UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA PAULO CESAR ARANTES COSTA CRÍTICA DA VIOLÊNCIA E DO PODER EM WALTER BENJAMIN FORTALEZA 2011 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ PAULO CESAR ARANTES COSTA CRÍTICA DA VIOLÊNCIA E DO PODER EM WALTER BENJAMIN Dissertação apresentada ao Mestrado Acadêmico em Filosofia – CEMAF da Universidade Estadual do Ceará, como prerequisito parcial para obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profª Drª Tereza de Castro Callado Fortaleza 2011 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ PAULO CESAR ARANTES COSTA CRÍTICA DA VIOLÊNCIA E DO PODER EM WALTER BENJAMIN Área de concentração: Ética e Filosofia Política. Data da aprovação:____/____/_______. Banca Examinadora: _________________________________________ Profª Drª Maria Tereza de Castro Callado UECE – Universidade Estadual do Ceará _________________________________________ Profª Drª Mirtes Mirian Amorim Maciel UFC – Universidade Federal do Ceará _________________________________________ Profº Dr. Eduardo Jorge Oliveira Triandópolis UECE – Universidade Estadual do Ceará Fortaleza Dedico este trabalho ao meu amigo e companheiro Holmes Cordeiro, por sua presença, atuação Ética e ao estudo da Filosofia do Direito, servindo-me de exemplo de dedicação, trabalho e o viver dignamente. À Fernanda, Nelson, Breno e Mara Arantes AGRADECIMENTOS Agradecer a todos que ajudaram a construir esta dissertação não é tarefa fácil. O maior perigo que se coloca para o agradecimento seletivo, é decidir quem não mencionar e não quem incluir, então agradeço aos meus amigos que de uma forma ou de outra contribuíram para a realização deste trabalho. Especial a minha amiga, professora e orientadora Drª Tereza de Castro Callado que me agraciou com sua gentileza, dedicação, conhecimento, sabedoria, paciência, lição de vida e exemplo de dignidade, que me apresentou a filosofia e a Walter Benjamin. Às pessoas, que de sobremaneira, contribuíram acadêmica, profissional e afetivamente: Holmes com suas intervenções e conselhos, discussão acadêmica auxiliando no amadurecimento dessa dissertação, minha filha Fernanda Arantes pelo amor e compreensão durante a construção e realização deste trabalho, meu filho Nelson Arantes pelo amor, apoio, parceria, dedicação e por estar ao meu lado na construção deste trabalho, oferecendo sua ajuda nos momentos difíceis e meu neto Breno Arantes pelas lições de humildade, sinceridade, tolerância, amor, carinho e pelo sorriso sempre farto. Aos professores do Mestrado Acadêmico em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará – UECE, por haverem partilhado seus conhecimentos. Aos meus colaboradores e amigos de todos os dias Ivan e Elizabete pela compreensão, tolerância e apoio, ao amigo Vilemar Magalhães pelo apoio incondicional, à colaboração da amiga Marilena que contribuiu na formação de minha biblioteca e ao amigo Wagner pela acolhida e recepção sempre de braços abertos, pelos momentos de reflexão e contemplação filosófica, lição de vida e por haver me ensinado a construir muito com tão pouco. “Comparados com a história da vida orgânica na Terra”, diz um biólogo contemporâneo, “os míseros 50.000 anos do Homo sapiens representam algo como dois segundos ao fim de um dia de 24 horas. Por essa escala, “toda a história da humanidade civilizada preencheria um quinto do último segundo da última hora.” O “agora”, que como modelo do messiânico abrevia num resumo incomensurável a história de toda a humanidade, coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela história humana. Walter Benjamin Que é mesmo minha neutralidade senão a maneira cômoda, talvez, mas hipócrita, de esconder minha opção ou meu medo de acusar a injustiça? "Lavar as mãos" em face da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele. Paulo Freire RESUMO A discussão sobre a governabilidade da Alemanha de entre guerras, e a observação de sua crescente instabilidade, já sinalizando uma nova barbárie, leva a reflexão de Walter Benjamin sobre aquele espaço político a deduzir a vulnerabilidade da Constituição da República de Weimar, que acabou ferida com o estado de exceção nazista. O ensaio Crítica da Violência Crítica do Poder, (Zur Kritik der Gewalt) que visa à crítica ao ordenamento jurídico de uma organização estatal, confirma nesse sistema a sua derivação do poder mítico quando o “ato legal” não consegue mais dizer a justiça. Assim Benjamin analisa as discrepâncias do direito natural e do direito positivo, utilizando-se para isso da filosofia de sua história. Na investigação do absolutismo seiscentista enfocado pela estética barroca aparece um fragmento significativo que serve de fundamento para a reconceituação da teoria da soberania. Na ótica da dramaturgia barroca (Trauerspiel) a arte de governar rompe com a prescrição do Direito Constitucional, desafiando, dessa forma, o sistema jurídico do principado barroco, para inaugurar o exercício de outra ação política que leve em consideração as leis da alteridade. Essas leis são cumpridas, através da mobilização de afetos na alma. Apoiadas em uma ética pseudo-estóica, elas conseguem recuperar o equilíbrio político e a estabilização da história, uma vez que esse estoicismo se acha pincelado, no barroco, de laivos do cristianismo, que constroem a motivação de uma identidade entre súdito e príncipe. Palavras-Chave: Critica da Violência. Sistema Jurídico. Poder. Justiça. Revolução. ABSTRACT The discussion on the management of inter-war Germany, and the observing of its growing instability, already indicating a new barbarism, takes Walter Benjamin's reflection on the political space to deduce the vulnerability of the Constitution of the Weimar Republic, which ended wound by the Nazi state of exception. The essay "Critique of Violence Critique of Power, (Zur Kritik der Gewalt) which seeks to critique the legal system of a state organization, confirms in that system its derivation from the mythical power as “the legal act" can no longer promote justice. So Benjamin analyzes the discrepancies of natural law and positive law, using the philosophy of its history. In the investigation focused on the seventeenth-century absolutism baroque aesthetic, a significant fragment appears which forms the basis for the reconceptualization of the theory of sovereignty.Through the view of Drama baroque (Trauerspiel), the art of government breaks with the Constitutional requirement of law, challenging, thus, the legal system of princely baroque, to inaugurate the exercise of other political action that takes into account the laws of otherness. These laws are enforced, through the mobilization of affections in the soul. Backed by a pseudo-Stoic ethics, they can recover their balance and stabilization of political history, since that stoicism is brushed, in the Baroque, with the traces of Christianity, the motivation for building an identity between subject and ruler. Keywords: Critique of Violence. Legal System. Power. Justice. Revolution. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 1 A LINGUAGEM DO PODER E DO MITO NA HISTÓRIA 15 1.1 A República de Weimar 17 1.2 O Mito da Grande Alemanha 22 1.3 O Poder Mítico e a Mercadoria 25 2 O PODER E A VIOLÊNCIA 31 2.1 Autoridade versus Autoritarismo 33 2.2 O Uso da Propaganda como Ferramenta Ideológica 38 2.3 O caráter Espectral da Lei 46 3 CRÍTICA E REVOLUÇÃO 54 3.1 Poder Instituinte e Mantenedor do Direito 56 3.2 Imanência História-Natureza e Fatalidade 65 3.3 Poder Divino e Revolução 73 CONCLUSÃO 84 REFERÊNCIAS 89 ANEXOS 94 10 INTRODUÇÃO Minhas asas estão prontas para o vôo Se eu pudesse eu retrocederia Pois eu seria menos feliz Se permanecesse imerso no tempo vivo. (Gerhard Scholem. Saudação do Anjo) A presente dissertação tem como tema a obra do berlinense Walter Benedix Schönflies Benjamin Zur Kritik der Gewalt (Para uma Crítica da Violência)1, elaborada em tom premonitório por volta de 1920 e 1921, aos 28 anos de idade. Nesse ensaio as reflexões sobre o poder enquanto local de violência não encontram na teoria um fim em si. A análise da realidade de Weimar a confirma. A violência vivenciada por Benjamin no cotidiano da cidade de Berlim como resultado dos desvios da lei distanciada da justiça testemunha as preocupações do filósofo com a situação política do seu pais. Outra análise do poder violência se desenvolve na investigação filológica do drama barroco (Trauerspiel) onde Benjamin investiga a teoria da soberania do Século XVII manifesta na obra de arte. ―Origem do Drama Barroco Alemão‖ (Ursprung des deutschen Trauerdpiel) representa a cena da corte compreendida por Benjamin como a pré-história das relações imanentes entre as poderosas forças que moldaram a barbárie anunciada na República de Weimar, possibilitando a ascensão do nazismo. Essa barbárie estava na própria lei. A associação da leitura desses dois textos: Critica da Violência como uma crítica ao ordenamento jurídico e Origem do Drama Barroco Alemão, como um pano de fundo para a teoria da soberania ausente neste ordenamento jurídico, é de fundamental importância para a compreensão do pensamento político de Benjamin, construído sobre a crítica ao sistema legislativo de Weimar, que se deixou corromper no Decreto assinado por Hitler sob o pretexto de salvaguarda do povo alemão. Este trabalho é composto de três capítulos. No primeiro capitulo que chamaremos O Poder na História e o Mito abordar-se-ão as extensões do poder através da linguagem da propaganda como o local de catástrofes, uma vez que a linguagem da comunicação e da informação se presta, na ótica de Benjamin, para 1 Benjamin, Walter. Documentos de cultura documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix, 1995. 11 as estratégias ideológicas do poder através do mecanismo da propaganda. Será tratado também o mito da grande Alemanha, a construção de um ideal de nação que foi distorcido pelo advento do nazismo, e da deformação da cultura transformada em uma grande barbárie, quando a deturpação dos conceitos éticos, morais, jurídicos e mesmo estéticos serviram de ferramentas em prol da implementação do ideal de Hitler. Isso fica muito evidente em Weimar com a nomenclatura do nacional socialismo quando a linguagem sofre alterações no processo de declínio de significações. A interferência do poder mítico como monumento por excelência dos Nazi se evidencia na história de uma grande Alemanha realizada com o conceito de superioridade da raça ariana. Esse conceito de superioridade e de superação firma suas bases com a manipulação da arte e da estética e o apelo à psicologia de massas. Este mito difundido entre o povo foi uma arma eficiente. O fascismo vendia a ideologia de uma superioridade como uma mercadoria, com a promessa de realização de uma utopia baseada no ideal grandiloqüente do humanismo germânico a partir do conceito de raça pura. No segundo capitulo intitulado O Poder e a Violência será tratada a estrutura mística do poder e do autoritarismo estabelecido na lei que transgride a constituição de Weimar. Esta autoridade distorcida é responsável pela constância de catástrofes. A lei positiva não escapa dela, tanto é que a crítica ao direito positivo só pode ser eficaz com a filosofia da sua história, diz Benjamin. Pretende-se fazer uma análise do poder e da violência com o uso da propaganda como ferramenta ideológica à luz do texto Teorias do fascismo alemão, sobre a coletânea Guerra e guerreiros, editada por Ernst Jünger. Sob a ótica de Benjamin no texto Zur kritik der Gewalt, será avaliado o caráter espectral do militarismo, destacando-se o papel da polícia na organização estatal e as implicações da sua investida panóptica sobre o povo. Investiga-se neste ensaio o Direito Natural e Direito Positivo, na sua estrutura mítica. Nesse espaço será abordada a violência mítica do Direito, bem como será traçado seu perfil como meio de controle das massas. A inviolabilidade da instituição jurídica executora da lei o mantém mesmo que seu desdobramento seja a barbárie. Esse registro é identificado por Benjamin na ascensão de Hitler em 1933 e na transformação da Europa em uma praça de guerra, que levou até os limites do inimaginável a degradação humana. 