de representação que Frege oferece em Os Fundamentos da Aritmética: Ainda que seja impossível para nós homens, ao que parece, pensar sem representações, sua conexão com o que é pensado pode contudo ser inteiramente exterior, arbitrária e convencional. (p. 248) 247 Se levarmos em conta esta afirmação, então somos obrigados a aceitar que Frege rejeita a idéia de que representações possam determinar uma referência. É possível, todavia, que esta visão presente nos Fundamentos tenha sido abandonada por Frege em “Sobre o Sentido e a Referência”. O que nos leva a afirmar isto é que, neste artigo, Frege estabelece somente os três níveis de diferenças que expusemos acima, o que é compatível com o que defendemos: uma representação é capaz de determinar somente um sentido e, por conseguinte, somente uma referência. A rigor, tivesse Frege mantido a visão dos Fundamentos, ele seria obrigado a estipular mais níveis de diferenças, pois, na hipótese da total arbitrariedade das representações, haveria que se estipular também os casos: (4) representações iguais, sentidos diferentes, referências iguais; PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA (5) representações iguais, sentidos diferentes, referências diferentes. Isto porque, na visão dos Fundamentos, dado o caráter potencialmente arbitrário e desconexo das representações, uma mesma representação pode estar associada a sentidos diferentes (e, por conseguinte, a referências iguais ou diferentes). O fato de Frege não ter se manifestado acerca destas duas hipóteses adicionais pode indicar que ele veio a assumir uma postura mais razoável com relação às representações, abandonando a idéia de que a relação entre representação e sentido possa regularmente ser um-muitos. Dada a falta de plausibilidade de se estipular a independência completa entre representações e sentidos, e levando em conta suas colocações mas razoáveis em “Sobre o Sentido e a Referência”, temos elementos suficientes para resguardar a noção de representação de Frege, de modo harmônico com nossa própria visão da noção de conceptividade. Aliás, ao fazê-lo, salvamos inclusive a relevância do empírico dentro do contexto de descoberta do conteúdo de pensamentos, que o próprio Frege leva em consideração nos Fundamentos. Livramo-nos também do vazio epistemológico que Frege muitas vezes se põe, na medida em que nos tornamos capazes de tratar representações como epistemologicamente relevantes para o conhecimento do conteúdo pensamentos, sem precisar estipular a solução implausível da forma sentencial. de 248 6.5 Juízo, Representação e Conceptividade Com base em: (i) a aceitação tácita de CON≡POSS por Frege (6.2 e 6.3); (ii) o resgate da noção de representação recém-promovido (6.4); (iii) a caracterização, por Frege, do juízo como algo de caráter psicológico e subjetivo (5.5), apresentamos de uma vez nossa visão, segundo a qual o misterioso caminho do pensamento rumo ao valor de verdade, o juízo fregiano, pode ser aptamente visto como concepções ou representações; ou seja, formar o juízo de um pensamento p PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA é, em muitos casos, o mesmo que conceber p. Esta visão é muito bem adaptada para a compreensão da natureza de juízos modais, em Frege. Esta seção busca esquematizar e dar mais plausibilidade a esta visão. Podem-se esquematizar os poderes modais da noção de juízo de modo semelhante ao modo que esquematizamos os poderes modais da noção de conceptividade. Assim, do mesmo modo que se p é concebível (capaz de ser concebido), então p é possível, temos que: Se p é ajuizável10 (capaz de ser julgada como verdadeira por meio de uma representação), então p é possível. Esta é a formulação de CON⊃POSS em termo de juízo. E, do mesmo modo que se p é inconcebível, então p é impossível, temos que: Se p é não-ajuizável, então p é impossível. 10 Empregamos o termo “ajuizável”, em vez de “judicável”, empregado por Frege, para não haver confusão com a utilização de Frege deste último termo, que, como vimos, pode ter aspectos muito diferentes do que o que estamos querendo ressaltar. Para Frege, p ∧ ~p é um conteúdo judicável, enquanto casa não o é (ao menos no Begriffsschrift). Mas, na terminologia que estamos instaurando, p ∧ ~p não é ajuizável, ou seja, não é concebível. 249 Esta é a formulação de INC⊃IMP em termos de juízo. A conjunção destas duas leis nos dá o princípio CON≡POSS, formulado em termos de juízos. Com estas definições, todas as conseqüências modais que podem ser extraídas a partir do fato de um pensamento ser concebível poderão também ser extraídas do fato de um pensamento ser ajuizável. Se não há juízos disponíveis (em qualquer situação pensada epistemicamente) para o pensamento p, então p é impossível. Se em qualquer juízo, relativo a qualquer situação, o pensamento p resulta verdadeiro, então p é necessário. E assim por diante. Não custa lembrar que esta aproximação entre conceber e ajuizar é justificada com base em elementos procedentes da própria visão de Frege: um juízo é mais rico epistemologicamente do que o mero pensar; um juízo é também um ato psicológico subjetivo, identificado com o conteúdo de uma consciência. Estes dados dão respaldo à aproximação que estamos empreendendo. Ademais, o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA próprio modo como Frege emprega “juízo” evidencia que a noção de juízo fregiana muitas vezes colapsa para nossa noção de conceptividade. Isto fica particularmente claro em sua discussão acerca do psicologismo de Erdmann. Em um fragmento que já discutimos anteriormente, Frege considera a hipótese de que “somos compelidos a formar juízos pela nossa própria natureza e por circunstâncias externas”, e assume claramente que “não podemos rejeitar [a lei da identidade]”, e que “esta impossibilidade de rejeitar [a lei da identidade] (...) nos impede de supor que os seres [que rejeitam a lei da identidade] estejam certos em fazê-lo”. Não há como negar aqui que, para Frege, não somos capazes de conceber a falsidade de uma lei lógica; ou que não podemos julgar uma lei lógica como falsa. É isto que nos interessa. Chegamos à conclusão de que o caminho do pensamento para o valor de verdade, o juízo fregiano, pode muito bem, em muitos casos, ser visto como a formação de uma concepção ou representação mental que responde epistemologicamente pelo status modal da proposição. Isto possibilita que a conceptividade (ou inconceptividade) de um enunciado matemático torne-se um fundamento autônomo legítimo, não inferencial, para sua verdade (ou falsidade) – embora Frege jamais tenha admitido isto. Como ficam as outras noções fregianas, em particular as noções de pensamento e representação, com a interpretação que propomos para a noção de juízo? 250 Apreender um pensamento permanece sendo basicamente o entendimento do significado de uma sentença, como ocorre na maior parte dos casos para Frege (as ocorrências de “pensável” devem evidentemente ser interpretadas como “concebível”, quando assim convier). Este momento epistemológico tampouco perde sua importância dentro da ciência: continua ocupando o lugar da pergunta inicial, a Satzfrage, que dá direção à investigação científica. Quanto à existência autônoma de pensamentos objetivos, preferimos nos abster desta questão, lembrando, porém, que esta é uma tese muito plausível, se levarmos em conta vários argumentos transcendentais existentes ao longo da história, que dão conta da existência de um suporte objetivo para o conhecimento. Mas, enfatizamos novamente que, do ponto de vista epistemológico, a única fonte autônoma (nãoinferencial) de nosso conhecimento modal é nossa capacidade de conceber. Com relação à noção de representação, vista como inútil por Frege, ela PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA ganha considerável importância em nosso rearranjo. Sendo um juízo um “processo psíquico”, um “conteúdo de nossa consciência” (“Negation”, p. 128), podemos estipular que este processo psíquico se dê justamente levando a cabo uma representação. Não há nenhum contratempo aí, pois, como vimos, uma representação é capaz de determinar unicamente um pensamento e assim determinar unicamente uma referência. Desse modo, tiramos as representações do limbo epistemológico em que Frege as havia posto, e as colocamos no centro da epistemologia das ciências a priori, lugar que lhes é devido, como Aristóteles já havia determinado. 6.6 Juízo e Intensão Se, como acabamos de ver, a noção de juízo fregiana abarca a representação e é compatível com a noção de conceptividade, ela deve ser compatível também com a estruturação semântica intensional oferecida por Chalmers. Não há dificuldades nisto, pois a visão de Chalmers, segundo a qual há intensões associadas aos pensamentos, é inspirada declaradamente em Frege. Vejamos agora como podemos promover esta compatibilização entre juízo e intensão. Podemos entender um juízo modal de um pensamento justamente como a avaliação mental ou subjetiva de um pensamento em todos os mundos possíveis. 251 Como vimos em detalhes no primeiro capítulo, uma intensão é uma função de um mundo possível (ou situação concebível) para sua referência (ou valor de verdade): f: W→R. Avaliar uma intensão associada a um pensamento em um mundo possível W consiste, portanto, em conceber um mundo possível W e determinar o valor de verdade do pensamento neste mundo possível. Mas, quando formamos um juízo modal, estão em jogo todos os mundos possíveis, isto é, avaliamos um pensamento em todos os mundos concebíveis; um outro modo de colocar isto é dizer simplesmente que investigamos nosso espaço conceitual. Se, em todos os mundos possíveis, o pensamento 5+2=7 tem como resultado o verdadeiro, então PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA esta é uma verdade necessária (ou, o que dá no mesmo, se não há um mundo possível no qual 5+2≠7, então é necessário que 5+2=7 – como vimos, Frege emprega CON≡POSS em sua inteireza). Esta é a trajetória que percorremos, do pensamento ao valor de verdade, no âmbito de todo o nosso universo conceitual, e que Frege veio a chamar de juízo (em muitos casos). Para que fique bem marcado: a avaliação desta intensão, a trajetória ou progresso do pensamento até seu valor de verdade, é feita mediante uma representação ou concepção mental. É importante observar ainda que Frege emprega única e exclusivamente o que Chalmers chama de intensão primária, ou seja, uma intensão cuja avaliação é exclusivamente epistêmica; a noção de intensão secundária (kripkiana) é inteiramente estranha a Frege, na medida em que Frege não trabalha com mundos possíveis contrafactuais ou subjuntivos, nem com designadores rígidos ou essências individuais. Termos singulares (nomes próprio, descrições definidas etc.) são compreendidos epistemicamente por Frege através da noção de sentido. Assim sendo, a visão de Frege não permite que fixemos a referência de um termo com base em uma essência, a fim de podermos avaliar a necessidade entre mundos possíveis contrafactuais, como ocorre no caso de Kripke. Para ele, só conta a avaliação da intensão no mundo atual, ou em mundos tomados como atual. 252 Isto significa que, na visão de Frege, água não é H2O, mas sim uma substância transparente, inodora etc.11 6.7 Noções Modais em Frege e Conceptividade Se desejamos compatibilizar a noção de conceptividade com as noções fregianas, devemos examinar a visão de Frege sobre modalidade, a fim de mostrar que ela se harmoniza com nossa proposta. Veremos que as noções modais são, para Frege, noções subjetivas e psicológicas, muito de acordo com nossa visão de conceptividade. O fato de rejeitar (ou simplesmente de não pensar em termos de) mundos possíveis contrafactuais e designadores rígidos faz com que Frege considere as PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA noções modais tradicionais (possibilidade, necessidade etc.) como parte do universo psicológico, não do universo lógico. Isto porque, na ausência de mundos possíveis, essências e designadores rígidos, o único sustentáculo para noções modais pareceu a Frege nossa própria capacidade de conceber ou de formar juízos. Mas, como se sabe, Frege repudia tudo o que possa ter algum tipo de viés psicológico ou subjetivo: se não tem sustentáculo objetivo, não é lógico. Assim, ao repudiar a existência objetiva de mundos possíveis e essências individuais, Frege se depara com uma noção irremediavelmente psicológica de possibilidade, estranha ao seu entendimento do que deve ser a semântica e a lógica. Haaparanta (1988a) explica bem o ponto: Frege insiste na visão de que sua linguagem lógica é uma linguagem material e universal, que fala sobre o mundo. Ela é relacionada ambos ao mundo dos objetos da experiência e ao mundo dos objetos ideais. Na visão de Frege, para todo conceito lógico há algo que corresponde a ele no mundo, dado que conceitos lógicos não são símbolos vazios. A lógica que Frege desenvolve é basicamente – e talvez paradoxalmente – material no sentido em que ela dá a forma do universo. O que Frege provavelmente pensa é que não há nada objetivo que corresponderia a nossas noções modais. Se ele tivesse incluído mundos possíveis em sua discussão, tivessem eles sido interpretados metafísica ou epistemicamente, ele poderia ter encontrado “lá fora” algo que teria correspondido a conceitos modais. Dado que Frege não encontra nada no mundo que corresponderia a conceitos modais, ele é compelido a relegá-los à psicologia e então considerá-los expressões do segundo mundo, privado. (pp. 260-261) 11 No mesmo sentido, Picardi (1994, p. 213). Mais sobre isto logo abaixo. 253 Temos então, em Frege, uma visão segundo a qual as noções modais têm um cunho psicológico, o que quer dizer que elas não acrescentam coisa alguma ao conteúdo objetivo de pensamentos. Isto significa que formar um juízo subjetivo necessário acerca de um pensamento não traz qualquer informação adicional, no que diz respeito ao pensamento em si mesmo; este é objetivo e autônomo. Assim, o que é possível ou impossível para Frege não são os pensamentos, eles mesmos, mas sim os juízos ou concepções psicológicas que formamos a partir de tais pensamentos. Estas informações modais são irrelevantes para a verdade ou falsidade do pensamento, e trazem tão somente indicações ou pistas sobre os fundamentos de um juízo. Logo, por exemplo, um juízo necessário traz consigo a indicação psicológica de que o juízo foi deduzido de uma proposição geral. Ora, o que seria esta indicação, senão a inconceptividade da negação do juízo respectivo? É precisamente esta modalidade psicologista que está por detrás PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA dos vários empregos de “pensar” e “conceber” encontrados ao longo da obra de Frege, os quais temos reiteradamente enfatizado. Estes traços psicológicos que Frege atribui à modalidade ficam expostos num dos poucos trechos onde Frege trata explicitamente das noções modais básicas, encontrado no Begriffsschrift: Ao dizer que uma proposição é necessária, eu dou uma pista sobre os fundamentos (Gründe) para meu juízo. Mas, dado que isto não afeta o conteúdo conceitual de um juízo, a forma de um juízo apodítico não tem significância para nós. (p. 13)12 Dada a insignificância das noções modais para as relações lógicas objetivas, inferenciais, entre pensamentos, não encontramos na obra de Frege um exame da natureza lógica de enunciados necessários, isto é, uma lógica modal. Em vez disto, no plano lógico, proposicional, ele restringe-se a mostrar o que os diferentes juízos modais indicam acerca dos fundamentos lógicos do juízo: O juízo apodítico difere do assertórico no que ele sugere a existência de juízos universais dos quais a proposição pode ser inferida, enquanto que no caso do assertórico, tal sugestão está ausente. (...) Se uma proposição é apresentada como possível, ou o falante está suspendendo o juízo, ao sugerir que ele não conhece leis das quais a negação da proposição seguir-se-ia ou ele diz que a generalização desta negação é falsa. No último caso temos o que é usualmente chamado de juízo particular afirmativo. “É possível que a Terra colidirá algum dia com outro astro celeste” é um exemplo do primeiro tipo, e “um resfriado pode resultar em morte” do segundo. (Ibid., p. 13) 12 Aqui, Frege parece ter sido de fato influenciado por Kant, quando este afirma que “a modalidade dos juízos contribui em nada para o conteúdo do juízo (pois, além da quantidade, qualidade e relação, nada há que constitua o conteúdo de um juízo) (...)” (B99-100). 254 Isto é tudo o que Frege tem a dizer explícitamente sobre modalidade em toda a sua obra. 6.8 Considerações Finais Façamos agora um apanhado do que estabelecemos ao longo deste capítulo, cujo objetivo foi conciliar o universo teórico de Frege com nossa noção de conceptividade. Em primeiro lugar, sentimo-nos autorizados a realizar esta harmonização em virtude do reiterado uso do princípio de conceptividade (CON≡POSS) ao longo da obra de Frege, mesmo que a noção de conceptividade não figure dentro da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA epistemologia “oficial” de Frege. Ao longo do capítulo, demos vários exemplos deste uso, além de termos remetido o leitor a várias passagens presentes na obra de Frege que contêm tais usos, dotados de traços modais e subjetivos indefectíveis. Vimos também que Frege declara explicitamente acreditar que a conceptividade é completa. Em seguida, dedicamo-nos a recuperar a noção de representação, dentro da obra de Frege, com base no fato de ele indicar em fragmentos de sua obra que uma representação é capaz de determinar um sentido somente e, por conseguinte, uma referência apenas. Em “Sobre o Sentido e a Referência”, Frege parece não aceitar que uma mesma representação possa regularmente determinar (ou estar associada a) sentidos diferentes, apesar da visão que esposa nos Fundamentos, segundo a qual representações podem ser totalmente arbitrárias e desconexas com relação ao pensamento. Isto é indício de uma postura mais moderada de Frege no que diz respeito à noção de representação. Depois, aproveitamos o potencial epistemológico da noção de representação, fazendo dela parte essencial da formação de um juízo (modal). Desta forma, em muitos casos, o caminho do pensamento até seu valor de verdade, o juízo, passa a ser entendido como a formação de concepções ou representações (estados mentais qualitativos). Daí, chegamos à formulação segundo a qual 255 se p é ajuizável (i.e., se podemos formar um juízo no qual p é verdadeiro), então p é possível; e se p é não-ajuizável, então p é impossível. Esta é uma versão de CON≡POSS em termos de juízos, plenamente satisfatória para o emprego no âmbito das ciências formais. O fato adicional de Frege entender juízos como ocorrências mentais de caráter psicológico e subjetivo, e considerar que a modalidade é uma característica de juízos (jamais de pensamentos) é um elemento a mais a favor de nossa leitura. Vimos também que o juízo fregiano pode ser visto como a avaliação PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA subjetiva de uma intensão da forma f: W→R, que mapeia mundos possíveis a valores de verdade. Esta intensão deve ser vista como uma intensão primária de Chalmers, i.e., ela deve ser avaliada exclusivamente em termos epistêmicos ou fenomenológicos, em detrimento de qualquer elemento essencial, tipicamente kripkiano. Mas esta é justamente a visão que Frege adota para a modalidade. A partir deste capítulo, fica claro o papel da noção de juízo, em Frege: abrigar boa parte do que Frege não consegue explicar, mas deveria, a partir de sua abordagem objetivista. Aí se incluem, principalmente, a justificação autônoma de leis lógicas e a avaliação das qualidades expressivas da linguagem recémcodificadas (o próximo capítulo é dedicado à elucidação destes elementos), um tema epistemológico do qual Frege evade-se a todo o custo. Se, a partir da divisão de tarefas que empreendemos no capítulo 3, levarmos em conta o fato de que Frege codifica e trabalha no âmbito de uma nova linguagem lógica, então é claro que a noção de conceptividade adaptada ao universo dos juízos fregianos é a grande candidata para levar a cabo estas tarefas. Como isto é feito, exatamente, será mostrado no próximo capítulo. 7- Da Conceptividade à Conceitografia 7.1 Observações Preliminares Neste capítulo, pretendemos apresentar, em caráter hipotético, uma explicação de como a noção de conceptividade auxiliou Frege na façanha de codificar o fundamental dos recursos expressivos da lógica contemporânea. A fim de fornecermos esta explicação, preocupamo-nos, em primeiro lugar, em delinear a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA metodologia da ciência em geral, e da lógica em particular, adotada por Frege, a partir de passagens textuais de sua obra. Isto será feito na seção 7.2. Em seguida, tratamos das principais contribuições de Frege em separado: a definição veritativo-funcional dos conectivos lógicos (7.3), e a estruturação de sentenças como funções e a invenção da quantificação (7.4). Em cada uma destas duas seções (7.3 e 7.4), preocupamo-nos primeiramente em apresentar as inovações de Frege para, então, tentarmos reconstituir o trajeto lógico e epistemológico percorrido por ele no desenvolvimento destes avanços em lógica; nesta reconstrução, procuramos evidenciar o papel da noção de conceptividade para a codificação promovida por Frege. Como de costume, fechamos o capítulo com um sumário das principais conclusões a que chegamos ao longo do capítulo (7.5). Resultará que, muito à semelhança de Aristóteles, Frege tinha um método de investigação lógica que incluía a busca de formas gramaticais candidatas à expressão de conteúdos lógicos, e o subseqüente exame destas formas mediante juízos, ou seja, mediante a noção de conceptividade. O que pretendemos deixar especialmente claro em nossa análise (seções 7.3 e 7.4) é que, em certos momentos da elaboração de sua conceitografia, Frege foi obrigado a recorrer à noção de conceptividade, dada sua posição epistemológica pioneira e sui generis; outros recursos epistemológicos, tais como o apelo à linguagem natural, uma análise transcendental, ou ainda algum recurso formal, simplesmente não estavam disponíveis. Pretendemos também mostrar que há 257 indicações claras deste alegado emprego da noção de conceptividade na própria obra de Frege, principalmente no reiterado uso de noções modais ao longo do Begriffsschrift, para o qual os comentadores dão pouca atenção. Desde já, deixamos claro que nosso principal foco de discussão será o sistema do Begriffsschrift, em vez daquele apresentado no Grundgesetze. A razão disto não é arbitrária. Reconhece-se amplamente que os passos fundamentais de Frege, no que diz respeito à elaboração de uma nova linguagem lógica, foram dados no Begriffsschrift: lógica proposicional veritativo-funcional, análise funcional das sentenças, quantificação de primeira ordem (e de ordens superiores, implicitamente) e elaboração de um sistema dedutivo forte o suficiente para abarcar um sistema de lógica de primeira ordem correto e completo, no sentido contemporâneo (embora Frege não tivesse ferramentas para avaliar estas características de seu sistema). Assim, os incrementos presentes no Grundgesetze, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA tais como a introdução de cursos de valores e uma notação para a quantificação de segunda ordem, podem muito bem ser vistos como uma extensão do que Frege elaborou no Begriffsschrift, e por isto não serão objeto de discussão, senão em caráter incidental. Conseqüentemente, tampouco serão alvo de exame as várias depurações pelas quais a quantificação passou até que se chegasse à versão empregada hoje em dia; interessa-nos aproximarmo-nos o máximo possível da visão de quantificação de Frege, no Begriffsschrift, ou seja, a visão da quantificação essencialmente como um recurso expressivo.1 Devemos igualmente ressaltar que passaremos ao largo das contribuições de Frege para os fundamentos da aritmética, no sentido estrito. Em particular, o modo como ele gera os números naturais a partir de um vocabulário lógico, do que já temos uma amostra no Begriffsschrift, não será objeto de apreciação. As qualidades fundamentais do sistema lógico do Begriffsschrift podem ser examinadas de maneira pontual e independente das outras contribuições de Frege à filosofia da matemática. Aliás, estas qualidades são tidas pelo próprio Frege como a principal contribuição de sua obra. Enfim, nossa abordagem será histórica e epistemológica: nosso interesse é investigar como Frege codifica seu sistema, ou seja, investigar com que recursos 1 Ver Goldfarb (1979) para uma análise conhecida deste processo, ocorrido, segundo o autor, pelas mãos de Löwenheim, Skolem, Hilbert, Herbrand e Gödel. 258 epistemológicos ele empreende esta tarefa com vistas a mostrar como a noção de conceptividade lhe foi importante aí. 7.2 A Metodologia da Lógica de Frege Ao longo de toda a sua obra lógica, Frege tece alguns comentários, muitas vezes curtos e enigmáticos, sobre sua metodologia da lógica. Nosso objetivo, nesta seção, é expor e interpretar alguns destes comentários, de modo que eles possam conduzir nossas investigações subseqüentes. Concentramo-nos aqui em traços metodológicos mais gerais que Frege delineia para sua lógica – elementos mais específicos da obra de Frege serão tratados dentro das seções dedicadas às suas respectivas temáticas. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA No prefácio ao Begriffsschrift, Frege destaca o fato de que sua conceitografia está a serviço das ciências em geral, embora seu objetivo central seja a expressão clara e exata da aritmética desde seus fundamentos. Assim, em sua visão, a conceitografia é um instrumento que pode ser igualmente útil ao matemático e ao físico. Será que, a exemplo de Aristóteles, Frege vê seu avanço lógico meramente como uma melhoria num instrumento da ciência, ou o vê como um avanço científico real, um avanço do conhecimento? As evidências apontam para o fato de que Frege enxergava a lógica como uma ciência, e os avanços dentro da lógica como autênticos avanços científicos. Comentando a relação entre sua conceitografia e a linguagem ordinária, Frege afirma o seguinte: Esta conceitografia, igualmente, é um recurso inventado para certos propósitos científicos, e não se deve condená-la por ela não ser adequada para outros. Se ela responde a estes propósitos em alguma medida, não se deveria importar com o fato de que não há novas verdades em meu trabalho. Consolar-me-ia, acerca deste ponto, com a compreensão de que um desenvolvimento do método, também, estende a ciência. Bacon, afinal de contas, achou melhor inventar um meio pelo qual tudo poderia ser facilmente descoberto do que descobrir verdades particulares, e todos os grandes passos no progresso científico em tempos recentes tiveram sua origem em um melhoramento do método. (p. 6; grifos nossos) Portanto, ao contrário de Aristóteles, Frege vê a invenção de sua conceitografia como um avanço científico e a lógica como uma ciência.2 Que tipo de ciência 2 No mesmo sentido, ver Chateaubriand (2001, p. 13) e Sullivan (2004, p. 770). 259 seria a lógica? Para Frege, “a lógica é a ciência das leis mais gerais da verdade” (PW, p. 128).3 Sendo a lógica uma ciência para Frege, uma pergunta legítima a ser feita é: como ocorre o avanço científico dentro da própria lógica, em particular o avanço que o próprio Frege realiza? Frege dá algumas pistas de como isto acontece; ele enfatiza que, em toda investigação científica, um juízo é muitas vezes precedido por perguntas: Um juízo é freqüentemente precedido por perguntas. Um matemático formulará uma teoria para si mesmo antes de prová-la. Um físico aceitará uma lei como uma hipótese a fim de testá-la através da experiência. Apreendemos o conteúdo de uma verdade antes de reconhecê-lo como verdadeiro, mas não apreendemos somente isto; apreendemos o oposto também. Ao fazermos uma pergunta, somos colocados entre duas sentenças opostas. (P. W., p. 7) Assim, a investigação científica inicia-se com uma pergunta sim-ou-não, i.e., que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA pode ter uma resposta positiva ou negativa. Qual é a importância deste momento inquiridor? Para Frege, o momento de formular uma pergunta é o momento de apreender o significado de um pensamento. Como já vimos, apreender um pensamento é muito diferente de formar o juízo de que este pensamento é verdadeiro, que se dá em um segundo momento (quando então é obtido o conhecimento). Esta estruturação está bem clara nos artigos finais de Frege. Em “Pensamentos”, ele escreve: (...) distinguimos: (1) a apreensão de um pensamento – pensar (2) o reconhecimento da verdade de um pensamento – julgar (3) a manifestação deste juízo – a asserção. Já executamos o primeiro ato quando formamos uma pergunta proposicional. Um avanço na ciência geralmente ocorre desta maneira: primeiro um pensamento é apreendido, e então pode talvez ser expresso em uma pergunta proposicional; após as investigações apropriadas, este pensamento é finalmente reconhecido como verdadeiro. Expressamos o reconhecimento da verdade na forma de uma sentença assertórica. (1919, pp. 7-8) Temos então o procedimento que as ciências em geral devem seguir, em seu caminho até a verdade: (1º) uma pergunta sim-ou-não (ou pergunta proposicional: Satzfrage), (2º) a formação de um juízo a partir das devidas investigações, e finalmente (3º) a asserção da resposta à pergunta. 3 Em passagem conhecida, Russell afirmaria, no mesmo sentido, que “a lógica é concernente ao mundo real tanto quanto a zoologia, embora com seus traços mais gerais e abstratos” (1919, p. 169). 260 Frege prescreve o mesmo procedimento para a ciência lógica. Ele deixa isto bem claro num dos poucos textos no qual discute explicitamente seu próprio método lógico: O que é distintivo sobre minha concepção de lógica é que eu começo por dar um lugar de estima à palavra “verdade”, e então imediatamente procedo a introduzir um pensamento ao qual a questão “é verdadeiro?” é em princípio aplicável. (P. W., p. 253) Por conseguinte, a investigação lógica, para Frege, começa pela colocação de uma questão sim-ou-não, assim como ocorre com as outras ciências. A partir desta questão, procede-se à investigação da estrutura do pensamento expresso pela PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA pergunta. Continua Frege: Então, eu não começo com os conceitos e os arranjo de modo a formar um pensamento ou juízo; eu chego às partes de um pensamento analisando o pensamento. Isto diferencia minha conceitografia de invenções similares de Leibniz e seus sucessores, apesar do que o nome sugere; talvez esta não tenha sido uma escolha feliz de minha parte. (Ibid.) Esta abordagem de Frege, que vai do todo às partes, do conteúdo inteiro às partes do conteúdo, é o que está por trás de seu princípio do contexto, que aparece em Os Fundamentos da Aritmética: deve-se perguntar pelo significado das palavras no contexto da proposição, e não isoladamente; (...). (p. 204) Acreditamos, por conseguinte, que o princípio do contexto visa a regular a investigação lógica, i.e., é um princípio que regula o momento inquiridor das leis mais gerais da verdade, tanto quanto o momento inquiridor de qualquer outra ciência. A hipótese de que o princípio do contexto tenha sido importante para que Frege elaborasse sua lógica é defendida por Chateaubriand (2001): Em minha visão, o princípio de Frege é uma expressão direta da formulação da lógica no Begriffsschrift, que ele defendeu tão veementemente contra lógicos boolianos, e o emprego que ele faz dele em vários lugares em Os Fundamentos da Aritmética tem em larga margem a intenção de preservar os conteúdos conceituais como unidades básicas da escrita conceitual. (p. 265) Quais seriam, segundo Frege, as conseqüências da não observância deste princípio? Também nos Fundamentos, encontramos a resposta: 261 Se não se observa [este] princípio, fica-se quase obrigado a tomar como significado das palavras imagens internas e atos da alma individual, e deste modo a infringir também o primeiro [i.e., separar o psicológico do lógico]. (Ibid.) Aparentemente, Frege está ressaltando nesta passagem que uma conseqüência negativa de tomarmos palavras simples como pontos de partida semânticos autônomos, a partir dos quais chegaríamos ao pensamento, seria nos vermos obrigados a dar conta destas palavras como idéias ou representações que, ajuntadas, forneceriam o significado do pensamento inteiro. Esta impropriedade pode ser ilustrada por meio de uma proposição universal afirmativa tradicional. Tome a sentença (c) Todo cão é mamífero. