em epicuro, a filosofia é a medicina da alma

Propaganda
EM EPICURO, A FILOSOFIA É A MEDICINA DA ALMA
BORDIN, Reginaldo Aliçandro (UEM/CESUMAR)
PEREIRA MELO, José Joaquim (UEM)
Introdução
Nos séculos IV e III antes da era cristã as escolas de Platão e Aristóteles,
considerados os maiores expoentes da filosofia grega, predominaram na Grécia e atraíram
discípulos, mesmo após a morte de seus fundadores. Seus seguidores, que preservavam a
herança deixada pelos mestres, viram surgir novas escolas e, em decorrência, outras
orientações filosóficas se estabelecendo preocupadas em solucionar os problemas de seu
momento. O epicurismo foi uma delas.
A origem das novas doutrinas, em particular a de Epicuro, estava associada às
novas e indesejadas condições de Atenas e da Grécia. Atenas, que havia alcançado seu
apogeu na época de Péricles, estava em declínio. Primeiro, a Guerra do Peloponeso (431 –
404 a.C.) foi um duro golpe para o ateniense porque desestabilizou a economia da cidade e
contribuiu para ruir os fundamentos da polis1. Depois e principalmente, a Grécia se viu
ameaçada pelo expansionismo macedônico e, em 338 a.C., na Batalha de Queronéia, a
aliança dos helenos foi vencida pela Macedônia, comandada por Filipe e depois por seu
filho, Alexandre Magno.
A conquista encaminhada por Alexandre representou o ponto alto das mudanças
ocorridas na Grécia. O grego da era clássica, que sempre considerou a polis como o
horizonte da vida moral, assistiu à decadência dos ideais da vida política e à perda do gosto
pela administração pública. As referências morais que eles acreditavam corretas também
ganharam outras perspectivas: o grego, por força dos acontecimentos, fechou-se em si
mesmo e buscou no seu íntimo os conteúdos éticos e as metas que orientariam a vida
(REALE, 1994).
A perda do prestígio econômico e político de Atenas também recaíram sobre a
filosofia. O legado filosófico que os discípulos da Academia e do Liceu produziam, não
1
Modelo político das cidades gregas, na Antiguidade Clássica.
1
tinha a mesma dimensão sistemática e ampla de seus fundadores. Os filósofos
desenvolveram aspectos parciais e desvirtuaram o espírito e o caráter de seus mestres
(FRAILE, 1971). A filosofia perdeu sua natureza especulativa e ganhou um aspecto distinto
do que até então a definia: ela tornou-se prática e materialista, a exemplo do epicurismo.
Essa doutrina filosófica, embora divergente dos platônicos, tinha um ponto em
comum com eles: compreendia a ruína de Atenas e buscava os remédios que
possibilitassem aos homens sobreviver a ela. Entretanto, não ambicionava reconstruir a
Cidade-Estado, mas abster-se dela (FARRINGTON, 1968). Movido por essa finalidade,
Epicuro repensou a educação do homem e, diferente de Platão que propôs reconstruir o
Estado com base na justiça, o filósofo do jardim procurou orientar seus discípulos a buscar
refúgio longe da vida pública, além da valorização da vida simples, sem os apegos da
riqueza.
A doutrina epicurista significava, portanto, uma reação ao espírito de fatalidade
que se abateu sobre todos. Ante a miséria econômica e política, Epicuro construiu a
filosofia centrada nas noções de prazer, serenidade e na alegria (MOTTA PESSANHA,
2007).
Epicuro, médico do jardim
Epicuro nasceu em Samos, no ano de 341 a.C. e morreu em Atenas, em 270 ou
271 a.C. Na cidade natal ele mostrou interesse pela filosofia e, aos 13 ou 14 anos, recebeu as
primeiras lições, orientadas por Pânfilo, um platônico. Pouco depois, Epicuro aprendeu o
sistema atomista de um discípulo de Demócrito de Abdera e dele possivelmente herdou a
concepção materialista da natureza. No período em que esteve em Atenas, por volta dos 18
anos, Epicuro, além de cumprir com as obrigações militares, travou conhecimento com os
filósofos das escolas de Platão e Aristóteles. Não se sentiu atraído por eles, já que os
julgavam especulativos e sem sentido.