12 No terceiro capítulo intitulado Critica e Revolução pretende-se dissertar sobre o poder instituinte e mantenedor do direito assessorado pela subjetividade em conexão com o mito afetando o cotidiano da realidade alemã. Nesse capitulo vem à tona o conceito de história da tese 11. Na sua luta contra o fascismo, Benjamin observa no movimento nazista (Bewegung)2 a ortodoxia racial que vitima a humanidade com momentos de profunda alienação, resultado da padronização de modelos. Não é difícil, a partir desse aprendizado, aliar o exercício da ideologia observada por Benjamin a uma aceitação pacífica: o ―conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas idéias econômicas‖3. Vale ressaltar que o povo Alemão assimilou, interiorizou este conformismo, sem qualquer resistência. A despolitização e a passividade foram resultado da propaganda facilitada pelos massivos meios de comunicação - face ao comprometimento das instituições – que robotizam com a conivência da técnica, o modo de pensar e agir. A seguir o estudo de Origem do Drama Barroco Alemão mostra, na dramaturgia do século XVII, a cena da corte como um microcosmo da história, realçando a imanência história-natureza quando a violência da natureza é mimetizada na violência da história. Essa evidência exige o exercício da racionalidade para a superação da violência imanente, que se realiza no comportamento ex officio do príncipe barroco4. Na obra Origem do drama barroco alemão, Benjamim faz uma verdadeira revolução na forma de reabilitar conceitos simples com o da origem, criatura, melancolia, soberania e estado de exceção. A origem apesar de ser uma categoria totalmente histórica não tem nada que ver com a ―gênese‖5. Quando ele promove essa revisão de categorias com a crítica ao elemento conceitual – que é incapaz de dizer o outro - sua teorização política transgride, com o estado de exceção, representado pela estética do Trauerspiel (drama barroco), a teoria da soberania do absolutismo do século XVII. Naquela arte ele havia descoberto o valor do singular em uma caracterização do estadista barroco. 2 Bewegung - Movimento Walter Benjamin. ―Tese 11 - Sobre o conceito da história‖. In: Magia e técnica, arte política. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 227. 4 Tereza de Castro Callado. ―O comportamento ex officio do estadista na teoria da soberania em origem do drama barroco alemão‖ In: Ética e metafísica, Coleção Argentum Nostrun. Fortaleza: UDUECE, 2007. 5 Walter Benjamin. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.67. 3 13 Ao analisarmos essa dramaturgia trataremos da saída que Benjamin encontra na teologia para uma tematização política, quando esse conceito de teologia se manifesta sob a aparência do profano. Trata-se aqui da atitude moral praticada pelo estadista para livrar o reino do conflito civil religioso em que os principados germânicos se encontravam, durante a Reforma religiosa6 feita por Lutero e ainda no período da Contra-Reforma7. Essa atitude soberana transgride o absolutismo seiscentista: ela estaria na tomada de decisão do monarca, só possível com a experiência, enquanto acúmulo de conhecimento construído ao longo dos tempos através da memória. Essa sabedoria deve estar na estrutura da ação política que prepara o estadista para saber lidar com os fatos do reino na medida em que este se faz fidedigno aos súditos. O sistema jurídico do principado barroco concebe uma fidedignidade régia enquanto projeção de um Dieu Cartesien8. Nessa alegoria construída pela arte barroca, o príncipe reprime os afetos na alma, racionalidade essa cujo fim é salvar o reino. Benjamin lamenta que o conceito de experiência que constrói a autoridade para superar as vicissitudes venha se diluindo com a perda do patrimônio cultural. A autoridade vinculada à competência passada de geração a geração infelizmente está se dissolvendo para dar lugar a um autoritarismo vazio, que contracena com relações hierárquicas, com a estagnação e a barbárie. Walter Benjamin questiona os conceitos de moral e ética inseridos na tradição e que são insuficientes para orientar os rumos que o conhecimento tomou quando absolutizado pela ciência transformada em técnica, que dá por sua vez continuidade à violência exercitada nas guerras com o assessoramento da sua 6 Renovação religiosa ocorrida na Europa durante o século XVI, como retorno às origens do cristianismo. Preparada pelo humanista Erasmo de Roterdã (1466-1536), a Reforma foi iniciada pelo monge agostiniano Martin Lutero (1483-1546), que, em 1517, afixou nas portas da catedral de Wittenberg noventa e cinco teses contra a venda de indulgências. (ABAGNANO, 2007) 7 A Contra-Reforma Católica - Preocupados com os avanços do protestantismo e com a perda de fiéis, bispos e papas reúnem-se na cidade italiana de Trento (Concílio de Trento) com o objetivo de traçar um plano de reação. No Concílio de Trento ficou definido - Catequização dos habitantes de terras descobertas, através da ação dos jesuítas; - Retomada do Tribunal do Santo Ofício - Inquisição punir e condenar os acusados de heresias - Criação do Index Librorium Proibitorium (Índice de Livros Proibidos): evitar a propagação de idéias contrárias à Igreja Católica. 8 A figura acometida pela melancolia no drama barroco alemão era o príncipe, concebido como um Deus cartesiano, Dieu Cartesien. 14 maquinaria 9: No contexto da crítica a essa ciência será ainda comentada a falência da legitimidade instalada no direito para dizer a justiça. E por fim, abordaremos a saída encontrada por Benjamin com o exercício da verdadeira soberania exercida pelo estadista barroco representado no conteúdo de verdade da obra de arte (Wahrheitsgehalt), e imbuído de sua racionalidade, que o autoriza, através da presença de espírito (Geistesgegenwart), da força de vontade, da capacidade de decisão (Entschlussfähigkeit) e a ação política possível, pela experiência, a exercer a verdadeira soberania. Assim a experiência política e democrática resultado da educação é mostrada por Benjamin emanando desse poder divino dado ao homem em forma de ―frágil força messiânica”. 9 Walter Benjamin. Teorias do fascismo alemão. Sobre a coletânea Guerra e Guerreiros, editada por Ernst Jünger. In: Magia e técnica, arte política. trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986. 15 1 A LINGUAGEM DO PODER E DO MITO NA HISTÓRIA O poder ao longo da história oficial conforme Benjamin apareceu das mais diversas formas ou assumiu as diversas representações, às vezes exercido na sua feição mítica como foi na antiguidade, religiosa na idade média e às vezes tomando o formato de burocracia, mas sempre com o intuito de controle do povo e de coerção social. E em todas as épocas, o Poder sempre esteve ligado à violência, muito embora essa violência às vezes não fosse vista como violência, como mostra a história10. Através do estudo do poder nas grandes civilizações ocidentais como na Grécia clássica e nos grandes impérios historicamente reconhecidos, passando pelo jugo da igreja, da burguesia até os dias de hoje, em todos os casos há uma história dos vencedores e dos vencidos, pois essa ótica é a dos que dominam. O olhar sobre essa realidade não deixa de exalar uma profunda melancolia: A natureza dessa tristeza se tomará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado 11 dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes . O vencedor (der Herrschende) sempre terá a seu favor os despojos dos derrotados, pois a vitória lhes concede o direito sobre a herança dos vencidos (Unterdrückte) e o direito de andar sobre os corpos dos que estão caídos: A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham 12 os corpos dos que estão prostrados no chão . Para que a estratégia dos vencedores tenha eficácia é necessário manter o status quo do poder, persistindo nos mecanismos de dominação amparados no mito. Um deles é a empatia com o vencedor (die Einfühlung in den Sieger). Assim, de que forma se estabeleceram esses artifícios na República de Weimar, que possibilitou a ascensão do nazismo? 10 Walter Benjamin. Tese 7 - Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte política. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 225. 11 Idem, p. 225. 12 Idem, p. 225. 16 Porque a Alemanha não se deu conta da barbárie que se anunciava e que tinha sido preconizada por Benjamin já em 1921, com uma crítica ao sistema jurídico de Weimar e ao poder mítico (mythischer Gewalt) de Hitler? Porque o sistema jurídico de Weimar considerado um dos mais completos da época não conseguir o exercício da justiça, impedindo o holocausto? Para responder a estas questões é fundamental examinarmos a primeira República Alemã estabelecida em 1919, quando das cinzas da guerra e do império, surgiu uma República fragilizada, em meio às grandes dificuldades econômicas não só na Alemanha derrotada como no restante da Europa. 17 1.1 A República de Weimar A promulgação da Constituição de Weimar13 (cujo projeto foi redigido por Hugo Preuss, professor de origem judaica e grande simpatizante e adepto do comunitarismo como uma orientação político-social, fortemente influenciado pelas teorias sociológicas de Max Weber) nada mais foi do que resultado de embates político-sociais que vinham se desenvolvendo na Alemanha desde 1830, ou seja, resultado de fatores históricos, econômicos, institucionais e culturais, mas que apesar de todo o avanço teve breve vigência (1919 – 1933). Portanto, a história política da República de Weimar é costumeiramente dividida em três períodos básicos e distintos: O primeiro compreendido, entre 1919 e 1923, foi politicamente marcada por grande instabilidade, registra graves crises econômicas em decorrência do desmoronamento da economia, das pesadas reparações de guerra devidas aos países aliados e da super desvalorização do marco alemão. No período seguinte, entre 1924 e 1929, há uma certa estabilidade política e notadamente a retomada do desenvolvimento econômico, ainda que aparente e temporário, como resultado do Plano Dawes14, que caracteriza a época como: ―Anos Dourados‖. 13 A Constituição de Weimar, que entrou em vigor no dia 31 de Julho de 1919, era o documento que governou a curta república de Weimar, na Alemanha. Formalmente, era a Constituição do estado alemão. O título da Constituição era o mesmo que a constituição imperial que a precedeu. A palavra alemã Reich é traduzida geralmente como Império. No entanto, uma tradução mais exata seria reino ou comunidade. O termo persistiu mesmo após o fim da monarquia em 1918. O nome oficial do Estado alemão era Deutsches Reich até a derrota da Alemanha Nazi no final da Segunda Guerra Mundial. 14 O Plano Dawes foi um plano provisório elaborado por um comitê dirigido Charles G. Dawes para viabilizar o pagamento das dívidas que a Alemanha possuía após o final da Primeira Guerra Mundial, decorrentes do Tratado de Versalhes. O comitê era composto por 10 representantes, dois de cada um dos seguintes países: Bélgica, França, Grã-Bretanha, Itália e E.U.A.. O comitê chegou a um acordo em agosto de 1924 que consistia em: Evacuação da região do Ruhr pelas forças aliadas; O pagamento das indenizações começaria em 1000 milhões de marcos e aumentaria num período de 4 anos até atingir 2500 milhões de marcos anuais; O Reichsbank da Alemanha seria reorganizado sob supervisão aliada; Empréstimos estrangeiros, principalmente dos E.U.A., seriam disponibilizados para a Alemanha; A fonte para as verbas de reparação deveriam incluir impostos sobre transportes, impostos sobre mercadorias e taxas alfandegárias. O plano foi prontamente aceito pela Alemanha e entrou em vigor em setembro de 1924. Os pagamentos persistiram até 1929 quando se percebeu que os valores eram insustentáveis para a Alemanha e o plano foi substituído pelo Plano Young. A curto prazo o efeito do plano Dawes foi de estabilizar a economia e moeda alemãs, mas também tornou-a dependente de mercados externos e frágil em relação a crises na economia americana (como a crise de 1929). 