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Se buscarmos o pensamento expresso por esta proposição, assumindo que ela é resultante da combinação do significado das palavras “todo”, “cão”, “é” e “mamífero”, então, por exemplo, teremos que dar conta do significado de “cão”, de modo autônomo. Mas, ao buscarmos o significado do conceito relativo a “cão”, um candidato natural seria a idéia geral de cão, que se constitui numa representação subjetiva; e isto é o que Frege mais quer evitar. Em comparação, na análise fregiana, a sentença (c) é recodificada da maneira seguinte: (c’) ∀x (Cx ⊃ Mx). Já não há mais um termo “cão”, cujo significado deve ser buscado autonomamente; em vez disto, temos a função Cx, que só pode ser compreendida a partir de sua interação com possíveis argumentos para ocupar o lugar de x, ou em interação com um quantificador. No que concerne a esta relação que Frege faz entre a inobservância do princípio do contexto e o psicologismo, não se vê com clareza como, exatamente, a inobservância do princípio do contexto obriga à aceitação de uma visão psicologista, como Frege afirma. A implicação que apresentamos acima é uma reconstrução hipotética – a melhor a que pudemos chegar – a partir do que Frege afirma, e nela não se pode ver exatamente como alguém é coagido a aceitar que 262 conceitos são idéias ao não seguir o princípio do contexto, ou como alguém se livra do psicologismo ao segui-lo. Note-se ainda que lógicos psicologistas (Wundt e Sigwart) são defensores enfáticos do princípio do contexto, segundo coloca Picardi (pp. 47-48). Por fim, devemos observar que, examinando a metodologia da lógica de Frege, pode-se perceber um possível erro de interpretação feito por Dummett, quando ele afirma que, para Frege, “apreender o sentido de uma sentença é, em geral, saber as condições de verdade sob as quais a sentença é verdadeira e as condições sob as quais a sentença é falsa” (Truth and other Enigmas, Londres: Duckworth, 1978, apud. Dwyer 1989, p. 129-130). Como deixamos claro, dentro da visão fregiana de ciência, o momento de apreender o sentido de uma sentença é o momento de formular uma pergunta acerca de sua verdade ou falsidade, momento que é muito diferente daquele em que se chega à verdade da proposição. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA É o momento, por exemplo, em que um matemático faz uma conjectura. Ora, se, quando o matemático faz uma conjectura, ele já apreende as condições de verdade da mesma, então ele saberá que a conjectura é verdadeira ou falsa já neste momento, porque uma conjectura matemática é sempre, ou verdadeira em qualquer condição, ou falsa em qualquer condição. Por exemplo, se Fermat, ao formular a conjectura que viria a ser chamada de “o último teorema de Fermat”, tivesse apreendido as condições em que a fórmula em questão é verdadeira e as condições em que ela é falsa, ele já saberia que não há condições nas quais ela é falsa. Ele portanto já saberia que ela é verdadeira. O que Dummett coloca talvez tenha sentido para Wittgenstein (1922, 4.431), para quem “a proposição é a expressão de suas condições de verdade”, mas jamais para Frege. No restante do capítulo, ao analisarmos o percurso lógico e epistemológico de Frege, procuramos nos manter fiéis à metodologia científica e ao princípio do contexto que ele prescreve, mas dispensamos os traços obscuros e desconexos que acabamos de reportar. Não respeitamos, portanto, a colocação de Frege segundo a qual o respeito ao princípio do contexto é incompatível com o psicologismo, e evitaremos a expressão consagrada “condições de verdade”, preferindo a alternativa “interpretação em termos de funções de verdade”, ou simplesmente “pensamento”. Aliás, “condições de verdade” não é uma expressão que encontre emprego sólido por Frege. 263 7.3 Conectivos Lógicos O que é hoje um procedimento padrão, a definição dos conectivos lógicos (condicional, conjunção, negação etc.) como funções de verdade, foi pela primeira vez estabelecido de modo reconhecível por um lógico contemporâneo no Begriffsschrift. Nesta seção 7.3, apresentamos os traços fundamentais das definições que Frege oferece para os conectivos lógicos e em seguida mostramos como a noção de conceptividade desempenhou um papel importante nestas definições. Por fim, respondemos a algumas possíveis objeções à nossa interpretação de Frege. 7.3.1 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA A Definição Veritativo-funcional dos Conectivos Lógicos Os únicos conectivos lógicos que Frege emprega no Begriffsschrift são o condicional e a negação (embora ele defina outros conectivos tradicionais a partir destes dois operadores básicos). Ambos os operadores são definidos precisamente por Frege como funções de verdade, do mesmo modo que é feito hoje em dia corriqueiramente nos manuais de lógica. Vejamos sua definição do condicional: Se A e B4 representam conteúdos que podem tornar-se juízos, há as seguintes quatro possibilidades: (1) A é afirmado e B é afirmado; (2) A é afirmado e B é negado; (3) A é negado e B é afirmado; (4) A é negado e B é negado.5 Assim, ├┬── A └── B 4 A e B aqui são maiúsculas das letras gregas alfa e beta. Como nota Sullivan (2004, p. 665), Frege usa letras gregas maiúsculas para formular afirmações sobre seu sistema. 5 Tomamos, junto com Chateaubriand (2001, pp. 263-264) e Sullivan (2004, 664-665), como pouco significativo o fato de Frege usar “afirmação” e “negação”, em vez de “verdadeiro” e “falso”. Chateaubriand bem nota que, na apresentação do sistema, várias expressões (e.g. “é um fato”) ocupam o lugar da noção de verdade. 264 representa o juízo de que a terceira destas possibilidades não ocorre, mas uma das outras três sim. (pp. 13-14) Frege não somente define o condicional como uma função de verdade; ele se preocupa em afirmar que o signo relativo ao condicional (a barra vertical que liga as barras horizontais de conteúdo que precedem A e B) expressa somente o que foi definido com base na interpretação funcional acima exposta, deixando de fora qualquer relação extra que possa existir entre os termos A e B: A conexão causal inerente à palavra “se”, porém, não é expressa por nossos signos (...). (Ibid, p. 14) Isto quer dizer que Frege compreendia seu símbolo de implicação como um condicional material definido exclusivamente em termos de valores de verdade. É bem verdade que esta definição exclusivamente semântica do condicional material PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA não é estritamente nova, como notam Kneale e Kneale (1968, p. 485); já a encontramos em Filo, o Dialético (sécs. IV-III a.c), exposta de forma semelhante. Os mesmos autores observam que não há como saber se Frege teve contato com esta ou com outra definição do condicional. Contudo, há afirmações em seus Escritos Póstumos que indicam tanto que a definição de Frege não era a forma padrão de apresentar o condicional na época de Frege, quanto que ele chegou a ela independentemente: Já faz 28 anos desde que eu dei esta definição. Eu acreditava naquela época que eu teria somente que mencioná-la e todos imediatamente saberiam mais acerca dela do que eu sabia. E agora, após mais de um quarto de século ter-se passado, a grande maioria dos matemáticos não tem qualquer idéia do assunto, e o mesmo vale para os lógicos. Que tacanhice! (...) Eu posso facilmente crer que ela pareça estranha à primeira vista, mas se não fosse assim, ela teria sido descoberta há muito tempo. (p. 186) Também nos Escritos Póstumos (p. 35), ao comparar sua notação com a de Boole, Frege menciona outras definições do condicional além daquela de Boole (de Leibniz e Jevons), todas diferentes de sua própria. Se ele conhecesse alguma definição que se assemelhasse à sua própria, o natural seria mencioná-la e discutila. A negação também é definida através de funções de verdade, embora Frege não seja tão perspícuo neste caso quanto no anterior: 265 Se uma barra vertical curta estiver conectada abaixo da barra de conteúdo, isto expressará a circunstância de que o conteúdo não ocorre. Assim, por exemplo, ├┬─ A quer dizer “A não ocorre”. (Ibid., p. 17) Por conseguinte, se ── A é verdadeiro, então ─┬─ A, ao afirmar que não ocorre que ── A, será falso; se ── A é falso, então ─┬─ A, ao afirmar que não ocorre que ── A, será verdadeiro. Uma observação. Enxergar as definições dos conectivos lógicos feitas por Frege no Begriffsschrift como funções de verdade, como fizemos aqui, requer algum exercício de perspectiva (mas não um grande exercício). Como notam van Heijenoort em sua introdução ao Begriffsschrift (p. 2) e Picardi (1994, p. 193), Frege não analisa nesta obra a estrutura de uma função e não chega a enunciar o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA que considera como o valor de uma função; em especial, ele não chega a tratar explicitamente o Verdadeiro e o Falso como valores de uma função. Somente a partir de “Função e Conceito” Frege define as funções de verdade desde a base, nas seguintes linhas: a função ── A tem como valor o verdadeiro se A denota o verdadeiro; a função ── A tem como valor o falso se A não denota o verdadeiro (ver Frege 1891, pp. 33-34 e Frege 1893, p. 38). Com esta definição em mãos, as definições indutivas dos conectivos decorrem naturalmente. Como já tivemos oportunidade de notar, junto com esta definição vem também em “Função e Conceito” e em Grundgesetze uma ampliação do que Frege considera como um conteúdo judicável: ao passo que, no Begriffsschrift, Frege estipula que um nome próprio não pode figurar autonomamente à direita de uma barra de conteúdo (horizontal), a partir de “Função e Conceito” (1891) Frege permite que qualquer coisa possa figurar aí, passando a considerar tudo que não denota o Verdadeiro como falso. Por conseguinte, a partir de “Função e Conceito”, as funções base do sistema são definidas para quaisquer objetos (denotados por quaisquer termos). 7.3.2 A Definição dos Conectivos e Conceptividade Nossa intenção agora é mostrar como Frege chega às interpretações funcionais dos operadores lógicos em termos de funções de verdade e o lugar da noção de 266 conceptividade neste processo. Dado que Frege não dá qualquer indício de ter sido influenciado por quem quer que seja, assumimos a total independência de seu trabalho com relação ao de seus predecessores. Como é sabido, nossa hipótese geral é que Frege é capaz de interpretar os operadores lógicos por meio de funções de verdade empregando a noção de conceptividade. O modo como a noção de conceptividade pode ser aptamente empregada para avaliar intensões (funções que vão de mundos possíveis ou situações concebíveis para valores de verdade) já foi mostrado no capítulo anterior. Vimos que é por meio do exame das intensões associadas aos pensamentos, efetuado com base na noção de conceptividade, que somos capazes de chegar ao estatuto modal de um pensamento, o que, nas ciências formais, é o mesmo que chegar ao seu valor de verdade (se é concebível, é necessariamente verdadeiro; se é inconcebível, é necessariamente falso). Assim, defendemos que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Frege avaliou, por meio da noção de conceptividade, as proposições formadas por conectivos veritativo-funcionais, de modo a chegar à tabela de verdade concernente. Nossa tese é atestada primeiramente pelo uso constante de noções modais (de cunho psicologista, segundo a visão explícita do próprio Frege) ao longo da primeira parte do Begriffsschrift, em especial em rigorosamente todas as suas definições veritativo-funcionais de conectivos lógicos, com exceção da conjunção. É bem verdade que há constantemente o uso de noções modais vazias de conteúdo epistemológico, de caráter meramente combinatório. Por exemplo, antes de fornecer a tabela de verdade para o condicional, Frege afirma: Se A e B representam conteúdos que podem tornar-se juízos (§ 2), há as seguintes quatro possibilidades: (...). (p. 13) As quatro possibilidades aludidas nesta passagem são meramente combinatórias e não devem ser vistas como um recurso epistemológico substancial à noção de conceptividade. Não obstante, em diversas ocasiões, ele emprega noções modais cujo propósito não se reduz à mera exposição combinatória dos valores de verdades dos enunciados. Estas modalidades têm caráter epistemológico autônomo e primitivo (veremos inúmeros exemplos em breve). É neste emprego modal que a noção de conceptividade se faz presente na codificação lógica de 267 Frege; e isto está aparente no Begriffsschrift (e somente lá – nas definições do Grundgesetze, as modalidades são abandonadas). O lugar da modalidade dentro do Begriffsschrift deve ser entendido a partir das próprias colocações de Frege compreendidas no § 4, dedicado parcialmente às noções modais (vale notar que este parágrafo precede imediatamente às definições dos conectivos lógicos). Embora já tenhamos citado parte desta passagem no PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA capítulo 6, reproduzimo-la por inteiro para evitar retrocessos no texto: As observações que se seguem têm a intenção de explicar a significância para nossos propósitos das distinções que introduzimos entre os juízos. (...). O juízo apodítico difere do assertórico no que ele sugere a existência de juízos universais dos quais a proposição pode ser inferida, enquanto que no caso do assertórico, tal sugestão está ausente. Ao dizer que uma proposição é necessária, eu dou uma indicação sobre os fundamentos [Gründe] para meu juízo. Mas dado que isto não afeta o conteúdo conceitual do juízo, a forma do juízo apodítico não tem significância para nós. Se uma proposição é apresentada como possível, ou o falante está suspendendo o juízo, ao sugerir que ele não conhece leis das quais a negação da proposição seguir-se-ia, ou ele diz que a generalização desta negação é falsa. No último caso temos o que é usualmente chamado de juízo particular afirmativo (ver § 12). “É possível que a Terra colidirá em algum momento com outro astro celeste” é um exemplo do primeiro tipo, e “um resfriado pode resultar em morte” do segundo. (p. 13; grifos do autor) O que queremos enfatizar aqui é a afirmação de Frege de que a necessidade constitui-se numa “indicação sobre os fundamentos para meu juízo”. Ao fazê-lo, Frege situa a modalidade dentro do universo da psicologia (na medida em que a noção de juízo é uma noção psicológica, para Frege) e fora da lógica (na medida em que, para a lógica, somente os conteúdos dos juízos, e as relações entre conteúdos, contam como relevantes). Tais indicações sobre os fundamentos para o juízo devem, portanto, dizer respeito às condições psicológicas, físicas ou fisiológicas que proporcionaram o juízo – como Frege viria a afirmar em Os Fundamentos da Aritmética – e não aos conteúdos dos quais o juízo em questão (ou seu conteúdo) foi inferido. Haaparanta (1988a) tem a mesma interpretação que a nossa: Frege oferece-nos razões mais explícitas para sua falta de disposição para discutir os conceitos de necessidade e possibilidade dentro dos limites de sua lógica. A razão que ele dá é simplesmente que estes conceitos não dizem absolutamente respeito à lógica mas que eles têm a ver com a natureza dos fundamentos de nossos juízos (Begriffsschrift, § 4). Para Frege, a lógica está interessada no reino objetivo dos pensamentos. O ato de julgar é visto por Frege como um fenômeno psicológico, que pertence ao reino de nossas mentes privadas. (...) Mesmo que 268 Frege hesite entre um conceito psicológico e um conceito lógico de juízo, o psicológico sendo o reconhecimento da verdade de um pensamento, ele exclui os fundamentos de nossos juízos do campo de interesse dos estudos lógicos. (p. 242) Já vimos nos capítulos 5 e 6 abundantes fundamentações para nossa constatação de que, para Frege, juízos são psicológicos, confundindo-se com o próprio ato de formar um juízo. Não precisamos reiterar este ponto. Assim sendo, já temos dois elementos que confluem para nossa hipótese de que a noção de conceptividade tem importância para a codificação dos conectivos lógicos por Frege: (a) a visão de Frege segundo a qual a modalidade é uma “indicação para os fundamentos do juízo” de cunho psicológico; (b) o emprego reiterado de modalidade não-trivial (não-combinatória) nas definições dos conectivos dentro do Begriffsschrift (ainda estamos devendo exemplos que justifiquem esta afirmação b). É com base nestes dois elementos que defendemos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA que, no contexto primitivo de codificação lógica, Frege usa a noção de conceptividade para fornecer as funções de verdade para os conectivos lógicos. Vejamos então como este emprego recorrente da modalidade (o elemento b) ocorre, examinando primeiramente o caso exemplar do condicional. Imediatamente após introduzir a tabela de verdade para o condicional, Frege seleciona para discussão os três casos nos quais o condicional ├┬── A └── B resulta verdadeiro. Nos dois primeiros casos, temos (1) a hipótese na qual o conseqüente é necessariamente verdadeiro (“A deve ser afirmado”) e (2) a hipótese na qual o antecedente é necessariamente falso (“B tem que ser negado”), respectivamente. Frege nota bem que, nestas duas hipóteses, sabemos por meio de sua tabela de verdade que o condicional é verdadeiro, na medida em que ambas excluem a ocorrência da linha na qual o antecedente é verdadeiro e o conseqüente é falso, a única linha na qual o condicional resulta falso. Como exemplo do caso (1), Frege apresenta o seguinte enunciado: Se o sol está brilhando, então 3 x 7 = 21; 269 sendo 3 x 7 = 21 necessariamente verdadeiro, o condicional inteiro é necessariamente verdadeiro. Como exemplo do caso (2), Frege apresenta o enunciado a seguir: Se é possível o movimento perpétuo; o mundo é infinito; sendo necessariamente falso que o movimento perpétuo é possível, o condicional inteiro é necessariamente verdadeiro. Frege nota que, tanto em (1) quanto em (2), não é preciso haver uma conexão causal entre antecedente e conseqüente para chegarmos à verdade do condicional; pela mera tabela de verdade aferimos sua verdade.6 O caso (3) apresentado por Frege é aquele em que não se conhecem os valores de verdade nem do antecedente, nem do conseqüente. Neste caso, afirma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Frege, só podemos conhecer o valor de verdade do condicional ao constatarmos a presença de uma conexão causal (ou necessária) entre antecedente e conseqüente: Por exemplo, considere que B representa a circunstância de que a lua está em quadratura com o sol e A a circunstância de que a lua aparece como um semicírculo. Neste caso, podemos traduzir 6 Alguns autores, e.g. Sullivan (2004, p. 675), tomam como descuido de Frege o fato de ele relacionar a noção de causalidade com a implicação material. No entanto, o modo mais natural de entendermos a ocorrência da noção de causalidade dentro do Begriffsschrift é considerar que Frege pretendia que sua conceitografia fosse uma linguagem não somente para as ciências formais, mas também para as ciências naturais. Isto fica claro no prefácio ao Begriffsschrift, onde Frege afirma: “Me parece ainda mais fácil estender o domínio desta linguagem de fórmulas para incluir a geometria. Teríamos somente que adicionar alguns poucos sinais para as relações intuitivas que lá ocorrem. (...) A transição para a teoria pura do movimento e então para a mecânica e a física poderiam seguir a partir deste ponto. Os últimos dois campos, nos quais além da necessidade racional, a necessidade empírica se afirma, são os primeiros para o qual podemos prever um desenvolvimento ulterior da notação, na medida em que o conhecimento progride” (p. 7). Desta maneira, Frege reconhece claramente a diferença entre necessidade lógica e necessidade natural. Mas, a fim de mostrar que sua conceitografia tem potencial de ser aplicável às ciências que empregam ambos os tipos de necessidade, ele emprega a noção genérica de relação causal (necessária), abarcando os dois casos, além de utilizar em seus exemplos enunciados de várias ciências. Presumivelmente, se sua conceitografia fosse empregada nas ciências naturais, o condicional material seria a expressão das relações de necessidade natural. Que Frege entenda “causalidade” como necessidade no sentido amplo (racional e empírica) que estamos propondo é atestado por outro trecho do Begriffsschrift, no qual Frege emprega “causalidade” e “conseqüência necessária” como intercambiáveis, ao afirmar o seguinte acerca do condicional ├┬┬── A │└── B └─── Γ: Se uma conexão causal está presente, podemos também dizer “A é a conseqüência necessária de B e Γ”, ou “Se a circunstância B e Γ ocorrem, então A também ocorre” (p. 15). Em suma, não há confusão ou imprecisão modal de Frege aqui, mas sim a idéia de que as ciências são necessárias e de que sua conceitografia está a serviço de todas as ciências. 270 ├┬── A └── B por meio da conjunção “se”: “se a lua está na quadratura com o sol, a lua aparece como um semicírculo”. A conexão causal inerente à palavra “se”, entretanto, não é expressa por nossos sinais, mesmo embora somente tal conexão possa oferecer o fundamento para um juízo do tipo sob consideração. De que se trata estes três casos? Frege quer mostrar como, dada sua definição do condicional, somos capazes de chegar à verdade de um condicional. Por conseguinte, os três casos arrolados por Frege são precisamente os casos nos quais podemos fundamentar um juízo condicional: (1) conseqüente necessariamente verdadeiro; (2) antecedente necessariamente falso;7 (3) existência de uma relação de causalidade entre antecedente e conseqüente. Os outros dois casos combinatoriamente possíveis, (4) quando sabemos somente que o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA conseqüente é necessariamente falso ou (5) quando sabemos somente que o antecedente é necessariamente verdadeiro, não são capazes de determinar a verdade (ou falsidade) do condicional, e por isto não são mencionados ou discutidos por Frege. Pode-se ver que, em seu tratamento do condicional, Frege não se restringe a dar a interpretação do condicional através da tabela de verdade, como é padrão em livros de lógica, mas se preocupa também em mostrar como podemos fundar e chegar à verdade de um condicional. Assim, ao tratar dos três casos que determinam a verdade de um juízo condicional, ele não está simplesmente enumerando os casos em que, mediante a tabela de verdade, identificamos os condicionais verdadeiros – para isto, bastaria que ele tivesse enunciado os dois primeiros casos. O caso (3) discutido por Frege – uma aberração para os livros de lógica atuais –, juntamente com a menção da modalidade como “inerente à palavra se” – outro procedimento hoje visto com suspeição –, mostra que Frege quer deixar à mostra também o fundamento para o juízo condicional, na linha do determinam seus próprios comentários sobre a modalidade presentes no § 4, onde afirma que a modalidade indica o fundamento do juízo. No caso (3), ele está preocupado com o modo como se chega autonomamente à verdade de um juízo 7 Os casos (1) e (2) são uma amostra clara de que, como afirmamos no capítulo 6 e na nota precedente, Frege pensa em sua lógica sempre empregando conteúdos necessários das ciências. É por isto que ele não se satisfaz em listar (1) como meramente o caso em que o conseqüente é verdadeiro, mas sim como necessariamente verdadeiro, e (2) como meramente o caso em que o antecedente é falso, mas sim como necessariamente falso. 271 (psicológico) condicional, i.e., com os “fundamentos privados”8 do condicional (além dos casos (1) e (2) em que podemos consultar a tabela). Ou seja: ao discutir os três casos em questão, Frege está expondo os fundamentos epistêmicos que dão suporte para sua definição do condicional, e não meramente expondo, a partir da tabela de verdade já definida, as circunstâncias em que o condicional é verdadeiro (se sua preocupação fosse de fato esta, o caso três não teria razão de ser). Isto posto, acreditamos que o caso (3), no qual se chega à verdade do condicional a partir de sua causalidade intrínseca, é a chave para a compreensão de como Frege chega à própria tabela de verdade para o juízo condicional. Em nossa visão, esta modalidade intrínseca ao condicional é o “fundamento privado” para a definição veritativo-funcional que Frege oferece para este conectivo lógico. Vejamos. Ao discutir o caso (3), Frege conclui acertadamente que, quando não se sabe PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA o valor de verdade das sentenças componentes, a existência de uma relação de causalidade/necessidade entre elas é o único meio de determinar o valor de verdade do condicional. Dado este fato, transportemo-nos agora para o momento epistemológico em que Frege se encontrava antes de fornecer a tabela de verdade para o condicional, ou seja, para o momento em que Frege tem justamente a intenção de oferecer esta tabela. Neste ponto, devemos nos lembrar dos preceitos metodológicos de Frege, que discutimos em seção anterior: O que é distintivo sobre minha concepção de lógica é que eu começo por dar um lugar de estima à palavra “verdade”, e então imediatamente procedo a introduzir um pensamento ao qual a questão “é verdadeiro?” é em princípio aplicável. Então, eu não começo com os conceitos e os arranjo de modo a formar um pensamento ou juízo; eu chego às partes de um pensamento analisando o pensamento. (P. W., p. 253) Assim, seguindo as diretrizes metodológicas do próprio Frege, para oferecer a tabela de verdade para o condicional, a primeira coisa a fazer é introduzir pensamentos condicionais e se perguntar se eles são verdadeiros ou não; ou seja, formar o juízo relativo ao pensamento condicional. Mas, como está claro na citação, ele não chega ao juízo relativo ao condicional a partir dos componentes 8 Pegamos emprestada a expressão private grounds de Haaparanta (1988a, p. 251). 272 que o formam. Pelo contrário: é a partir da análise do juízo condicional que Frege chega aos componentes.9 Não são somente as prescrições metodológicas que Frege segue que o forçam a partir do juízo condicional (em vez de suas partes). Na posição epistemológica primitiva em que Frege se encontrava, na qual buscava definir as funções de verdade para o condicional, o único modo de ele fazê-lo era a partir de um juízo condicional, tendo como base a relação causal/necessária entre antecedente e conseqüente. Lembremo-nos de que ele não tinha a tabela de verdade em mãos para determinar a verdade do condicional a partir da verdade das proposições componentes: a tabela era precisamente aquilo que ele desejava descobrir. Ou seja, os valores de verdade das proposições componentes só poderiam lhe dar o valor de verdade do condicional se Frege já soubesse qual era a tabela de verdade do condicional; mas isto era, na ocasião, precisamente seu PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA objeto de pesquisa. Desta maneira, para dar a tabela de verdade do condicional, Frege parte de um condicional necessariamente verdadeiro (i.e., no qual há de fato uma relação “causal” entre antecedente e conseqüente) e se pergunta, em conformidade com o princípio do contexto: que combinações de valores de verdade este condicional necessariamente verdadeiro aceita e que combinações ele exclui? A única combinação excluída é, hoje em dia, conhecida de todos: antecedente verdadeiro e conseqüente falso. Dentro do contexto epistemológico que isolamos, e dado o entendimento modal que Frege tem do condicional, a única razão de esta combinação de valores excluir a verdade do condicional é que, num condicional necessariamente verdadeiro, no qual ignoramos os valores de verdade das proposições componentes, todas as combinações de valores de verdade são concebíveis, com exceção de antecedente verdadeiro e conseqüente falso. Tomemos um exemplo simples para ilustrar este fato: Se todas as partes deste objeto são brancas, então este objeto é branco. 9 O princípio do contexto é formulado principalmente com vistas à análise dos pensamentos em conceitos, mas não há porque não estendê-lo para a análise de pensamentos (ou sentenças) complexos em pensamentos (ou sentenças) simples. Isto continua bastante conforme às prescrições que Frege faz à lógica. 273 Todos reconhecem a verdade deste condicional, mesmo ignorando o valor de verdade das proposições componentes; isto ocorre em virtude da relação causal/necessária entre antecedente e conseqüente. Ou seja, é inconcebível que o antecedente seja verdadeiro e o conseqüente falso – não sou capaz de imaginar que todas as partes de um objeto sejam brancas sem com isto imaginar que o objeto seja branco. (Observe ainda, no mesmo sentido, o exemplo científiconecessário dado por Frege: se a lua está em quadratura com o sol, a lua aparece como um semicírculo.) É trivialmente fácil conceber condicionais necessários com todas as combinações de valores de verdade, exceção feita a antecedente verdadeiro e conseqüente falso, que é inconcebível. Em suma, esta inconceptividade é o que determina, para Frege, que o único caso de falsidade do condicional seja antecedente verdadeiro e conseqüente falso. Assim sendo, defendemos para todos os efeitos que a noção de conceptividade é o fundamento PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA para a definição veritativo-funcional do condicional material. Que Frege tenha de fato empregado noções modais, e em particular a noção de conceptividade, em sua análise veritativo-funcional dos operadores lógicos fica ainda mais claro em sua definição da disjunção, a partir do condicional. Afirma Frege: ├┬── A └┬─ B quer dizer “o caso no qual A é negado e a negação de B é afirmada não acontece”, ou “A e B não podem ser ambos negados”. Somente as seguintes três possibilidades permanecem: A é afirmado e B é afirmado; A é afirmado e B é negado; A é negado e B é afirmado; A e B juntos exaurem todas as possibilidades. As palavras “ou” e “ou bem – ou” são usadas de duas maneiras: “A ou B” quer dizer, em primeiro lugar, justamente o mesmo que ├┬── A └┬─ B, logo isto quer dizer que nenhuma possibilidade além de A ou B é pensável. Por exemplo, se uma massa de gás é aquecida, seu volume ou sua pressão aumentam. (p. 18; grifos nossos) 274 Novamente, o que chama a atenção é que, para fornecer a definição de disjunção a partir do condicional, Frege entenda a verdade de uma disjunção como afirmando que sua negação é impensável; temos aqui nada menos que um operador modal com traços psicologistas.10 Hoje em dia, quando se define o operador de disjunção, atenta-se tão-somente aos valores de verdade das proposições componentes: uma disjunção será falsa se ambos os disjuntos forem falsos e verdadeira em todos os outros casos. Por conseguinte, na interpretação corrente, que ambos os disjuntos sejam falsos não é tomado como uma afirmação de que a disjunção é impensável (ou impossível). Assim, o emprego do termo “[im]pensável” por Frege indica que, ao definir a disjunção a partir do operador condicional, Frege continua pensando em termos de conceptividade. A presença deste elemento modal na definição da disjunção decorre do fato de Frege estar definindo a disjunção a partir de juízos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA condicionais nos quais há conexão necessária. Ou seja, assim como, a fim de dar a tabela de verdade para o condicional, Frege parte de um condicional “causalmente” necessário (que o permite ver, através da noção de conceptividade, que somente a linha com antecedente V e conseqüente F é inconcebível), ele, a fim de dar a tabela de verdade da disjunção, também pensa em ├┬── A └┬─ B como um condicional causal necessário. E isto explica porque Frege entende a negação da disjunção como impensável; ela seria, neste caso, estritamente equivalente à hipótese em que um condicional é inconcebível (antecedente verdadeiro e conseqüente falso). A modalidade empregada por Frege no caso da disjunção é irretocável e deixa evidente o “fundamento privado” que ele emprega para o juízo. Mais uma vez, Frege está deixando à mostra, além da tabela de verdade para a disjunção, os fundamentos que o levaram à interpretação do juízo disjuntivo. Como Frege o extrai diretamente dos juízos condicionais, a modalidade presente nos 10 Este é um dos vários empregos de “pensar” (e flexões) feitos por Frege que não se reduzem ao seu jargão oficial (segundo o qual pensar é somente apreender um pensamento), que detectamos no capítulo 5 e 6. O que aqui Frege afirma ser impensável, ~(B ∨ A), tem o sentido perfeitamente apreendido por qualquer um, embora não possa ser concebível, como estamos em vias de explicar. Repare-se também na afirmação “A e B não podem ser ambos negados”, grifada logo no início da citação. 