O desgosto de Epicuro, motivado pela descrença da concepção política e da
cosmologia platônicos, fez que ele se empenhasse em elaborar uma nova doutrina que tivesse
uma intenção menos pretensiosa: a filosofia se vale por sua finalidade prática, isto é, buscar a
felicidade. Esse esforço de Epicuro representava uma resposta ao colapso do seu mundo
social e, por isso, não mediu esforços para divulgar suas idéias. Com essa finalidade, em 306
2
a C., depois de passar por cidades da Ásia Menor, Epicuro se transferiu para Atenas e nos
seus subúrbios comprou uma propriedade. No local, ele redigiu seus escritos e também
acomodou seus discípulos. Ele utilizou o jardim como sede para sua escola e, por esse
motivo, era chamada de “filósofo do jardim” (ULLMANN, 1996).
Nesse local, Epicuro recebia seus discípulos e dava-lhes lições: recomendava-lhes
a moderação e exortava-lhes a viver no serviço da meditação filosófica para alcançar a
liberdade e a serenidade. Atitude inovadora e motivo de contendas, o filósofo não limitava a
entrada de pessoas em sua escola; qualquer um, não importando a condição social, escravo
ou liberto, pobre ou rico, estrangeiro ou cidadão, poderia freqüentar a escola-jardim. A
regra para todos era a mesma: cultivar o amor à sabedoria e a amizade, considerada o maior
dos bens (DIÔGENES LAÊRTIOS, 1987).
Esse comportamento e regra evidenciavam que Epicuro tinha rompido com a
tradição política dos gregos, já que não considerava que a cidade-Estado poderia assegurar
ao homem a justiça, a felicidade e seu destino. A vida social e pública era apenas
convenção humana que não garantia a liberdade, motivo da sua escola ser afastada da
cidade. Para ele, a salvação do homem não vinha da política porque a considerava causa
dos sofrimentos e, por isso, Epicuro recomendava a todos que vivessem no recolhimento e
na tranquilidade de sua propriedade, distante, portanto, da multidão.
A fonte mais pura de proteção diante dos homens, assegurada até certo
ponto por uma determinada força de rejeição, é de fato, a imunidade
resultante de uma vida tranqüila e distante da multidão (DIÔGENES
LAÊRTIOS, 1987, 317).
A vida de Epicuro parece ter sido marcada pela busca da serenidade. Sua escolajardim se assemelhava a uma confraria onde os discípulos procuravam ouvi-lo e seguir suas
orientações. Parecia uma sociedade à parte da atribulada vida ateniense. E de fato era. A
convivência na comunidade pouco tinha de comum com a cidade, sinônimo de vida leviana
e de injustiças sociais, provocadas pela concentração de poder nas mãos de poucas famílias,
situação que conduziu os homens à ambição. Essa ocorrência se tornou um problema, pois
levou as classes mais pobres a perder suas glebas. Além disso, as diferenças sociais deram
margens aos vícios e à corrupção, o que motivou o filósofo a se retirar da vida pública e a
procurar no seu íntimo a regra moral da vida (ULLMANN, 1996).
3
Os epicuristas se voltaram para a natureza particular do indivíduo. Tratava-se de
encontrar os remédios que curassem os distúrbios da vida, mas não na esfera pública. Em
sintonia com as necessidades de sem tempo, a filosofia de Epicuro estabeleceu a finalidade
de tornar os homens felizes e libertá-los dos vícios e dos males que trazem sofrimentos.
Nesse caso, em seu sítio, Epicuro deu à filosofia uma finalidade mais prática: ela se
converteu no remédio para os males do corpo e da alma, portanto, atividade curativa e
libertadora, concepção que tomou de empréstimo da medicina. Ao se converter no remédio
para os males que afligiam o homem, a filosofia se deslocou da reflexão teórica para o
hábito de viver enquanto único meio para alcançar o bem e a felicidade, possíveis apenas
nesta vida.
Segundo Epicuro, a filosofia deve orientar o homem no cumprimento da meta da
vida humana, que é o prazer. O prazer não é a sensação da volúpia ou das riquezas, mas foi
definido pela ausência de dor, pela tranqüilidade do espírito e a contenção dos desejos,
alcançados por meio da meditação filosófica (MOTTA PESSANHA, 2007). A reflexão
possibilita o homem eliminar as expectativas e a ansiedade e alcançar a vida feliz. Prazer,
portanto, não representava posses ou satisfação de desejos, atribuições que foram dadas
pelos críticos do epicurismo:
Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos
prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos,
como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não
concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que é
ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma (EPICURO,
2002, p. 43).
Além de afirmar que o sentido da vida é o prazer, Epicuro recomendou aos seus
discípulos uma vida moderada, sem excessos. O comedimento, resultado da prática
meditativa, é um dos critérios que preside a vida humana, uma vez que seu objetivo é
equilibrar a satisfação das necessidades, que podem ser espirituais e corporais. As
necessidades do corpo são essencialmente carnais; a da alma é fundamentalmente o prazer.