18 Já o terceiro período compreendido entre1930 e 1933 - é o período em que a república apresenta a maior fragilidade política, pois o Congresso Constitucional se debatendo em crises ideológicas, sem nenhuma coesão e na total ausência de legitimidade buscava elaborar uma constituição que legitimasse o mais rápido possível as tendências de uma nova Alemanha. Como no Império, a República manteve o Estado intervencionista, cuja presença decorria da própria mentalidade da SPD, constituído por socialistas majoritários e moderados. Nas primeiras proclamações feitas pelo Chanceler Ebert15, são anunciadas profundas mudanças no Estado Alemão, como: ―a suspensão do Estado de Sitio, o retorno à legalidade, a proteção de direitos fundamentais de liberdade, eleições livres e gerais com a elevação da capacidade eleitoral ativa para todos os cidadãos maiores de 20 anos, jornada de trabalho de 8 horas, seguro saúde e seguro desemprego‖. Como observado por Hajo Holborn, a maior parte dessas mudanças reflete por completo o programa do partido SPD de 1891, elaborado na Convenção de Eisenach16. (HOLBORN apud GUEDES, 1998). Por certo, a Constituição Alemã de Weimar exerceu grande influência nas Constituições ulteriores, pelas inovações de caráter econômico e social, não somente na Europa, mas em todo mundo civilizado. Entretanto as dificuldades econômicas do pós-guerra e as rigorosas condições impostas pelo Tratado de Versalhes, assinado em 1919, alimentaram um profundo ceticismo em relação à República, fazendo com que a Alemanha entrasse em colapso com várias manifestações populares. Os distúrbios atingiram seu ápice em 1923, quando a inflação assumiu proporções dramáticas (um dólar chegou a 15 Friedrich Ebert (Heidelberg, 4 de Fevereiro de 1871 — Berlin, 28 de Fevereiro de 1925) foi um político alemão. Ocupou os cargos de Reichskanzler (Chanceler do Império Alemão) de 9 de Novembro de 1918 – 11 de Fevereiro de 1919, e de Reichspräsident (Presidente da Alemanha) de11 de Fevereiro de 1919 – 28 de Fevereiro de 1925. Se envolveu em política como um trade unionista e social democrata e logo se tornou líder da ala revisionista do Partido Social-Democrata da Alemanha sendo Secretário Geral do partido em 1905. Foi um dos líderes da República de Weimar, sendo um dos responsáveis pelas tentativas de fazer com que um regime estranho aos alemães, e em uma circunstância difícil, obtivesse um certo sucesso. 16 Guedes, Marco Aurélio Peri. Estado e ordem econômica e social – A experiência constitucional da República de Weimar e a Constituição brasileira de 1934. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p 42-44. 19 valer 4,2 bilhões de marcos)17, gerando a maior crise financeira já vista. Em decorrência de tal crise a Alemanha não suporta mais pagar as pesadas reparações de guerra impostas pelo Tratado de Versalhes. Em represália ao não pagamento das reparações de guerra, Franceses e belgas ocuparam a região do rio Ruhr18, ocasionando a perda de mais espaço vital, tais como: os depósitos e minas de carvão. Esse cenário serviu de pano de fundo para o nazismo19 que ascendeu com toda sua força no final da 1ª Guerra Mundial, sob uma liderança militar altamente autocrática e conservadora. Para fugir da responsabilidade de perder a guerra (1914-1919), o país atirou o poder nas mãos do Sozialdemokratische Partei Deutschlands - SPD, que teve que assumir a responsabilidade de negociar de forma humilhante, a paz, ou seja, a derrota na Guerra: A burguesia já vinha se utilizando de um hábil recurso para imobilizar os trabalhadores, qual seja o de se apoiar na ―aristocracia‖ operária, que tinha no Partido Social-Democrata (SPD) sua expressão política. Daí o referir-se 20 aos socialdemocratas como socialfacistas. A República não conseguiu estabelecer uma democracia liberal como propunha por enfrentar as crises que devastavam a Alemanha. Vários fatores contribuíram para a derrocada do país. Carente de bases sólidas e sem capacidade de controlar o poder ascendente das elites, que ocasionou a ruína (Ruine) da República de Weimar, a crise da bolsa de Nova York de 1929, foi também um dos fatores que contribuiu para esse declínio. A partir de 1930, o movimento nazista de Adolf Hitler cresceu, aproveitandose do descontentamento popular com as crises econômica e política. O Partido Nacional-Socialista (NSDAP) tornou-se a maior força política em 1932, com a 17 O marco alemão desaba e consegue se estabilizar somente em Novembro de 1923, quando sua cotação atinge 4,6 bilhões de marcos para US$ 1. A hiper inflação tem efeito devastador sobre a economia, desorganizando a produção e o comércio. 18 O Vale do Ruhr é a região situada no centro do estado da Renânia do Norte-Vestfália, ao longo do leito do rio Ruhr. Trata-se de uma região rica em depósitos carboníferos, principal fonte de energia para impulsionar a indústria. 19 A Origem do nome Nazista vem da abreviatura de National - Sozialistische Deutsche Arbeiterpartei, que em português quer dizer Partido Nacional - Socialista dos Trabalhadores Alemães. Apesar do nome, os nazistas nada tinham de trabalhadores: seu principal apoio vinha dos grandes empresários. A palavra socialista era tão depreciada pelos trabalhadores que não tiveram a coragem de utilizá-la, embora fossem inimigos da democracia e da igualdade social, defendendo o capitalismo com garras e canhões. O nacionalismo nazista teve como resultado o ódio a outros povos e a guerra. 20 Alcir Lenharo, Nazismo o triunfo da vontade. 2.ed. São Paulo: Ática, 1990, p. 14. 20 demissão de Franz Von Papen, o último chanceler da República de Weimar, o presidente Hindenburg chamou Hitler para constituir o novo governo, sendo este nomeado chanceler do Reich em 30 de janeiro de 1933: O momento da formação do obscuro partido nazista, em 1919, é de crise nacional interna e de grande movimentação contra-revolucionária. A derrota na Primeira Guerra, as imposições do Tratado de Versalhes e a queda do imperador vieram junto com sucessivas arremetidas dos comunistas alemães, que a qualquer custo tentavam a tomada do poder, nos moldes 21 soviéticos . Hitler, que considerava o cargo a tomada do poder absoluto, começou imediatamente a montar um sistema ditatorial, e a partir de então, não havia instância policial ou estatal capaz de conter os distúrbios e agressões das SA, as temidas milícias paramilitares do Partido Nacional-Socialista (literalmente, o nome original, Sturmabteilung, significaria Divisão de Assalto). Com o esquadrão comandado por Heinrich Himmler, a SS (Abreviatura de Schutzstaffel, ou Esquadra de Proteção), começou a sedimentar sua posição especial no aparato repressivo, e qualquer tentativa de resistência era brutalmente sufocada, passando a uma perseguição desenfreada aos adversários políticos e todas as pessoas que não fossem do seu agrado, inclusive os judeus, artistas e cientistas, o que representou uma inestimável perda para a cultura alemã. Por volta dos anos de 1920 e início dos anos de 1930, os nazistas reuniram apoio eleitoral suficiente para se tornar o maior partido político no Reichstag, e Hitler aproveitando-se de uma estabilidade da economia alemã, através da injeção de capital estrangeiro, cria uma mitologia em torno da sua ascensão, suspende a Constituição de Weimar e passa a governar através de Decretos: De 1924 a 1929, a Alemanha conheceu um período de estabilização e de retomada da produção capitalista. Ainda em 24, a inflação passou a ser debelada e os partidos de centro foram bem votados, em detrimento da direita e da esquerda. Através do Plano Dawes, os Estados Unidos e a Inglaterra injetaram vultosa quantia (20 bilhões de dólares em empréstimos), e a economia voltou a florescer. Aumentaram as ofertas de emprego e os salários voltaram a subir. Até mesmo um seguro desemprego foi concedido; apenas a reivindicação de oito horas de trabalho não foi 22 atendida idem . 21 22 Ibidem, p. 18. Ibidem, p. 22. 21 Portanto, devido às ações que constituíram o Plano Dawes, com o estabelecimento de condições favoráveis para um período de recuperação da economia, o Nazismo consegue através do uso de uma propaganda mentirosa, apresentar-se com um alcance e intensidade nunca visto, como solução dos problemas econômicos e políticos da Alemanha. Hitler apropria-se da idéia da grande Alemanha, da idéia de supremacia da raça, e da grandiloqüência do povo alemão para criar o mito da grande Alemanha, baseado em uma ―política de assepsia‖. 22 1.2 O Mito da Grande Alemanha Ein Volk, ein Reich, ein Führer 23 (Adolf Hitler, Mein Kampf) O disparate dessa frase justifica, no seu tom soteriológico, a aspiração a um poder irrestrito, cuja origem só pode ser explicada no mito. O mito da grande Alemanha foi baseado na grandiloqüência de uma idéia: a da superioridade da raça ariana, no ideal de um território, que para preencher a falta de espaço vital, lhes fosse suficiente para prover a nação de matéria-prima para a indústria crescente. Os acontecimentos favoráveis foram a derrota de 1918 e a crise que se seguiu decorrentes das imposições da reparação de guerra, pelo Tratado de Versalhes: O tratado de Versalhes selou as condições impostas pelos vencedores aos alemães. A conferência de paz iniciada em Paris, em janeiro de 1919, e sem a presença dos países derrotados terminou por produzir em documento 24 destinado a humilhar e arrasar a Alemanha . Adolfo Hitler habilmente utilizou-se destes mecanismos aliados a um violento uso da propaganda para a implementação de seus ideais. A unidade tardia, entretanto rápida e violenta do povo alemão, a sua industrialização recente; caracterizada pelo ritmo acelerado, o culto da eficiência e do desempenho foram baseados no conceito de Streben25, para prover as carências no ideal de construção de uma comunidade nacional fortemente estruturada, em que o espírito de conquista e poder se cristalizara em um fundo de misticismo. O mito de uma grande nação alemã com ressonância no apelo ao povo alemão clamava por uma solução para a crise que se concretizara. Conseqüentemente em plena Guerra (1914-1918), o chamado ―mito ariano‖, através do contributo de vários intelectuais e especialmente de Chamberlain apresenta-se como uma narrativa de nível erudito e simultaneamente manipuladora da consciência pública. 23 Um povo, um reino, um líder. Ângela Mendes de Almeida. A República de Weimar e a ascensão do Nazismo. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 13. 25 Ambição, aspiração, ambicionar, aspirar, esforçar-se, esforçar-se por, lutar, objetivar. 24 23 Com base nessa manipulação, a concretização desse ideal seria sediada na cidade de Weimar – cidade dos clássicos alemães - cuja Constituição ou ordenamento jurídico, considerado um dos mais perfeitos da Europa, não conseguiu evitar a catástrofe do nazismo e do holocausto. Todavia esse mito tem raízes mais profundas do que se pode cogitar. Ele já estava no humanismo clássico. Sua representação germânica está na aspiração de Fausto26 ao conhecimento e à filosofia, tanto que esse personagem de Goethe vende sua alma a Mefistófeles27 pelos bens almejados. O visionarismo do escritor alemão mostrara a catástrofe que representaria o excesso, como se o próprio pensamento Iluminista Sturm und Drang28 que concebera a lenda, tivesse nascido com sua autocrítica, e Fausto sucumbiria ao seu desejo não fosse o ribombar dos sinos da catedral em um domingo de páscoa, despertar-lhe a memória dos recortes festivos da páscoa na infância. Benjamin ressalta que Goethe dá a entender que a modernidade carece de memória, entretanto Benjamin encontra na reminiscência (Eingedenken) uma forma do homem reconhecer a si próprio, portanto é pela experiência acumulada que ele alcança a sabedoria dispersa em fragmentos na tradição, e com fluxo de vivências e repetição de bons hábitos constroi-se a arte de narrar, que passa o conhecimento de geração a geração e onde ―o justo se encontra consigo mesmo‖. Assim a narrativa impede a ameaça dos arquétipos, consegue desinstalar suas armas sempre prontas a normatizar e a segregar o comportamento com sua 26 A tragédia Fausto de Goethe aclamado imperador pontífice dos poetas da Alemanha, é obra indubitavelmente única no seu gênero. Em menos de meio século todas as nações têm forçado a ler e estudar nossos próprios idiomas. Em toda a parte os mais soberbos talentos lhe sentiram em si os influxos triunfais, ao mesmo passo que o senso das turbas mal sabia como se houvesse com as trevas e monstros desta cordilheira de poesia rebentada a súbitas de profundezas desconhecidas. De nenhum outro livro se tem dito e escrito tanto; é por que este é que foi o verdadeiro padrão que estremou o mundo poético antigo do mundo poético hodierno. 