275 fundamentos do juízo condicional é transmitida para a disjunção. Esta modalidade inerente ao condicional é transmitida também para formas mais complexas de juízo, como por exemplo ├┬┬── A │└── B └─── Γ, sobre o qual Frege afirma que: Se uma conexão causal está presente, podemos também dizer: “A é a conseqüência necessária de B e Γ”, ou “se as circunstâncias B e Γ ocorrem, então A também ocorre”. (Begriffsschrift, p. 15, grifos nossos) É transmitida também para a forma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA ├┬── Γ └┬─ A └─ B, sobre a qual Frege afirma: Se assumirmos que existe uma conexão causal entre A e B, podemos traduzir a fórmula como “se A é uma conseqüência necessária de B, pode-se inferir que Γ ocorre”. (Ibid., grifos nossos) (Temos que notar que, quando examina a conjunção, Frege emprega somente a possibilidade combinatória para que chamamos a atenção no início da seção; a conjunção é apresentada de modo que a modalidade relevante não fica à mostra. Este é o único caso.) Enfim, o emprego reiterado da modalidade ao longo das definições, em conjunção com os princípios metodológicos de Frege e seus comentários sobre a “causalidade inerente” ao condicional (mas não ao seu símbolo condicional), mostra que, a fim de codificar as funções de verdade relativas aos conectivos lógicos, Frege parte de juízos condicionais causais necessários e os avalia em termos de conceptividade, e assim chega à tabela de verdade. É dentro do universo confessamente psicológico dos juízos e da modalidade que Frege encontra respaldo para avaliar as intensões ligadas a proposições complexas e fornecer as funções de verdade que as expressam. 276 7.3.3 Alguns Possíveis Questionamentos Dedicamos esta seção à discussão de alguns questionamentos e oposições que podem ser feitos à nossa explicação de como Frege codifica o condicional. Um possível questionamento à nossa análise da definição do condicional fregiano é a alegação de que, em nossa tentativa de explicar a codificação lógica de Frege, estamos fazendo confusão entre condicional material e implicação lógica (ou ainda, que Frege tenha feito esta confusão). Hoje em dia, em qualquer livro de lógica elementar, há o esforço de se distinguir com clareza o condicional material da implicação lógica. Enfatiza-se que o condicional material deve ser entendido como afirmando exclusivamente que é falso que o antecedente é verdadeiro e o conseqüente falso, e que não se deve assumir a existência de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA qualquer relação lógica ou causal entre antecedente e conseqüente. Ao mesmo tempo, é enfatizado que, numa implicação lógica, a verdade do antecedente determina a verdade do conseqüente. Um exemplo de como é feita esta distinção pode ser encontrado em Tugendhat (1996): A forma “Se p, então q” definida deste modo verofuncional é caracterizada como implicação material. Esse conceito deve ser nitidamente diferenciado do conceito de implicação analítica ou lógica (...). Este último conceito deve ser entendido do seguinte modo: se “q” é implicado logicamente por “p”, isso significa que é impossível que, se “p” for verdadeiro, “q” seja falso, e que estamos por isso autorizados a inferir “q” de “p”. Face a isso, a implicação material “se p, então q” significa apenas que essa frase é falsa se “p” é verdadeiro e “q” é falso. Assim, por exemplo, a frase “se Londres está na Inglaterra, então o mar é salgado” é uma implicação material verdadeira, pois “p” é verdadeiro e “q” não é falso. Aqui não existe, por um lado, nenhuma necessidade e, por outro, nem uma relação referente ao conteúdo nem uma relação formal entre as duas frases componentes, também não existindo portanto nenhuma possibilidade de se inferir, a partir da verdade de uma, a verdade da outra. (pp. 87-88) Tendo em vista esta distinção primária, alguns autores esforçam-se, inclusive, para encontrar contextos da linguagem ordinária que corroborem a visão estritamente material do condicional. Um exemplo desta tentativa é o condicional: Se Pelé é melhor que Maradona, então eu sou mais sábio que Aristóteles. 277 Quem emprega esta sentença tem a pretensão de afirmar que Maradona é melhor que Pelé (o que eu, pessoalmente, considero verdadeiro), ou seja, que é falso que “Pelé é melhor que Maradona”. O modo de fazer isto é integrar esta última sentença a um condicional material no qual o conseqüente é obviamente falso, no caso, “eu sou mais sábio que Aristóteles”. Sendo falsa esta última sentença, e dada a tabela de verdade para o condicional material, a única forma de o condicional ser verdadeiro é que o antecedente também seja falso. Mas é exatamente isto que, no final das contas, se quer afirmar. Este seria um uso natural do condicional material, condizente com a linha da tabela de verdade na qual o antecedente e o conseqüente são falsos e o condicional verdadeiro. Não estamos fazendo qualquer confusão, e muito menos Frege (como afirmam alguns, e.g. Sullivan 2004, p. 675; ver discussão mais abaixo). O que temos tentado mostrar é que, para chegar à definição puramente veritativoPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA funcional do condicional material, Frege é obrigado a pensar em termos modais por um motivo muito simples: não há outras opções. Já a definição, em si, é expressa em termos puramente materiais, e é exclusivamente desta maneira que o operador, uma vez definido, deve ser entendido: para fins demonstrativos, dentro do contexto das ciências, ele capta o essencial da relação de implicação. Não devemos jamais esquecer que estamos lidando com o contexto epistemológico primitivo no qual Frege codifica sua linguagem lógica (conectivos, função, quantificação etc.), e que, por conseguinte, o universo epistemológico com o qual ele está lidando é muito diferente do universo de alguém que simplesmente apresenta seu sistema de lógica, como ocorre hoje em dia. Uma opção à noção de conceptividade, alguns diriam, seria o apelo ao uso lingüístico. Mas, que nosso emprego do condicional dentro da linguagem ordinária seja de fato condizente com a interpretação veritativo-funcional é muitíssimo discutível. Há pouco, vimos que, com algum custo, encontra-se um contexto natural para a linha antecedente falso, conseqüente falso e condicional verdadeiro (repare, contudo, que este emprego tem uma forte carga de ironia, que não é apreendida pela definição funcional, além de ter como objetivo principal a asserção da negação do antecedente, em vez da asserção do próprio condicional). Mas tente encontrar um emprego natural do condicional que dê conta da linha da tabela na qual o antecedente é falso e o conseqüente verdadeiro. Confessamos não conhecer. Ademais, o emprego do condicional dentro da linguagem ordinária é 278 eivado de falácias, as quais não teríamos meios de distinguir se o uso da linguagem fosse o fundamento para a interpretação dos conectivos. Neste sentido, coloca Chateaubriand (2001): Deveríamos apelar para as práticas dedutivas? O que explica estas práticas? Elas são preservadoras de verdade? Se os princípios dedutivos da lógica são baseados em práticas dedutivas factuais, então como (ou por que) alguém desqualifica práticas comuns de dedução que não são preservadoras de verdade? A prática de afirmação do conseqüente, por exemplo, é muito bem estabelecida e pode de fato ser bastante útil em muitas circunstâncias específicas. Parece-me que nenhuma teoria da dedução, baseada no significado, nas práticas dedutivas e coisas semelhantes pode garantir a preservação de verdade. (p. 21; grifos do autor) Como bem nota Chateaubriand, a levarmos em conta as práticas lingüísticas factuais, poderíamos ser levados a considerar um condicional com antecedente verdadeiro e conseqüente falso como verdadeiro. Em adição a estes problemas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA todos, há ainda o fato de que, como vimos em nossa discussão da linguagem ordinária em Frege, o mesmo tem como regra metodológica não se basear puramente na linguagem natural quando se trata de questões lógicas. Nada do que dissemos acerca do lugar da noção de conceptividade dentro da codificação do condicional obsta ao fato de que a tabela de verdade à qual Frege chega é, por si só, uma definição de um condicional material. Os elementos psicológico e modal estão presentes apenas na codificação do condicional, fornecendo o “fundamento [Grund] para o juízo [condicional]” (Begriffsschrift, p. 14). Ao apelar à conexão necessária, Frege não está confundindo ou misturando os dois tipos de implicação (material e lógica); o elemento de necessidade é importante para a codificação das funções de verdade do condicional, enquanto o resultado, a definição do condicional material fornecida por meio de uma interpretação veritativo-funcional, é formulado e oferecido puramente em termos dos valores de verdade das proposições componentes. Hoje em dia, o elemento modal e psicologista é completamente ignorado nas definições dos operadores, por uma razão simples: já sabemos quais são estas funções; estamos somente as reproduzindo. É notável que, diante do uso recorrente da modalidade por Frege ao longo do Begriffsschrift, muitos comentadores tenham optado por não levar este fato em conta em suas interpretações e por simplesmente ignorar a modalidade em Frege, vendo-a como uma façon de parler ou como algum tipo de descuido. Esta 279 abordagem ocasiona distorções e nos torna incapazes de perceber como Frege está de fato operando na elaboração de sua conceitografia. Um exemplo é Sullivan (2004), talvez seguindo seu mentor, Dummett, comentando o Begriffsschrift: (...) ao responder à questão secundária [sobre como o símbolo condicional é traduzido pela palavra “se”], Frege oferece uma representação incorreta e descuidada de “se”, sugerindo que ele sempre traz sugestão de uma conexão causal entre antecedente e conseqüente: “se” (ou “wenn”) não é preocupação sua; ele presta somente atenção suficiente nas complexidades de seu significado para desconsiderá-lo. (p. 675) Sullivan está comentando o seguinte trecho do Begriffsschrift: A conexão causal inerente à palavra “se”, contudo, não é expressa por nossos signos, mesmo embora somente uma conexão deste tipo possa fornecer o fundamento para um juízo do tipo sob consideração. (p. 14, grifos nossos) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Não vemos confusão nos comentários de Frege. Quando Frege afirma que o significado do condicional recém-definido não engloba a causalidade/necessidade inerente ao “se”, Frege está deixando claro que, em seu sistema, entenderá o condicional puramente a partir da definição veritativo-funcional na medida em que esta definição é suficiente para o exame das estruturas inferenciais da aritmética. Não obstante, ao reconhecer a causalidade inerente ao “se” e que ela é importante como fundamento do juízo condicional, ele está expondo o modo como chegou e como justificou sua definição, conforme já expusemos. Também, como já colocamos, não há qualquer incongruência ou descuido com relação à necessidade associada ao “se”: ela é clara e rigorosa. Tampouco Frege deixa de dar importância a esta característica de necessidade: basta notar que ele simplesmente afirma que, em determinados casos, somente ela pode nos levar à verdade do condicional; e, conforme defendemos, é somente mediante este elemento que Frege pode chegar à sua definição, dadas as suas circunstâncias epistemológicas e metodológicas. Com relação ao emprego, por Frege, do termo “causal”, mais afeito às ciências naturais que às ciências formais, vimos ainda que Frege tem consciência da diferença entre necessidade lógica e necessidade natural, e que a ocorrência deste termo explica-se pelo desejo de Frege de ver sua conceitografia ser aplicada a ambos os universos científicos. Outros que afirmam que Frege não é cuidadoso no emprego da modalidade são Fitting e Mendelsohn (1999, p. 44). Segundo eles, ao afirmar que “[o 280 elemento de necessidade] não afeta o conteúdo conceitual de um juízo”, Frege confunde ├p sse├ p, que é válido, com p ≡ p, que é inválido em geral. Ocorre que Frege está preocupado única e exclusivamente com a ciência, e em especial com a aritmética. No universo proposicional da aritmética, de fato p sse p e ├p sse├ p, de modo que a asserção explícita de necessidade de fato não tem valor cognitivo relevante, não sendo informativa. Como coloca Dwyer (1989), no universo proposicional com que Frege lida no Begriffsschrift não consta “o gato está sobre o tapete” ou “o atual Rei da França é calvo” ou “Aristóteles gostava de cães”. Seus exemplos são todos tirados das ciências, que ele julga necessárias e conforme as quais raciocina. 7.4 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA A Análise Funcional e os Quantificadores As duas maiores contribuições de Frege à lógica estão contidas no modo como ele analisa conteúdos a partir da estrutura função-argumento, em vez de partir da estrutura sujeito-predicado, e na introdução de quantificadores, a fim de expressar generalidade. Como já deixamos claro, nosso objetivo nesta seção é expor estas contribuições (7.4.1 e 7.4.2) e, em seguida, mostrar como a noção de conceptividade foi importante para a elaboração dos quantificadores (7.4.3). 7.4.1 A Análise Funcional Frege desenvolve sua conceitografia com vistas a dois objetivos conexos: tornar possível a expressão do conteúdo dos enunciados ao mesmo tempo em que se deixam à mostra todos os elementos que possibilitam inferências de um pensamento a partir de outro. Como sintetiza Picardi (1994), “o primeiro problema que o Begriffsschrift deve resolver é aquele de representar o conteúdo de um enunciado de modo a predispô-lo ao tratamento dedutivo” (p. 189). A análise tradicional por meio das noções de sujeito e predicado não agradavam a Frege por serem incapazes de, por exemplo, expor o mecanismo presente em inferências relacionais simples. Já Leibniz reconhecia que “existem boas 281 conclusões assilogísticas, e.g.: Jesus Cristo é Deus, logo a mãe de Jesus é a mãe de Deus”. De fato, já Aristóteles reconhecia este fato, num certo sentido. Frege consegue operar um grande avanço na lógica ao substituir as noções de sujeito, predicado e cópula, presentes na lógica tradicional, por novas noções, inspiradas pelo emprego das funções dentro da aritmética. No lugar das noções de sujeito e predicado, temos as noções de argumento e função; no lugar da noção de cópula, temos “a imagem de insaturação (Ungesättigtheit) e da necessidade de completamento (Ergänzungsbedürftigkeit)” (Picardi 1994, p. 192). A ruptura com a lógica tradicional, neste ponto, parece ser aguda. Enquanto Aristóteles divide o juízo em onoma/rhema e estabelece que fazer uma afirmação consiste em dizer, por meio destes elementos, que alguma coisa tem ou não tem um atributo,11 Frege afirma que “a relação lógica fundamental é aquela de um objeto recair sob um conceito: todas as relações entre conceitos podem ser PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA reduzidas a esta”.12 Ele afirmaria ainda que “a própria natureza de uma função é sua insaturação” (“Logic in Mathematics”, In Posthumous Writings, p. 239). Mas isto é perto de tudo o que Frege tem a dizer sobre a natureza essencial de uma função. No mesmo texto, ele evidencia a dificuldade de apreender o que é uma função: Não é possível dar uma definição do que é uma função, porque temos que lidar aqui com algo simples e não-analisável. É possível somente indicar o que se quer dizer e deixar isto claro relacionando-o com o que é conhecido. (p. 235) Contudo, há indicações nos textos de Frege que apontam que, do ponto de vista metafísico, talvez não haja realmente uma ruptura com relação à visão predicativa de Aristóteles. Observemos a seguinte afirmação de Frege: É da essência do conceito ser predicativo. Se um nome próprio vazio ocorre em uma sentença, cujas outras partes são conhecidas, de modo que a sentença tem um sentido assim que um sentido é dado ao nome próprio, então, na medida em que o nome próprio permaneça vazio, a sentença contém a possibilidade de um enunciado, mas não temos um objeto acerca do qual algo está sendo dito (P.W, p. 214) 11 Ver Da Interpretação, capítulo 1: “é na composição e na divisão que consistem o verdadeiro e o falso” (16a 10); capítulo 5: “toda proposição [verdadeira ou falsa] depende necessariamente de um verbo” (17a 10); “a proposição simples é uma emissão de voz possuidora de uma significação concernente à presença ou ausência de um atributo em um sujeito” (17a 20-25). 12 Escritos Póstumos, p. 118. No vocabulário de Frege, um conceito é uma função cujo valor é um valor de verdade. Ver “Função e Conceito”, p. 30. 282 Este trecho sugere que os elementos argumento e função relacionam-se de maneira semelhante ao sujeito e predicado clássicos. Neste caso, a descoberta de Frege teria sido a revelação de que várias relações predicativas podem existir num mesmo conteúdo cognitivo. Frege não teria excluído a cópula, mas sim mostrado que ela pode ocorrer de múltiplas formas.13 Passemos agora à análise funcional de Frege, propriamente dita. Frege expressa sua nova maneira de estruturar os enunciados da seguinte maneira, no Begriffsschrift: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Se em uma expressão, cujo conteúdo não precisa ser capaz de tornar-se um juízo, um sinal simples ou composto tem uma ou mais ocorrências e se reconhecermos este sinal como substituível em todas ou em algumas destas ocorrências por alguma outra coisa (mas em todos os lugares pela mesma coisa), então chamamos a parte que permanece invariante na expressão uma função, e a parte substituível o argumento da função. (p. 22) Podemos ilustrar a análise proposicional de Frege com seu próprio exemplo. Tome o enunciado inicial: hidrogênio é mais leve que o dióxido de carbono. Neste enunciado, podemos substituir o sinal para hidrogênio pelo sinal para oxigênio (ou outros). A partir desta perspectiva, o enunciado é, nas palavras de Frege, decomposto em um elemento estável, {...} é mais leve que o dióxido de carbono,14 e um elemento instável, o sinal para hidrogênio, passível de ser substituído por outros. O elemento estável é a função, enquanto o elemento instável é o argumento da função. Esta perspectiva nos permite enxergar os enunciados como dotados de uma estrutura funcional insaturada que pode dar lugar a infinitos outros enunciados, quando a insaturação é preenchida. Assim, a função 13 Esta visão, me parece, subjaz a muitos aspectos de Chateaubriand (2001), e se evidencia em vários momentos, e.g., em sua análise das descrições definidas, na qual estão presentes explicitamente em sua própria codificação lógica tanto a estrutura funcional quanto a relação de predicação entre os termos. Ver Chateaubriand (2001), capítulo 3. 14 Empregamos o símbolo “{...}” para expressar a insaturação presente em uma função. 283 {...} é mais leve que o dióxido de carbono pode dar lugar a inúmeros novos enunciados, ao ter sua insaturação preenchida. Como Frege exemplifica, a partir dele podemos chegar aos enunciados {oxigênio} é mais leve que o dióxido de carbono, {nitrogênio} é mais leve que o dióxido de carbono etc. Frege aponta também que há grande flexibilidade no modo como se pode estruturar um enunciado, ou seja, no que se toma como função e argumento da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA função. No enunciado inicial hidrogênio é mais leve que o dióxido de carbono, podemos tomar hidrogênio é mais leve que {...} como função e “dióxido de carbono” como argumento. Ou ainda hidrogênio {...} dióxido de carbono como função e “é mais leve que” como argumento. Ou ainda {...} é mais leve que {...} como função, e “hidrogênio” e “dióxido de carbono” como argumentos. Assim, para um mesmo conteúdo conceitual, um mesmo pensamento, temos modos diferentes de o enxergar em termos de função e argumento. Frege observa que estas diferentes maneiras de enxergar a estrutura funcional de um mesmo conteúdo conceitual não têm influência sobre o próprio conteúdo conceitual: 284 A distinção [função e argumento] não tem nada a ver com o conteúdo conceitual; ela aparece somente porque vemos a expressão de um modo particular. (p. 22) O que, exatamente, todas estas diferentes maneiras de enxergar um mesmo conteúdo em termos de função e argumento têm a ver com nossa observação inicial acerca da preocupação de Frege em revelar, em sua lógica, as características inferenciais dos pensamentos? Acontece que estas diferentes esquematizações de um mesmo conteúdo conceitual, ou pensamento, deixam às claras os diferentes modos como este mesmo conteúdo pode relacionar-se inferencialmente com outros conteúdos, ou seja, deixam à mostra de que outros conteúdos ele pode ser inferido e que outros conteúdos podem ser inferidos dele. Por exemplo, se o enunciado inicial em discussão for estruturado em função e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA argumento da maneira a seguir: (I) {hidrogênio} é mais leve que o dióxido de carbono, então fica exposto o fato de que este enunciado pode ser inferido de Tudo é mais leve que o dióxido de carbono. Ou seja, de ∀x Rxb, posso inferir que Rab. Fica claro ainda que, do enunciado inicial estruturado da maneira (I), podemos deduzir que Existe pelo menos um elemento que é mais leve que o dióxido de carbono. Ou seja, de Rab, podemos inferir ∃x Rxb. Se agora estruturarmos o enunciado inicial de outro modo, com outros termos ocupando os lugares de função e argumento, novas relações inferenciais serão reveladas. Por exemplo, se o enunciado primitivo for estruturado em função e argumento da maneira a seguir: (II) hidrogênio {é mais leve que} o dióxido de carbono, então ficará evidenciado que ele pode se inferido de afirmação de que 285 hidrogênio tem todas as relações com o dióxido de carbono Ou seja, de ∀X Xab, podemos inferir Rab. Ficará evidenciado também que deste conteúdo podemos deduzir que o hidrogênio tem alguma relação com o dióxido de carbono. Ou seja, de Rab, podemos inferir ∃X Xab. Outras relações inferenciais imediatas se revelam se estruturarmos (III) {...} é mais leve que {...} PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA como função, e “hidrogênio” e “dióxido de carbono” como argumentos, e assim por diante. Por conseguinte, com as diferentes maneiras de estruturar um mesmo conteúdo através das noções de função e argumento, Frege torna cristalina toda uma rede de inúmeras inferências simples e imediatas ligadas a um mesmo conteúdo cognitivo. A possibilidade de várias análises que um mesmo conteúdo pode sofrer em termos de função e argumento é discutida por Frege no Begriffsschrift e em vários outros lugares com o intuito de mostrar como sua perspectiva é superior, do ponto de vista expressivo e inferencial, à visão restrita às noções de sujeito e predicado ou em comparação com outras lógicas em voga em seu tempo (e.g. a lógica de Boole). É claro que, para expressar toda esta gama de casos e tirar proveito de seu potencial inferencial, Frege deve introduzir em sua lógica uma notação funcional. Eis sua formulação no Begriffsschrift, que é clara o bastante: A fim de expressar uma função indeterminada de argumento A,15 escrevemos A entre parênteses, à direita da letra, por exemplo Φ(Α). Do mesmo modo, 15 O que notamos anteriormente para o caso da lógica proposicional de Frege vale também aqui: Α e Β são maiúsculas das letras gregas alfa e beta. Frege emprega maiúsculas gregas a fim de formular afirmações sobre seu sistema. 286 Ψ(Α, Β) quer dizer uma função de dois argumentos Α e Β que não é determinada além disto. Aqui as ocorrências de Α e Β entre parênteses representam as ocorrências de Α e Β em uma função, a despeito de serem estas unitárias ou múltiplas para Α ou para Β. Assim, em geral Ψ(Α, Β) difere de Ψ(Β, Α). Funções indeterminadas de mais argumentos correspondente. (Begriffsschrift, p. 23) são expressas de modo As funções definidas por Frege podem figurar naturalmente à direita das barras de juízo e conteúdo empregadas por ele; neste casos, devem ser consideradas como funções proposicionais ou sentenças abertas, pois, se tiverem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA sua insaturação preenchida por um argumento condizente, resultarão em uma proposição verdadeira ou falsa. Mas, como já observarmos, no Begriffsschrift, Frege se omite totalmente quanto ao valor de uma função, em particular quanto ao valor de uma função proposicional (o que viria a chamar de “conceito”). O mais longe que Frege vai no Begriffsschrift é afirmar que a função ├─ Φ(Α) pode ser lida como afirmando que “Α tem a propriedade Φ” (Ibid., p. 23-24).16 É claro que, dependendo do que pusermos no lugar de A, a função resultará num juízo verdadeiro ou falso e, ao ajuntar a barra de juízo à função, Frege mostra que está plenamente consciente disto; mas isto é diferente de dizer que estes valores de verdade resultantes são o valor da própria função. 7.4.2 Quantificadores Voltamo-nos agora para aquele que é, nas palavras de Dummett, “o maior avanço técnico jamais feito em lógica”, a invenção do quantificador (Begriffsschrift § 11). Nesta seção, temos como objetivo somente apresentar as inovações de Frege; o 16 Esta leitura heurística da relação funcional em termos de propriedade é mais um elemento que aponta para a possibilidade de que a análise funcional fregiana não represente uma ruptura com a visão aristotélica. 287 modo como a noção de conceptividade está envolvida na descoberta destas inovações será visto em 7.4.3. No Begriffsschrift, Frege introduz o quantificador universal como o meio de expressar generalidade. No caso básico de expressão de generalidade, o quantificador deve ser prefixado à barra de conteúdo de uma função quando se quer afirmar que ela é verdadeira para qualquer coisa que venha a figurar como argumento seu. Como isto se dá, inclusive em termos de expressão simbólica, fica claro na própria formulação de Frege: Na expressão de um juízo, podemos sempre reconhecer a combinação de sinais à direita de ├─ como uma função de um dos sinais ocorrendo nela. Se substituirmos este argumento por uma letra gótica e se na barra de conteúdo introduzirmos uma concavidade com esta letra gótica sobre ela, como em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA a Φ(a), ├─◡─ isto representa o juízo de que, o que quer que tomemos como seu argumento, a função é um fato.17 (p. 24) Os comentários de Frege imediatamente seguintes visam a permitir também a quantificação de segunda ordem e ordens superiores em seu sistema. Ele afirma: Dado que uma letra usada como um sinal para uma função, tal como Φ em Φ(A), pode ser considerada como o argumento de uma função, seu lugar pode ser assumido, da maneira recém-especificada, por uma letra gótica. (Ibid.) Um simbolismo para este tipo de quantificação, porém, só é apresentado por Frege nas Leis Básicas, onde ele afirma: Entendemos por f “─◡─┬──── f (Γ) │ a └◡── f (a)” o valor de verdade de se obter sempre um nome do Verdadeiro, qualquer que seja o nome de função que se possa colocar no lugar de “f” em “─┬──── f (Γ) │ a └◡── f (a)”. (p. 71) 17 Adotamos “a”, “e”, “i”, “o”, “u”, “f” como letras góticas e “a”, “e”, “i”, “o”, “u”, “f” como letras latinas. 288 O restante do § 11 é dedicado a expor as qualidades expressivas da notação, bem como a enunciar regras, de modo mais ou menos explícito, para o trato do quantificador quando ele está em interação com vários contextos sentenciais. Estas regras não são introduzidas formalmente no sistema como regras de inferência (somente a regra de modus ponens tem esta prerrogativa). Há alguma discordância na literatura secundária acerca de quantas seriam estas regras de inferência adicionais presentes no sistema de Frege (i.e., expostas informalmente e empregadas implicitamente em suas deduções).18 Passamos ao largo desta discussão. Em nossa apresentação abaixo, buscamos somente expor os procedimentos que Frege identifica com corretos e por isso permitidos em seus sistema. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Uma primeira observação que Frege faz é que: De um [juízo universal] podemos sempre derivar um número arbitrário de juízos de conteúdo menos geral, colocando a cada vez algo diferente no lugar da letra gótica e então removendo a concavidade da barra de conteúdo.19 (p. 24) Esta regra é semelhante à regra de eliminação do universal. Mediante esta regra, podemos, por exemplo, inferir de a Φ(a) ├─◡─ que ├── Φ(α), onde “α” é uma constante individual.20 18 Por exemplo, Kneale e Kneale (1968, p. 494) contabilizam quatro regras adicionais (além de modus ponens); Sullivan (2004, pp. 671-672) contabiliza cinco regras adicionais. O próprio Frege enumera cinco, contando com modus ponens (Posthumous Writings, p. 39). 19 Uma observação incidental. Na tradução ao inglês que estamos empregando, este trecho aparece da seguinte maneira: “From a [universal judgement] we can always derive an arbitrary number of judgements of less general content by substituting each time something else for the German letter and then removing the concavity in the content stroke”. Este trecho evidencia uma diferença importante entre o significado das palavras “substitute” do inglês e “substituir” do português, que tememos que por vezes passe despercebida. Em inglês, quando se diz “I substituted A for B”, se quer afirmar que se colocou A no lugar de B; isto está evidenciado na citação de Frege acima. Em português, ao invés, quando se afirma “eu substituí A por B”, se quer afirmar que se colocou B no lugar de A. Neste caso, o termo “substituir” do português funciona de modo semelhante ao termo “replace”, do inglês. Assim, “substitute ... for ...” é muito diferente de “replace ... by ...” e de “substituir ... por ...”. Contudo, em ambas as línguas, quando se afirma “A substituted B” e “A substituiu B”, deseja-se afirmar que A foi colocado no lugar de B. 20 Note-se, porém, que Frege não introduz constantes individuais, ou o que muitos chamam de “dummy constant”, em seu sistema. Segundo Sullivan (2004, p. 665, nota 4), porém, em alguns casos as letras latinas (que trataremos em breve) são tratadas como dummy constants dentro das 289 Um segundo procedimento determinado por Frege é o seguinte: Substituir uma letra gótica em todos os lugares dentro de seu escopo por alguma outra é, evidentemente, permitido, contanto que, nos lugares onde havia letras diferentes, permaneçam letras diferentes. (p. 25) Assim, se temos a Φ(a), ├─◡─ podemos muito bem substituir a por e, e assim chegar a e ├─◡─ Φ(e). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA E se temos e ├─◡┬─── Φ(e) │ a └◡── Φ(a), podemos substituir a e e por outras letras góticas, com o cuidado de manter letras diferentes em lugares diferentes e letras iguais em lugares iguais (podemos até inverter a por e, se isto for respeitado); assim, do juízo acima, podemos, por exemplo, chegar ao juízo: i ├─◡┬─── Φ(i) │ o └◡── Φ(o). Um terceiro procedimento que Frege determina é que, nos casos em que a concavidade situa-se imediatamente após a barra de juízo, ela pode ser omitida juntamente com a letra gótica situada sobre ela, ao mesmo tempo em que todas as ocorrências da letra gótica em questão sejam substituídas por letras latinas. Afirma Frege: Uma letra itálica terá sempre como seu escopo o conteúdo do juízo inteiro, e este fato não precisa ser indicado por uma concavidade na barra de conteúdo. (p. 25) Assim, por exemplo, ao invés de escrever a Φ(a), ├─◡─ inferências de Frege. A letra grega minúscula é uma adaptação nossa como expressão de uma constante individual. 