A alma, dotada de reflexão, tem a incumbência de regular a vida do sábio, refreando as
atividades próprias do corpo mediante a prudência, com a qual deve moderar os apetites
(FRAILE, 1971).
O excesso e a falta proporcionam ao indivíduo perturbações e agitações, afastandoo da vida feliz. Nesse caso, Epicuro procurou administrar a vontade nos limites impostos
4
pela natureza e dela tirou as lições para alcançar a calmaria. Não por acaso dedicou uma
carta a Heródoto, seu discípulo, exortando-o a conhecer as leis da natureza nos seus
aspectos físicos, pois acreditava que o conhecimento dos corpos celestes poderia contribuir
com a felicidade (DIÔGENES LAÊRTIOS, 1987).
Ao afirmar que o homem deveria eliminar a dor e o sofrimento, Epicuro apontou
os caminhos para alcançar a serenidade: além de eliminar a expectativa e afastar desejos
considerados incômodos, os discípulos deveriam também eliminar as incertezas das
crendices e superstições, provocadas pela instabilidade social. As crises que agitaram
Atenas fizeram os homens se voltar para o misticismo e para o temor da ação dos deuses.
Na concepção epicurista, os gregos, inadvertidamente, atribuíram aos deuses valores
incompatíveis com sua natureza, definida pela felicidade e imortalidade. Epicuro entendeu
que os juízos atribuídos pelo povo aos deuses se baseavam em opiniões falsas, cujo
resultado era a crença de que eles causam os maiores malefícios aos maus e os benefícios
aos bons.
Nesse caso, ele considerou a tradição religiosa uma das fontes de equívocos, já que
ela estava sustentada nas práticas adivinhatórias. A concepção da escola epicurista era de
que os deuses nada podiam fazer contra os homens e, por isso, seria inútil bajulá-los em
busca de favores ou temê-los. Eles não podem interferir no curso da vida e servem apenas
como exemplos de bem-aventuranças para ser imitados (EPICURO. 2002). Essa
compreensão sobre as divindades implicava o entendimento de que eles, por sua natureza,
deveriam ser apenas reverenciados, uma vez que representavam as virtudes da piedade e da
serenidade do espírito. Imitá-los seria um dos meios para alcançar a saúde do espírito.
Em primeiro lugar, considerando a divindade com um ente imortal e bemaventurado, como sugere a percepção comum de divindade, não atribuas a
ela nada que seja incompatível com a sua imortalidade, nem inadequado à
sua bem-aventurança; pensa a respeito dela tudo que for capaz de
conservar-lhe felicidade e imortalidade (EPICURO, 2002, p. 22-25).
Por outro lado, há uma implicação mais importante na concepção religiosa de
Epicuro: o homem não precisa dos deuses para alcançar a felicidade e evitar fazer o mal, já
que ele pode fazê-lo pelo exercício filosófico.
Além dos discípulos refrearem o medo que cultivavam dos deuses, Epicuro os
instruiu a repudiar o receio da morte. Esse filósofo considerava a morte como privação das
5
sensações e, por isso, ela nada significava. A consciência clara de que a morte nada
significa, diz Epicuro, proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe
tempo infinito ou o desejo da imortalidade (EPICURO, 2002).
Para o filósofo do jardim, a morte não deveria ser temida porque ela é a ausência
de sensações. Influenciado pelo atomismo de Demócrito de Abdera (460-370 a.C.), Epicuro
entendia que o corpo é constituído por átomos e que estes, pela sua constituição e peso,
determinam a liberdade e a vontade. A morte é a dissolução do conjunto de átomos que
forma o corpo e a alma e, por isso, não representa nenhum impedimento à felicidade. Não é
a morte que causa o sofrimento; o que faz o homem agonizar em dor é a sua espera:
Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós,
justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao
contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte,
portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para
aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto,
a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora
a deseja como descanso dos males da vida (EPICURO, 2002, p. 29).
Esses sentimentos impedem o fim último da vida, que é o prazer, isto é, a ausência
de sofrimentos físicos e espirituais. Somente o sábio concebido como aquele que se
comporta indiferente à morte e ao sofrimento e que compreende sua própria natureza, pode
gozar de uma vida feliz e prudente, já que removeu as perturbações da alma. Sábio é aquele
que não desdenha a vida e nem se incomoda com a morte, mas procura viver bem. Nada
lucramos vivendo eternamente, mas ganhamos vivendo bem. O que conta, nesse caso, não é
o tempo de vida e sim a qualidade dela (FARRINGTON, 1968).