27 Mefistófeles é uma personagem satânica da Idade Média, conhecida como uma das encarnações do mal, aliado de Lúcifer na captura de almas inocentes. Em muitas culturas também se toma como sinônimo do próprio Diabo. Mefistófeles é um personagem-chave em todas as versões de Fausto, sendo a mais popular destas, a do escritor alemão Johann Wolfgang Von Goethe. Mefistófeles aparece ao Dr. Fausto, um velho cientista, cansado da vida e frustrado por não possuir os conhecimentos tão vastos como gostaria de ter, e este decide entregar-lhe a sua alma em troca de alcançar o grau máximo da sabedoria, ser rejuvenescido e obter o amor de uma bela donzela. 28 Sturm und Drang (tempestade e ímpeto) foi um movimento literário romântico alemão, situado no período entre 1760 a 1780. O movimento animava-se por uma reação ao racionalismo que o iluminismo do século XVIII postulara, bem como ao classicismo francês que, como forma estética, tinha grande influência na cultura européia, principalmente na Alemanha daquele tempo. 24 estrutura hierárquica. Seus mecanismos são os da técnica que não está ―madura suficiente para debelar as forças elementares da sociedade‖.29 O perigo da máquina, como elemento ordeiro, está na padronização que ela impõe ao mundo substituindo a energia espiritual pelo automatismo, que seqüestra desta sociedade a sua identidade e capacidade de deixar aflorar soluções próprias ao grupo, através de um inconsciente coletivo (Kollektives Unbewusstsein). 29 Walter Benjamin. Teorias do fascismo alemão – sobre a coletânea guerra e guerreiros de Ernst Jünger. In: Magia e técnica, arte política. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 61 25 1.3 O Poder Mítico e a Mercadoria Walter Benjamin, percebendo a atmosfera fáustica que antecipou a escalada e ascensão do nazismo, escreve a ―Teoria do fascismo alemão‖30, como uma crítica ao clima ideológico que introduzia a propaganda de guerra. O texto se inicia como uma metáfora: ―L’automobile c’est La guerre‖31 (o automóvel é a guerra), que retratava o salão do automóvel de Paris. Essa metáfora está exaltando a tecnologia que fabrica o automóvel, e ao mesmo tempo é a tecnologia desenvolvida para a criação da maquinaria da guerra. Na medida em que o compara com a guerra, vem à tona o conceito positivo de aceleração e prosperidade que caracterizam o progresso técnico, o mesmo progresso que motiva a necessidade da guerra. Para Benjamin a guerra e a técnica se auto-condicionam ―Na medida em que renunciam a todas as interações harmônicas, esses instrumentos se justificam pela guerra, que prova com suas devastações que a realidade social não esta madura para transformar a técnica em seu órgão‖32. A interferência da máquina nas instâncias de guerra cria pseudos-conceitos de heroísmo e força. Esse conceito de heroísmo antes limitado ao âmbito do potencial físico e mental e sua superação, condicionam, na guerra de materiais, ao automatismo e manipulação de botões e alavancas. Benjamin não considera a técnica um mal em si, mas percebe as conseqüências danosas do seu encantamento: ‖a técnica não é suficientemente forte para dominar as forças elementares da sociedade‖33. Quais são essas forças elementares? - Segundo seu pensamento: a sede de poder, a dominação através do mito, a constituição hierárquica da sociedade, a violência em que essas forças sociais se dão e as relações de competição. 30 .Ibidem, p. 61. Ibidem, p. 61. 32 Ibidem, p. 61. 33 Ibidem, p. 61. 31 26 A técnica está a serviço do capital e do lucro, portanto existe uma separação ciclópica entre os ―recursos de que a técnica dispõe e a sua frágil capacidade de resolver questões morais‖34, e a sociedade não pode permitir essa distância. Benjamin observa a velocidade em que novas tecnologias são lançadas no mercado onde, cada nova tecnologia vem com a pretensão de tornar ultrapassadas e obsoletas todas as anteriores, fazendo com que se considerem também obsoletos os conceitos utilizados para pensar a sociedade. Na medida em que o efeito desta alienação se instala, aumenta a eficácia da propaganda dos poderes da tecnologia, trazendo a crença de que em cada nova invenção, a capacidade de destruir todo o passado e nos projetar em direção a uma felicidade futura, está consolidada na mão de um idealismo que havia projetado a marcha da razão na história tendo dessa forma garantido sua utopia. Por outro lado, uma das características da modernidade, é justamente o fato de que diferentes temporalidades, marcadas por diferentes modos de inserção dos indivíduos, se dão através dos recursos materiais, formações ideológicas, referências culturais, que convivem sem se anular. Essa imensa tolerância da modernidade não é uma abertura para o novo, e sim, a prova do triunfo do individualismo, disseminado pelo capital, sob uma mesma forma dominante: a mercadoria. Neste contexto, a mercadoria, aliada ao uso da propaganda passa a ser o motor ideológico, político, social e em conseqüência disso, passa a ser um artifício de poder e de violência, não trazendo nenhum esclarecimento para as questões morais, fazendo da guerra imperialista uma codeterminação da técnica: Pode-se afirmar, sem qualquer pretensão de incluir nessa explicação suas causas econômicas, que a guerra imperialista é co-determinada, no que ela tem de mais duro e mais fatídico, pela distancia abissal entre os meios gigantescos de que dispõe a técnica, por um lado, e sua débil capacidade 35 de esclarecer questões morais, por outro . Da mesma forma, as mercadorias da indústria cultural na sua tentativa de uniformização e homogeneização do mundo, vão circular demarcando as formas de inserção social dos indivíduos, convocando as massas à adesão ao consumo, 34 35 Ibidem, p. 61. Ibidem, p. 61. 27 oferecendo segurança onde havia a insegurança que a própria sociedade de massas produzia: a dissolução dos últimos resíduos pré-capitalistas, a diferenciação técnica e social e a extrema especialização levaram a um caos cultural. Ora, essa opinião encontra a cada dia um novo desmentido. Pois a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e 36 as revistas constituem um sistema: (ADORNO, HORKHEIMER. 2006) . A psicologia de massas do fascismo aliada aos meios de comunicação com todo o seu aparato técnico precisava se dirigir ao maior número possível de pessoas, constituindo uma só massa no momento da recepção de suas ideologias. Hitler, utilizando-se dos enunciados característicos da cultura de massas nivelou as pessoas sob um denominador comum que as manteve ligadas aos apelos publicitários presentes nas ruas de todas as cidades alemãs, anulando as diferenças com criação de realidades fictícias e promessas de uma idéia da superioridade do povo e da raça ariana, de um império programado para durar 1.000 anos. O problema maior desta cultura de massas era o imperativo mercadológico que a sustentava, onde tudo era vendido como uma mercadoria, sem se diferenciar o ―bom‖ e ―mau‖. Toda a produção cultural estava de acordo com critérios ideológicos, impondo uma lógica tirânica, excluindo as experiências, sob o imperativo da novidade predominante na sociedade alemã, que mascarava uma intolerância a tudo o que não se regesse pela dinâmica da ideologia nazista, baseada no único propósito da escalada armamentista e bélica: Como um misticismo enraizado, que; segundo todos os critérios de um pensamento másculo, não pode deixar de ser considerado profundamente corrupto. Seu misticismo bélico e o ideal estereotipado do pacifismo se equivalem. Não obstante, hoje em dia, mesmo o pacifismo mais tísico é superior num ponto a seu irmão espumando em crises epiléticas: certas ligações com o real, inclusive uma concepção da próxima 37 guerra.(BENJAMIN, 1986) . Hitler lança mão, claramente do conceito de sociedade do espetáculo; onde todos os seus grandes feitos ou celebrações eram eficientemente circulados de uma 36 Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. Dialética do esclarecimento – fragmentos filosóficos. trad. Guido Antonio de Almeida, Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 99 37 Walter Benjamin. Teorias do fascismo alemão – sobre a coletânea guerra e guerreiros de Ernst Jünger. In: Magia e técnica, arte política. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 61 28 forma veloz e abrangente na sua imagem cinematográfica em que o filme38 entra como ferramenta desta ideologia macabra. E a mercadoria do espetáculo nos faz ver que o espetáculo segue com toda sua força recobrindo a Alemanha com imagens sedutoras anunciando uma próxima guerra, evocada sob um heroísmo fútil, em que já se anunciava uma batalha de materiais: Mas a obtusidade com que formulam o conceito da próxima guerra, sem circunscrevê-lo com qualquer idéia, mostra como sua experiência absorveu pouco as realidades da guerra de 1914, da qual costumam falar, numa linguagem altamente enfática, como de uma guerra ―de alcance planetário‖ 39 (BENJAMIN, 1986). Segundo Benjamin: ―A guerra de gases se baseará nos recordes de destruição, com riscos levados ad absurdum. Se o inicio da guerra se dará no contexto das normas do direito internacional (...) seu fim não estará condicionado a limitações desse gênero‖40. A ideologia da guerra anunciada lançava mão de apelos ultrapassados pela tecnologia armamentista, evocando um heroísmo e orgulho do uniforme, que não fariam sentido, pois na guerra de materiais o corpo humano se torna peça frágil frente ao seu maquinário bélico, e onde a guerra de gases não respeita os tratados internacionais. Esses pioneiros da Wehrmacht quase levam a crer que o uniforme pra eles é um objetivo supremo, almejando com todas as fibras do seu coração; comparadas ele, as circunstancias em que o uniforme poderia ser utilizado perdem muito de sua importância. Essa atitude se torna mais inteligível quando se considera como a ideologia guerreira representada na coletânea está ultrapassada pelo desenvolvimento do armamentismo europeu. 41 (BENJAMIN, 1986) . Portanto, a presença do espetáculo da guerra tem sua origem na perda da consciência e do senso crítico, abrindo espaço para a produção de mitos e se radicaliza na medida em que as pessoas se tornam mais submissas e vulneráveis a ideologia nazista e o poder de Hitler mais consolidado através da especialização e 38 Um dos maiores gênios do mundo das artes, particularmente do cinema. Bailarina, atriz, produtora, montadora e realizadora, foi e ainda é, goste-se ou não da sua obra, uma das maiores perfeccionistas e inovadoras de todos os tempos. Lamentável e ironicamente, o talento marcou-lhe o destino. Seu talento foi a sua tragédia! Passou à história como Leni Riefenstahl, mais conhecida como a realizadora do Hitler, estigma que nunca mais a largou, qual ferrete cravado a fogo nas carnes. Foi a realizadora dos filmes do III Reich, utilizados como propaganda nazista. 