290 podemos simplesmente escrever ├── Φ(a). O escopo da generalidade, nestes casos, é determinado pela barra vertical de juízo, que cobre o enunciado inteiro. Este procedimento é introduzido por Frege literalmente como uma “abreviação”, com vistas a permitir que as deduções sejam feitas de maneira mais ágil. Um quarto procedimento descrito por Frege consiste simplesmente na reversão do último procedimento: Uma letra latina pode ser sempre substituída por uma letra gótica que ainda não ocorre no juízo; então, a concavidade deve ser introduzida imediatamente após a barra de juízo. Por exemplo, em vez de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA ├── Χ(a), podemos escrever a Χ (a) ├─◡─ se a ocorre somente nos lugares para argumentos, em Χ (a). (p. 25) Um quinto procedimento prescrito por Frege constitui-se, na verdade, numa ampliação do quarto procedimento, ao permitir a introdução das letras góticas e da concavidade no lugar de uma letra latina quando esta se situa no conseqüente de um condicional e não ocorre no antecedente. Neste caso, a introdução do quantificador na barra de conteúdo do próprio conseqüente, assim reduzindo o escopo da generalidade, não atenta contra o conteúdo do enunciado como um todo: É claro também que de ├┬── Φ(a) └── A, podemos inferir a ├┬◡── Φ(a) └─── A 291 se A é uma expressão na qual a não ocorre e se a figura somente nos lugares de argumento de Φ (a). (p. 26) Dado que a não ocorre em A, a redução do escopo da generalidade ao conseqüente, via quantificação universal, não acarretará nenhum dano expressivo. Estes são todos os procedimentos explicados no Begriffsschrift. Segundo coloca van Heijenoort, na introdução ao Begriffsschrift, não há uma regra de substituição21 explicitamente enunciada por Frege nesta obra, embora ele a empregue em algumas deduções feitas ao longo do Begriffsschrift. Sullivan (2004) observa que esta ausência de definição explícita da regra de substituição tem motivado críticas a Frege, dentre outras coisas, por evidenciar que Frege emprega um princípio ou regra não enunciada, algo que sua conceitografia justamente pretendia evitar. Ele aponta, todavia, que talvez haja meios de tratar desta omissão a partir das regras que Frege apresenta explicitamente. (ver pp. 672PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA 673) Frege não tem simbolismo para o quantificador existencial. Ele define a quantifica-ção existencial de modo padrão em termos de quantificação universal, mas permanece empregando um simbolismo especial somente para o último caso, por motivos de concisão. Frege define “existem Λ” como a ├┬─◡┬─ Λ (a). (p. 27) De resto, temos que notar algumas características costumeiramente lembradas quando se trata da quantificação fregiana. Para Frege, a quantificação diz respeito literalmente a todos os entes existentes, ou seja, a todos os argumentos ou funções, conforme os tipos apropriados. Como coloca Goldfarb (1979, p. 352), “o universo do discurso é sempre o universo, apropriadamente segmentado”. Como não há domínio para variáveis, a quantificação de Frege pode ser vista como uma quantificação substitucional: o valor de verdade de uma sentenças quantificada, neste caso, resulta da substituição da variável por termos do tipo apropriado (ver Chateaubriand 2001, p. 264). 21 Eis uma apresentação contemporânea clara da operação de substituição: “Se v é uma variável, então a expressão da forma (∀v) é um quantificador universal sobre v, e (∃v) é um quantificador existencial sobre v. Seja Φ uma fórmula. Então (∀v) Φ é a generalização universal sobre Φ com respeito a v, e (∃v) Φ é uma generalização existencial de Φ com respeito a v. Se k é uma constante individual ou uma variável, então Φ[v/k] denota o resultado de substituir todas as ocorrências livres de v em Φ por ocorrências de k. Se Φ não tem ocorrências livres de v, então Φ[v/k]=Φ” (Causey 2001, p. 289). 292 7.4.3 Quantificadores e Conceptividade Agora concentramos nossos esforços em mostrar a importância da noção de conceptividade na codificação dos quantificadores. Para chegarmos até lá, no entanto, precisamos refazer, em linhas gerais, a partir das evidências históricas e textuais existentes, a trajetória de Frege na construção de sua conceitografia. Ao reconstruirmos este percurso, ficarão claros tanto que os quantificadores nascem para tratar de um problema específico que ocorre no seio da visão funcional que o próprio Frege prescreve quanto o lugar exato da noção de conceptividade na codificação dos quantificadores. Para facilitar a organização cronológica e a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA leitura desta seção, subdividimo-la em parágrafos discriminados. Em (A), mostramos algumas possíveis fontes22 da estruturação funcional de Frege, que o teriam inspirado a desenvolver sua notação do modo que ele o fez. Em (B), mostramos que o recurso inicial para a expressão da generalidade a que Frege chegou foi o emprego de letras (e não o mecanismo do quantificador), tendo Frege chegado, então, ao que podemos chamar de uma protoconceitografia; isto fica patente a partir de nosso exame do tratamento que Frege dispensa à quantificação ao longo de sua obra. Em (C), mostramos como Frege desenvolveu a quantificação a fim de resolver um problema específico existente em sua protoconceitografia, na qual as letras eram o único recurso para expressar a generalidade; ele o fez, a exemplo da codificação do condicional, respeitando o princípio do contexto e com o auxílio da noção de conceptividade. Ainda em (C), apresentamos uma cronologia resumida do caminho percorrido por Frege até descoberta dos quantificadores. (A) As Fontes da Estruturação Funcional dos Enunciados 22 Aqui, “fonte” não tem o sentido tradicional de origem epistemológica do conhecimento (a faculdade cognitiva que possibilita o conhecimento), mas sim de elementos sintáticos e filosóficos que influenciaram a codificação (e.g. a dialética platônica como influência na sistematização da teoria dos silogismos). 293 As queixas que levam Frege a desenvolver sua conceitografia são bem conhecidas. Ao pôr em execução seu projeto de fundamentar com o máximo rigor a aritmética a partir de princípios puramente lógicos, Frege observa que o modo como os matemáticos expressam suas demonstrações deixa a desejar em clareza e precisão; ao mesmo tempo, a lógica de seu tempo não oferece instrumentos suficientes para suprir esta inadequação. Esta conjunção de fatores o leva a elaborar uma linguagem em que as deficiências por ele observadas são neutralizadas. Assim, o interesse inicial de Frege pela lógica tem origem em sua insatisfação tanto com o modo como as demonstrações eram realizadas quanto com a lógica de seu tempo (ver Begriffsschrift, pp. 5-6 e Posthumous Writings, p. 253). Segundo o próprio Frege aponta, ele tentou inicialmente desenvolver sua PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA lógica a partir da linguagem ordinária: Na primeira versão de minha linguagem de fórmula eu me permiti ser induzido pelo exemplo da linguagem ordinária ao erro de construir juízos a partir do sujeito e predicado. Mas logo me convenci de que isto era um obstáculo aos meus objetivos específicos e que isto me levava somente à prolixidade inútil. (Begriffsschrift, p. 13) É vão especular como teria sido esta lógica e que problemas Frege teria encontrado em seu desenvolvimento. O que se sabe é que, a partir de um certo ponto, Frege percebe as limitações expressivas da linguagem natural para a realização de seu projeto e passa a buscar na linguagem da aritmética os meios expressivos apropriados para seu desenvolvimento. Eis, portanto, a primeira fonte a partir da qual Frege desenvolve sua conceitografia: a linguagem da Aritmética. Frege é explícito sobre a influência do modo de expressar das fórmulas aritméticas sobre sua conceitografia, a começar pelo subtítulo do Begriffsschrift, “uma linguagem de fórmula, modelada sobre aquela da aritmética, para o pensamento puro”. Ele deixa claro, em várias oportunidades, que as estruturas lingüísticas que emprega em sua conceitografia já se encontram latentes dentro da aritmética, em particular a estruturação de proposições por meio de funções e o emprego de letras para expressar generalidade: O ponto mais imediato de contato entre minha linguagem de fórmula e aquela da aritmética é o modo no qual as letras são empregadas. (p. 6) 294 Pode parecer paradoxal que Frege, ao mesmo tempo em que vê deficiências na linguagem da matemática de seu tempo, busque justamente na aritmética as formas expressivas para desenvolver uma lógica mais rigorosa. Mas não há coisa alguma de paradoxal aí. Frege vê com clareza que a linguagem da matemática de seu tempo conjuga fórmulas contendo letras expressando generalidade – que ele aproveita no desenvolvimento de sua conceitografia – com a utilização da linguagem natural, a fim de relacionar as fórmulas no contexto mais amplo de uma demonstração; este último elemento é que Frege crê precisar de uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA profunda reforma, como fica claro em uma passagem de seus Escritos Póstumos: Na aritmética e na Análise, as letras servem para conferir generalidade de conteúdo às sentenças. Isto não é menos verdadeiro quando encoberto pelo fato de que a maior parte das provas é executada em palavras. Num caso como este, devemos levar tudo em consideração, e não somente o que ocorre nas fórmulas aritméticas. Dizemos, por exemplo “considere que a designa tal-e-tal e b tal-e-tal” e tomamos isto como o ponto a partir do qual começamos nossa investigação. Mas o que de fato temos aqui são os antecedentes “se a é tal-e-tal”, “se b é tal-e-tal”, e eles devem ser introduzidos enquanto tais ou ligados no pensamento a cada uma das sentenças que os seguem, e estas letras, cujo papel é meramente o de indicador, tornam o todo geral. (p. 236) Assim, o que preocupa Frege nas provas matemáticas de seu tempo é o modo precário mediante o qual elas relacionam as diferentes fórmulas ou termos que aparecem ao longo da prova (ou de uma sentença); por outro lado, as expressões lingüísticas por meio de fórmulas que empregam estrutura funcional e letras para indicar generalidade formam um substrato fundamental a partir do qual Frege elabora sua própria notação. Grattan-Guinness (2004) explica concisamente os desenvolvimentos da aritmética do século XIX que serviram de fonte formal para a lógica de Frege: A partir de fins da década de 1870, um tipo alternativo de lógica simbólica23 foi introduzido, inicialmente por Gottlob Frege (1848-1925) e, mais ou menos uma 23 Grattan-Guinness (2004, pp. 545-547) explica que, a fim de denotar a abordagem matematizada da lógica, a expressão “lógica simbólica” foi cunhada por John Venn em 1881, em substituição ao termo “lógica matemática”, proposto por De Morgan em 1858. Mas Peano veio a empregar “lógica matemática”, expressão que foi adotada por Russell, e que por sua influência ganhou maior amplitude de uso. Ainda, a expressão “logística” foi introduzida por “Poincaré”, mas encontrou poucos adeptos, a não ser talvez em França. 295 década mais tarde e com mais publicidade, por Giuseppe Peano (1858-1932), que juntou um notável grupo de discípulos na Universidade de Turim. A inspiração, aqui, veio, não das álgebras, mas da análise matemática, especialmente a ênfase no rigor e a exibição detalhada de provas em termos de uma desenvolvida teoria dos limites. Esta abordagem havia sido iniciada nos anos 1820 por Augustin-Louis Cauchy (1789-1857), junto com a indicação sistemática de condições necessárias e/ou suficientes para a verdade dos teoremas, e a necessidade de formular definições cuidadosamente e (onde apropriado) com generalidade. Porém, ele jamais apresentou explicitamente princípios lógicos, seja dentro da lógica silogística, seja dentro de qualquer outra tradição de seu tempo. Desde a época da morte de Cauchy, esta abordagem e as circunstâncias em torno dela estavam sendo promovidas e refinadas pelo ensino na Universidade de Berlin por Karl Weierstrass (1815-1897).24 (p. 546) Assim, há disponível ao tempo do desenvolvimento intelectual de Frege recursos expressivos fortes para serem explorados e desenvolvidos em sua conceitografia. Com base nestes recursos expressivos, Frege substitui a análise da proposição em termos dos elementos gramaticais de cópula, sujeito e predicado pela análise PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA baseada na noção de função definida para vários argumentos. Como afirma Durand-Richard (2001, p. 130), “esta nova análise é baseada no estado de desenvolvimento da noção de função na segunda parte do século dezenove, quando ela não era mais percebida como meramente uma relação entre variáveis numéricas, como era quando Boole e Babbage escreveram, mas como uma correspondência de qualquer tipo entre duas seqüências de objetos”. Como o próprio Frege coloca em “Função e Conceito”, sua visão funcional da lógica pode ser vista como uma extensão adicional da noção de função, na qual se permite que valores de verdade figurem tanto como valor quanto como argumento de uma função. Vale a pena expormos um fragmento no qual Frege situa sua conceitografia dentro do contexto do avanço do estudo das funções em geral: (...) eu vou mais além [na extensão da referência da palavra “função” pelo progresso da ciência]. Eu começo por adicionar o sinais +, -, etc., que servem para construir uma expressão funcional, e também sinais como =, >, <, de modo que eu possa falar, e.g., da função x² = 1, onde x toma o lugar do argumento, como antes. A primeira questão que aparece aqui é quais são os valores desta função para diferentes argumentos. Assim, se eu substituir x sucessivamente por -1, 0, 1, 2, temos: (-1)² = 1, 0² = 1, 1² = 1, 2² = 1. 24 Para narrativas resumidas destes desenvolvimentos, ver Kneale e Kneale (1968, 396-409), Kneebone (1963, pp. 139-141) e Grattan-Guinness (1995). 296 Destas equações, a primeira e a terceira são verdadeiras, as outras falsas. Agora eu digo: “o valor de nossa função é um valor de verdade” e distingo entre os valores de verdade do que é verdadeiro e do que é falso. Eu chamo o primeiro, para abreviar, o Verdadeiro; e o segundo, o Falso. (p. 28) Assim sendo, dadas as evidências textuais e históricas, alguns autores sugerem que Frege tenha tomado um contato intenso com funções nas pesquisas realizadas para a redação de sua Habilitationsschrift, cujo título era “Métodos de cálculo baseados na amplificação do conceito de magnitude”; nesta obra, haveria elementos que apontariam para as inovações do Begriffsschrift. Ainda há muito a ser dito sobre este importante momento de inflexão no desenvolvimento da lógica, e há a carência de estudos definitivos sobre as relações entre o Begriffsschrift e o universo matemático com que Frege lidava na época. Como coloca Grattan-Guinness (2004, p. 545), continua a ser muito pouco PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA pesquisada a relação travada entre os desenvolvimentos da matemática e da lógica neste período. Isto torna difícil a compreensão de como exatamente a primeira veio de fato a contribuir para a segunda, no caso de Frege. A fim de explicar a revolução da análise funcional fregiana, diferentes autores têm buscado caminhos alternativos, acrescentando às explicações endógenas da revolução fregiana (ou seja, explicações tomando por base somente os recursos expressivos empregados por Frege no desenvolvimento de sua lógica) fatores filosóficos e históricos exógenos, que teriam permitido a Frege ter a perspectiva epistemológica necessária para efetuar sua análise funcional. Aduzimos duas destas possíveis fontes exógenas, ainda com vistas a esclarecer os elementos que induziram Frege a desenvolver sua análise funcional. Haaparanta, ao apresentar e discutir as descobertas lógicas de Frege, enfatiza o papel que Bolzano, Lotze e Kant teriam tido na formação de Frege. Estes filósofos, notadamente Kant, teriam incutido em Frege a idéia de que a lógica deve começar pelo juízo, e desenvolver-se daí por meio de análise. Kant teria sido, portanto, o precursor do que hoje chamamos de princípio do contexto, como vimos, uma das principais bandeiras metodológicas de Frege. Afirma Haaparanta (1988): Kant crê que um juízo tem prioridade sobre seus conceitos constitutivos e que o único uso que o entendimento pode fazer de conceitos é julgar por meio deles. 297 Kant pensa que, a fim de chegar às categorias puras do entendimento, devemos começar com juízos, que no-las mostram. (p. 78) 25 Haaparanta nos remete à Crítica da Razão Pura A 68/B 93, onde encontramos a seguinte colocação de Kant: O conhecimento gerado pelo entendimento, ou ao menos pelo entendimento humano, deve, portanto, se dar por meio de conceitos, e então não é intuitivo, mas discursivo. Enquanto que todas as intuições, na condição de sensíveis, baseiam-se em afecções, conceitos baseiam-se em funções. Por “função” eu quero dizer a unidade do ato de trazer várias representações sob uma representação comum.26 Conceitos são baseados na espontaneidade do pensamento, intuições sensíveis na receptividade das impressões. Assim, o único uso que o entendimento pode fazer destes conceitos é julgar por meio deles. (grifos nossos) Segundo Haaparanta, Frege teria assumido as prescrições kantianas no desenvolvimento de sua lógica, e teria evidenciado isto ao afirmar que “uma das PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA principais diferenças entre minha maneira de pensar e a maneira booliana – e de fato posso acrescentar o modo aristotélico – é que não procedo de conceitos, mas a partir de juízos”. Haaparanta não se manifesta com clareza acerca de como, exatamente, Frege procede a partir do princípio do contexto herdado de Kant para chegar às estruturas funcionais que codifica. Não obstante, ela dá peso tanto a este princípio, de caráter filosófico, quanto às possíveis fontes puramente matemáticas da notação de Frege: Frege se baseou na idéia de que a lógica deveria aprender algo da matemática, mas ele não era um daqueles lógicos que pensavam que, ao copiar a matemática, a lógica poderia tomar um curso firme e frutífero. O modelo de Frege era a aritmética somente na medida em que ele desejava usar um simbolismo exato. Ele, é claro, desejava servir a matemática por meio de seu simbolismo, mas um ponto igualmente importante em sua lógica era subscrever à filosofia que os transcendentalistas e os logicistas pregavam. (pp. 78-79) A proposta de Haaparanta é importante e merece crédito. No entanto, algumas advertências devem ser feitas. A visão de Haaparanta faz parte de uma tendência que apareceu na década de 80 de “kantianizar” e “transcedentalizar” o pensamento de Frege. O que ocorre é que, diante da concisão das formulações filosóficas de Frege e diante de sua omissão doutrinária, para as quais chamamos 25 No mesmo sentido, Tiles (2004, p. 85) afirma que Kant foi quem estabeleceu a “primazia da proposição (ou sentença) como a unidade de análise lógica”. 26 Como fica evidente, o emprego do termo “função”, por Kant, não tem qualquer relação com seu emprego futuro por Frege. 298 a atenção no capítulo 5, alguns intérpretes de sua obra têm proposto a tese de que Frege era um transcendentalista (Kitcher, Goldfarb, de Pierris, Sluga e Resnik são alguns exemplos desta tendência). Considero que esta tendência não sobrevive a um exame mais sensível da obra de Frege. Esta kantianização peca já de início por atribuir à própria filosofia uma dimensão que não condiz com o texto de Frege. Como procuramos deixar claro, embora o projeto de Frege tivesse tons filosóficos, sua expectativa principal, ao desenvolver sua conceitografia, era para com a comunidade científica, como fica claro nos prefácios ao Begriffsschrift e aos Fundamentos da Aritmética. O compromisso primordial de Frege era com o que chamava de “objetividade”, uma noção que jamais ganhou análise filosófica e que parece ser afeita ao emprego ordinário deste conceito. Acreditamos que, por estas razões, devemos ter cuidado para não exagerar na importância que este ou aquele filósofo, ou a filosofia em geral, pode ter tido para Frege, quando ele PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA desenvolve sua linguagem. Isto posto, acreditamos que Haaparanta pode ter sido feliz em identificar em Kant uma fonte exógena, metodológica, de real importância para que Frege elaborasse o chamado princípio do contexto. Mas há quem busque as raízes para o princípio do contexto em fontes não filosóficas, como ficará claro a seguir. Como evidencia o título de seu livro, A Química dos Conceitos (1994), Eva Picardi assume a curiosa e instigante posição de que a nascente ciência da química foi de grande importância para a assunção do princípio do contexto e para o desenvolvimento da visão funcional dos conteúdos desenvolvida por Frege. A influência da química não teria sido importante somente para Frege, mas também para todo o imaginário científico e filosófico do século XIX. Ela nota, para começar, que a metáfora química foi uma constante na filosofia e nas ciências da linguagem desde fins do século XVIII – quando a química ganha projeção a partir de Lavoisier, o pai da química moderna – e no decurso de todo o século XIX – ao longo do qual esta ciência experimentou grandes avanços. A metáfora química foi usada indistintamente por filósofos (Schopenhauer), lingüistas (Schleicher, com a gramática comparativa,27 e 27 Segundo nota Lepschy (1975, pp. 3-4), Schleicher esteve entre aqueles estudioso “insignes mais por sua capacidade técnica que pelo vigor teórico” que, muito mais que Herder, Schlegel e W. von Humboldt, começaram a elaborar a lingüística científica. 299 Saussure, com as noções de estrutura e valor)28 e um grande número de lógicos (Peirce, Frege, Wundt, Lotze). Uma das razões gerais para o impacto dos avanços da química sobre outros campos do conhecimento, notadamente sobre as ciências ligadas à linguagem, carentes de fundamentos mais sólidos, teria sido o fato de ela proporcionar um modelo explicativo não-mecanicista: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA (...) a partir da segunda metade do século XIX, a molécula química surge como campeã paradigmática de um inteiro não-mecânico “où tout se tient”. Uma ilustração intuitiva do princípio pelo qual o valor de um elemento lingüístico é função da posição que ocupa no interior de uma estrutura é oferecida pela explicação do isomerismo29 que encontramos em A. Butlerow,30 a qual se baseia, grosso modo, na intuição de que as quatro ligações do átomo de carbono, embora eqüipolentes, podem desenvolver papéis diversos em compostos diversos: o “valor” de cada ligação é função da posição que ocupa em uma molécula em relação aos outros átomos componentes. Dado que uma cadeia é tão forte quanto seu elo mais fraco, é presumível que uma transformação química se verificará naqueles lugares onde as ligações do átomo de carbono são mais fracas: uma ilustração complementar, simples e brilhante, de como uma descrição sincrônica pode fornecer uma chave para formular hipóteses diacrônicas. (1994, pp. 181-182) Picardi detecta a primeira metáfora química aplicada à linguagem em Condillac (Langue des Calculs, 1798), um pioneiro nos estudos da linguagem, amigo pessoal de Lavoisier e tido por alguns como precursor de Saussure: Em certo sentido, a irrupção do símile químico na lógica é contemporânea ao nascimento da química moderna: a amizade entre Condillac e Lavoisier fala por si só. (...) Aquilo que prevalece em Condillac é a idéia de uma combinação de elementos dados, dos quais se devem poder extrair todos os possíveis compostos. (pp. 183-184) Outro que veio a fazer uso do símile químico foi Schopenhauer, a fim de “denunciar a filosofia atomística ou mecanicista que, em sua visão, dominava os escritos dos cientistas da época” (ibid., p. 182). E, na segunda edição de O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer dedica dois capítulos inteiros “ao que podemos chamar de uma explicação química do silogismo” (ibid., p. 196). Eis uma paráfrase de Picardi de parte do texto de Schopenhauer: 28 Saussure teria dedicado o ano de 1875 ao estudo de química e da geologia. Ainda, o avô de Saussure, Nicolas-Théodore de Saussure, foi autor da obra Rechérches chimiques sur la végetation (1804). Nicolas-Théodore batizou um mineral, cuja estrutura obteve sucesso em analisar, de “saussurita”, em homenagem a Horace-Benedict de Saussure, seu pai e eminente químico e geólogo. Ver Picardi (1996, capítulo VI). 29 Duas moléculas são isômeras quando contêm as mesmas espécies e o mesmo número de átomos, mas diferem entre si na estrutura. 30 Químico inglês. 300 Num silogismo da terceira figura, por exemplo, o que é analisado é a relação na qual dois conceitos estão em posição predicativa. Os conceitos aí presentes são um pouco como duas substâncias a serem submetidas à análise química. A função do termo médio – que está em posição de sujeito na terceira figura – é análoga àquela de um reagente químico. (Picardi 1994, p. 196) Picardi mostra como a influência da química está surpreendentemente presente nos escritos de um número significativo de lógicos, alguns da mais alta relevância, como Peirce e Frege,31 e de diferentes tendências, como Wundt, um psicologista, e Frege, um objetivista. As marcas desta influência considerável na lógica ficaram impressas na terminologia técnica desta ciência: termos como “insaturação” ou “saturação”, de Frege, e “valência de um conceito” e “predicado monádico (diádico, ..., n-ádico)”, de Peirce, são emprestados diretamente da Química.32 No caso de Frege, que é o que nos interessa, a influência da química se PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA manifestaria naturalmente na noção de insaturação de uma função. Já vimos em detalhes como Frege substitui a noção de conceito tradicional pela noção de função. Na visão tradicional, um conceito relaciona-se com indivíduos ou com outros conceitos por meio da cópula. Vimos que Frege, de um modo não muito claro, vê no tratamento tradicional dos conceitos um viés inevitavelmente psicológico: para ele, a gramática tradicional é uma mistura de lógico com psicológico (P.W., p. 142). Já em sua própria abordagem, um conceito ou função (proposicional) é visto como tendo uma insaturação a ser ocupada ou saturada por um argumento, do mesmo modo que é da natureza de um radical químico ser completado por um átomo (ou molécula). Segundo Picardi (p. 192), nos dois casos haveria a incapacidade de sustentar-se autonomamente (Unselbständigkeit). A idéia é que, assim como um radical tem a tendência de se ligar a outros elementos que lhe são compatíveis, sem o que é incompleto ou insaturado, uma função não chega a ser um enunciado completo, mas somente uma possibilidade de um enunciado, e terá que ser complementada por um argumento conveniente, sem o que não cumpre seu propósito predicativo. Haveria, assim, uma “tendência” da função a ser complementada, como ocorre no caso do radical. O comportamento similar de um radical molecular (ou de um átomo) e de uma 31 Lembremo-nos de que Peirce tem o grau de Master of Arts em química, e que Frege estudou química na universidade. 32 Segundo Picardi, a terminologia de Peirce tornou-se corrente na lógica a partir de Methods of Logic, de Quine (1950). 301 função, determinado pela tendência de ligar-se a outros elementos sem os quais não podem subsistir, é de fato empregado por Frege como analogia em muitas passagens, das quais se pode selecionar a seguinte: Eu poderia comparar isto com o comportamento do átomo: supomos que um átomo nunca aparece sozinho, mas sempre combinado com outros, movendo-se de uma combinação apenas a fim de entrar imediatamente em outra. [nota de Frege: Como vim a saber, Wundt faz um uso similar desta imagem em seu Logik.] Um signo para uma propriedade n nunca aparece sem uma coisa à qual ele poderia pertencer sendo ao menos indicada, uma designação de uma relação nunca sem a indicação das coisas que poderiam gozá-la. (P. W. p. 17) Se seguirmos a proposta de Picardi, então tanto a análise funcional quanto o princípio do contexto de Frege terão raízes na metáfora química. A influência da química na análise funcional é clara: tanto os átomos (ou certos radicais moleculares) quanto os conceitos (ou funções) têm uma natureza tal que exige PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA complemento, de maneira a formar um composto ou uma proposição; o sentido de suas existências encontra-se em ligarem-se, respectivamente, a um elemento químico e a um argumento. E esta análise parte de um princípio do contexto: conceitos ou radicais só fazem sentido quando pensados a partir da moléculas ou enunciados como um todo (“où tout se tien”), ou seja, quando pensados a partir de sua predisposição a formar, mediante saturação, um enunciado ou uma molécula. Contabilizando a proposta de Picardi, temos 3 fatores que possivelmente tenham influenciado Frege em sua concepção funcional dos enunciados: um fator endógeno (as próprias formas de expressão na matemática) e dois fatores exógenos (as prescrições metodológicas de Kant e a abordagem que a química empreende na análise dos compostos). Terá Frege sido levado à sua visão funcional por um destes três fatores em particular? Por todos os três? Não há sombra de dúvida de que o desenvolvimento da expressão funcional dentro da matemática foi uma fonte primordial para a lógica de Frege; as outras possíveis fontes são de caráter especulativo. Mas vale ressaltar que as hipóteses de Picardi são mais uma indicação de que se deve ter muito cuidado para não se exagerar a influência de Kant sobre Frege. As hipóteses dela são bem plausíveis dadas as várias metáforas químicas que encontramos na obra de Frege, a cultura científica enciclopédica que ele demonstra, o respeito que ele nutre pela ciência e a desconfiança que ele nutre com relação à filosofia. Ademais, aqueles que vêem Kant como o precursor do princípio do contexto fregiano tendem a apresentar este 302 princípio de modo desconexo e pouco orgânico em relação ao modo como Frege efetivamente constrói sua lógica, enquanto as hipóteses de Picardi guardam notável organicidade e compatibilidade com a análise funcional de Frege. Sem contar com o fato de que, como já chamamos a atenção, lógicos psicologistas também fazem uso do princípio do contexto, o que lança ainda mais dúvida sobre a tese de que Kant é a fonte única e primordial deste princípio, para Frege (e sobre seu uso como “escudo” antipsicologista por Frege) Já estamos de posse de uma amostragem razoável de fontes que potencialmente influenciaram Frege no desenvolvimento de sua análise funcional. Vale lembrar que estamos ainda no que muitos (inclusive o próprio Frege) chamariam de “contexto de descoberta”. A noção de conceptividade é fundamental no contexto de justificação, como veremos em breve. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA (B) As Letras como Expressão de Generalidade: a Protoconceitografia Nosso exame das possíveis influências e fontes para a análise funcional sugere que Frege chegou, antes de desenvolver os quantificadores,33 à estruturação dos enunciados como funções e ao emprego de letras para expressar generalidade. Na aritmética, que como vimos é a principal fonte de recursos expressivos para Frege, as letras são um meio comum para expressar uma proposição geral. Não há nada que indique, dentre as possíveis fontes de Frege acima assinaladas, que a quantificação tenha sido extraída a partir diretamente delas; a quantificação parece ser, de fato, uma inovação inteiramente devida a Frege. Logo, é natural estipular que, antes de chegar ao mecanismo dos quantificadores, Frege tenha desenvolvido uma protoconceitografia na qual há letras para expressar generalidade, mas ainda não há quantificadores. Nossa intenção, neste parágrafo (B) é evidenciar que Frege, no desenvolvimento de sua conceitografia, tenha de fato passado por este estágio, ou seja, por um estágio no qual ele não havia ainda desenvolvido a quantificação e via as letras como o meio básico de expressar generalidade. Quando Frege introduz o quantificador no Begriffsschrift, ele afirma que ele serve para expressar generalidade. Rememoremos: 33 Quando falamos em “quantificador”, referimo-nos sempre ao emprego da concavidade e das letras góticas, conforme as prescrições de Frege. 