A suprema felicidade, que colocaria o homem no mesmo nível dos deuses, é uma
das metas que o filósofo do jardim procura alcançar. Para Epicuro, felicidade implicava a
libertação do sofrimento, da dor, do temor e da enfermidade e, portanto, no cultivo da
completa tranqüilidade, que poderia ser alcançada pela meditação. Ao suprimir as
sensações consideradas negativas, o homem atingiria a perfeita realização da vida humana,
isto é, o prazer.
O prazer a que Epicuro se refere não está vinculado aos proporcionados pelo sexo
ou pelas riquezas. Ele foi concebido como um bem inato, o início e o fim da vida feliz e o
fundamento da vida moral. Além disso, é critério de toda escolha ou recusa, segundo a
distinção entre prazer e dor, o valor e o contravalor:
6
É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida
feliz. Com efeito, nós o identificamos como o bem primeiro e inerente ao
ser humana, em razão dele praticamos toda escolha e toda recusa, e a ele
chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre prazer e
dor embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso
escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres,
quando deles nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo
que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um
prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo
(...) convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo
com o critério dos benefícios e dos danos (...) Quando então dizemos que o
fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes
(...), mas o prazer que é a ausência de sofrimentos físicos e de perturbações
da alma (EPICURO, 2002, p. 37-43).
As afecções e o prazer representavam para o epicurismo critérios axiológicos que
direcionavam as ações humanas, com vistas à vida feliz. Apesar de atribuir um papel
importante ao prazer, Epicuro afirmava que o ideal a ser alcançado não era satisfazer toda e
qualquer necessidade, mas eliminá-la, uma vez que nem toda é considerada desejável
(MOTTA PESSANHA, 2007).
Suportar a dor é a regra de sabedoria que Epicuro recomendava aos seus
discípulos. Segundo ele, o indivíduo pode escapar da dor por meio da recordação dos
prazeres passados e pelo cultivo da amizade. Epicuro, doente de cálculos renais e um grego
sem liberdade política, indicou a técnica para o homem enfrentar as mais terríveis
adversidades: fez da contemplação intelectual e das delícias da amizade no jardim os mais
elevados prazeres.
Uma dor contínua não dura muito tempo na carne; ao contrário, quanto
mais aguda é a dor menor é a sua duração, e também se por sua intensidade
ela vence o prazer, não dura muitos dias na carne. As doenças prolongadas
permitem até uma preponderância do prazer sobre o sofrimento carnal
(DIÔGENES LAÊRTIOS, 1987, p. 315).
A meta dos filósofos epicuristas era a superação dos medos que assombram o
homem e, para isso, cultivavam valores considerados essenciais, a exemplo da amizade, do
bom humor e da moderação. Para alcançá-los eles substituíram a intelecção filosófica pela
meditação. De acordo com a filosofia epicurista, o sábio não é mais aquele que conhece e
contempla, mas é o que age de modo a apoderar-se da felicidade, seja pela perfeição ou pela
total ausência de inquietação (MARITAIN, 1973).
7
O sábio, que busca uma vida moderada, transformou-se no modelo de homem que
Epicuro perseguia, pois acreditava ser ele capaz de viver como um deus entre mortais. A
vida ideal do sábio, que aspira a liberdade e a paz como bens supremos, consistiria na
renúncia de todos os desejos considerados incômodos e em precaver-se contra as surpresas
do sentimento, da emoção, da paixão, entendidas como irracionais. A rigor, é aquele que
nega a interferência dos deuses, se comporta com indiferença ao sofrimento e discerne as
práticas morais apropriadas para alcançar o máximo de prazer:
Na tua opinião, será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio, que
tem um juízo reverente acerca dos deuses, que se comporta de modo
absolutamente indiferente perante a morte, que bem compreende a
finalidade da natureza, que discerne que o bem supremo está nas coisas
simples e fáceis de obter, e que o mal supremo ou dura pouco, ou só nos
causa sofrimento leves? Que nega o destino, apresentado por alguns como
o senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por necessidade, ou por
acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é incoercível, o acaso,
instável, enquanto nossa vontade é livre, razão pela qual acompanha a
censura e o louvor?(EPICURO, 2002, p. 47-49).
Essa característica da escola epicurista, apontava que sua doutrina se desviou para
problemas práticos, de ordem moral. A moralidade consistia na busca da felicidade pessoal
e íntima, desapegada dos bens materiais e da convivência política. Sob certos aspectos,
Epicuro exigia de seus adeptos um determinado modo existencial de viver, quer a nível
religioso (no sentido de religião pagã), quer a nível social (frente a polis). É por isso que
essa doutrina foi considerada ética, exatamente porque reivindicou certo comportamento
instituído como se fosse um costume ou um hábito de viver (SPINELLI, 2002).