39 Walter Benjamin. Teorias do fascismo alemão – sobre a coletânea guerra e guerreiros de Ernst Jünger. In: Magia e técnica, arte política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 61. 40 Idem, p. 63. 41 Idem, p. 61. 29 cada vez mais abrangente, consolidando, numa grande unidade, o ideal de um país antes fragmentado. Além dessa origem mítica toda realidade alemã estava encoberta pela fumaça da mentira e do engodo, como um véu de fantasia valorizada pelos fatos que compunham o falso senso de realidade. O mito tecia a fantasia de uma verdade orientadora da vida coletiva, mascarando a arbitrariedade da relação entre o significante e as significações, produzindo o conforto e a segurança imaginários, que escondiam a ameaça da guerra: Quando no inicio da guerra o idealismo foi entregue pelo Estado e pelo governo como uma mercadoria, as tropas tiveram cada vez mais necessidade de requisitar esse material. Seu heroísmo se tornou cada vez mais sinistro, mortal, cinzento como aço, e cada vez mais longínqua e nebulosa ficava a esfera da qual acenavam a glória e o ideal, ao mesmo tempo em que se tornava cada vez mais rígida a conduta dos que se sentiam menos como tropas da guerra mundial que como executores do 42 após guerra (BENJAMIN, 1986) . Benjamin se depara com a realidade da Alemanha em que a tecnologia da imagem tornava o seu projeto mais eficiente, forjando significação e novas realidades através do poder simbólico das palavras, criando imagens mais convincentes do que aquelas construídas de palavras, num verdadeiro exercício do poder mítico, que anestesiava o povo deixando-o a mercê de seus propósitos, isto é, conformado e passivo. Assim, Benjamin observa que o autoritarismo desprezava toda condição democrática e humana, que a sua instituição e manutenção através do poder mítico estavam ali para atender aos propósitos de Hitler com o exercício irrestrito deste delírio de grandeza, não contendo nenhum ideal de justiça, apenas a vontade de perpetuar a estrutura que permitiu a sua ascensão e manutenção. As pretensões de Hitler encontram um campo fértil na Alemanha do pós guerra, pois o povo alemão estava completamente apático, sem esperança no futuro. As suas experiências com a última guerra foram tão terríveis que não tinham o que contar: 42 Ibidem, p. 67. 30 (...) está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos 43 (BENJAMIN. 1986) . A experiência estéril vivida pelos soldados nos campos de batalhas da guerra de trincheiras devolveu à sociedade meros projetos humanos sem nenhuma experiência para contar, pois: ―nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras‖44. Na sua política de propaganda, com o objetivo de angariar a simpatia dos soldados e a adesão à guerra, Hitler lança mão do conceito de heroísmo de guerra. Constrói o mito de uma guerra heróica, projeto que fazia parte de sua política autoritária. O heroísmo de guerra visualizado pelos futuros combatentes constituía o estofo de suas aspirações, que impedia a visão real do sacrifício do corpo: ―Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viuse abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano. Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, 45 sobrepondo-se ao homem‖ (BENJAMIN, 1986) . Na crítica de Florens Christian Rang citada por Benjamin: ―a ideologia da morte nos campos de batalha, (...) destrói friamente a vida, trocando-a pela idéia‖46 aqui se vê claramente a abstração do princípio idealista alemão do século XIX, que se projeta ainda na frase seguinte: os autores editados por Jünger continuam celebrando o culto de guerra quando afirmam: que ―Os mortos de guerra (...) ao tombarem passaram de uma realidade imperfeita a uma realidade perfeita, da Alemanha temporal à Alemanha eterna.‖47 A volubilidade desse pensamento soa como disparate contra a vida agora malbaratada. Não podemos deixar de observar nessa expressão o desdém da dúbia ―atitude Alemã com relação à vida‖48. 43 Walter Benjamin. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte política. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 114. 44 Idem, p. 115 45 Idem, p. 115. 46 Walter Benjamin. Teorias do fascismo alemão – sobre a coletânea guerra e guerreiros de Ernst Jünger. In: Magia e técnica, arte política. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 66 47 Idem, p. 67. 48 Idem, p. 68. 31 2 O PODER E A VIOLÊNCIA ―O rei é o mais justo (dikaiotatos). O mais justo é o mais legal (nominotatos). Sem justiça ninguém pode ser rei, mas a justiça é sem lei (aneu nomou dikaiosyne). O justo é legítimo e o soberano, que se tornou causa do justo, é uma lei viva (nomos empsychos)‖. 49 (Tratado de Diotogene parcialmente conservado por Stobeo) Os séculos XVIII, XIX e o inicio do século XX foram fortemente marcados pela criação e consolidação dos Estados-nacionais, que atravessaram duas grandes e importantes fases: o Estado Liberal (Liberalismo) e Estado Social (Social Democracia)50, caracterizadas pelas crises que perpassam as instituições tradicionais do pós guerra, não unicamente o Estado, mas todas as estruturas tradicionalmente concebidas. 49 * Em O Estado de Exceção Agamben comenta sobre o Tratado de Diotogene resgatado por Stobeo. Disposto a maneira de um silogismo diz a ―primeira proposição‖ que o rei é o mais justo, o mais justo é o mais legal, para depois afirmar que ninguém despido de justiça pode reinar. No entanto a segunda proposição reconhece que a justiça é superior à lei, uma vez que existem leis sem justiça: ―sem justiça ninguém pode ser rei, mas a justiça é sem lei‖, isto é, A justiça prescinde da lei, que só tem força de prescrevê-la, ou seja é com a força de um código apenas que a lei dita a justiça. Esse código orienta para a prática da justiça, mas não faz a justiça. Conclui-se que o justo é legítimo e não mais apenas legal. A justiça é a ação que tem na lei, enquanto código, o seu mero registro e só na ação a sua efetividade. Na conclusão: ―o soberano que é causa do justo é uma lei viva‖, a legitimidade coincide com a justiça. Portanto o fato de ser legítimo é superior ao fato de ser legal, escrito pela lei. Tereza de Castro Callado. O comportamento ex-officio do estadista na teoria da soberania em Origem do drama barroco alemão. In: Ética e metafísica. Fortaleza: Eduece, 2007, p. 111 -142. 50 O Liberalismo é um sistema político-econômico baseado na defesa da liberdade individual, nos campos econômico, político, religioso e intelectual, contra as ingerências e atitudes coercitivas do poder estatal. O Estado liberal espera que as coisas se modifiquem sem uma intervenção individual, ou de grupo, e ao mesmo tempo se ajustem de tal forma que as coisas se relacionem de forma natural, sem que o Estado tenha a sua intromissão direta no processo de produção, como também no consumo, visto que as liberdades individuais devem ser respeitadas para que tudo se acomode de forma comum e simples.Social-Democracia: Concepção política saída do marxismo, também designada de "socialismo democrático". Afirmou-se em finais do século XIX. Defende uma concepção menos interventiva do Estado. Aceita a propriedade privada, apostando numa política centrada em reformas sociais caracterizadas por uma grande preocupação com as pessoas mais carentes ou desprotegidas e uma distribuição mais equitativa da riqueza gerada. A social-democracia, como política gradualista de transformação social, surgiu quando, em finais do século XIX, alguns partidos que se reclamavam do ideário marxista abandonaram esta orientação política. Eduard Bernstein (1850-1932) foi um dos lideres e teóricos políticos que operou esta ruptura no Partido Social Democrata da Alemanha. Bernstein começou por ser um defensor acérrimo das idéias de Marx e Engels, mas após rigorosa análise à evolução das sociedades onde a economia capitalista estava mais desenvolvida, convenceu-se que as teses marxistas estavam erradas. 32 Com o surgimento dos Estados-nacionais uma positivação de seus ordenamentos jurídicos se faz em nome da racionalidade. A ―Razão‖ passa a dividir a atenção com a ―ideologia‖ e o ―inconsciente‖, mas a Razão não conseguiu conservar os conteúdos de valia para o espírito humano, ou seja o ideal de conhecimento ou de busca do sentido da realidade, tanto da natureza, da cultura, dos indivíduos, suas ações e suas obras. Com o estado de exceçao alemão ficou claro que a positivação do direito, dos ordenamentos jurídicos, os instrumentos de observação análise e crítica imprescindíveis para compreender as condições de uma Alemanha destruída pela primeira guerra não foram suficientes para garantir a paz e a justiça. A crise foi intensificada por fatores como a perda do senso crítico decorrente da pobreza da experiência (Erfahrung)51. De acordo com Benjamin a descontinuidade da tradição foi observada a partir da perda da narrativa em sua obra52 Experiencia e Pobreza publicada em 1933, quando o soldado ao retornar da guerra percebe que não tem o que transmitir, o que narrar, pois nenhuma experiência foi assimilada. Da condição subhumana das trincheiras, resta-lhe somente o fusil e a fumaça, o eco das bombas e o cheiro podre da morte. Benjamin retira da observação dessa realidade a conclusão de que a lei não garante justiça, pois apesar da Alemanha possuir uma Constituiçao considerada perfeita, não foi suficiente para garantir a liberdade do povo alemão, restou-lhe a barbárie, decorrente das relações de Poder e Violência. Esta constatação justifica sua crítica ao elemento normativo. 51 A experiência é a sabedoria conseguida com o acumulo de conhecimentos recolhidos da tradição filosófica que foram pedidos com o advento da mecanização dos novos tempos, a introdução da máquina como elemento de aceleração da técnica. 52 Walter Benjamin. ‖Experiência e Pobreza‖. In: Magia e técnica, arte política. 1986, p. 114. 33 2.1 Autoridade versus Autoritarismo Segundo Benjamin a autoridade faz parte da tradição, e na tradição encontra suas bases de sustentação. Ela era construída com a experiência acumulada no inconsciente em forma de sabedoria: ―sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias‖,53 valorizando o contar da história através da narrativa. Com o desenvolvimento da técnica surgiu uma nova forma de miséria, através da perda da experiência, pois a técnica realiza a aceleração do progresso, pagando com ônus o despejo da tradição: ―Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem. A angustiante riqueza de idéias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas‖54, anuncia o fim do espaço da autoridade que vai ser preenchido com o autoritarismo. O autoritarismo está diretamente ligado à dominação que é uma condição importante para que se realize quando um grupo aceita o comando dos detentores do poder: ‖... chamamos ―dominação‖ a probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas (ou outras) dentro de um determinado grupo de pessoas‖55. Weber classifica tal dominação em três formas56: a dominação racional-legal, dominação tradicional e a dominação carismática, e para cada tipo de dominação haverá um tipo de autoridade correspondente. A legitimação da autoridade em um estado constitui o Estado de Direito (Reichsstaat), através do poder racional-legal positivado na Carta Constitucional de um país, base do Estado de Direito, garante tanto a legitimidade da autoridade como os direitos civis, sociais e políticos de cada individuo, conseqüentemente neste Estado de Direito, o povo tem garantido pela Lei Magna seus direitos fundamentais e através deste mesmo dispositivo, a garantia do limite do poder. 53 Walter Benjamin. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte política. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 114. 54 Idem p. 115. 55 Max Weber. Economia e sociedade, Fundamentos da sociologia compreensiva. vol. 1. trad. Regis Barbosa. Brasília: UNB. 2009. p. 139. 56 Há três tipos puros de dominação legítima. A vigência de sua legitimidade pode ser, primordialmente: 1. De caráter racional (...) 2. De caráter tradicional (...) 