303 Na expressão de um juízo, podemos sempre reconhecer a combinação de sinais à direita de ├─ como uma função de um dos sinais ocorrendo nela. Se substituirmos este argumento por uma letra gótica e se na barra de conteúdo introduzirmos a concavidade com esta letra gótica sobre ela, como em a Φ(a), ├─◡─ isto representa o juízo de que, o que quer que tomemos como seu argumento, a função é um fato. (p. 24; grifos nossos) No entanto, quando se observam as referências ao quantificador em boa parte do restante da obra de Frege, vê-se que o objetivo real do quantificador não é expressar generalidade, a despeito do que Frege afirma no Begriffsschrift. Frege já tem um recurso expressivo para expressar a generalidade, extraído do emprego em funções matemáticas: as letras. Em diversos lugares, Frege afirma que emprega PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA letras para expressar generalidade, a começar pelo próprio Begriffsschrift: Divido todos os sinais que eu uso entre aqueles pelos quais podemos entender diferentes objetos e aqueles que têm um significado completamente determinado. Os primeiros são as letras e servirão principalmente para expressar generalidade. (p. 11; grifos do autor) Note que esta afirmação é anterior à introdução dos quantificadores no Begriffsschrift. Que as letras, por si sós, sejam o recurso primordial para a expressão de generalidade está presente em vários outros pontos da obra de Frege. Por exemplo: A generalidade no juízo ├┬── x⁴ = 16 └── x² = 4 “todas as raízes quadradas de 4 são raízes quartas de 16” é expressa por meio da letra x, na medida em que o juízo é asserido como correto, não importa o que entendamos por x. Eu estipulei que letras romanas usadas na expressão dos juízos sempre tenham este sentido. (P.W. p 18) Encontramos o mesmo emprego em passagens de outro texto, presente nos Escritos Póstumos: Qualquer número que você ponha no lugar de 1 em ─┬── 1² = 4 └── 1 + 3 = 5 304 o conteúdo será sempre correto. Para expressar esta asserção geral, eu uso a letra romana: ├┬── x² = 4 └── x + 3 = 5. (P.W., p. 52) Assim, consideramos que o recurso expressivo primordial para expressar generalidade em Frege não é, em absoluto, a concavidade, mas sim o emprego de letras (em seu sistema, letras latinas). Aqueles que estão familiarizados com o Begriffsschrift já terão retrucado: “Ora, no Begriffsschrift, letras latinas são explicitamente introduzidas como abreviações do quantificador universal, ou seja, como uma simplificação da notação para os casos nos quais não há depreciação na expressão do conteúdo. Por PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA conseguinte, as letras latinas são introduzidas somente depois de terem sido introduzidos os quantificadores, de maneira a permitir, por exemplo, expressar vários axiomas e fazer várias inferências de maneira concisa.” Acontece que, em muitas exposições e explicações do mecanismo da quantificação em obras posteriores ao Begriffsschrift, Frege começa por introduzir a generalidade como um traço característico da expressão por meio de letras (latinas), e somente então introduz o quantificador como um redutor do escopo da generalidade.34 Eis a análise de um texto (“Introduction to Logic”, 1906, In P. W.) onde isto ocorre claramente: Na lógica, podemos muitas vezes ser muito influenciados pela linguagem [natural] e é desta maneira que a conceitografia tem valor: ela ajuda a nos emancipar das formas da linguagem. Em vez de dizer “a lua é idêntica a si mesma”, podemos também dizer “a lua é idêntica à lua” sem modificar o pensamento. Mas na linguagem é impossível, ao fazer a transição ao enunciado geral, permitir à palavra “tudo” também ocorrer em dois lugares. A sentença “tudo é idêntico a tudo” não teria o sentido desejado. Podemos, fazendo um pequeno empréstimo da matemática, empregar uma letra e dizer “a é idêntico a a”. Esta letra ocupa o lugar (ou lugares) de um nome próprio, mas não é ela mesma um nome próprio; ela não tem um significado, mas serve somente para conferir generalidade de conteúdo à sentença. (p. 188) 34 Sullivan (2004, p. 665) também nota este fato. Nota ainda que as práticas inferenciais de Frege não corroboram sua apresentação formal do quantificador e das letras latinas, segundo a qual as segundas são abreviação do primeiro. 305 Aqui temos as letras, sem quantificação, como o modo adequado de expressar a generalidade. Isto é confirmado um pouco mais além, no mesmo texto: Letras que, como o “a” em nosso exemplo, servem para conferir generalidade de conteúdo sobre uma sentença são, em virtude deste papel, essencialmente diferentes de nomes próprios. Eu digo que um nome próprio designa (ou denota) um objeto; “a” indica um objeto, ele não tem uma denotação, ela não designa ou denota coisa alguma. Na linguagem ordinária, palavras como “algo” e “isto” muitas vezes assumem este papel. (p. 190) Somente após estes comentários acerca do emprego de letras para expressar generalidade é que Frege introduz, no mesmo texto em questão, a quantificação, explicitamente com o objetivo de limitar o escopo da generalidade da letra: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Na conceitografia, a barra de juízo, além de transmitir força assertórica, serve para demarcar o escopo das letras romanas. A fim de ser capaz de estreitar o escopo sobre o qual a generalidade estende-se, faço uso das letras góticas, e com estas a concavidade demarca o escopo. (pp. 194-195, nota *) O mesmo modo de introduzir a concavidade e as letras góticas acontece em outro texto (“Boole’s Logical Calculus and The Concept-Script”, 1880-81), no qual Frege também parte das letras para expressar generalidade, mas, a fim de ser capaz de expressar um certo conteúdo, vê-se obrigado a introduzir a quantificação de modo a literalmente reduzir o escopo de generalidade de algumas letras. Vale a pena examinarmos mais este caso, embora seja um pouco mais complexo: Vejamos o caso em que o conteúdo de um juízo afirmativo geral ocorre como parte de um juízo composto, digamos como o antecedente de um juízo hipotético; e.g.: Se toda raiz quadrada de 4 é uma raiz quarta de m, então m deve ser 16. A expressão ┬─── m = 16 └┬── x⁴ = m └── x² = 4 não corresponde à sentença, e é mesmo falsa, o que é a razão pela qual o traço de juízo foi excluído da extremidade esquerda do traço horizontal mais acima; pois podemos substituir x e m por números que falsificariam o conteúdo. (p. 18) Pouco mais além, Frege mostra a solução para o problema de expressar o juízo em questão: Podemos ver: a generalidade a ser expressa por meio de x não deve governar por inteiro 306 ┬─── m = 16 └┬── x⁴ = m └── x² = 4, mas deve ser restrita a ┬── x⁴ = m └── x² = 4. Eu designo isto acrescentando à barra de conteúdo uma concavidade na qual eu ponho uma letra gótica que também substitui x: a ─◡┬── a⁴ = m └── a² = 4. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Eu restrinjo assim o escopo da generalidade designada pela letra gótica ao conteúdo interior à barra de conteúdo na qual a concavidade foi introduzida. Assim, nosso juízo é dado pela seguinte expressão ├┬─── m = 16 │ a a⁴ = m └◡┬─ └─ a² = 4. (pp. 19-20). Novamente, temos a quantificação como um “redutor de escopo” da generalidade expressa por letras. Frege concebe um conteúdo, fora de sua notação, que percebe não poder ser exprimido somente por meio de letras: (c) Se toda raiz quadrada de 4 é uma raiz quarta de m, então m deve ser 16. Ele vê que este conteúdo não é possível de ser expresso por meio de uma clausura universal, ou seja, unicamente por meio das letras latinas de seu sistema. O mais perto que Frege chega do conteúdo de (c) sem o recurso da “redução de escopo” é a seguinte fórmula (em notação atual): ∀m ∀x [(x² = 4 ⊃ x⁴ = m) ⊃ m = 16] ou simplesmente [(x² = 4 ⊃ x⁴ = m) ⊃ m = 16]. 307 Esta fórmula afirma que: para quaisquer dois objetos m e x, o fato de que x ao quadrado é idêntico a 4 implica que x à quarta seja igual a m determina o fato de que m é idêntico a dezesseis. É para ser capaz de expressar conteúdos como (c) que Frege desenvolve a quantificação, na qual o escopo de x vê-se reduzido, a fim de expressar, não que [(x² = 4 ⊃ x⁴ = m) ⊃ m = 16] é verdadeiro para quaisquer dois objetos m e x, mas sim para qualquer objeto m e qualquer objeto x que entra na relação (x² = 4 ⊃ x⁴ = m) com m.35 Em notação PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA contemporânea, temos que ∀m [∀x (x² = 4 ⊃ x⁴ = m) ⊃ m = 16].36 Somente com esta redução de escopo da generalidade de x, podemos expressar (c). Ainda no sentido de mostrar a precedência do emprego de letras sobre a quantificação, como recurso para a expressão de generalidade, podemos notar a existência de mais outro comentário feito por Frege acerca de sua própria lógica, no qual ele enumera as regras que emprega no Begriffsschrift: Em meu Begriffsschrift, eu estabeleci nove axiomas, aos quais devemos adicionar as regras expostas em palavras, que em essência são determinadas pelos modos de designação adotados. Elas são do seguinte modo: (1) O que vem em seguida a uma barra de conteúdo deve ser um conteúdo de um possível juízo. (2) A regra de inferência. (3) Diferentes letras góticas devem ser escolhidas quando uma ocorre dentro do escopo de outra. (4) Uma regra para substituir letras romanas por góticas. 35 O fato de que a fórmula (x² = 4 ⊃ x⁴ = m) possa ser vista como uma relação decorre da própria lógica de Frege, na qual os sincategoremata passam a ser vistos como funções de verdade, ou seja conceitos ou relações. Ver Baker & Hacker (1989, p. 116) 36 Abrimos mão das letras góticas em nossa análise por elas serem supérfluas na notação contemporânea. 308 (5) Uma regra para exportar uma condição para fora do escopo de uma letra gótica. (p. 39) Se nos guiarmos pelo que Frege estabelece no Begriffsschrift, a regra (4) seria basicamente uma regra que permite reverter uma possível abreviação anterior, abreviação efetuada por meio de letras latinas sendo postas no lugar de letras góticas. Mas a própria regra de abreviação não é enumerada por Frege no trecho acima! Isto evidencia que, de fato, Frege não enxergava as letras latinas como uma simples abreviação da generalidade expressa por meio de letras góticas e concavidade, mas como o meio mais básico para a expressão de generalidade; a concavidade e as letras góticas é que formam o mecanismo adicional para restringir esta generalidade a segmentos menores dos enunciados. É então que a concavidade ganha uma enorme importância na interação entre diferentes expressões de generalidade, marcando o escopo das letras góticas e, aí sim, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA fornecendo à lógica de Frege uma força expressiva sem precedentes. Embora nossas observações talvez não tenham grande importância para a avaliação e interpretação ahistóricas da lógica de Frege, na abordagem histórica e epistemológica que estamos adotando elas são muito importantes, pois nos permitem discernir os diferentes passos tomados por Frege no desenvolvimento de sua lógica. Como vimos no § (A), num primeiro momento e já com o ânimo de encontrar novas formas expressivas para desenvolver sua lógica, Frege investiga diversas fontes (linguagem natural, linguagem da aritmética, a filosofia de Kant e a química teórica). É plausível estipularmos que, a partir destas fontes, Frege tenha percebido que a estruturação funcional dos enunciados presente na linguagem da aritmética e, em particular, o emprego de letras para a expressão da generalidade são meios expressivos potentes a partir dos quais poderia desenvolver sua conceitografia. O que desejamos ter mostrado na discussão supra é que, neste segundo momento, no qual Frege tem uma protoconceitografia, ele ainda não tem em mãos o recurso da quantificação desenvolvido. O fato de Frege reiteradamente afirmar que as letras são por excelência o recurso para expressar generalidade e de ele em várias ocasiões apresentar o mecanismo da quantificação como um redutor de escopo da generalidade de letras mostra que ele enxergava as letras com o recurso mais básico de expressão da generalidade. Dado este fato, é natural pensarmos que, no desenvolvimento da conceitografia, Frege tenha sido levado primeiramente a desenvolver sua notação somente com o emprego de 309 letras, e que a quantificação tenha sido elaborada num momento posterior. Como afirmamos no início desta seção, o passo no sentido de desenvolver a quantificação é dado provavelmente a partir de problemas que Frege encontra na expressão funcional dos enunciados na qual as letras são o meio para expressar generalidade. Este passo constitui-se no terceiro momento. É neste momento que a noção de conceptividade ganha relevância. A ele nos voltamos. (C) Das Letras à Quantificação Tendo em mãos a estruturação funcional dos enunciados e as letras para exprimir a generalidade em sua protoconceitografia, que problema teria trazido a necessidade do desenvolvimento da quantificação? Nossa resposta é: o problema da ambigüidade. Neste parágrafo (C), veremos no que consiste este problema e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA como Frege se liberta dele através da quantificação, guiado pela conceptividade. Uma vez de posse de uma análise funcional dos enunciados na qual a generalidade é expressa pelas letras (e não por um quantificador), a protoconceitografia, é natural pensarmos que Frege passe a examinar a capacidade da estrutura funcional e das letras em exprimir conteúdos cada vez mais complexos, ou seja, conteúdos que incluem a negação, o condicional e múltiplas generalidades. Este exame consiste na avaliação de diferentes juízos com vistas à sua interpretação em termos de funções de verdade. Como já notamos, esta avaliação toma a forma de testes de conceptividade que nos levam de situações possíveis a um valor de verdade. No âmbito da metodologia fregiana que delineamos em 7.2, uma avaliação deste tipo equivale à formulação de perguntas sim-ou-não, as Satzfragen, e à subseqüente formação de um juízo correspondente. É ao longo deste exame que Frege percebe que o problema da ambigüidade assola não só a linguagem natural, mas também os meios de expressão funcionais básicos da matemática que ele estava adotando. Vejamos alguns indícios que encontramos na obra de Frege de que a quantificação foi desenvolvida a partir do problema da ambigüidade. As dificuldades expressivas que assolam os enunciados matemáticos e portanto sua protoconceitografia e a subseqüente resolução do problema via introdução da quantificação estão claramente postas em uma longa nota num texto 310 de 1906. Aqui, nos parece, é o lugar no qual estamos mais perto de ver revelado como Frege é levado a desenvolver a quantificação:37 Observações sobre o uso das letras na aritmética (12.VIII.06): (...) Não há dúvida de que, na maioria dos casos, as letras na aritmética são para conferir generalidade de conteúdo. Mas sobre o quê? Não, na maioria dos casos, sobre uma sentença simples ou uma sentença composta no sentido gramatical, mas sobre um grupo de sentenças aparentemente autocontidas, nas quais não é sempre fácil de discernir onde estas começam ou se separam. É um requerimento lógico imperativo e essencial que estas sentenças aparentemente autocontidas devam ser combinadas em uma única sentença composta; porém, se nos adequamos a estes requerimentos, normalmente chegamos a monstruosidades gramaticais. Na conceitografia, a barra de juízo, além de transmitir força assertórica, serve para demarcar o escopo das letras romanas. A fim de ser capaz de estreitar o escopo sobre o qual a generalidade estende-se, eu faço uso das letras góticas, e com estas a concavidade demarca o escopo. (pp. 194-195, nota *) Aqui, Frege chama a atenção para o fato de que o uso na aritmética de letras para PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA conferir generalidade não é rigoroso o suficiente, e que, se tentarmos efetivamente expressar os conteúdos complexos, que conjugam várias sentenças, de modo exato e preciso, “chegamos a monstruosidades gramaticais”; o maior perigo aqui é o de incorrer em ambigüidade quando tentamos formar sentenças complexas. É então que os quantificadores ganham importância, restringindo o escopo da generalidade onde necessário, tornando possível expressar de modo acurado onde as sentenças simples agrupadas em uma composta “começam ou se separam”. Também dando respaldo à nossa hipótese de que a quantificação nasce a partir do problema da ambigüidade, há uma passagem na qual Frege afirma com todas as letras que o principal problema a ser tratado, dentro na formulação de uma linguagem lógica, é a questão da ambigüidade: A isenção de ambigüidade é o requerimento mais importante para um sistema de símbolos que é para ser usado para propósitos científicos. Certamente que é preciso saber sobre o que se está falando, que enunciado se está fazendo, que pensamento se estão expressando. (p. 213, grifos nossos) E, embora Frege seja inteiramente conciso na introdução da concavidade no Begriffsschrift, restringindo-se praticamente a enunciar as regras para lidar com a quantificação, no Grundgesetze, vemos a introdução da quantificação ser precedida exatamente pela discussão de um problema de ambigüidade, indicando que o quantificador é um mecanismo para evitá-lo: 37 Uma parte pequena desta passagem já foi citada um pouco acima, como parte da argumentação de que a generalidade, para Frege, é expressa sobretudo por letras. 311 Uma dúvida poderia emergir; e.g., se “─┬─ 2+3x=5x” era para ser tomado como a negação de uma generalidade ou como a generalidade de uma negação: ou, mais precisamente, se era suposto que denotasse o valor de verdade de o valor da função 2+3ξ=5ξ não ser o Verdadeiro para todo argumento, ou o valor de verdade de o valor da função ─┬─ 2+3ξ=5ξ ser o Verdadeiro para todo argumento. No primeiro caso, “─┬─ 2+3x=5x” denotaria o Verdadeiro; no segundo caso, o Falso. Mas a negação da generalidade deve ser exprimível assim como a generalidade da negação. Eu expresso a última assim: “├─◡┬ a 2+3 a =5 ”a , e a negação da generalidade assim: “├┬◡─ a 2+3 a =5 a” ; PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA e a generalidade propriamente dita, assim: “├─◡─ a 2+3 a = 5 ”a . (p. 41) Que Frege tenha neste exemplo apresentado o enunciado ambíguo sem a barra vertical de juízo, “─┬─2+3x=5x”, é providencial, na medida em que, em sua notação formal, ele toma a barra vertical como determinando o escopo das letras latinas,38 estabelecendo que as letras latinas sejam entendidas neste caso como clausuras universais, como diríamos hoje. Desta forma, se a barra de juízo estivesse presente, a sentença não seria ambígua, e a discussão proposta por Frege não faria sentido. A partir destes indícios textuais, defendemos que o problema da ambigüidade é que dá o ensejo para que Frege aprofunde o poder expressivo de sua conceitografia. Assumindo que nossa reconstrução da trajetória de Frege até aqui esteja correta, devemos novamente fazer o esforço de nos colocarmos na posição epistemológica de Frege, a fim de, respeitando seus princípio metodológicos gerais, compreendermos como ele foi capaz de desenvolver sua lógica quantificada. Na posição epistemológica em que se encontrava antes ou ao longo da descoberta da quantificação, Frege, ao se deparar com uma sentença como 38 Ver passagem dos Escritos Póstumos, citada mais acima, na qual Frege diz: “Na conceitografia, a barra de juízo, além de transmitir força assertórica, serve para demarcar o escopo das letras romanas” (p. 195, nota*); e ainda, Begriffsschrift, p. 25. 312 “─┬─2+3x=5x”, a enxergava como ambígua. Quando Frege afirma, no Begriffsschrift, que “se uma letra latina ocorre em uma expressão que não é precedida por uma barra de juízo, a expressão é destituída de significado”, ele não está tão-somente fazendo uma observação sobre uma convenção de seu sistema. Esta afirmação é uma expressão do fato cognitivo de que uma sentença com esta omissão se nos apresenta com um significado ambíguo (ou pode se nos apresentar de modo ambíguo), a exemplo do que ocorre com “─┬─2+3x=5x”. Frege, de posse da protoconceitografia, na iminência de desenvolver a quantificação, não poderia estar interpretando a sentença em questão, “─┬─2+3x=5x”, ou outras fórmulas da aritmética que contêm letras, em termos de noções como “escopo da generalidade” ou “clausura universal”, como tendemos a ver a partir da perspectiva contemporânea; a demarcação do escopo da generalidade por meio dos quantificadores é o recurso que ele está desenvolvendo ou em vias de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA desenvolver para resolver o problema de ambigüidade em questão, recurso este que não tem precedentes.39 É somente assumindo uma perspectiva pósBegriffsschrift, isto é, na qual já se conhece a lógica quantificada, que podemos dizer que as letras latinas só permitem a expressão da generalidade como clausuras universais, i.e., sem restrição de escopo; isto sim, foi uma convenção notacional de Frege. É importante notar também que a ambigüidade só aparece em contextos complexos. Uma sentença como P(x), na qual x expressa generalidade, não tem como ser lida de mais de uma maneira. Ela só pode ser lida como sendo quantificada em escopo único. Como já colocamos, o problema da ambigüidade aparece somente em contextos nos quais a generalidade pode ter seu escopo reduzido. Ou, como coloca Frege, nos casos em que “sentenças aparentemente 39 Ou melhor, quase não tem precedentes: “Aqui e acolá, na aritmética, há também o uso de letras que correspondem grosso modo ao uso das letras góticas em minha conceitografia. Mas eu não encontrei qualquer indicação de que qualquer pessoa esteja consciente deste uso como um caso especial. Provavelmente, a maioria dos matemáticos, se fosse ler isto, não teria qualquer idéia daquilo a que estou aludindo. Não foi senão após algum tempo que eu tornei-me consciente” (P.W, p. 195, nota *). Na mesma direção, afirma Grattan-Guinness (1995, p. 98): “A disciplina de Cauchy foi refinada e estendida na segunda metade do século dezenove por K. Weierstrass e seus seguidores em Berlim. O estudo de teoremas de existência (como por exemplo para números irracionais), e também questões técnicas em larga margem relacionadas a séries trigonométricas, levou à emergência da topologia. Em adição, atenção especial foi dada a processos envolvendo muitas variáveis trocando juntas de valor, e como resultado a importância dos quantificadores foi reconhecida – por exemplo, reverter sua ordem de ‘há um y tal que para todo x ...’ para ‘para todo x, há um y ...’ ”. 313 autocontidas devam ser combinadas em uma única sentença composta” (P. W., p. 195, nota *). Assumida esta situação epistemológica, o lugar da fenomenologia e da conceptividade na codificação da quantificação fica claro quando examinamos de perto a questão da ambigüidade, e como ela se revela fenomenologicamente. Para entendermos como isto se dá, voltemo-nos mais uma vez para Horgan e Tieson (2002), agora em caráter digressivo. [Digressão: a Fenomenologia e a Epistemologia da Ambigüidade] Já tivemos a oportunidade de ver que a intencionalidade de estados conscientes (aboutness) tem repercussão fenomenológica. Isto quer dizer que atitudes proposicionais (crenças, temor, desejo), que são estados intencionais para com PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA uma proposição ou um conteúdo cognitivo (uma crença é uma crença de ou sobre alguma coisa etc.), também trazem impacto fenomenológico. O elemento fenomenológico adicional trazido pela intencionalidade e, por conseqüência, pelas diversas atitudes proposicionais, é percebido claramente no seguinte experimento de pensamento, proposto por Galen Strawson (Mental Reality. MIT Press, 1994) e relatado por Horgan e Tieson (2002, p. 523): Strawson discute o que ele chama de “experiência de entendimento” [understanding experience]. Ele defende que o entendimento e outros tipos relacionados de estados mentais e processos intencionais ocorrentes são muito comumente, senão sempre, carregados de what-it’s-likeness distintivo. Ele aponta, por exemplo, a diferença fenomenológica entre ouvir um discurso em uma linguagem que não se entende e ouvir um discurso em uma linguagem que se entende. Imagine duas pessoas, lado a lado, ouvindo a mesma seqüência de sons falados, com uma delas entendendo a linguagem e a outra não. Em um certo nível sensorial relativamente grosseiro, suas experiências auditivas são fenomenologicamente as mesmas; os sons são os mesmos, e em alguns casos podem ser experimentados da mesma maneira, qua sons. Contudo, é óbvio, introspectivamente, que há algo fenomenologicamente muito diferente sobre as experiências de cada um deles: uma pessoa está tendo experiência de entendimento com a fenomenologia distintiva de entender a sentença significar o que ela significa, e a outra não. Por que, neste experimento, a pessoa que entende a língua tem uma fenomenologia diferente da pessoa que não a entende? O que as diferencia, do ponto de vista da fenomenologia, é a intencionalidade: o estado mental do indivíduo que tem entendimento da língua é sobre o conteúdo expresso pelas 314 palavras proferidas, enquanto o estado mental do indivíduo que não tem entendimento da língua é sobre uma série de sons proferidos por um indivíduo (assumindo-se que sua atenção ainda não tenha divergido). Assim, o entendimento (ou qualquer outra atitude proposicional), sendo intencional, determina um elemento fenomenológico adicional, para além das sucessões de sons proferidos. O caráter fenomenológico da intencionalidade, e por conseqüência das atitudes proposicionais, é importante quando examinamos o entendimento (e outras atitudes proposicionais mais ricas, como é o caso de conceber) de sentenças (ou proposições expressas por sentenças), em particular quando investigamos como uma sentença pode ser ambígua. É precisamente por meio de respostas fenomenológicas diferentes proporcionadas por uma mesma sentença que somos capazes de notar que dada sentença é ambígua. Neste sentido, afirmam Horgan e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Tieson (2002, p. 523): Há uma diferença fenomenológica, por exemplo, entre ouvir “visiting relatives can be boring”40 como uma observação acerca das pessoas que estão nos visitando, vs. ouvi-la como uma observação sobres as pessoas que se visitam.41 (...) O som ou imagem auditiva factuais são os mesmos, mas as experiências totais são fenomenologicamente bem diferentes. O som pode ter algum papel que tornaria apropriado chamá-lo de veículo da intencionalidade, mas significar o que ele significa, ter o conteúdo intencional que ele tem, é um aspecto inteiramente diferente do caráter fenomênico total da experiência. Por conseguinte, com base nas evidências acima, estamos autorizados a afirmar que o meio epistemológico mediante o qual percebemos que uma sentença é ambígua consiste no fato de ela engendrar duas (ou mais) respostas intencional-fenomenológicas distintas, às quais nossa consciência pode se dirigir alternadamente. Assim como a figura do pato-coelho colapsa para uma interpretação ou outra, com fenomenologias distintas, uma sentença ambígua também colapsa entre uma interpretação ou outra, com uma resposta fenomenológica diferente em cada um dos casos. Somos assim capazes de oferecer uma definição de sentença ambígua, em termos fenomenológicos: uma sentença é ambígua quando provoca ou ocasiona uma resposta fenomenológica múltipla, alternada e excludente. 40 A ambigüidade perde-se em português. As duas interpretações possíveis são “parentes visitantes podem ser chatos” e “visitar parentes pode ser chato”. Optamos por manter a sentença no original para não termos que alterar também a análise de Horgan e Tieson que lhe segue. 41 Por ironia do destino, “pessoas que se visitam” é ambíguo no português, mas de outra forma: pessoas que se visitam mutuamente ou pessoas a quem temos o hábito de visitar. O trecho em questão diz respeito à segunda interpretação. 315 Esta definição pode ser ilustrada e testada por um exemplo simples. Tome a sentença (1) alguém sempre ganha na loteria. Ela é ambígua, na medida em que pode lida como afirmando: (2) ∃x ∀t (Gx em t) e (3) ∀t ∃x (Gx em t). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA A questão interessante para a qual estamos chamando a atenção é: do ponto de vista cognitivo, por que, ao nos depararmos com (1), nosso entendimento colapsa para (2) ou para (3)? Por que não compreendemos (1) como uma conjunção de (2) e (3)? Ou seja, por que uma interpretação necessariamente exclui a outra (embora, é claro, uma possa implicar na outra)? A explicação é que, fenomenologicamente, nós interpretamos (1) de modo alternado e excludente, ora como (2), ora como (3). Isto é um fato fenomenológico. [Fim da Digressão] De posse de uma epistemologia e uma fenomenologia da ambigüidade, já temos recursos suficientes para retornar ao caso de Frege e postular como ele elabora a quantificação. Como já colocamos, Frege, no estágio de desenvolvimento da conceitografia no qual só existem letras para expressar a generalidade, dedica-se a examinar a capacidade da protoconceitografia em expressar conteúdos, ou seja, explora seu espaço conceitual mediante a formulação de Satzfragen expressas por meio da notação a ser testada e a subseqüente formação de juízos (ou experimentos de pensamento, ou testes de conceptividade); assim, espera chegar à interpretação veritativo-funcional de sentenças. Ao fazê-lo, ele depara-se com sentenças ambíguas, a exemplo de ─┬─ 2+3x=5x ou o caso que tratamos mais acima, 316 ┬─── m = 16 └┬── x⁴ = m └── x² = 4, o que lhe pareceu inadmissível perante seus preceitos metodológicos. Afinal, como vimos, para Frege: Uma pergunta proposicional [Satzfrage] contém uma exigência de que reconheçamos a verdade de um pensamento ou o rejeitemos como falso. A fim de que possamos cumprir esta exigência corretamente, duas coisas são requeridas: primeiro, a formulação da frase deve nos capacitar a reconhecer sem qualquer dúvida o pensamento a que se refere (...). (“Negation”, p. 117) Estes casos de ambigüidade lhe mostram que a expressão da generalidade por meio de letras, dentro de contextos mais complexos, dá vazão a múltiplas interpretações de uma mesma sentença (vale lembrar novamente que, neste momento, as letras não expressam generalidade irrestrita; Frege ainda não tinha a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA noção de escopo de generalidade, que só pode nascer com a idéia de que é possível restringir ou ampliar o alcance da generalidade expressa pelas letras). Como vimos na digressão, a constatação da ambigüidade se dá a partir de elementos fenomenológicos veiculados pelas sentenças. É aqui, portanto, que a noção de conceptividade se faz novamente fundamental dentro da metodologia da lógica de Frege: assim como no caso dos conectivos (condicional, negação etc.), a noção de conceptividade é empregada para o exame das condições de verdade de enunciados. O caráter fenomenológico, e mesmo gestáltico, da conceptividade se faz de suma importância a fim de que se note como sentenças podem potencialmente exprimir mais de um conteúdo, relativo a funções de verdade distintas. Aqui, a modalidade não tem tanta importância, quanto o caráter fenomenológico próprio à noção de conceptividade. É este elemento fenomênico que é capaz de determinar que há duas interpretações associadas a uma mesma sentença. Se não fosse por este elemento, por que não tomar a sentença como expressando, por exemplo, uma conjunção de dois conteúdos? Ou somente o conteúdo mais geral? Ou somente o conteúdo mais restrito? A existência de uma mediação fenomenológica através da qual concebemos uma situação é o que torna possível que associemos situações ou proposições diversas a uma mesma sentença. Para a codificação do quantificador, este fato fenomenológico foi instrumental para que Frege reconhecesse os diferentes conteúdos que sua conceitografia deveria dar vazão, mas que não poderia dar vazão por meio da 317 notação funcional limitada da matemática, com um emprego anárquico de letras como expressão de generalidade. A partir daí, a quantificação é introduzida como um mecanismo cujo objetivo é suprimir a ambigüidade. Este recurso só pode ter sido elaborado a partir de uma profunda consciência dos conteúdos a serem expressos e de como explorar os meios gramaticais para esta expressão. Frege percebeu que, em muitos casos, a generalidade dizia respeito somente a segmentos de um conteúdo, e o modo que encontrou para expressar este fato foi a introdução da concavidade como indicação de que a generalidade da letra restringe-se ao que se lhe segue. O caso mais simples e comum de generalidade dentro da matemática, a generalidade irrestrita, é assumido como o caso mais básico, a partir do qual a concavidade é introduzida como um mecanismo de redução de escopo – daí a precedência das letras sobre a concavidade nas explicações de Frege da generalidade, para a qual PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA já chamamos a atenção inúmeras vezes. Encerramos a seção apresentando uma cronologia resumida dos passos que Frege executou a fim de chegar a suas inovações lógicas, conforme a hipótese que desenvolvemos ao longo deste capítulo: 1º- insatisfação com os meios expressivos da linguagem ordinária; 2º- pesquisa de novos meios expressivos (linguagem natural, aritmética, química, Kant); 3º- definição do condicional e de outros conectivos proposicionais por meio da noção de conceptividade (Satzfrage e formação de um juízo). 