Ao recomendar os remédios para o indivíduo, a doutrina epicurista encontrou solo
fértil para o seu desenvolvimento, uma vez que procurou corresponder com as necessidades
de sua época. O jardim, situado nos arredores de Atenas, local que Epicuro convivia com
seus amigos e escreveu a maioria das suas cartas, representava a tentativa de reformar a
sociedade por meio da reconciliação das pessoas, em torno da amizade e não da política ou
do Estado. Segundo Benjamin Farrington, o epicurismo buscava não a ordem externa, mas
a aceitação voluntária dos homens a uma relação de amizade, o que evidenciava que o
mestre do jardim estava repensando a natureza humana (FARRINGTON, 1968).
Talvez por isso, ele acolhia pessoas de todos os grupos, lugares e condições, desde
que estivessem dispostas a seguir suas orientações. Nesse caso, Epicuro foi inovador porque
8
rompia com a tradição grega de limitar a participação de estrangeiros ou escravos na vida
pública. Embora o jardim não fosse uma comunidade política no sentido da polis ateniense,
nele, homens e mulheres, estrangeiros ou não, pareciam gozar das mesmas condições e
atribuições.
A comunidade formada por Epicuro revelava traços que a diferenciava das demais
escolas, a exemplo do estoicismo, fundada por Zenão de Cítio (334/6 -262/4 a.C.), por volta
de 300 a.C. Os epicuristas buscavam a paz, a calmaria, o domínio de si, tinham uma
alimentação frugal e uma indiferença completa face aos bens deste mundo; os estóicos, por
sua vez, desempenhavam discussões filosóficas centradas na retórica e na dialética, nos
deveres e virtudes humanas, discussões que geralmente ocorriam no espaço público
(BRUN, 1987).
Assim, Epicuro elaborou uma concepção filosófica que distanciava das
especulações que caracterizaram sua época. Seu objetivo não era elaborar investigações
complexas sobre a natureza íntima das coisas e do mundo, mas, principalmente, apontar ao
homem como viver em uma sociedade caótica. Sua escola havia ensinado comportamentos
simples e fundamentais: viver com moderação e simplicidade, rejeitar a comunidade
política e buscar a felicidade no aspecto da intimidade foram remédios que considerou
eficazes para combater as doenças de sua época.
Conclusão
A filosofia epicurista procurou os remédios que pudessem aliviar o sofrimento.
Não buscava as riquezas ou o luxo, uma vez que ela entendeu os excessos e a ausência de
equilíbrio, os males que provocavam perturbações. Diferente da filosofia de Platão, o
epicurismo não se destacava por definir e exaltar o homem no universo da Cidade-Estado, já
que o considerava protagonista de seu próprio destino.
Epicuro não era propriamente um político, mas um tipo de sábio que se liberta das
reprimendas e dos sofrimentos e vive tranquilamente. Essa concepção demonstra que o sábio
era o modelo de indivíduo que Epicuro procurou formar em sua escola, o que sugere ter
lançado os fundamentos de uma pedagogia que rompia com a tradição, especialmente a
platônica.
9
Enfim, ele tinha clareza das exigências do homem grego e, por isso, elaborou sua
filosofia em sintonia com as necessidades gregas, concebendo-a como medicina da alma.
Menos ambiciosa, a doutrina epicurista não tinha fundamento na antiga virtude política, mas
colocava o jardim como ambiente privilegiado da realização de seu objetivo, que era cultivar
a amizade e praticar a serenidade.
Referências:
BRUN, J. O epicurismo. Lisboa: Edições 70, 1987.
EPICURO. Carta sobre a felicidade. São Paulo: Editora Unesp, 2002.
LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. 2. ed. Brasília: Editora
UNB, 1987.
FARRINGTON, B. A doutrina de Epicuro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.
FRAILE, G. Historia de la filosofia: Grécia e y Roma. Madrid: 1971, vol. I.
MARITAIN, J. A filosofia moral. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1973.
MOTTA PESSANHA, José Américo. As delícias do Jardim. In. NOVAES, A. (org.) Ética.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Volume IV: As escolas da Era Imperial.
São Paulo: Edições Loyola, 1994.
SPINELLI, Miguel. Helenização e recriação de sentidos: a filosofia na época da expansão
do cristianismo-séculos II, II e IV. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Epicuro: o filósofo da alegria 2. ed. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1996.
10
Download