3 de caráter carismático (...). Idem, p. 141 34 Quando um governante desrespeita os direitos do povo, garantidos pela ordem jurídica, extrapola o uso do poder pela violência e pelo exercício da autoridade, como forma de manutenção do status quo, perde legitimidade e passa a agir utilizando o autoritarismo. Esse excesso de poder exercido pela autoridade legitimada pelo direito dá início a regimes totalitários cuja principal característica é a supressão dos direitos políticos, civis e sociais, e a violência passa a ser usada como uma forma de repressão e não mais como uma proteção dos direitos dos cidadãos. Um caso clássico onde uma sociedade foi maculada com a instituição de um Poder Autoritário se encontra na instalação do Estado de Exceção (Ausnahmezustand) na República de Weimar que deu origem ao nacionalsocialismo alemão, fato este retratado na oitava ―Tese sobre o conceito da História‖ de Walter Benjamin: ―A tradição dos oprimidos nos ensina que o ―estado de exceção‖ no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós a nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo se tornará melhor. A chance deste consiste, não por último, em que seus adversários o afrontem em nome do progresso como se este fosse uma norma histórica. – O espanto em constatar que os acontecimentos que vivemos ―ainda‖ sejam possíveis no século XX não é nenhum espanto filosófico. Ele não está no início de um conhecimento, a menos que seja o de mostrar que a representação da história donde provém aquele espanto é 57 insustentável (BENJAMIN, 1986) . Vê-se que o Estado de Exceção na Alemanha em 1930 merece um destaque especial na história recente da humanidade, porque uma vez destacado ele mostrará sua virulência e será combatido. É lamentável que a constituição promulgada em 1919 no Teatro Municipal de Weimar, que consolidava o fim do Império e o início de uma nação democrática alemã, dando ao povo a liberdade de opinião, reunião, instituindo o voto feminino, concedendo a liberdade comercial no país, entre outros ganhos sociais, tenha sido usada para legitimar uma exceção na lei para a perseguição antisemita. Ela se instalara numa única peça do direito, com um forte caráter autoritário, que garantia ao presidente do Reich direitos ditatoriais como o de dissolver o 57 Walter Benjamin. Sobre o conceito da história. Tese 8. In: Magia e técnica, arte política São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 226. 35 Reichstag (Câmara dos Deputados)58, nomear o chanceler do Reich ou destituí-lo quando julgasse necessário. De acordo com esta mesma Constituição o ―Presidente do Reich poderia assumir amplos poderes como convocar as Forças Armadas, baixar decretos emergenciais e até suspender os direitos individuais dos cidadãos quando houvesse ameaça à ordem pública e à segurança do Reich‖59. A concessão de poderes plenos ao Presidente do Reich foi uma opção motivada pela falta de confiança dos cidadãos e dos parlamentares, pois o país vivia um novo momento em sua história, em que o presidente eleito em 1925, Paul Von Hindenburg, era partidário da volta da monarquia. Ele serviu dois mandatos de sete anos e neste tempo abusou do poder, abrindo a possibilidade da tomada do governo pelos nazistas em 30 de janeiro de 1933, quando a Constituição de Weimar já passava a ser apenas uma obra literária para a História, pois as decisões já se faziam baseadas em decretos. Benjamim chama atenção, na sua teoria da história, que as sociedades ocidentais contemporâneas vivem continuamente verdadeiros Estados de Exceção, e que esta exceção é a regra geral (die Regel ist), não respeitando os direitos civis, sociais e políticos dos cidadãos com a utilização sistemática de violência, através de decretos, pelo Estado, para sua manutenção no poder. Os governantes são capazes de lançar mão de decretos com tanta facilidade que a exceção vira uma regra geral, uma norma aceita passivamente pela população, que ingênua e apoliticamente legitima estes governos. No caso de Hitler, como em quase todos os governos ditos carismáticos, não havia uma capacidade administrativa superior deste em relação a outros 58 Artigo 25 - O presidente do Reich tem o direito de dissolver o Reichstag, mas apenas uma vez pelo mesmo motivo. Novas eleições, o mais tardar, são realizadas 60 dias após a dissolução. 59 artigo 48 - Se um Estado (8) não cumprir as obrigações impostas pela Constituição ou pelas leis do Reich, o Presidente do Reich pode usar a força armada para fazer com que ele obriga. No caso da segurança pública está seriamente ameaçada ou perturbada, o presidente do Reich pode tomar as medidas necessárias para restabelecer a lei e a ordem, se necessário utilizar a força armada. Na prossecução deste objetivo que poderá suspender os direitos civis descritos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 154, total ou parcialmente. O presidente do Reich deve informar imediatamente sobre o Reichstag todas as medidas tomadas que são baseados em números 1 e 2 do presente artigo. As medidas têm de ser imediatamente suspensa se Reichstag exige isso. Se o perigo é iminente, o governo do Estado pode, por seu território específico, implementar medidas como descrito no parágrafo 2. Essas etapas têm de ser suspenso se for reivindicado pelo presidente do Reich ou do Reichstag. Mais detalhes são fornecidos pela lei Reich. 36 personagens contemporâneos de sua época. Foram inúmeros os estadistas que gostariam de imitar o poder de Hitler. Este tipo de governo que revela claramente sua origem ―fabulosa‖ subjuga o povo tratando das questões políticas e econômicas com medidas paliativas, visando resolver a problemática de um povo levando em consideração apenas os interesses de pequenos grupos, que na social democracia é a força do capital ou de um grupo que almeja este poder: ―A teoria e, mais ainda, a pratica da social-democracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vinculo com a realidade‖60. É nessa suspensão da realidade que se instala o mito utilizado pelo governo autoritário. A história universal demonstra que o governo autoritário61 é minado pela instabilidade, porque não é a autoridade que está na organização estrutural e sim o mito, com o qual se constrói o autoritarismo e do qual o estadista é investido para agir como senhor absoluto, sem levar em consideração os interesses de parlamentos e de segmentos representativos da sociedade, até mesmo por que, em certos casos, os próprios parlamentos podem estar corrompidos pelo poder econômico como denunciou Walter Benjamin na sua Critica da Violência, Critica do Poder62. Como regra geral os governos autoritários utilizam uma forte campanha publicitária a fim de levar o povo a seguir uma determinada doutrina, que atua no embotamento da capacidade crítica. Em períodos de grande instabilidade e crise o povo fica ávido por ser protegido e acolhido, o que propicia o surgimento dos salvadores da pátria, líderes que nestas situações tomam o poder de forma despótica e mesmo assim colaboram para a construção de uma realidade fictícia ou beneficiam-se de posições que o imaginário popular cria para aumentar a legitimidade de seus governantes, como aconteceu na Alemanha. 60 Walter Benjamin. ―Tese 13‖ do conceito da história. In: Magia e técnica, arte política. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 229. 61 Platão nos dá um exemplo da fragilidade em torno do tirano no Livro 9 da República na medida em que aponta uma dialética para a tirania nos desregramentos da própria constituição do tirano, ele só existirá se houver alguém que o obedeça: ―uma alma tirânica é sempre forçosamente pobre e por saciar‖. Platão. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1996. p. 423. Daí a necessidade de revestir o poder com os artifícios míticos. Platão diz ainda: ―o tirano autentico é um autentico escravo‖. 62 Walter Benjamin. Crítica da violência – crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie. trad. apres. e notas, Willi Bolle. 10.ed. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 167. 37 Diz Lenharo que ―Hitler se apresenta como um grande guia condutor da fé, o grande arquiteto da comunhão nacional‖. Lenharo reproduz a retórica do líder nazista alemão, no seu discurso carregado de falso moralismo: Nós nos encontramos todos aqui e o milagre desse encontro enche nossa alma. Cada um de vocês pode me ver e eu não posso ver cada um de vocês, mas eu os sinto e vocês me sentem. É a fé em nosso povo que, de pequenos, nos tornou grandes, de pobres, nos fez ricos, de homens angustiados, desencorajados e hesitantes que éramos, fez de nós homens corajosos e valentes, aos homens errantes que éramos, nos deu a visão e 63 nos reuniu a todos . (Discurso de 1936) Adolfo Hitler, utilizando-se de seu prestígio apresentou-se como sendo este salvador, visto que a população encontrava-se desestabilizada. A pretexto da defesa do Estado, ele encontra os motivos para o uso da força bruta no controle, conseguindo o engajamento do povo, na delação dos considerados traidores principalmente os judeus. Hitler, apoiado amplamente por todos os segmentos nacionais efetiva as medidas fortes e necessárias à manutenção de seus objetivos. 63 Alcir Lenharo, Nazismo o triunfo da vontade. 2.ed. São Paulo: Ática, 1990, p. 45. 38 2.2 O Uso da Propaganda como Ferramenta Ideológica A despolitização do povo alemão o sujeitou a uma falsa mimese. Benjamin escreve em 1933 o texto ―A doutrina das semelhanças‖ para mostrar uma das funções determinantes na formação da identidade. Ao lado de varias concepções registradas na história da filosofia em torno da mimese, Benjamin se debruça sobre os sentidos filogenético e ontogenético: ―No que diz respeito ao ultimo, a brincadeira infantil constitui a escola dessa faculdade. Os jogos infantis são impregnados de comportamentos miméticos que não se limitam de modo algum a imitação de pessoas. A criança não brinca apenas de ser comerciante ou professor, mas também moinho de vento e trem. A questão importante, contudo, é saber qual a 64 utilidade para a criança desse adestramento da atitude mimética. Fica muito clara a ameaça que Benjamin pressente na distorção da faculdade mimética e para reverter esse perigo, não é suficiente refletir sobre o conceito de semelhança, pois essa concepção é mais dilatada do que parece. A propaganda nazista utilizou-se dessa mimese, aproveitando-se de necessidades vitais de identificação de um povo totalmente apolítico. Sem a defesa da politização a consciência embotada do povo alemão facilitou sua adesão ao regime nazista, pois este regime não era reconhecido pelo par amigo-inimigo que caracteriza a doutrina política de Carl Schimitt. A ―Dialética do esclarecimento‖ diz: ―quem é escolhido para inimigo é percebido como inimigo. O distúrbio está na incapacidade de o sujeito discernir no material projetado entre o que provém dele e o que é alheio‖65. Trata-se aqui de um distúrbio na faculdade mimética. O medo exige a assimilação do diferente, porque essa introjeção exorciza o desconhecido: ―quanto mais fraco o ego mais forte é sua ancoragem ao idêntico‖. Dizem ainda Adorno e Horkheimer no texto de 1944, a dialética do esclarecimento que a mimese66 no caso de uma sujeição como aquela que aconteceu ao povo alemão por 64 Walter Benjamin. ‖Doutrina das semelhanças‖. In: Magia e técnica, arte política. 1986, Opus sit. p. 108. 65 Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. Dialética do esclarecimento – fragmentos filosóficos. trad. Guido Antonio de Almeida, Rio de Janeiro: Zahar, 1985. P. 154-155. 