4º- protoconceitografia: expressão funcional, letras para expressar generalidade, ausência de quantificador, ausência de noções ligadas ao escopo da quantificação; 5º- investigação dos meios expressivos da protoconceitografia mediante testes de conceptividade (Satzfrage e formação de um juízo); 6º- constatação fenomenológica da ambigüidade em sentenças complexas da protoconceitografia, através da noção de conceptividade; 7º- elaboração da quantificação como redutor de escopo da generalidade; testes subseqüentes para aferir a acuidade da notação (Satzfrage e juízo). Pode-se ver que esta cronologia é fiel à metodologia da ciência fregiana: respeitamos o princípio do contexto e descrevemos sua investigação de modo 318 condizente com suas diretrizes (formulação de Satzfrage, formação de um juízo relativo ao pensamento expresso pela pergunta, e então a revelação da estrutura interna da sentença que expressa o pensamento). Note-se também que, assim como a cronologia que oferecemos para Aristóteles, esta cronologia está organizada em sucessão epistemológica, ou seja, nenhum passo poderia ter sido dado antes daquele que lhe antecede ou depois daquele que lhe sucede (e.g., o 2º passo não poderia ter sido dado antes do 1º ou após o 3º). 7.5 Considerações Finais O que pretendemos ter mostrado neste capítulo é que a noção de conceptividade tem um lugar inamovível na codificação da linguagem do Begriffsschrift. Esta PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA noção é o instrumento básico de análise do poder cognitivo das diferentes tentativas empreendidas por Frege de elaborar uma nova notação lógica, mais precisa e poderosa. A cada passo dado em suas investigações lógicas, Frege conta com a conceptividade como critério de possibilidade, de modo a ser capaz de examinar o conteúdo ou pensamento atribuído a sentenças de sua linguagem, formuladas como perguntas proposicionais. É assim que ele chega primeiramente à tabela de verdade para o condicional, e em seguida é capaz de enxergar os problemas notacionais que o levam a desenvolver a quantificação. Ressaltamos que tudo isto foi feito respeitando-se o princípio do contexto em sua plenitude: o teste de conceptividade parte sempre do sentido de uma sentença, a fim de desvendar sentido suas partes, sejam estas outras sentenças ou termos. Se houver uma contribuição nossa para a discussão da revolução lógica empreendida por Frege, esta será a ênfase em nos colocarmos na posição epistemológica em que ele se encontrava na ocasião. Frege não fez lógica I, lógica II, lógica matemática etc.; ele não foi apresentado à tabela de verdade do condicional ou aos quantificadores: ele os inventou! Ele não teve contato com provas de completude e unique readability – se sua lógica, vista como de primeira ordem, é completa e unívoca, isto se deve única e exclusivamente à inspeção que ele fez de seu sistema. O que pretendemos ter mostrado, neste capítulo 7, é uma 319 parte do universo cognitivo íntimo com que Frege lidou nesta inspeção, universo que lhe permitiu promover os avanços que todos conhecemos. Outra tendência que gostaríamos de contribuir para ver revertida é a visão comumente encontrada (e.g., Burge 2000, Sullivan 2004, e Fitting e Mendelsohn 1999) de que Frege comete erros modais básicos e que a modalidade lhe é irrelevante no contexto do desenvolvimento de sua lógica. Defender que o maior avanço lógico efetuado desde Aristóteles foi promovido por um pensador confuso no que diz respeito à modalidade é insustentável. Ele talvez não empregasse os termos modais de modo acabado, mas seu emprego cognitivo das noções modais era seguro, e o guiou ao longo de sua trajetória. Na posição epistemológica em que Frege estava, as noções modais eram um recurso fundamental, que Frege empregou com maestria. Um pouco de atenção ao emprego da modalidade no Begriffsschrift e, novamente, ao contexto histórico e epistemológico no qual Frege PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA estava imerso deixa isto claro. 8 Algumas Questões Críticas 8.1 Observações Preliminares Reconhecemos que podem existir vários pontos de divergência e objeções em nosso tratamento da lógica de Aristóteles e, sobretudo, de Frege. Pretendemos, neste capítulo, examinar somente alguns destes focos potenciais de objeção, sem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA qualquer pretensão de sermos exaustivos. Não obstante, como em outras ocasiões, nosso tratamento de uma amostragem de problemas serve para indicar a viabilidade geral de nossa posição e aprofundar nossa visão. Em 8.2, contra a alegação de que é incoerente atribuirmos a Frege o emprego da noção de conceptividade face a seu antipsicologismo, mostramos que a noção de conceptividade não entra em conflito direto com o antipsicologismo de Frege, não havendo, portanto, incoerência em nosso tratamento de sua lógica. Em 8.3, mostramos que o mentalismo, que muitos afirmam ser uma opção ao tratamento de viés psicologista, como o nosso, traz na verdade dificuldades que fazem da noção de conceptividade, em nosso tratamento aberto, uma melhor escolha. Em 8.4, respondemos àqueles que defendem que a noção de contradição é um critério de possibilidade lógica superior à noção de conceptividade, mostrando que a noção de conceptividade não pode ser substituída por um critério formal no contexto epistemológico no qual defendemos seu emprego. Em 8.5, mostramos que a noção de conceptividade pode conviver sem problema algum com várias lógicas existentes, ou seja, que a multiplicidade de lógicas não atenta contra a univocidade das concepções dos seres humanos. 8.2 Conceptividade e o Antipsicologismo de Frege 321 A questão do psicologismo em matemática e em lógica tem em Frege uma de suas principais fontes de discussão (a outra seria Husserl). Como é bem sabido, Frege sempre dedicou espaço, ao longo de todo o seu percurso acadêmico, para criticar e desacreditar abordagens psicologistas da lógica. Não é o objetivo desta tese empreender uma avaliação completa das críticas de Frege, seus méritos e seus defeitos; hoje em dia, as posições de Frege ante o psicologismo são discutidas num contexto muito mais amplo, no qual levam-se em conta contribuições de campos do conhecimento que Frege sequer conheceu, como a psicologia behaviorista e as ciências cognitivas.1 Na verdade, a discussão é tão ampla que já se fala há mais de duas décadas em um ressurgimento ou renascimento do psicologismo. Já Kitcher (1979, p. 343, nota 10) apontava para o crescimento do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA interesse pelo psicologismo: A abordagem psicologista do conhecimento perpassa a maior parte da epistemologia anterior ao século vinte. Ela sofreu um severo declínio sob a influência do positivismo lógico, mas tem sido revivida recentemente por um certo número de autores [Alvin Goldman, Brian Skyrms, Gilbert Harman, D. M. Armstrong]. Quase vinte anos depois desta colocação, esta tendência consolidou-se a ponto de Engel (1998, p. 375) afirmar que “Frege ficaria surpreso ao descobrir que, depois de um século de antipsicologismo e anti-naturalismo influenciado por sua crítica, muitos filósofos que deram a “virada lingüística” têm dado a virada naturalista, fazendo o percurso de volta a uma posição próxima à de seu colega Haeckel”. Para fugirmos de uma discussão de tamanha amplitude, restringimos nossa discussão a uma única e óbvia questão: “Sua interpretação da obra de Frege através da noção de conceptividade apresenta fortes traços psicologistas. Não há uma incoerência em sua tese de que Frege emprega esta noção, tendo em vista o fato de que Frege era um antipsicologista e repudiava a alusão a fatos mentais em lógica?” Nossa resposta a esta questão consiste em mostrar que o antipsicologismo de Frege não tem como alvo principal a noção de conceptividade e que tampouco a atinge. 1 Ver Aach (1990), Cussins (1987), além da excelente coletânea Perspectives on Psychologism, editada por Notturno (1989). 322 Quando Frege critica o psicologismo, ele tem como alvo as seguintes posições teóricas: (1) os sentidos das palavras são idéias ou imagens mentais; (2) os objetos da lógica e da matemática são idéias; a matemática ocupa-se de relações ou transições entre idéias; (3) o lógico descreve as inferências que os seres humanos de fato fazem; (4) as práticas inferenciais corretas são aquelas adotadas pela maioria.2 As teses (1) e (2) afirmam basicamente que os objetos de estudo da lógica são entes de natureza psicológica, enquanto as teses (3) e (4) afirmam que as leis da lógica têm o status de generalizações empíricas. Uma colocação de Frege que amalgama os elementos que ele associa ao psicologismo pode ser encontrada em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA seus Escritos Póstumos: Se quiséssemos considerar um pensamento como algo psicológico, como uma estrutura de idéias, sem, porém adotar um ponto de vista totalmente subjetivo, teríamos que explicar a asserção que 2+3=5 nas seguintes linhas: ‘Foi observado que em muitas pessoas certas idéias formam-se em associação com a sentença “2+3=5”. Chamamos uma formação deste tipo o sentido da sentença “2+3=5”. Até onde observamos, estas formações são sempre verdadeiras; podemos portanto fazer o enunciado provisório “Seguindo as observações feitas até agora, o sentido da sentença ‘2+3=5’ é verdadeiro” ’. (p. 134) A observação que temos a fazer acerca da relação entre a noção de conceptividade e este conjunto de teses psicologistas é simples e direta: a aceitação da noção de conceptividade e seu emprego metodológico em lógica não implica na aceitação de nenhuma destas quatro teses. Com relação às teses (1) e (2), jamais pretendemos afirmar que o sentido ou a referência das palavras são idéias ou imagens mentais. Como deixamos claro ao longo de toda a parte I, a noção de conceptividade não tem compromisso ontológico com nenhuma posição filosófica. Quando mostramos a presença da noção de conceptividade dentro da filosofia moderna (capítulo 1), vimos que racionalistas, empiristas e idealistas empregam indistintamente a referência a fatos ou estados mentais como um meio de argumentação em prol de teses as mais variadas. Sem falar em Aristóteles, que subscreve à noção de conceptividade com 2 Estas quatro posições foram elaboradas com base em Kitcher (1979, p. 247) e Baker e Hacker (1989, pp. 77-78); o tratamento aqui conferido a elas são de nossa inteira responsabilidade. 323 base no princípio tácito de que a ontologia determina o que podemos pensar ou não. O princípio da conceptividade (CON≡POSS) é de natureza estritamente epistemológica: diz respeito ao recurso epistemológico empregado como fonte e justificação do conhecimento modal. Se há, ou não, um sustentáculo para esta espécie de conhecimento, e a natureza deste sustentáculo (se por ventura existir), é uma outra questão, que, aliás, ocupa o cerne da filosofia. Com relação à colocação (3), devemos notar que jamais afirmamos que o lógico descreve asserções inferenciais factuais dos indivíduos. Tivemos o cuidado de restringir o emprego da noção de conceptividade ao momento primordial de codificação de linguagens lógicas. Neste momento epistemológico primitivo no qual se testam as estruturas sintáticas expressivas e o modo como elas relacionamse mantendo conseqüência lógica, as inferências que os indivíduos em geral executam não têm qualquer relevância. A noção de conceptividade é de natureza PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA epistemológica, introspectiva e subjetiva, como aliás o é a noção de juízo de Frege, bem como seus conceitos modais. Conseqüentemente, o item (4) tampouco aplica-se à noção de conceptividade. Em momento algum empregamos generalizações empíricas indutivas para fundamentar uma lei lógica. No contexto primitivo que assinalamos, a generalização de uma lei lógica é sempre hipotética, como de resto o é a própria codificação da linguagem: como toda forma de conhecimento, estão abertas a crítica e podem eventualmente mostrar-se falsas. Abraçamos, portanto, uma noção aberta3 de ciência, na qual todas as asserções lógicas podem ser revisadas. Isto não tem nada de escandaloso quando se tem em mente que, para revisar, por exemplo, o princípio da não-contradição, sua falsidade deverá deixar de ser inconcebível. Para tanto, deveremos ter contado com algum fato epistêmico tal que nos seja disponibiliza-da fenomenologicamente uma contradição. Não vale como contra-exemplo ao princípio da não-contradição a existência de indícios ou interpretações de fenômenos que indiquem contradição; só valem fenômenos contraditórios (usando mais uma vez a imagem de Putnam, pode-se dizer que não valem as marcas dos esquis em torno da árvore: temos que ver o esquiador passando através da árvore). Fica claro, então, que, quando Frege pensa no psicologismo, ele está pensando em teses específicas que reputa espúrias, teses que não defendemos e 3 Ver 8.3, logo abaixo, para uma exposição desta visão aberta de ciência. 324 com as quais a noção de conceptividade não tem qualquer vinculação necessária. A constante presença de argumentos de conceptividade ao longo da obra de Frege, para que já chamamos a atenção diversas vezes, é uma confirmação disto. Dentro da epistemologia fregiana, estes apelos à conceptividade foram encobertos pela noção de juízo, na qual Frege depositava todo o universo psicologista com que não queria lidar, e.g. a fundamentação de verdades lógicas em contextos primitivos. O que podemos ou não conceber diz respeito às “leis de se tomar como verdadeiro”, que não devem ser confundidas com as “leis da verdade”, desconversa Frege (ver Grundgesetze, p. 13 e seguintes). Nossa tese geral pode muito bem ser entendida como afirmando que há, sim, na lógica, um contexto epistemológico no qual as “leis de se tomar como verdadeiro” são fundamentais, dados o fato de que nossa imaginação tem conteúdo veritativo-funcional e a ausência de outras opções. O que interessa a Frege é o exame das relações PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA inferenciais formais entre enunciados e sua epistemologia oficial diz respeito somente a este universo; quando ele afirma que a lógica não se confunde com a psicologia, ele quer deixar claro que o tratamento dele diz respeito a estas relações. Neste caso, ele tem toda a razão: a conceptividade ou “as leis de se tomar como verdadeiro” são de pouca importância como justificação de enunciados lógicos, quando comparadas com os critérios lógico-formais que o próprio Frege revela em sua obra. 8.3 A Opção do Mentalismo4 Uma outra possível questão a ser colocada para aqueles que adotam a noção de conceptividade é: “Por que não adotar algum tipo de mentalismo, privilegiando a estrutura cognitiva ou lingüística que determina os diferentes estados mentais, em vez dos estados mentais eles mesmos? Desta forma, você estaria libertando-se compulsoriamente de todos os problemas que a insistência em manter-se ao nível das aparências mentais pode potencialmente trazer”. 4 Esta questão me foi posta por Danilo Marcondes e Luiz Carlos Pereira. 325 Mohanty (1989) tem exatamente esta abordagem. Ele prescreve quatro possíveis maneiras de “mentalizar” o apelo a estados mentais e, assim, fugir do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA psicologismo e do subjetivismo. Ei-las todas: 1. Tornar as regras que as operações mentais seguem importantes, mas os próprios atos e operações dispensáveis. As regras teriam uma estrutura lógica, os atos, com sua subjetividade e privacidade, seriam irrelevantes para propósitos fundacionistas. Esta manobra é facilmente derivável do kantismo. Isto é, de fato, o que a escola neokantiana de Marburg, notadamente Cassirer, fez. 2. A manobra precedente tem também uma estranha similaridade com a leitura cognitivista de Husserl que Hubert Dreyfus oferece. Se o noema husserliano é um conjunto de regras e determina o que o objeto deve ser por meio da conformação a estas regras, nos livramos das conseqüências subjetivistas do psicologismo e somos capazes de fazer uma re-abordagem com um tipo diferente de psicologismo, nomeadamente, com uma “teoria computacional da mente”. 3. Manter o ato mental, mas dar-lhe uma estrutura. Isto pode ser feito designando um conteúdo (não um objeto) a um ato, e certificando-se de que o conteúdo não é subjetivo, privado, particular, mas sim uma estrutura que atos numericamente diferentes, executados por indivíduos diferentes, possam compartilhar, e assim de tipo universal. Isto é feito por Husserl em sua tese sobre o ato como tendo significado, um Sinn, ou correlação noésis-noema. 4. Finalmente, elevar uma concepção psicologista a um nível transcendental – uma estratégia adotada por filósofos transcendentais de Kant a Husserl. (p. 4) Mohanty detecta posturas mentalistas em afirmações de vários lógicos e matemáticos do primeiro time: Mantendo esta manobra [mentalista] em mente, podemos dar uma olhada em asserções mentalistas como estas: Cantor: Unter einer “Mannigfaltigkeit” oder “Menge” verstehe ich nämlich allgemein jedes Viele, welches sich als Eines denken lasst...”5 Ou mesmo Hilbert: “Die Grundidee meiner Beweistheorie ist nichts anderes als die Tätigkeit unseres Verstandes zu beschreiben, ein Protokoll über die Regeln aufzunehmen, noch denen unsers Denken tatsächlich versfährt…”6 Ou Brouwer: “Este neo-intuicionismo considera a intuição de dois-um-dade [twooneness] (o fenômeno fundamental do intelecto humano) como a intuição basal da matemática a qual cria não somente os números um e dois, mas também todos os números ordinais finitos...” Ou, seguindo, Brouwer, Heyting: “Objetos matemáticos são por sua própria natureza dependentes do pensamento humano. Sua existência é garantida somente na medida em que eles podem ser determinados pelo pensamento.” Encontramos nestas afirmações uma locução mentalista que pretende ser “transcendental”, em vez de psicologista. (p. 8) 5 Mohanty cita direto do alemão. Eis nossa tradução: “Por ‘multiplicidade’ ou ‘conjunto’ eu entendo, em geral, nomeadamente uma quantidade a qual se deixa pensar como Uno...” 6 Mohanty cita direto do alemão. Nossa tradução: “A idéia básica de minha teoria da prova não é outra senão a de descrever a atividade de nosso entendimento, registrar um protocolo das regras pelas quais nosso pensamento efetivamente procede...” 326 Como pode ser visto, são muitas as possibilidades de adoção de posturas mentalistas, e muitos autores parecem assumir estas posturas. (O que, aliás, já traz um problema: que mentalismo adotar? Devo inventar o meu próprio? Ver discussão mais abaixo.) A fim de dar vazão a uma crítica ao mentalismo, baseamo-nos no tratamento que Kant dispensa à lógica (ou ao que ele chamou de “lógica geral pura” em sua própria terminologia; reportamo-nos a ela através do termo “lógica” simplesmente). Pretendemos mostrar, a partir de sua visão, algumas inadequações do mentalismo kantiano, bem como inadequações do mentalismo em geral, no que diz respeito ao contexto primitivo de codificação de linguagens lógicas com que estamos lidando. Para Kant, o papel da lógica “é dar uma exposição exaustiva e uma prova estrita das regras formais de todo pensamento, seja ele a priori ou empírico, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA qualquer que seja sua origem ou seu objeto, e qualquer que sejam as obstruções, acidentais ou naturais, que ele possa encontrar em nossa mente” (B ix). Kant vê a lógica como uma ciência acabada, que não tem sequer um passo adicional a dar. Em sua visão, desde que Aristóteles elaborou-a praticamente por completo nos Primeiros Analíticos, alguns remendos e suplementos foram feitos, mas, na maior parte, ela foi descoberta e exposta instantaneamente pelo estagirita:7 ...desde Aristóteles não foi necessário [para a lógica] refazer nenhum passo, a menos, de fato, que nos demos ao trabalho de contar como melhoramentos a remoção de certas sutilezas desnecessárias ou uma exposição mais clara dos ensinamentos reconhecidos, elementos que dizem respeito mais à elegância do que à certeza da ciência. É notável também que até o presente a lógica não tenha sido capaz de avançar um único passo, e seja, ao que as aparências indicam, um corpo fechado e completo de doutrinas. (B viii) Do modo como Kant coloca as coisas, a lógica foi elaborada instantaneamente por Aristóteles, tão logo ele voltou-se a si mesmo, ou melhor, seu entendimento voltou-se a si mesmo. Mas Kant não se dá ao trabalho de revelar exatamente como este voltar-se a si do entendimento encaixa-se em sua arquitetura filosófica. Tudo o que ele tem a dizer encontra-se em algumas poucas passagens, das quais a mais detida é a seguinte: 7 Segundo Tiles (2004, p. 98) e Kneale e Kneale (1968, p. 360), Kant considera com silogismo não somente os categóricos, mas também os hipotéticos (modus ponens e modus tollens) e os disjuntivos. Os Kneale adicionam ainda o comentário pouco elogioso de que, para ele, a lógica perfeita e acabada era “uma versão confusa da mistura tradicional de aristotelismo e de estoicismo”. 327 [Na lógica geral pura] nos abstraímos de todas as condições empíricas sob as quais o entendimento é exercitado, i.e. da influência dos sentidos, da operação da imaginação, das leis da memória, da força do hábito, inclinação etc., e assim de todas as fontes de influência, de fato de todas as causas das quais este ou aquele conhecimento possa emergir ou parece emergir. Pois elas concernem ao entendimento somente na medida em que ele está sendo empregado sob certas circunstâncias, e para ter contato com estas circunstâncias é necessária a experiência. A lógica geral pura tem a ver, portanto, somente com os princípios a priori, e é um cânon do entendimento e da razão, mas somente em respeito ao que é formal em seu emprego, seja qual for o conteúdo, empírico ou transcendental. (B 77) Kant enuncia, então, como resumo de sua posição, que a lógica “lida com nada a não ser com a mera forma do pensamento”, e que ela “não pega emprestado coisa alguma da psicologia, a qual não tem influência sobre o cânon do entendimento” (B 78). Destas passagens, o que se extrai é que, para Kant, fazer lógica é fazer um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA auto-exame exaustivo de nossos próprios juízos e uma subseqüente “exposição metódica” das possíveis formas que estes juízos podem assumir, ao mesmo tempo em que se abstraem os conteúdos do juízo; é assim que se chega às formas possíveis de todo juízo (A, E, I e O da lógica aristotélica). Acontece que Kant não entra nos detalhes deste procedimento. Seja como for, não pode ser um procedimento transcendental, pois este tipo de postura tem como regra a abstração somente do que é empírico, deixando intactas as condições a priori do conhecimento, e.g. os conceitos puros (B 80-81). E esta é justamente a novidade que Kant defende estar trazendo, e que ele contrasta constantemente com a lógica geral pura. Haaparanta (1988) nota a mesma lacuna, não somente em Kant, mas também na reflexão sobre a lógica em geral: Kant perguntou-se como a matemática pura é possível, como a ciência natural pura é possível, e como a metafísica como disposição natural é possível, mas ele não perguntou-se como a lógica como ciência é possível. (p. 75) Mais além, ela reforça sua posição: De Galilei a Descartes a Kant, filósofos têm buscado uma fundação firme para a ciência natural moderna, para a matemática e mesmo para a metafísica. A lógica, porém, permaneceu intocada mesmo por aqueles que desejavam mudar as velhas crenças, como George Boole, que argumentou que “talvez possa permitir-se que a 328 mente obtenha um conhecimento das leis às quais ela mesma está sujeita sem que lhe seja dado o entendimento de seus fundamentos e sua origem”. (p. 76-77)8 Além de não explicar em que consiste a referida abstração de todo conteúdo, outro problema para a posição kantiana é que, do ponto de vista do desenvolvimento da lógica, a lógica aristotélica da qual ela parte mostrou-se fraca, com um poder expressivo muito limitado: gramática sujeito-predicado, ausência de tratamento para relações e para a identidade, ausência de uma lógica proposicional desenvolvida, além de se prestar com dificuldades a uma real axiomatização etc. Neste sentido, coloca Picardi (1994, p. 211): A tábua kantiana do juízo não superou, como foi notado, a avaliação crítica a que foi submetida por Frege no Begriffsschrift. Se o exemplo de Kant de pôr no centro da análise o juízo e de extrair as categorias da estrutura dos juízos é correta, as subdivisões propostas são por vezes inadequadas. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Assim, além de Kant não explicitar em que consiste exatamente o procedimento metodológico de “abstrair de todo o conteúdo” que ele prescreve para a lógica, fica aparente a inadequação deste método pelo fato de ele não ter chegado à lógica adequada empregando-o (ou talvez que Kant nem mesmo chegou a empregar este método ou a pensar acerca dos fundamentos da lógica, tendo tão-somente decalcado sua lógica a partir da lógica de seu tempo). Este problema é grave para o mentalismo kantiano. Se a lógica é baseada em estruturas da mente, conforme defende o mentalismo, então por que Kant (ou Aristóteles, ou qualquer um antes de Frege) não apresentou uma lógica ao menos tão forte quanto a lógica quantificada de Frege? Se a gramática lógica é baseada na gramática do entendimento, então qualquer um deveria ser capaz de chegar à lógica, propriamente dita, pelo procedimento de abstração, como defende Kant, seja lá o que for este procedimento. É o próprio desenvolvimento da lógica ao longo do século XIX que evidencia os problemas existentes na posição de Kant. Embora esteja para além do escopo deste trabalho, vale observar que o problema no tratamento da lógica oferecido por Kant respinga para parte de sua filosofia transcendental. Em sua analítica transcendental (“dissecação de todo 8 De Pierris (1988, p. 306) também nota a lacuna em Kant, mas defende que sua solução está dentro do próprio universo transcendental, ao afirmar que, “embora Kant não tente explicitamente justificar a lógica transcendentalmente, conceber a legitimidade da lógica como tendo a necessidade de uma justificação transcendental é consistente com o projeto de Kant”. Ela remetese a Allison, H. (1983), Kant’s Transcendental Idealism, New Haven: Yale University Press, p. 118 e p. 348. 329 nosso conhecimento a priori em elementos que o entendimento puro por si só gera”), Kant explicitamente parte do que chama de “pista para a descoberta de todos os conceitos puros do entendimento”. Esta pista ou indicação consiste nada mais nada menos que nas classificações dos juízos que Kant atribui às formas de juízos aristotélicos, classificações que formam a tábua dos juízos. Kant deixa claro que o modo de chegar a esta tábua é o mesmo método de se chegar à lógica em geral, ou seja, abstrair o conteúdo do juízo de modo que reste somente a forma: Se nos abstrairmos de todo conteúdo de um juízo, e considerarmos somente a mera forma do entendimento, descobrimos que a função [i.e., a unidade do ato de trazer várias representações sob uma representação comum; ver B 93] do pensamento no juízo pode ser trazida sob quatro domínios, cada um dos quais contendo três momentos. Eles podem ser convenientemente representados na seguinte tábua [dos juízos]. (B 95, grifos nossos) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Como vimos, a “abstração do conteúdo de um juízo” é o método que Kant prescreve para a lógica. Se a tábua dos juízos de Kant é baseada na defasada lógica aristotélica, possivelmente decalcada dela, isto quer dizer que também a tábua dos conceitos puros do entendimento vê-se prejudicada, na medida em que a mesma se baseia na tábua dos juízos, como Kant deixa claro: A mesma função que dá unidade às várias representações em um juízo também dá unidade à mera síntese das várias representações em uma intuição; e esta unidade, em sua expressão mais geral, nós intitulamos o conceito puro do entendimento. Assim, o mesmo entendimento, através das mesmas operações pela qual, por meio de unidade analítica, produziu nos conceitos a forma lógica de um juízo, também introduz um conteúdo transcendental em suas representações, por meio da unidade sintética da multiplicidade da intuição em geral. (B 105) Que a lógica aristotélica seja o guia de Kant para a elaboração da tábua das categorias, é corroborado por Caygill (2000), conforme o próprio explica: Com o desenvolvimento de uma lógica moderna, transcendental, Kant não pretende rejeitar as realizações da tradição lógica. Pelo contrário, vai buscar na tradição as análises do juízo e usa-as como fio condutor para descobrir as operações do entendimento na lógica transcendental. (...) As sínteses transcendentais derivadas das funções lógicas da lógica geral formam a tábua das categorias ou “lista de todos os conceitos, originariamente puros, da síntese que o entendimento a priori contém em si” (B106). 330 Cremos ter mostrado que são significativas as dificuldades de se trabalhar com o mentalismo kantiano em lógica. Mas, e o mentalismo em geral, será que ele permanece uma opção atraente? Temos razões para crer que não. Uma variedade qualquer de mentalismo em lógica (kantiana, husserliana, brouweriana etc.), para não constituir-se em uma tese vulgar e vazia, tem a obrigação de oferecer a estrutura do entendimento (ou da mente etc.) que fundamenta a lógica. Caso contrário, a adoção do mentalismo terá sido meramente um recurso ad hoc para evitar as críticas psicologistas. Assumindo-se este fato, ao menos três críticas podem ser apresenta-das contra o mentalismo em geral. Em primeiro lugar, há o problema da multiplicidade de mentalismos. Podemos observar a grande variedade de doutrinas mentalistas existentes quando nos atemos por um instante na lista de mentalistas que Mohanty oferece (umas para a lógica, outras para a matemática ou partes dela): Kant crê que a lógica PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA funda-se numa estrutura de juízos aristotélica; Brouwer crê numa intuição de origem kantiana (intuição a priori do tempo, na qual o uno se divide em dois, e, então em multiplicidades) como fundamento para a aritmética; Hilbert crê que a intuição a priori do espaço, também de fundo kantiano, é o fundamento de inferências lógicas; Husserl que a estrutura noemática dá forma aos juízos, e assim por diante. Quantas estruturas a mente humana possui, afinal? Pode-se ver que cada mentalista estipula uma estrutura diferente para explicar a lógica ou a matemática. Além disto, em geral, estes pensadores afirmam que a simples observação de nossos processos mentais revela estas estruturas.9 É curioso que mentalistas, como Mohanty, percebam esta multiplicidade de mentalismos, sem perceber que ela atenta contra o próprio projeto mentalista. Em segundo lugar, há o problema de como lidar com a evolução da própria lógica. Quando se defende o mentalismo em lógica, a lógica de cunho fregiano aparece como uma candidata natural para a estrutura subjacente ao nosso entendimento. A questão a ser posta aqui é: diante da mudança de paradigma da lógica no século XIX, será que faz sentido re-editar o mentalismo sobre as novas estruturas sintáticas então reveladas? E se, porventura, advier uma nova mudança 9 Acerca disto, é interessante observar a colocação de Brouwer em sua tentativa de unificação com o formalismo hilbertiano: “A aceitação destes insights é somente uma questão de tempo, já que eles são o resultado de reflexão pura e portanto não contêm qualquer elemento para disputa, de modo que qualquer pessoa que os tenha entendido deve aceitá-los” (Brouwer 1927, p. 490). Para Brouwer, o que resta fundamentalmente para que a escola formalista se unifique como intuicionismo é o abandono do princípio de terceiro excluído. 