66 O conceito de mimesis tem sido objeto de análise desde os filósofos da Grécia Antiga. A grosso modo significa ―imitação‖ e, nesse sentido, pode possuir diversas interpretações. Para Platão, a arte, sob o prisma mimético, dizia respeito às opiniões e às aparências representadoras do mundo dito real. Segundo esta concepção, portanto, a mimese representa a imitação das aparências (da realidade). Porém, faz-se válida a lembrança de que a realidade em si é meramente uma imagem, praticamente um vulto, do plano das idéias eternas. Pensando desta forma, a arte se configuraria 39 ocasião do nazismo é ―projeção fóbica e destruidora‖. A passividade do povo alemão diante da ascensão dos nacionais socialistas se concretizou através do ―talismã da identidade‖: o banimento do perigo67. Era esse o temor de Benjamin: que a passividade e submissão do povo atingissem um ponto de alcançar a identidade. No pensamento de Benjamin as ―opiniões, para o aparelho gigante da vida social são o que é o óleo para as máquinas; ninguém se posta diante de uma turbina e a irriga com óleo de máquina. Borrifa-se um pouco em rebites e juntas ocultos, que é preciso conhecer‖68. Esta frase destinada a registrar a influência da atuação literária nas comunidades pode muito bem se adequar ao fenômeno da propaganda concebida como ferramenta no momento político nacional-socialista, para convencer as massas. No texto Teorias do fascismo alemão, sobre a coletânea Guerra e guerreiros, editada por Ernst Jünger, a sensibilidade e percepção benjaminiana pressentem a atmosfera ameaçadora que antecipa a ascensão do nazismo na Alemanha. A guerra que se anunciava estava próxima e seria desde seu início, marcada pela forte presença da ideologia nazista, que imprime nos seus soldados o sentimento de um heroísmo ―sinistro‖ baseado na glória e no ideal de uma grande nação: Quando no inicio da guerra o idealismo foi entregue pelo Estado e pelo governo como uma mercadoria, as tropas tiveram cada vez mais necessidade de requisitar esse material. Seu heroísmo se tornou cada vez mais sinistro, mortal, cinzento como aço, e cada vez mais longínqua e como uma espécie de espectro da realidade, um simulacro que não mostraria reconhecimento verdadeiro em um plano de realidade. Já Aristóteles relaciona o conceito de mimese à imitação das essências do mundo. Desta maneira, o imitar não estaria sujeito à mera duplicação de uma imagem referente, por exemplo. A configuração mimética, de acordo com o ensinamento aristotélico, implicaria em um profundo conhecimento da natureza humana. Outros estudos gregos da Antiguidade, como os de Pitágoras, versam que o fenômeno mimético não é senão a ―expressão dos estados de alma‖. De qualquer forma, a mimese entendida como espelho passou por séculos até o conceito aristotélico foi verdadeiramente decodificado em seu real significado por Kant, Hegel (filósofos) e Hölderlin (escritor). A partir das considerações destes estudiosos, a mimese passou a ser encarada como manifestação da plenitude da realidade. Benjamin parte da concepção mimética em Aristóteles, que concebe a faculdade mimética como principio da aprendizagem, na verdade a mimese no conceito Benjaminiano está relacionada a imagem, e a imagem possui a percepção das essenciais ou seja das idéias sendo que a verdade é o equilíbrio tonal dessas essenciais. 67 Olgaria Matos. Discretas esperanças. São Paulo. Nova Alexandria. 2006. p. 62. 68 Walter Benjamin. Posto de gasolina. In: Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e Jose Carlos Martins Barbosa. São Paulo. Brasiliense. 1995. p. 11. 40 nebulosa ficava a esfera da qual acenavam a glória e o ideal 69 (...).(BENJAMIN, 1986) . Benjamin percebe que esta ideologia se apresenta como uma mercadoria vendida através de instrumentos eficazes da propaganda e dos meios de comunicação de massa, evidenciando seu alcance imediato em todo o território alemão. Seu efeito narcotizante causava uma dependência espiritual, tirando da população a vontade de reagir. A cada nova investida da propaganda ariana o povo judeu recuava. Seu retraimento crescente com as medidas anunciadas dia a dia era a evidência da força desse poder mítico estabelecido na lei de forma arbitrária: Portanto, o êxito de Hitler não pode ser explicado pelo seu papel reacionário na historia do capitalismo, pois este, se tivesse sido claramente apresentado na propaganda, teria obtido resultados opostos aos desejados. O estudo do efeito produzido por Hitler na psicologia de massas parte forçosamente do pressuposto de que um Führer ou o representante de uma idéia só pode ter êxito (se não numa perspectiva histórica, pelo menos numa perspectiva limitada) quando a sua visão individual, a sua ideologia ou o seu programa encontram eco na estrutura média de uma ampla 70 camada de indivíduos (REICH. 2001) . É o medo que faz o subalterno identificar-se ao vencedor. Quanto mais forte o poder e seu mando, mais fracas e menos desenvolvidas são as populações, o poder é exercido de forma forte e contundente. Isso explica em parte porque o nazismo conseguiu a adesão de instituições como a igreja e o exército, apresentando o Estado como protetor do povo e de seus bens que lhes fornecia insumos básicos e utilizava-se simultaneamente dessa benesse coletiva como forma de propaganda. Aureolado desta forma, o Estado continuava sua política de perversões onde a palavra controle não é concebida, é claro no sentido pacifista. Espera-se dele a mobilização de forças mágicas para a guerra. ―De outro modo ele não conseguiria colocar a guerra a serviço de seus fins‖71. Estado como protetor de seus bens, souberam apreciar a seu devido valor as ofertas desse bando, sempre disponíveis, como arroz e nabos, graças à 72 intermediação de instâncias privadas ou do exército (BENJAMIN, 1986) . 69 Walter Benjamin, Teorias do fascismo alemão. In: Magia e técnica, arte política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 71. 70 REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. trad. Maria da Graça M. Macedo, 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001 p 34. 71 Idem, p. 71 72 Walter Benjamin, Teorias do fascismo alemão. In: Magia e técnica, arte política. trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 71. 41 No cenário de restrições só restava à política autoritária um arsenal de estratégias para despistar do povo alemão o caráter de uma dupla moralidade, pois enquanto a mulher deveria tão somente exercer atividades nos trabalhos tipicamente femininos, de modo que sua capacidade de procriação não fosse prejudicada, por outro lado as relações pré-conjugais eram livres, as mães solteiras eram honradas e a virgindade das moças deixava de ser valorizada. As mulheres que faziam parte da Hitlerjugend73 recebiam cursos de história e biologia, faziam ginásticas, jogavam tênis, praticavam a dança e o bronzeamento do corpo74. Pois essas concessões junto ao programa de atletismo da juventude masculina faziam parte do projeto de estetização da política da mesma forma que se exercia a disciplina, a ordem, o preparo físico dos soldados para as demonstrações militares e paramilitares. Hitler mantinha todas as atividades da vida cotidiana e dos eventos, fossem formativos da educação ou leigos da população civil sob seu controle, esse domínio estava disfarçado no apelo estético das construções faraônicas. Por isso, diz Benjamin que ―não há monumento da cultura que não seja ao mesmo tempo monumento da barbárie‖, na tese 7 de 194075. Compreende-se então no vocábulo controle a fuga de um sentido pacifista, ele dizia mais respeito àquelas forças mágicas que precisavam ser mobilizadas a serviço dos fins de guerra. Assim: ―A nação dos fascistas com seu rosto de esfinge, constitui-se num novo mistério da natureza, de caráter econômico, ao lado do antigo, que, longe de se iluminar com a luz da técnica, revela agora os traços fisionômicos 73 A Juventude Hitlerista (Hitlerjugend) foi uma instituição obrigatória para jovens da Alemanha nazista, que visava treinar crianças e adolescentes alemãs de 6 a 18 anos de ambos os sexos para os interesses nazistas. Os jovens se organizavam em grupos e milícias para-militares. Esses grupos de indivíduos, doutrinados pelo estado, existiu entre 1922 e 1945. Antes de a Juventude Hitlerista era um movimento relativamente pequeno, a partir de 1936 com o alistamento obrigatório, 3,6 milhões de membros haviam sido recrutados, em 1938, o número chegava a 7,7 milhões. Em 1939, já no préguerra, foi decretada uma ordem de recrutamento geral. Em 1936, Hitler unificou as organizações de jovens e anunciou que todos os jovens alemães deveriam se alistar nos Jungvolk (Povo Jovem) aos 10 anos, quando poderiam ser treinados em atividades extracurriculares, que incluíam a prática de esportes e acampamentos, além de uma doutrinação ao nazismo. Aos 14 anos, os jovens deveriam entrar na Juventude Hitlerista, sujeitando-se a uma disciplina semi militar, bem como a atividades externas e à propaganda nazista. Paralelamente à Juventude Hitlerista, existia a Liga das Jovens Alemãs, onde as moças aprendiam os deveres da maternidade e os afazeres domésticos, e, assim como os garotos, aprendiam os verdadeiros objetivos do nazismo, e o que fazer para alcançá-lo. Aos 18 anos, deveriam alistar-se nas forças armadas ou nas forças de trabalho. 74 Alcir Lenharo, Nazismo o triunfo da vontade. 7.ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 73. 75 Walter Benjamin. Sobre o conceito da história. Tese 7. In: Magia e técnica, arte política. trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 225. 42 mais ameaçadores‖76, aqueles traços hipocráticos da história77 de que fala Benjamin na Origem do Drama Barroco Alemão. Benjamin percebe o uso desta propaganda ideológica na formulação de um novo tipo de mercenário, que desprezava o heroísmo e a tradição para servir apenas de um instrumento, mais uma ferramenta de guerra, deixando de lado a humanidade e se preocupando apenas com os recordes. Com o uso da ideologia para controle das massas e para a formação psíquica dos seus exércitos, bem como da sociedade, Hitler cria ideais e mercadorias para alimentar seu sistema encontrando toda sua força quando se utiliza da propaganda, em um ambiente fértil, pois esta população estava duplamente vulnerável, de um lado a fragilidade era compensada no apelo econômico, material e por outro na estrutura psíquica: ―A ideologia de cada agrupamento social tem a função não só de refletir o progresso econômico dessa sociedade, mas também – e principalmente – de inserir esse processo econômico nas estruturas psíquicas dos seres humanos dessa sociedade‖78. No Estado Fascista ou no Nacional Socialismo alemão, segundo Adorno e Horkheimer: ―O sentido das fórmulas fascistas, da disciplina ritual, dos uniformes e de todo aparato pretensamente irracional é possibilitar o comportamento mimético‖.79, pois através da capacidade de mimetizar a realidade, com heroísmo de guerra, a ideologia fascista se torna uma mercadoria vendida com sucesso. Com as falsas promessas de desenvolvimento econômico em nome do progresso, sob o pretexto de aperfeiçoamento da humanidade, a social democracia alemã narcotizava o trabalhador, fazendo-o acreditar-se essencial no processo de industrialização do país. Com base nesse fato crítico Benjamin observa, na tese 13 da história que: ―A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a 76 Walter Benjamin, Teorias do fascismo alemão. In: Magia e técnica, arte política. trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 71. 77 Idem, p. 70. (...) traços hipocráticos da história - Com lança-chamas e trincheiras, a técnica tentou realçar os traços heróicos no rosto do idealismo alemão. Foi um equivoco. Porque os traços que ela julgava serem heróicos eram na verdade traços hipocráticos, os traços da morte. 78 . Wilhelm Reich. Psicologia de massas do fascismo. trad. Maria da Graça M. Macedo, 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001 p. 17. 79 Theodor W Adorno e Max Horkheimer. Dialética do esclarecimento – fragmentos filosóficos. trad. Guido Antonio de Almeida, Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 152. 43 realidade‖80. Este desenvolvimento econômico era vendido pela social democracia como a busca da perfectibilidade humana, concebido como um processo automático: Segundo os social-democratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites, idéia correspondente à da perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível, 81 uma trajetória em flecha ou em espiral (BENJAMIN. 