331 de paradigma lógico, i.e., uma nova linguagem lógica, o que fazer? Reedita-se um terceiro mentalismo? Um quarto, e assim por diante? Esta reedição perpétua vai contra as próprias teses do mentalismo (ou dos mentalismos) em lógica, que propugnam ter encontrado a estrutura cognitiva última. Como, afinal, saber que encontramos finalmente a estrutura correta? Diante da transição revolucionária da lógica aristotélica para a lógica fregiana, um critério para a confirmação de que foi encontrada a estrutura da mente deveria ser objeto de investigação daqueles que adotam o mentalismo. Caso contrário, a adoção de um mentalismo, juntamente com um candidato a estrutura da mente respectiva, é um passo vazio. Um terceiro problema a ser notado é que a postura mentalista em lógica vai contra a própria evolução da lógica e incentiva o comodismo. Tivessem Boole ou Frege, por exemplo, ficado satisfeitos e resignados com as observações de Kant, ainda estaríamos pagando o preço do atraso. Será que é chegado o momento de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA resignação? Provavelmente o próximo revolucionário lógico virá, seja em 2 ou em 2 milhões de anos. Convém uma postura epistemológica receptiva a esta possibilidade, em vez de decretar o fim desta evolução. Sob perspectiva histórica, este decreto é difícil de ser aceito. Além das críticas perfiladas acima, a visão mentalista da lógica não parece resistir a um exame mais detido de como ocorre de fato uma descoberta, em lógica. Quando observamos as obras de Aristóteles e de Frege, vemos que seus avanços constituem-se em uma codificação de uma linguagem.10 Codificar é, “uma vez estabelecida a série de conceitos a comunicar, estabelecer os elementos físicos correspondentes a esses conceitos e capazes de tomar o canal [i.e., o suporte físico necessário à manifestação do código sob a forma de mensagem]” (Dubois 1995, p. 114). Ao enxergarmos os avanços lógicos de Aristóteles e de Frege como codificações, fica claro que uma parte significativa do que eles efetivamente fizeram foi buscar um meio físico, i.e., uma sintaxe simbólica, para expressar, da melhor forma possível, conteúdos de uma certa natureza. A investigação destes pioneiros inclui, portanto, não somente atividade conceitual, exame da consciência; ela inclui também, de modo essencial, o exame de certos 10 A visão da lógica de Frege como codificação nos foi primeiro sugerida por Chateaubriand (2001, p. 19): “Deve-se ter uma explicação de prova e dedução que seja epistemologicamente significante e que dê plausibilidade aos princípios básicos de prova que são aceitos. É claro, que por sua própria natureza, nenhuma explicação puramente sintática pode fazê-lo – o que ela pode fazer é codificar tal explicação”. 332 objetos físicos (espaciais) com os quais se quer expressar os conteúdos, ou seja, o exame do canal. Esta investigação é feita por ensaio e erro, examinado-se se dadas combinações ou conformações simbólicas são aptas ou não para expressar inequivocamente certos conteúdos (já o tribunal para estas combinações simbólicas é a noção de conceptividade, como defendemos ao longo desta tese). Assim, as estruturas sintáticas da lógica, reputadas pelos mentalistas “estruturas lógicas mentais” ou algo que o valha, foram de fato encontradas literalmente de maneira empírica: Aristóteles encontrou estruturas transitivas no procedimento de divisão platônico e as reformulou de modo argumentativo e dedutivo; Frege teve como fonte para a sua sintaxe lógica principalmente a expressão funcional da aritmética de seu tempo. Aliás, que Frege tenha elaborado uma notação bidimensional nos parece ser a evidência de que ele, ao buscar sua codificação, travava uma batalha não somente no âmbito conceitual (através da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA noção de conceptividade); ele travava uma batalha também no âmbito espacial, literalmente: “como dispor certas formas sentenciais de modo a evidenciar certas relações lógicas?” é o problema com o qual ele teve que lidar irremediavelmente na elaboração da conceitografia. O resultado foi uma notação na qual todos os elementos lógico-formais situam-se à esquerda da notação, e os elementos conteudísticos à direita (ver Chateaubriand 2001, p. 261), e dotada de um poder expressivo sem precedente. Que para Frege as estruturas sentenciais sejam um meio físico para efetuar sua codificação, e não uma estrutura mental de algum gênero, e que o caráter bidimensional de sua conceitografia foi resultado dos esforços de codificação de sua lógica, pode ser visto com clareza meridiana na seguinte colocação (Frege 1882, p. 197-198): As relações de posições entre os sinais gráficos sobre a superfície bidimensional da escrita podem ser empregadas para a expressão de relações internas de maneiras muito mais variadas que as meras relações de seguir e preceder no tempo unidimensional, e isto facilita a descoberta daquilo a que desejamos precisamente dirigir nossa atenção. De fato, a disposição em uma série simples não corresponde também, de modo algum, à diversidade das relações lógicas que combinam pensamentos entre si (...).11 Na visão que defendemos, o que temos em nossas mentes são conteúdos, não necessariamente estruturados gramaticalmente; buscamos estruturas sintáticas nos espaços físicos, a fim de codificar linguagens (novas). Isto parece estar 11 Há várias outras colocações no mesmo sentido neste mesmo artigo; ver pp. 196-197. 333 (muito) de acordo com os procedimentos de Aristóteles e Frege. E, a partir desta perspectiva, é de se esperar que novas codificações advenham (se nos livrarmos de vez destes mentalismos). 8.4 O Apelo à Noção de Contradição12 Um número significativo de autores defende que a noção de conceptividade, tenha as virtudes que tiver no âmbito da epistemologia modal, é supérflua para a metodologia da lógica. A lógica já tem um critério formal claro e amplamente aceito para determinar o que é logicamente possível e o que é logicamente impossível: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA p é logicamente possível se não implica em contradição; p é logicamente impossível se implica em contradição.13 Um exemplo desta posição é encontrado em Gendler e Hawthorne (2002, p. 5), para quem um enunciado é logicamente impossível se podemos deduzir-lhe uma contradição, o que faz dos métodos formais de prova o meio por excelência de determinar possibilidade lógica: Como um guia para a possibilidade lógica no sentido que caracterizamos, a conceptividade parece algo supérflua; que uma contradição possa, ou não, ser derivada de p, parece melhor determinado por procedimentos de prova do que pela representação de cenários. Se esta é a noção de possibilidade em questão, a atividade de conceber parece largamente irrelevante (ou ao menos inessencial) para a determinação de possibilidade. Matemáticos parecem satisfazer-se plenamente com a ausência de contradição como critério para a possibilidade lógica, como mostram as colocações de Poincaré e Borel, respectivamente: Os axiomas geométricos não são portanto nem juízos sintéticos a priori nem fatos experimentais. São convenções; nossa escolha, entre todas as convenções possíveis, é guiada por fatos experimentais; mas ela permanece livre e não é 12 Esta questão me foi posta por Chateaubriand. Amplamente aceito, mas não universalmente aceito; ver nossa discussão de Priest (1998), no capítulo 2. 13 334 limitada senão pela necessidade de evitar toda contradição. (La Science et l’hypothèse, Flammarion, 1902, pp. 65-66, apud Roussel e Durozoi 1989, p. 383). Cada vez mais, as matemáticas aparecem como a ciência que estuda as relações entre certos seres abstratos definidos de uma maneira arbitrária, sob a única condição de que estas definições não dêem lugar a contradição. (“La définition en mathématiques” IN Les grands courants de la pensée mathématique, F. Lê Lionnais, 1962, Librairie scientifique et technique Albert Blanchard, apud Roussel e Durozoi 1989, p. 386). Tugendhat (1997, pp. 28-43) retraça bem as bases filosóficas do apelo à contradição como critério de possibilidade lógica a Leibniz (e.g. Monadologia § 35) e a Kant (e.g. CRP, A151/B190; o apelo à contradição nesta obra aparece em muitos outros lugares). Em suma, é comum, no âmbito da lógica e da matemática, defender-se que um enunciado é possível se não há como deduzir uma contradição formal a partir PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA dele: é logicamente possível aquilo que não implica em (p ∧ ~p). Para mostrar a insuficiência do critério de consistência formal para a possibilidade lógica, um primeiro fato a ser notado é que, redundâncias à parte, ele é formal. O problema de ser formal é que a forma lógica da contradição também teve que ser, em algum momento, codificada, tanto quanto as formas do silogismo. E, neste momento de codificação, digamos, do princípio da nãocontradição ~(p ∧ ~p), houve a necessidade de justificar tal forma gramatical como garantidora de verdade. Como? Neste contexto primitivo, não é possível apelar ao critério de ausência de contradição formal, sob pena de circularidade: não se pode dizer que o princípio da contradição é logicamente possível em virtude da ausência de contradição, pois a ausência de contradição é justamente o conteúdo expresso pelo princípio. É preciso um critério informal, como, por exemplo, a noção de conceptividade. Pode-se dizer que um dos primeiros passos em direção à formalização lógica tenha sido dado através da formulação do princípio da não-contradição – seja lá quem for que o tenha formulado primeiro. Este passo só pôde ser dado a partir de alguma evidência não-formal de que o princípio é correto. Em nossa visão, esta evidência é baseada na noção de conceptividade: é inconcebível que (p ∧ ~p). Novamente, estamos diante da coerção fenomenológica que nos faz ser capazes de avaliar formalismos. Esta vinculação entre codificação e conceptividade (ou ao menos algum tipo de justificação informal) nos parece 335 impossível de ser eliminada, o que quer dizer que a possibilidade lógica formal vem sempre a reboque de uma noção informal. Note-se que nossas observações incidem não somente sobre o apelo à noção formal de contradição, mas também em qualquer apelo a qualquer outro critério formal de justificação autônoma de enunciados lógicos.14 Toda lei ou regra formal da lógica teve que ser codificada, e ao sê-lo, teve que ser justificada informalmente (ou formalmente, mas com base em uma lei que foi, por sua vez, justificada informalmente etc.). Este é um fato inescapável da epistemologia da lógica, que só pode ser esquecido por aqueles que ignoram que a sintaxe lógica é um código criado por seres humanos para captar certas relações entre conteúdos epistêmicos. O que qualquer tipo de abordagem formal sempre ignora é sua total inadequação ao que ocorre de fato em lógica e, em última análise, sua própria impossibilidade epistêmica. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA A antecedência de um critério informal de possibilidade com relação à consistência formal é evidenciada por outros dados, como estamos em vias de investigar. Em primeiro lugar, é muito fácil encontrar enunciados que reconhecemos como impossíveis, mas que são formalmente consistentes, mostrando que nossa epistemologia modal não tem relação necessária com o critério estritamente formal de contradição. Um exemplo tradicional deste tipo de enunciado é: este objeto é inteiramente branco e inteiramente preto ao mesmo tempo. Formalmente: (1) Ba ∧ Pa Há modos de lidar com enunciados como estes logicamente, como por exemplo estabelecer um postulado de significado, conforme Carnap (1956, pp.223-224) ensina. A sentença “se o indivíduo a é casado então a não é solteiro” é simbolizada por Carnap como: (2) Ca ⊃ ~Sa. 14 Nossa crítica à abordagem formal atinge, por conseguinte, abordagens como a de Boghossian (2000), que tenta dar conta da justificação de verdades lógicas por meio do que chama de rulecircular justification (justificação circular quanto à regra). A regra de modus ponens, nesta abordagem, poderia ser aptamente empregada na justificação da própria regra de modus ponens. O artigo de Boghossian tem o objetivo de mostrar como isto não é trivial. 336 Posta desta forma, esta sentença não é analítica, embora seja “desejável” que a consideremos como tal. Para que se possa incorporar C e S a um sistema lógico qualquer, de modo que (2) resulte como uma sentença analítica, Carnap mostra que basta incluir no sistema o seguinte postulado de significado: (P2) ∀x (Cx ⊃ ~Sx). O mesmo tipo de postulado que Carnap estipula pode ser incluído para “corrigir” o comportamento de sentenças impossíveis, porém consistentes. Por exemplo, para ajustar (1), podemos acrescentar: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA (P1) ∀x (Bx ⊃ ~Px). Levando-se em conta este postulado, (1) resulta em um enunciado formalmente contraditório. Este tipo de procedimento não é capaz de salvar a noção de contradição com critério autônomo de possibilidade lógica. Muito pelo contrário. É claro que a inclusão de (P1) como postulado de significado foi determinada pelo conhecimento anterior de que (1) é necessariamente falso; é este conhecimento modal anterior que torna “desejável” a introdução do postulado como uma forma de “correção”. Novamente, a epistemologia modal vem antes do formalismo, e aparece como um determinante do formalismo.15 Este é o curso natural das coisas, no que diz respeito à introdução de qualquer formalismo. A lógica, neste sentido, tem sempre em vista a adição de novas formas lógicas, a fim de abarcar porções cada vez maiores do conhecimento modal pré-formal.16 No entanto, como coloca Tidman (1994, p. 392), é sempre possível virar as costas para elementos pré-formais de nossa epistemologia modal e simplesmente fechar a conta com princípio formais, considerando como logicamente possível o que não implica em contradição; se um enunciado não se atém a este critério, então ele deve de fato ser tomado como impossível, e ponto final. Mas este tipo de 15 É claro que Carnap, como bom positivista, não aceita nossa posição epistemológica: “Como sabemos que estas propriedade são incompatíveis, e que portanto devemos estabelecer [um postulado]? Isto não é uma questão de conhecimento, mas de decisão” (pp. 224-225). 16 Ver, no mesmo sentido, Kreisel (1969) 337 intransigência parece ir contra o próprio espírito da lógica para o qual acabamos de chamar a atenção, que busca criar formalismos cada vez mais fortes a fim de expressar com exatidão um número cada vez maior de fenômenos modais. Se, por exemplo, Leibniz só aceitasse como inferências lógicas as inferências formais reconhecidas pela lógica de seu tempo, não teria reconhecido as inferências relacionais e, assim, ampliado o universo de inferências possíveis. O apelo ao formalismo como determinante da epistemologia modal é uma camisa-de-força semelhante ao mentalismo, bloqueando o avanço da lógica como uma ciência, ao assumir que todo possível formalismo é aquele com o qual já temos contato. Um problema adicional para o apelo à contradição formal como critério de possibilidade lógica é trazido por Tidman (1994). Ele nota que contemporaneamente “somos confrontados com uma pletora de lógicas, as quais, quando julgadas como sistemas formais, estão em condições de igualdade”. Neste PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA universo de formalismos, há sistemas, e.g., a lógica trivalente de Lukasiewicz, nos quais “ambas a lei da não-contradição e a lei do terceiro excluído falham” (p. 396). Assim, do ponto de vista estritamente formal, temos sistemas nos quais há sentenças contraditórias possíveis, sistemas estes que são tão satisfatórios quanto, digamos, a lógica de predicados de primeira ordem. A questão posta por Tidman é que, dada a existência de sistemas nos quais há sentenças contraditórias possíveis e a existência de sistemas nos quais sentenças contraditórias são impossíveis, que razões formais haveria para continuarmos a defender que a ausência de contradição é um critério efetivo para a possibilidade lógica? A questão não é qual lógica escolher, mas sim com base em que critérios escolher uma certa lógica, um certo formalismo, dada a eqüidade formal entre várias lógicas. Se alguém escolhe a lógica clássica de primeira ordem como aquela que tem o comportamento modal mais adequado (dentre eles, não comportar contradições), isto não pode se dar com base em critérios formais; esta escolha só pode ter como base elementos informais, a saber, que esta lógica é adequada ao nosso conhecimento modal informal. Isto porque, tomando em vista critérios formais, a lógica de primeira ordem está em pé de igualdade com várias outras. A conclusão de Tidman faz eco a nosso posicionamento:17 17 Embora o critério pré-formal que Tidman defende seja a intuição racional, em vez da noção de conceptividade. Ver Tidman (1996). 338 Por outro lado, certamente que se podemos mostrar que um enunciado é inconsistente na lógica de primeira ordem padrão, podemos concluir que ele não é possível. Mas por quê? Parece plausível sugerir que este é o caso somente porque formulamos esta lógica para capturar as regras de inferência que julgamos présistemicamente como válidas, i.e., regras formais tais que não é possível que haja premissas verdadeiras e uma conclusão falsa de argumentos com as características formais de acordo com estas regras. Se for assim, então, ao fazermos juízos sobre boas inferências, já não estamos nos baseando em juízos modais? Concluo que a consistência não fornece a chave para desvendar o mistério de como o conhecimento modal é possível. De fato, a ordem epistemológica é a inversa. (p. 397) 8.5 A Existência de Lógicas Alternativas18 Dentre a enorme variedade de lógicas existentes hoje em dia, um grupo de lógicas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA tem uma relevância especial para nossa discussão. São aquelas lógicas desenvolvidas e propostas como sendo a lógica, ou seja, como a lógica que modela adequadamente o raciocínio matemático tal qual ele é, ou o modo como o raciocínio matemático deve ser. Dentre este grupo, uma lógica que tem recebido especial atenção de um número significativo de pesquisadores é a lógica intuicionista, talvez a única que se apresente como uma alternativa substancial à lógica clássica. Que problema a existência de lógicas alternativas, e em especial, da lógica intuicionista, traz para a noção de conceptividade? A questão é que há leis lógicas da lógica clássica que não são reconhecidas por outras lógicas. Por exemplo, a lei do 3º excluído, que afirma que é verdadeiro que (p ∨ ~p), não é reconhecida pela lógica intuicionista. Assim sendo, como pode a noção de conceptividade ser um guia para a modalidade para a lógica em geral, ao mesmo tempo em que há conflitos entre correntes filosóficas acerca da validade de princípios lógicos e da lógica correta a ser adotada na matemática e na ciência como um todo? Será que há diferentes modos de conceber entre os seres humanos? Para respondermos à questão trazida pela existência de outras lógicas, e ao mesmo tempo salvarmos a noção de conceptividade e a generalidade da lógica, devemos mostrar que a variação na adoção de uma lógica como a mais satisfatória decorre de elementos outros, que não a existência de diferença na capacidade de conceber dos indivíduos. Vamos nos restringir ao caso da lógica intuicionista, 18 Esta questão me foi posta por Luiz Carlos Pereira. 339 confiantes de que o tratamento que prescrevermos pode ser ajustado e estendido a outras lógicas. Em nosso percurso, nos preocupamos primeiramente em apresentar as diferenças básicas entre a lógica intuicionista e a lógica clássica, determinadas pelas restrições epistemológicas que o intuicionismo impõe à matemática e a lógica.19 Em seguida, baseados principalmente em Shapiro (1997), mostramos que a diferença assinalada tem como origem diferentes visões de “mente ideal” ou “Deus leibniziano” etc., empregadas pelas duas abordagens. Em uma passagem de um de seus livros em defesa do intuicionismo, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Heyting, principal discípulo de Brouwer, afirma: Um teorema da matemática exprime um fato puramente empírico, nomeadamente a ocorrência de uma certa construção. “2+2=3+1” tem que ser interpretada como uma abreviatura de “efetuei a construção mental indicada por “2+2” e “3+1” e verifiquei que conduzem ao mesmo resultado”. (Intuitionism, An Introduction, Amsterdam, 1956, apud. Kneale e Kneale 1968, p. 681) Este é o princípio epistemológico fundamental para o intuicionismo, a saber, a visão de que os resultados a que matemática chega devem ser entendidos como construções mentais. Levado a cabo este princípio no âmbito da matemática, esta ciência torna-se “o estudo de certas funções da mente humana” ou “o estudo da construção matemática mental” (Shapiro 1997, p. 22). É esta visão epistemológica da matemática que determina diferenças importantes com relação à matemática e a lógica clássicas. Uma primeira diferença diz respeito ao nosso conhecimento de objetos infinitários. Brouwer defende que a mente não é capaz de construir objetos desta natureza (e.g., um conjunto infinito denumerável), o que deve ser levado em conta nas práticas dedutivas da matemática e da lógica. Considere a forma ~∀x Px. Na lógica clássica, qualquer fórmula que tem esta forma é equivalente a ∃x ~Px: não é o caso que todo x é P se e somente se existe um x que não é P. Mas na lógica intuicionista não há equivalência entre estas duas fórmulas, como explica Kneale e Kneale:20 19 Não nos concernem os elementos que caracterizam a matemática intuicionista tomada no sentido amplo, como o tratamento do contínuo por meio de uma choice sequence infinita, ou os desenvolvimentos da teoria dos conjuntos intuicionista. Nossa preocupação é com o impacto das restrições epistemológicas do intuicionismo sobre a lógica. 20 Adaptamos o exemplo de Kneale e Kneale ao nosso, mais simples. 340 Brouwer e a maioria dos intuicionistas concederão que uma maneira de demonstrar uma frase declarativa universal deste gênero é mostrar, se pudermos, que a frase declarativa existencial envolve uma contradição e tem que por isto ser rejeitada, i.e., aceitam a tese lógica ~∃x ~Px ⊃ ∀x Px. Mas por outro lado, não admitem a tese ~∀x Px ⊃ ∃x ~Px porque dizem que se conseguimos refutar a frase declarativa universal mostrando que ela envolve contradição, não estamos por isto mais perto da descoberta de uma coisa da qual possamos afirmar ~Px, e por isto não estamos autorizados a afirmar a proposição existencial. (p. 683) Conforme as exigências epistemológicas construtivas que os intuicionistas impõem à matemática e à lógica, só estamos em condições de afirmar ∃x ~Px PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA após apresentarmos um objeto a tal que ~Pa. Para os intuicionistas, a assunção de que há tal indivíduo a partir do mero conhecimento de ~∀x Px é uma extrapolação inadmissível de nossos poderes cognitivos. Em sua visão, não temos como assegurar que existe um tal objeto nestas condições, pois isto pode requerer a execução completa de uma tarefa infinita, e.g. o escrutínio de domínios infinitos. Outra restrição a princípios lógicos que a epistemologia intuicionista determina é a rejeição do princípio do terceiro excluído, segundo o qual é verdadeiro que p ∨ ~p. A razão pela qual este princípio da lógica clássica não é reconhecido como uma lei geral da lógica intuicionista é que há enunciados r tais que não foi provado nem que r nem que ~r (conjecturas matemáticas são exemplos deste fato). Isto quer dizer que não tivemos contato epistêmico ou mental nem com a verdade de r nem com a verdade de ~r. Conforme os preceitos epistemológicos do intuicionismo que colocamos no início, uma disjunção só é provada verdadeira se pelo menos um dos disjuntos tiver sido provado como verdadeiro. Se seguirmos este preceito, afirmar o princípio do terceiro excluído constitui-se em exceder nossos poderes cognitivos, pois não temos dados suficientes para afirmar que rigorosamente todos os enunciados da forma p ∨ ~p são verdadeiros, ou seja, que para todo enunciado p, há uma prova que p ou que 341 ~p: muitos enunciados talvez estejam permanentemente fora do alcance de nossas mentes.21 Cremos que as duas discrepâncias entre a lógica clássica e a lógica intuicionista podem ser muito bem explicadas sem que precisemos mudar em nada nosso tratamento da noção de conceptividade. É com base nas variações na noção de mente ideal ou construtor22 ideal (ou o que Chalmers chamaria de conceptividade ideal e Leibniz de mente de Deus) que encontramos resposta para elas. No capítulo 1, ao discutirmos a noção de conceptividade de Chalmers, vimos que, embora nós seres humanos não tenhamos capacidade cognitiva para resolver todos os possíveis teoremas da matemática ou entender todas as possíveis conseqüências de nossos formalismos ou de conduzir e finalizar um procedimento de infinitos passos, assumimos que nossas capacidades cognitivas mais básicas, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA potencializadas ao máximo, podem. Mas quanto temos o direito de idealizar? Qual é a capacidade que podemos atribuir legitimamente ao Ser dotado de racionalidade maximal? Tanto a lógica clássica quanto a lógica intuicionista idealizam, mas o fazem de modos distintos, e é justamente isto que explica as diferenças entre elas. Como coloca Shapiro (1997, pp. 186-187): As disputas concernem justamente que tipos de poderes são atribuídos ao construtor ideal. Construtores clássicos e suas contrapartidas intuicionistas são ambos idealizados, mas os construtores clássicos são mais idealizados. A diferença básica entre os construtores ideais é que, dado que para o intuicionista “toda asserção deve reportar-se a uma construção” (ibid., p. 187), mesmo seu construtor ideal não é capaz de completar um processo infinito no tempo, e.g. checar todos os números naturais: Na matemática clássica, ocorre muitas vezes que, no curso de uma demonstração, uma construção transcorra de modo a requerer a introdução de uma série infinita de operações sucessivas, enquanto que a demonstração contém uma inferência dependendo do resultado desta construção, que não pode ser julgada antes de a série infinita de operações ser completada (...) Tal maneira de raciocinar é 21 As conseqüências do intuicionismo para a lógica foram captadas pela semântica de Heyting. Do ponto de vista dedutivo, obtém-se a lógica intuicionista a partir da lógica clássica simplesmente excluindo a regra de dupla negação ~~p ⊃ p; sem esta regra, não se provam o terceiro excluído nem os outros princípios da lógica clássica que os intuicionistas rejeitam. 22 O termo “construtor”, mal escolhido por Shapiro, não tem qualquer relação com a noção de construção presente na terminologia do intuicionismo. 342 inadmissível de um ponto de vista estritamente construtivista; este ponto de vista não permite o uso de resultados de uma construção a menos que a construção tenha sido completada; nestas circunstâncias é claro que ninguém pode levar a cabo uma construção que consiste de uma série infinita de sucessivas operações. (Beth e Piaget, Mathematical Epistemology and Psychology, Dordrecht: D. Reidel, p. 47, apud Shapiro 1997, p. 188.) Já na lógica clássica, o construtor ideal não parece ser limitado temporalmente, ou seja, para ele, realizar uma tarefa infinita não significa necessariamente realizar uma tarefa ao longo do tempo, em uma sucessão temporal também infinita. Noções como intuição imediata, apreensão atemporal etc. costumam dar vazão às faculdades epistemológicas que lógicos e matemáticos clássicos costumam atribuir não somente a idealizações da mente humana, mas muitas vezes a si próprios. Esta incapacidade, em princípio, de finalizar tarefas infinitas determina, para PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA o intuicionista, um pessimismo quanto à decidibilidade de qualquer enunciado. Para ele, não há razões para crer que todo enunciado matemático seja decidível, nem mesmo para um construtor ideal. Com base neste pessimismo, o princípio do terceiro excluído não é aceito pelo intuicionista, como coloca Shapiro (1997, p. 208): Chame a sentença Φ absolutamente decidível se há um argumento racional coercitivo que estabelece que Φ ou um que refuta Φ. Isto é, Φ é absolutamente decidível se um construtor ideal pode decidir Φ. A questão é que a semântica de Heyting não dá uma razão para objetar à lei do terceiro excluído a menos que se possa objetar ao prospecto de que todas as sentenças matemáticas não-ambíguas sejam absolutamente decidíveis. Esta objeção é um tipo de pessimismo, transferido ao construtor ideal. Reconhecemos ou impomos um limite a seus poderes epistêmicos. Em suma, a semântica de Heyting somada ao pessimismo enfraquece a lógica clássica. Esta conclusão encontra eco em Posy (”Kant’s Mathematical Realism”, Monist 67: 115-134), que argumenta que Brouwer de fato abraçava este tipo de pessimismo. Assim, o repúdio ao princípio do terceiro excluído pelos intuicionistas é precedido pelo que Shapiro chama de pessimismo nutrido pelo intuicionista com relação à decidibilidade (i.e., a capacidade do construtor ideal de decidir a verdade) dos enunciados matemáticos. Em comparação, um construtor ideal clássico tem como provar ou refutar qualquer enunciado, através da potencialização máxima de nossas faculdades cognitivas básicas. Não faz sentido para o matemático clássico crer que haja enunciados matemáticos regulares que não possam ser determinados como verdadeiros ou falsos. 343 Não queremos tomar partido de nenhuma destas duas visões. O que queremos notar é que as diferenças entre intuicionistas e clássicos não decorre de alegações divergentes quanto à capacidade de cognição dos seres humanos. As duas correntes não discordam acerca do que seres humanos são capazes de conceber, imaginar etc. A discordância entre elas tem raízes nos modos diferentes em que elas idealizam nossas capacidades, e no que estas idealizações podem potencialmente alcançar. Pode-se ver que a discussão entre intuicionistas e clássicos, quando travada estritamente no campo filosófico, é de difícil resolução, pois parece requerer que nos ponhamos no lugar do Ser que detém todo o conhecimento matemático, para que então examinemos sua capacidade de executar procedimentos infinitos completos e se ainda restam para ele, ao fim, enunciados matemáticos indecidíveis. Com relação a outras lógicas alternativas que, a exemplo do intuicionismo, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA subtraem princípios lógicos da lógica clássica – e.g. a lógica minimal, que além do terceiro excluído, subtrai o princípio p ⊃ (~p ⊃ q), segundo o qual de uma contradição segue-se qualquer coisa –, a explicação segue as mesmas linhas que indicamos para o intuicionismo: à subtração de uma lei lógica equivale mais uma subtração na capacidade que atribuímos ao construtor ideal. Com relação às lógicas alternativas que não são derivadas da lógica clássica (a mais ampla, com a mente ideal mais forte) desta maneira, acreditamos que há outros tratamentos disponíveis compatíveis com nossas prescrições fenomenológicas. Isto é fácil de ver quando atentamos ao fato de que as diferentes lógicas podem modelar vários aspectos ligados ao comportamento do conhecimento, das asserções, do discurso etc. A lógica paraconsistente, por exemplo, não modela uma lógica coerente com a epistemologia modal da noção de conceptividade, mas sim com uma noção de crença vazia, fenomenologicamente falando. Por isto, ela não atenta contra a noção de conceptividade. As diversas lógicas existentes podem ser explicadas segundo estas mesmas linhas mestras. 8.6 Considerações Finais 344 O confronto com objeções é sempre bem-vindo, pois nos permite sempre uma caracterização mais precisa e detalhada do objeto de investigação. Eis alguns refinos adicionais a que este capítulo nos permitiu chegar. Vimos, em primeiro lugar, que as reservas que Frege tem com relação ao psicologismo são dirigidas principalmente a aspectos que não estão necessariamente conectados com a noção de conceptividade. É bem verdade que a noção de conceptividade diz respeito “as leis de se tomar como verdadeiro”, que Frege igualmente repudia. Mas este repúdio se dá em virtude de Frege estar preocupado exclusivamente com a investigação de relações inferenciais entre enunciados. Nossa tese consiste justamente em mostrar que há certos contextos epistemológicos nos quais a noção de conceptividade é fundamental para a metodologia da lógica, e é aí que nos separamos de Frege. Em segundo lugar, vimos que o mentalismo traz muito mais problemas do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA que soluções. Quando colocada em perspectiva histórica, a postura mentalista mostra-se inadequada para lidar com o avanço da lógica promovido por Frege, e permanece inadequada para recepcionar avanços ulteriores. No lugar do mentalismo, oferecemos uma visão do avanço da lógica como codificação, segundo a qual a lógica desenvolve-se investigando tanto os conteúdos psicológicos-semânticos de nossos estados mentais quanto como estes conteúdos podem ser expressos física ou graficamente. Vimos ainda que há respaldo para esta visão na obra de Frege. Esta visão do avanço da lógica como codificação constitui-se em uma visão aberta da lógica, segundo a qual possíveis avanços podem advir, estando a lógica livre do julgo de “estruturas mentais” – seja lá o que se queira dizer com esta expressão. As estruturas gramaticais ou sintáticas aparecem então como construções humanas, artefatos experimentais construídos para o fim de expressar conteúdos. Em terceiro lugar, vimos que a noção de contradição ou qualquer outro critério formal para possibilidade lógica fracassa em lidar com o contexto primitivo que delimitamos no capítulo 3. Neste contexto primitivo, há sempre a necessidade de um parâmetro informal a fim de avaliar os novos formalismos, atividade para a qual a ausência de contradição, ela mesma um critério formal, é inadequada. Por fim, vimos que uma das maneiras de lidar com a existência de lógicas alternativas, e.g. a lógica intuicionista, é em termos dos poderes cognitivos da 345 mente ideal ou do raciocinador ideal. Basicamente, a mente ideal clássica não é restrita pelo tempo (ou talvez esteja mesmo fora do tempo), sendo portanto capaz de completar tarefas infinitas, e.g. checar cada elemento de um conjunto infinito; a mente ideal intuicionista, por sua vez, só é capaz de completar tarefas que, em princípio, terão um fim. Com isto, a adoção da lógica clássica ou intuicionista decorre não da variação na conceptividade, mas sim da variação do otimismo ou pessimismo epistemológico que se atribui aos nossos poderes cognitivos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA maximizados. Conclusão Nesta conclusão, além de recolocarmos as posições que defendemos ao longo desta tese, nos preocupamos também em apresentar e elucidar duas decorrências importantes que podem ser extraídas delas. 1- A Tese O resultado de nossa tese vai contra os lugares comuns mais recorrentes da filosofia analítica e da lógica. Em oposição ao antipsicologismo e à abordagem lingüística dominantes (mas não absolutamente dominantes), defendemos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA principalmente que a imaginação é a fonte e a justificação de nosso conhecimento modal (parte I) e que, nesta condição, ela é um instrumento fundamental para a promoção de avanços lógicos, como aqueles efetuados por Aristóteles e Frege (parte II). Nesta seção, fazemos um apanhado de como estas duas posições foram defendidas. No capítulo 1, de caráter preparatório, procuramos compatibilizar uma noção psicologista de concepção ou imaginação com as abordagens semânticas atuais. Esta compatibilização é feita principalmente por meio da obra de Chalmers, que combina as visões fregiana e kripkiana em sua semântica bidimensional. Esta semântica é amplamente receptiva à noção de conceptividade e a livra de uma só vez de uma vasta gama de pseudocontra-exemplos. O capítulo 2 é de grande importância. Nele nos propomos a investigar um número significativo de objeções ao princípio da conceptividade (CON≡POSS), que cristaliza nossa alegação de que a noção de conceptividade é fonte e justificação para a possibilidade de um enunciado – e por conseguinte de qualquer alegação modal. Fundamentalmente, vimos que as críticas ao princípio da conceptividade são resultantes de superficialidade fenomenológica. Por incrível que possa parecer, ainda se confunde (muitas vezes de modo proposital) conceber ou imaginar com crer, entender, assumir, e outras atitudes proposicionais. A parte II, partindo de um exame da atividade lógica e da detecção de um contexto primitivo de codificação de linguagens lógicas, dedica-se a investigar a 347 presença da conceptividade nas obras de Aristóteles e Frege e, assim, mostrar como o princípio da conceptividade se fez presente na obra destes dois autores. No caso de Aristóteles, o caminho não pôde ser direto, já que os filósofos gregos não tinham o hábito de fazer referência a fatos da consciência a fim de justificar uma asserção. Este tipo de referência seria um detour inútil em sua visão, na medida em que eles abraçavam, sem questionar, a visão segundo a qual o mundo concreto projeta-se fielmente na interioridade, sem interferências, inibições ou impedimentos. A visão de que os gregos não tinham a noção de interioridade ou subjetividade privada, ou consciência subjetiva não resiste a uma leitura, mesmo que superficial, da obra De Anima.1 Tivemos, então, que buscar na teoria do conhecimento de Aristóteles características que apontam para sua aceitação de CON≡POSS como fonte e justificativa do conhecimento modal, inclusive o conhecimento modal presente na lógica. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Com relação a Frege, o caminho foi mais longo. Em primeiro lugar, detectamos as inadequações da epistemologia da lógica “oficial” de Frege (capítulo 5). Então, a partir da própria visão fregiana de juízo e modalidade, ambas de caráter psicologista, delineamos uma epistemologia modal para Frege, cujo comportamento se dá conforme o princípio CONprimária ≡ POSSprimária – Frege não trabalha com as noções de mundo possível ou essência, próprias da intensão e conceptividade secundárias. Ajuntamos ainda diversas evidências textuais de que Frege trabalha ocultamente com a noção de conceptividade, embora ela não conste de sua epistemologia oficial (capítulo 6). A partir daí, nos voltamos para uma interpretação da lógica do Begriffsschrift na qual estes elementos ficam à mostra, principalmente a partir do reiterado emprego de noções 1 E não somente isto. Filósofos do início da modernidade, tidos como os pais da subjetividade, tinham um especial prazer em depreciar Aristóteles, mas, quando observamos sua teoria da mente, a presença de Aristóteles é forte. É assim que, quando nos voltamos para a teoria da mente de Hobbes, encontramos a noção aristotélica de movimento como origem da percepção, da imaginação e do pensamento (Leviatã, p. 16 e ss.). Quando nos voltamos a Descartes, vemos que ele não somente aceitou a noção de sensus communis (koiné aisthesis) aristotélica, “como também incorporou-a à sua própria teoria sobre a interação entre corpo e mente” (Cottingham 1995, p. 142). Continua Cottingham: “A base dessa teoria [da mente] é que a mente recebe informação do corpo, e nele inicia movimentos em um único local: o conário, ou glândula pineal. Tal glândula recebe dados (através dos nervos) de todas as partes do corpo, e é só depois que os dados são integrados na glândula em um só sinal ou impressão, que qualquer conhecimento consciente pode ocorrer” (p. 142). Este sinal ou impressão integrada é obra do sensus communis, faculdade cuja função de dar “unidade ao sujeito sensitivo e ao objeto sentido, (...) nos dar a consciência ou sensação da sensação” (Lalande 2002, p. 970). 348 modais na apresentação de sua lógica proposicional e de sua preocupação com o problema da ambigüidade, que, como defendemos, tem bases fenomenológicas. Com nosso tratamento de Aristóteles e Frege, esperamos ter mostrado que a noção de conceptividade tem um lugar próprio dentro da metodologia da lógica: a codificação de linguagens lógicas. É um lugar central. Por mais importante que qualquer prova jamais oferecida (em lógica) seja, a elaboração de uma linguagem lógica é não somente o pressuposto material para a própria possibilidade de que tais provas existam como também o critério segundo o qual a generalidade da prova é estabelecida. Por exemplo, os teoremas de incompletude de Gödel são formulados tendo em vista uma sintaxe de cunho fregiano e seus resultados avassaladores dizem respeito ao que é exprimível nesta sintaxe; se uma sintaxe lógica mais poderosa for descoberta ou inventada (o que no momento nos é tão inconcebível quanto a lógica fregiana para Aristóteles), estes teoremas perderão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA parte de seu apelo e generalidade. Esperamos ter mostrado, assim, que, ao contrário do que os intérpretes de Frege assumem geralmente, a modalidade, o juízo e a psicologia são centrais dentro da lógica de Frege. Este universo epistemológico, geralmente relegado a um segundo plano no exame da obra de Frege, é a fonte (no sentido tradicional) e a justificação para todos os avanços que Frege promove na lógica. Frege não seria capaz de promover tais avanços, tivesse ele operado somente a partir da apreensão de pensamentos e suas possíveis relações sintáticas (ou algo do gênero). Ele tem que promover um verdadeiro exame do espaço conceitual-modal, a fim de investigar as formas gramaticais mais adequadas para a expressão do pensamento. O resultado disto é a constatação adicional de que, em Frege, as formas gramaticais vêm a reboque dos conteúdos que visam a expressar, ou seja, a sintaxe vem a reboque da semântica. 2- Aristóteles e Frege Quando se comparam as obras de Aristóteles e Frege, em geral ressaltam-se as diferenças e minimizam-se as semelhanças. Enfatiza-se o fato de que Aristóteles estrutura as formas sentenciais de sua lógica em termos de sujeito/predicado, enquanto Frege as estrutura em termos de função e argumento. O próprio Frege enfatiza que chega aos conceitos de sua lógica a partir dos juízos, enquanto 349 Aristóteles teria estruturado ou montado os juízos a partir dos conceitos. Afirmase ainda que a lógica de Aristóteles é desenvolvida a partir da linguagem natural, ao passo que a lógica de Frege é estritamente simbólica. E assim por diante. É claro que não negamos estas diferenças, que se constituem na essência do próprio avanço da lógica de Frege com relação à lógica de Aristóteles. Não obstante, nosso trabalho mostra que existem muitas semelhanças importantes na metodologia empregada por ambos. Estas semelhanças são determinadas pela posição epistemológica peculiar em que ambos se encontravam, ao desenvolverem suas respectivas lógicas. Vejamos alguns destes traços comuns. Na condição de pioneiros na codificação de linguagens lógicas, tanto Aristóteles quanto Frege parecem ter se baseado em larga margem em substratos formais ou gramaticais previamente existentes. Eles foram capazes de cooptar e adaptar estes substratos para a tarefa específica de codificar padrões inferenciais. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Para Aristóteles, estes substratos foram principalmente as estruturas proposicionais que formavam a pergunta ou protasis platônica no âmbito da dialética e as formas transitivas presentes no método de divisão. Para Frege, este substrato formal foi a linguagem da aritmética de seu tempo, notadamente o emprego de estruturas funcionais e de letras para a expressão de generalidade. Como pioneiros no desenvolvimento de sistemas lógicos, tanto Aristóteles quanto Frege não tinham qualquer parâmetro formal prévio para avaliar as qualidades expressivas de suas linguagens. O que lhes restava era somente a noção de conceptividade. É assim que ambos inevitavelmente passaram por um estágio de inspeção de sentenças da linguagem recém-elaborada a fim de identificar formas consideradas válidas e inválidas (ou “condições gerais de validade”) de formas lógicas, checar a existência de ambigüidade, a capacidade expressiva da linguagem etc. Tanto Aristóteles quanto Frege, ao codificarem sua lógica, estavam imersos em contextos modais muito específicos, nos quais a noção de necessidade era central. Vimos que Aristóteles trabalha no âmbito da dialética, onde a praxe de Platão era conduzir seu interlocutor através de passos necessários até a aceitação de proposições contraditórias ou impossíveis. Desta forma, a argumentação dialética era dotada de uma coerção racional que Aristóteles veio a identificar como necessidade. Este elemento de necessidade é o critério básico para que ele 350 possa distinguir as formas de silogismo válidas daquelas inválidas. O contexto modal no qual Frege opera é a ciência (seja natural, seja formal), que ele enxerga não somente como um universo de proposições verdadeiras, mas também de proposições necessariamente verdadeiras. Para ele, tanto a matemática quanto a física são disciplinas constituídas de proposições necessariamente verdadeiras e procedem por meio de passos inferenciais que têm como resultado proposições necessariamente verdadeiras. Este contexto modal foi fundamental para que ele pudesse ter desenvolvido sua conceitografia. Neste sentido, vimos que Frege não poderia ter oferecido sua tabela de verdade para o condicional material sem que, muito de acordo com seu princípio do contexto, tivesse partido da verdade necessária de um condicional “causal” – somente neste caso se é capaz de perceber que combinações de valores de verdade são inconcebíveis e, portanto, necessariamente falsas: antecedente verdadeiro, conseqüente falso. Vimos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA também que, testando as qualidades expressivas de sua linguagem via conceptividade, Frege foi capaz de enxergar que a expressão da generalidade por meio exclusivo de letras era ambígua, ou seja, colapsava para dois enunciados dotados de sentidos “gestalticamente” distintos. Outra semelhança entre ambos é a enorme ênfase que é dada às perguntas do tipo sim-ou-não (protasis para um, Satzfragen para o outro) em sua metodologia da lógica. No caso de Aristóteles, basta dizer que em sua obra a distinção entre contexto interrogativo e contexto demonstrativo é tênue, senão esquemática. Aristóteles sistematiza as formas silogísticas válidas a partir da protasis (ou pergunta problema), proposta no âmbito da dialética, e cuja resposta (sim ou não) já está contida em respostas a perguntas anteriores. A diferença entre silogismo (argumento válido) dialético e silogismo demonstrativo é antes o fato de o primeiro ter como premissas proposições hipotéticas, enquanto o segundo tem como premissas proposições necessariamente verdadeiras, do que o contexto (interrogativo ou demonstrativo) em que elas se encontram. De fato, há elementos textuais que mostram que Aristóteles jamais deixa de pensar em termos interrogativos. Quanto a Frege, a importância das perguntas para sua metodologia da lógica é explícita. Em diversas oportunidades ele deixa claro que a metodologia da lógica (e da ciência em geral) parte de perguntas sim-ou-não (Satzfragen), que devem ser respondidas e justificadas pelos meios convenientes. No contexto primitivo que destacamos, esta justificação não é outra senão a epistemologia 351 modal baseada no princípio da conceptividade. Aliás, o discutido princípio do contexto está relacionado com este momento inquiridor: deve-se partir de perguntas sim-ou-não já formadas para então determinar como a estrutura pode engendrar a verdade ou validade de uma forma. Por fim, temos uma semelhança muito curiosa, e talvez muito importante. Ambos os progenitores da lógica acreditavam que o princípio POSS⊃CON era verdadeiro. Ou seja, não admitiam que pudesse haver algum elemento da realidade ou do conhecimento que não pudesse ser experienciado. Talvez esta assunção determine uma postura propensa ao exame de nossas faculdades racionais; talvez uma pessoa que assuma que há entes existentes, mas que não podem ser experienciados, embora esteja mais próxima da realidade que nossos heróis, não veja a inconceptividade como informativa sobre o mundo. Se isto for verdade, então o conservadorismo de Frege com relação a geometrias nãoPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA euclidianas, por exemplo, talvez seja o outro lado da moeda necessário para que sua mente pudesse efetivamente examinar suas capacidades conceituais e aí enxergar a estrutura lógica do mundo. 3- Para um Revisionismo Histórico Já deve estar mais do que claro que não corroboramos uma série de cânones adotados por muitos acerca das histórias recentes da lógica e da filosofia analítica. Nossa leitura não coaduna com a visão de que Frege foi um agente da chamada “virada lingüística” – se é que realmente existiu tal coisa. De fato, estamos de acordo com aqueles que, implícita ou explicitamente, vêem em Frege um continuador da tradição epistemológica. Nesta seção, fazemos um breve relato da visão segundo a qual Frege foi o deflagrador de alguma coisa do gênero virada lingüística, tomando como base Dummett (1973) e (1991). Em seguida, mostramos como nossa tese traz sérios questionamentos a este tipo de posicionamento e indicamos algumas outras conseqüências que ela traz para a interpretação da história da lógica e da filosofia. Segundo Dummett, por obra de Frege, a questão do significado foi transformada no ponto de partida para toda a filosofia, desbancando a abordagem epistemológica em voga desde Descartes; esta teria sido, segundo Dummett, a maior contribuição de Frege para a filosofia: 352 A significância primária da obra de Frege consiste precisamente no fato de que ele fez desta área da filosofia [i.e., a filosofia da lógica],2 não um ramo especializado, mas o ponto de partida para todo o domínio [da filosofia]. (...) Descartes fez da questão, “o que sabemos e o que justifica nossa alegação de conhecimento?”, o ponto de partida para toda filosofia: e, apesar das visões conflitantes das várias escolas, este foi aceito como o ponto de partida por mais de dois séculos. A conquista básica de Frege jaz no fato de que ele ignorou totalmente a tradição cartesiana, e foi capaz, postumamente, de impor sua perspectiva diferente a outros filósofos da tradição analítica. Isto não quer dizer que Frege era desinteressado em questões de justificação: ele era, por exemplo, extremamente preocupado com a justificação dos princípios matemáticos básicos, e, com isto, com os axiomas das teorias matemáticas; mas ele não fez destas questões o ponto de partida, algo que deve ser estabelecido antes de que qualquer outra coisa possa ser dita. Para Frege, a primeira tarefa, em qualquer investigação filosófica, é a análise dos significados. (1973, pp. 666-667) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA Dummett reforça sua posição, mais adiante: Porque a filosofia tem, como sua primeira, senão única tarefa, a análise dos significados, e porque, quanto mais profundo tal análise vai, mais ela é dependente de uma explicação geral correta do significado, um modelo para o que consiste o entendimento de um expressão, a teoria do significado, que é a procura de tal modelo, é o fundamento de toda a filosofia, e não a epistemologia, como Descartes nos conduziu erradamente a crer. A grandeza de Frege consiste, em primeiro lugar, em ter percebido isto. Ele não começa do significado somente no sentido em que, e.g, uma investigação do significado da expressão “número natural” precede uma investigação sobre a base das leis concernentes aos números naturais: ele começa do significado tomando a teoria do significado como a única parte da filosofia cujo resultado não depende dos resultados de qualquer outra parte, mas que subjaz a todo o resto. Ao fazê-lo, ele efetuou uma revolução na filosofia tão grande quanto a revolução similar efetuada previamente por Descartes. ( 1973, p. 669) Como Frege foi capaz de efetuar esta mudança de abordagem filosófica e tornar a linguagem essencial para a filosofia, ou seja, seu ponto de partida, e ter conseqüência para todo o resto? Segundo Dummett, Frege teria percebido o isomorfismo entre estrutura da sintaxe sentencial e a estrutura do pensamento.3 Isto faz com que o estudo do universo lingüístico-sentencial corra paralelamente ao estudo do universo epistêmico do pensamento, e também que os avanços promovidos dentro do universo lingüístico constituam-se automaticamente em avanços promovidos dentro do universo do pensamento: 2 O que Dummett chama de filosofia da lógica equivale ao que nós chamamos de filosofia da linguagem: teoria dos significados. Ver Dummett (1973, pp. 669-671). 3 O termo “pensamento”, no uso de Dummett, permanece ambíguo entre sentidos fregianos e ocorrências mentais psicológicas. Aparentemente, este é o universo dos conteúdos cognitivos, que pode ser abordado tanto via teoria do significado (filosofia analítica) quanto via epistemologia (tradição moderna). 353 Uma análise da estrutura das sentenças pode ser convertida em uma análise paralela da estrutura dos pensamentos, porque a “estrutura lógica” tem a intenção de ser uma representação da relação das partes da sentença entre si que é adequada para o propósito de um tratamento semântico, ou um tratamento da teoria do significado; é esta análise sintática em termos da qual podemos explicar o fato de uma sentença ter o significado que a constitui como uma expressão de um certo pensamento. Esta é a razão pela qual Frege foi capaz de afirmar que a estrutura da sentença reflete a estrutura do pensamento. Assim, a tese, em filosofia da linguagem, de que o significado de uma sentença é determinado pelas condições para que ela seja verdadeira pode ser transposta de uma só vez para a tese, em filosofia do pensamento, de que o conteúdo de um pensamento é determinado pela condição para que ele seja verdadeiro: em qualquer um dos modos, argumentos a favor e contra a tese são em larga medida os mesmos. (1991, p. 3) Por refletir a estrutura do pensamento, a linguagem torna-se, segundo Dummett, o foro privilegiado de discussões para questões metafísicas, em particular, a querela realismo vs idealismo. Para Dummett, esta querela metafísica pode ser transformada em uma discussão sobre teorias do significado, discussão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA que não está viciada pelos problemas que a epistemologia tradicional enfrenta em sua abordagem. Na visão de Dummett, esta discussão metafísica pode, em última análise, resumir-se à discussão entre as teorias do significado realista e intuicionista, e assim ser resolvida “sem resíduos”! (ver Dummett 1991, pp. 9-13 e 17). Por exemplo, a semântica de condições de verdade incorporaria o realismo. Segundo esta teoria da linguagem, “apreender o sentido de uma sentença é, em geral, saber as condições de verdade sob as quais a sentença é verdadeira e as condições sob as quais a sentença é falsa” (Truth and other Enigmas, Londres: Duckworth, 1978, apud. Dwyer 1989, p. 129-130). O realismo poderia, então, ser avaliado a partir do sucesso ou insucesso desta teoria semântica em descrever o fenômeno da linguagem. Quando Dummett afirma que se devem buscar na teoria da linguagem ou do significado as respostas para as questões filosóficas, ele não têm em mente linguagens arregimentadas, ou as linguagens técnicas da matemática ou da física; a teoria da linguagem deve ser desenvolvida a partir da observação da linguagem natural, cujas “formas de enunciados (...) [são] familiares a todos os seres humanos”, “cujos significados já são conhecidos por nós”, “com as quais operamos nos contextos nos quais normalmente nos encontramos”, mas as quais “não entendemos corretamente” (Dummett 1991, pp. 12-13). É a este universo da linguagem natural (ordinária) que devemos nos ater: 354 Para ganhar um entendimento completo, para vir a ter uma visão clara de como [as palavras] funcionam, precisamos escrutinar nossas próprias práticas lingüísticas com grande atenção, a fim de, em primeiro lugar, nos tornarmos conscientes de como exatamente elas são, mas com o objetivo eventual de uma descrição sistemática delas. Tal descrição nos dará uma representação do que é, para as palavras e expressões de nossa linguagem, ter o significado que elas têm. Esta [descrição] deve abarcar tudo que aprendemos quando aprendemos inicialmente a linguagem, e portanto não pode assumir como dadas quaisquer noções cuja apreensão é possível somente para um falante da linguagem. Deste modo, ela deixará exposto o que faz de algo uma linguagem, e assim o que é para uma palavra ou sentença ter um significado. (1991, p. 13) Pode-se ver que uma série de traços que Dummett atribui a Frege, à lógica e à filosofia, são conflitantes com a visão que esposamos ao longo desta tese. Seguem-se algumas das discordâncias mais óbvias entre nossa visão e a de Dummett. Em nossa visão, o alegado isomorfismo sentença-pensamento, defendido PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA por Dummett, não é a base para a lógica de Frege e tampouco correto por si só. Vimos que o pensamento é primariamente conteudístico, sem uma estrutura sintática “constituidora” fixa (ver seção 8.3), e que a lógica nasce da tentativa de codificar estes conteúdos empregando para tanto o meio físico, espacial, do papel. Esta visão está claramente presente em Frege (1882). É natural ver as posições assumidas por Frege em suas obras tardias (“Negation” e “Thoughts”), das quais Dummett extrai subsídios para a sua adoção da tese isomorfismo, antes como ensaios de retomada de seu projeto de fundamentar a lógica do que como teses retrospectivas acerca do que Frege considera como sendo a fonte epistemológica para o desenvolvimento de sua sintaxe lógica. E, independentemente de Frege ter eventualmente assumido esta posição, vimos sobre bases independentes que a tese do isomorfismo é provavelmente incorreta (ver seção 5.3.3). Ainda segundo nossa postura, outra inadequação existente na interpretação dummettiana de Frege é vê-lo (e o realismo em geral) como um adepto da visão segundo a qual saber o significado é saber as condições de verdade. Como vimos em 7.2, Frege estrutura sua semântica e sua epistemologia de modo que seja sempre possível conhecer o significado de uma conjectura científica, sem que se saiba se ela é verdade ou falsa. Isto é tão mais verdadeiro no caso das ciências formais, o núcleo de preocupação da obra de Frege, nas quais saber as condições de verdade de uma proposição é sempre saber que ela é verdadeira. Por exemplo, se sei as condições de verdade de 5+7=11, eu já sei que não há condições nas 355 quais este enunciado seja verdadeiro; ele é falso em todas as situações concebíveis. Mas isto é muito mais que saber o significado de 5+7=11: é saber seu valor de verdade. E o conhecimento do valor de verdade é fruto de juízo, e não da apreensão do significado. Uma outra deficiência na visão de Dummett é ver a obra de Frege como uma ruptura com a tradição epistemológica. Há uma série de evidências gerais na obra de Frege que apontam para uma continuidade com a tradição, e que o distanciam da interpretação de Dummett. Podemos enumerar algumas delas:4 1) Assim como boa parte da filosofia moderna, Frege preocupa-se intensamente com a ciência. A verdade e o conhecimento são os valores guia da obra de Frege, e é com vistas a resultados efetivos dentro deste universo que ele desenvolve sua obra. Sua conceitografia pretende ser uma contribuição para a metodologia da ciência. Em toda a sua obra (mas principalmente no Begriffsschrift), seus PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA exemplos em geral são enunciados necessários tirados da ciência, ao contrário do que ocorre na maior parte da filosofia analítica e na obra de Dummett em particular, nas quais o comum são exemplos da linguagem natural. 2) Assim como todo o racionalismo da modernidade, Frege tem na geometria euclidiana um ideal de ciência. O método axiomático é, neste caso, o ideal comum de rigor na ciência, o caminho a ser trilhado para a aquisição do conhecimento. 3) Em decorrência deste ideal de rigor, tanto Leibniz (inspiração declarada de Frege) quanto Descartes sonham com uma linguagem ideal para a aquisição de conhecimento científico. Este é um projeto comum ao racionalismo da modernidade. Eis o que Descartes afirma neste sentido: A grande vantagem de tal linguagem seria a assistência que ela daria ao juízo dos homens, representando as coisas tão claramente que seria quase impossível errar. Do modo como as coisas estão, quase todas as nossas palavras têm significados confusos, e as mentes dos homens estão tão acostumadas a elas que não há quase nada que eles possam entender perfeitamente (Philosophical Letters, ed. Anthony Kenny, Oxford: Clarendon, 1970, p. 6, apud. Dwyer 1989, p. 133) 4) Tanto Frege quanto Descartes (cuja abordagem é, para Dummett, o protótipo da abordagem epistemológica desbancada por Frege) caracterizam a “ausência de 4 Aqui nos baseamos no excelente Dwyer (1989, principalmente pp. 131-135) para muitas das observações. Dwyer, a fim de questionar a visão de Dummett de que Frege representa uma ruptura com a tradição iniciada por Descartes, faz uma comparação entre as abordagens de Descartes e Frege, encontrando inúmeras semelhanças entre ambas. 356 lacunas na prova” de maneira psicológica. O primeiro apela à intuição, enquanto o segundo apela à auto-evidência e à indubitabilidade. 5) Frege, a exemplo dos autores da modernidade, jamais deixa de reconhecer a existência de idéias ou representações. Ao contrário do que acontece em inúmeras abordagens contemporâneas, ele não tenta eliminar ou reduzir idéias a uma outra coisa; ele se restringe a apontar uma suposta inutilidade de idéias para justificar a verdade de enunciados. O revisionismo histórico proporcionado por esta tese vai ainda mais longe, e atinge as raízes do que se considera como lógica propriamente dita e sua metodologia apropriada. Vejamos. Se se considera Aristóteles e Frege (e ainda Boole ou Peirce) como grandes nomes da lógica, isto só pode ser em virtude das novidades que eles trouxeram, ao codificarem e sistematizarem a lógica como ciência. A centralidade que estes PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA autores ocupam não pode se dar em virtude de provas, no sentido estrito, que eles desenvolveram – é comum hoje em dia provarem-se enunciados que estes autores sequer tinham condições epistemológicas de apreender. Assim, deve-se incluir a tarefa de “codificação lógica” dentro do que se chama propriamente de lógica, sob pena de excluir estes nomes do rol dos grandes nomes desta ciência. Mostramos, ao longo de toda a parte II desta tese, como a tarefa de codificação lógica tem peculiaridades epistemológicas que fazem do pensamento informal, de cunho arraigadamente modal, psicológico e conteudístico, seu parâmetro fundamental. Este é o universo epistemológico por excelência para se determinar a acuidade expressiva da linguagem formal e a validade de formas expressas por meio desta linguagem. Mostramos ainda como se dão a presença e a importância deste universo epistemológico em Aristóteles e em Frege. Dados estes fatos, temos então que: Se a lógica inclui a tarefa de codificação lógica, e a tarefa de codificação lógica exige o universo psicológico e modal para a justificação de enunciados da linguagem formal que está sendo codificada (e de seus recursos expressivos em geral), então é parte inamovível da lógica, senão sua essência, o universo psicológico e modal. Como colocamos no capítulo 3, dizer isto não é dizer que quando alguém define recursivamente uma linguagem, ou define regras de inferência e axiomas para esta linguagem, ou define uma semântica para esta linguagem, ou prova teoremas (dentro ou fora do sistema), este alguém faz algum apelo ao universo 357 psicológico. Jamais afirmamos nada que vá neste sentido. De fato, a psicologia tem pouco ou nenhum papel nestas tarefas, a não ser como um amparo material para que elas se desenvolvam, um veículo que não se relaciona essencialmente com os conteúdos que são tratados nestas tarefas. A psicologia, aqui, é tão importante para a lógica quanto o “sangue circular pelo cérebro”, ou sermos capazes de ver ou ouvir etc. Em contraste, a noção de conceptividade tem uma relação essencial e inexorável com a tarefa de codificação de linguagens lógicas. Sermos capazes de conceber, ou não, certa situação na qual uma forma lógica é válida, é o que nos justifica a aceitar, na ausência de outros recursos, a validade ou invalidade de uma forma lógica. A conceptividade não é, nestes casos, um amparo fisiológico ou material para a lógica, ou seja, um mero veículo que possibilita fisicamente a execução de uma prova; ela é o próprio critério a partir do qual se toma uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA forma como válida ou inválida ou se aceita ou rejeita um certo formalismo, num contexto epistemológico primitivo no qual não há outras alternativas. Referências Bibliográficas AACH, J. (1990) Psychologism Reconsidered: A Re-Evaluation of the Arguments of Frege and Husserl. Synthese 85, pp. 315-338. ARISTÓTELES, De L’Ame. Paris: Belles Lettres, 1995. . De Anima (Books II and III). Oxford: Clarendon Press, 1993. . Catégories. Paris: Éditions du Seuil, 2002. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115488/CA . Catégories. Paris: J. Vrin, 1997 . Topiques. Paris: J. Vrin, 1939. . De l’Interprétation. Paris: J. Vrin, 1997. . Premiers Analitique. Paris: J. Vrin, 1947. . Seconds Analitique. Paris: J. Vrin, 1947. 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