1986) . A crítica benjaminiana visa àqueles elementos em torno dessa promessa de engrandecimento industrial do país. Ele apenas serviu de motivo para inibir qualquer iniciativa de sublevação entre os trabalhadores. Era dessa forma uma estratégia para mantê-los sob controle. Essa lógica se estruturava em um princípio teleológico. A idéia de uma utopia construída pelo historicismo sempre esteve ligado ao um tempo homogêneo e vazio82. Esse conceito da tese 13 denuncia a falência da razão na historia83, pois o conhecimento advindo dessa marcha do espírito perdeu seu vinculo com a destinação humana para se instrumentalizar: Cada um desses atributos é controvertido e poderia ser criticado. Mas, para ser rigorosa, a crítica precisa ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da idéia do progresso tem como pressuposto a crítica da idéia dessa 84 marcha (BENJAMIN. 1986) . A guerra vendida como uma mercadoria, tira do soldado o seu heroísmo, deslocando sua importância para a batalha de materiais, ou da técnica, uma vez que o desenvolvimento da indústria da guerra na Europa havia modificado o conceito de batalha do corpo a corpo: Essa atitude se torna mais inteligível quando se considera como a ideologia guerreira representada na coletânea está ultrapassada pelo desenvolvimento do armamentismo europeu. Os autores omitiram o fato de que a batalha de material, na qual alguns deles vislumbram a mais alta revelação da existência, coloca fora de circulação os miseráveis emblemas 80 Walter Benjamin, Sobre o conceito da história. Tese 13. In: Magia e técnica, arte política. trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.229. 81 Idem, p. 229. 82 Idem, p. 229. 83 Georg Wilhelm Friedrich Hegel. A razão na história. Trad. Beatriz Sidou São Paulo: Ed. Moraes.1990. A razão é o conteúdo infinito de toda a essência e verdade, pois não exige, como o faz a atividade finita, a condição de materiais externos, de meios fornecidos de onde extrair-se o alimento e os objetos de sua atividade; ela supre seu próprio alimento e sua própria referência. p. 53 84 Walter Benjamin, Sobre o conceito da história. Tese 13. In: Magia e técnica, arte política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.229. 44 do heroísmo, que ocasionalmente 85 (BENJAMIN. 1986) . sobreviveram à grande guerra A imposição deste modo de viver se auto-alimenta numa espiral crescente de entorpecimento, conformismo e aceitação, fomentada diretamente pela ideologia de um desenvolvimento econômico, mantido pelos detentores do poder. Este aceitar imposto traduz o conceito benjaminiano de conformismo: ―O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, não condiciona apenas as suas táticas políticas, mas também suas idéias econômicas‖. 86 O círculo vicioso entre o poder econômico e as táticas políticas utiliza-se da máquina ideológica para construir a persuasão, através da fragilidade, da capacidade de crer, na medida em que o fascismo atua sem escrúpulos com o potencial ideológico para corromper, a seu favor, a mente dos trabalhadores. A esta máquina se somam as instâncias em que se inserem profissionais relacionados com a formação de opinião das populações, em especial a camada daqueles cuja capacidade de crença já está minada. No texto Parque Central87 de Benjamin aparece o conceito agora do cognoscível, através do qual se dá a entender que a chave para uma saída consiste no conhecimento, talvez seja esse o motivo do deslocamento que sofre o termo Lehre (doutrina), Benjamin transgride o seu sentido relacionando essa palavra a outra Lehren (ensinar) o que nos faz concluir que a doutrina que pertencia ao âmbito da fé passa a ser algo do âmbito do conhecimento. Essa percepção que tem suas raízes no conceito espinosano do conatus nos leva a deduzir o valor que Benjamin atribui ao conhecimento como forma de libertação do aprisionamento ideológico e de emancipação. A social democracia conseguiu injetar com facilidade na mente dos trabalhadores através da persuasão as idéias que impulsionaram o nacional socialismo: O fascismo penetra nos grupos de trabalhadores por duas vias: o chamado 88 lumpen proletariat (expressão contra a qual todos se insurgem), pela 85 . Walter Benjamin, Teorias do fascismo alemão. Sobre a coletânea Guerra e Guerreiros, editada por Ernst Jünger. In: Magia e técnica, arte política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986, p 67. 86 Walter Benjamin, Sobre o conceito da história. Tese 13. In: Magia e técnica, arte política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.227. 87 Walter Benjamin. ―Parque central‖. In: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista, 1.ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 173. 88 Lumpen o trapeiro, é aquele que acorda mais cedo para catar os restos deixados pela civilização. Benjamin constrói com esse vocábulo o conceito de intelectual. O intelectual então para Benjamin 45 corrupção material direta, e a ―aristocracia dos trabalhadores‖, também por meio da corrupção material e da influencia ideológica. Na sua falta de escrúpulos políticos, o fascismo alemão prometeu tudo a todos (REICH. 89 2001) . Num campo de apatia e desesperança por um lado e por outro criando expectativa diante de um ―vir-a-ser‖, Hitler habilmente havia manipulado as massas de trabalhadores, vendendo a idéia do orgulho alemão como uma mercadoria, incutindo no povo a necessidade de um “Führer” – líder – e de que ele, o próprio Hitler, estaria apto a ser este “Führer” e, portanto destinado a resolver o problema do desemprego e da inflação. Benjamin identificando as degenerescências de uma cultura que segrega ao colocar lado a lado o Lumpen e o líder dos trabalhadores constrói com o vocábulo Lumpen uma categoria positiva, e alerta ainda para a escalada do autoritarismo, a ameaça de uma política totalitária e do perigo do poder irrestrito na mão de um fanático, já em seu ensaio de 1930 sobre as teorias do fascismo alemão. antes de ser um líder tem o papel importante de dar sentido às coisas recolhidas da tradição, atualizando-as. 89 Wilhelm Reich. Psicologia de massas do fascismo. trad. Maria da Graça M. Macedo, 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001 p. 63. 46 2.3 O caráter espectral da Lei O autoritarismo totalitário imposto à Alemanha e identificado com o poder avassalador do mito estabelecido sobre o sistema jurídico de Weimar é o mesmo observado por Benjamin na teoria do fascismo alemão. Este poder se utiliza eficientemente da observação do panóptico arquitetado por Jeremy Bentham e citado por Foucault.90 A polícia que é vinculada ao Poder Estatal se assemelha a esta representação. Esta instituição oligárquica e centralizada com todas as suas peculiaridades sugere que o povo é uma ameaça ao poder, quando na verdade ela deveria ter sido pensada na sua origem para assegurar a integridade do cidadão. A estrutura hierárquica piramidal permite ao poder estatal o adestramento das camadas da sociedade, principalmente das de baixa renda, o que ocorre muitas vezes nos processos eleitorais. Na ótica benjaminiana só a educação poderia impedir esses abusos do poder. Nesse mesmo texto Crítica da violência, Benjamin atribui à educação um poder divino. A ordem jurídica também tem essa pretensão. Ela se esmera em constranger algumas áreas da existência como no caso da imposição de limites, sob o pretexto de fins formativos: ―(...) e o poder jurídico tende a cercear, através de fins jurídicos, os fins naturais – mesmo nas áreas nas quais, em princípio, eles estão livres, dentro de amplos limites, como no caso da educação - a partir do momento em que eles são almejados como um excesso de violência; haja vista as leis sobre os limites de competência de punições educativas‖91. Como o objetivo do panóptico de domesticar, adestrar, aliciar e homogeneizar o comportamento, a polícia encontra na repressão um fim semelhante. 90 Michel Foucault. Microfísica do poder. org. e trad. Roberto Machado, Rio de Janeiro: Graau, 2010, p. 210. - Pan-óptico é um termo utilizado para designar um centro penitenciário ideal desenhado pelo filósofo Jeremy Bentham em 1785. O panóptico consistia em uma torre central localizada no meio de um pátio circulado pela construção de múltiplas celas abertas em janelas que davam tanto para o centro do pátio como para o lado oposto, permitindo o recorte, pela iluminação externa, da figura dos encarcerados. O conceito do desenho permite a um vigilante só o domínio visual dos prisioneiros sem que estes possam saber se estão ou não sendo observados. A idéia desta arquitetura foi transferida para os hospitais, fábricas e dissimulada em toda sociedade como forma de controle. ―Parece que um dos primeiros modelos desta visibilidade isolante foi colocado em prática nos dormitórios da Escola Militar de Paris, em 1751‖ 91 Walter Benjamin. Crítica da violência, crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie.. 10.ed. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 162 47 No que diz respeito à perseguição anti-semita o ensaio de 1921 já é capaz de revelar as arestas do poder irrestrito e suas conseqüências drásticas. Essa hipótese iria se realizar no cotidiano alemão quando dia após dia eram tomadas medidas de repressão, em forma de prescrições, regulamentos e normatizações. Eram de tal forma invasivas que ultrapassavam os limites atingindo a privacidade das pessoas. Assim os nazistas foram pouco a pouco limitando o direito de ir e vir dos judeus. Condenaram o uso de bicicletas, máquinas de escrever e de cobertores e até os livros foram confiscados. Subtraídos para serem queimados eram documentos e papéis judeus. Chocolate, café, frutas e peixe nenhum judeu tinha mais o direito de consumir. Essas restrições significavam não só uma destruição material, mas até simbólica daquilo que representava valor para o judeu, isso atingiu o ponto máximo nos limites impostos ao corpo. Sobre essas restrições Benjamin constrói o conceito de mera vida (Blosses Leben)92. O circuito da preocupação com o que poderia ser nocivo a integridade do corpo se completa no ensaio ―O surrealismo - o último instantâneo da inteligência européia‖ de 1929, onde para superar a vida indigna, vida vegetativa, é criado o conceito de espaço do corpo (Leibraum)93, que não nos é dado explorar nesse trabalho. Giorgio Agambem desenvolve no livro Homo Sacer - O poder soberano e a vida nua a temática da concretude do corpo, quando observa no direito romano o conceito de ―homo sacer” com base na tese sobre a matabilidade e vida insacrificável em oposição ao conceito de sacrifício. Ambos os conceitos estavam ligados a uma função política. A figura do Homo Sacer94 foi relacionada à do Friedlos, os sem paz do antigo direito germânico. Essa designação o relacionava a exclusão, o sujeitava a ser morto por qualquer um, sem que se cometesse homicídio95. A vida do Friedlos (considerado bandido) e do Homo Sacer do direito romano constituem uma fronteira de indiferença ―entre o animal e o homem, a physis 92 Ibidem, p. 174. O conceito de mera vida aparece no artigo de 1921, texto Crítica da violência crítica do poder. Ela constitui motivo de discussão de Benjamin com o terrorista intelectual que reconhece que a existência em si é superior a felicidade e a justiça de uma existência, afirmação falsa, pois é vil a idéia de que a existência teria um valor mais alto que a existência justa. Quando se toma ―existência‖ no sentido de mera vida. O conceito espaço do corpo que aparece no ensaio O surrealismo, realiza a conquista do corpo no espaço crítico e revolucionário de uma biopolítica. 94 Giorgio Agambem. Homo sacer – o poder soberano e a vida. trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2002. p. 111. 95 Idem, p. 111. 93 48 e o nomos, a exclusão e a inclusão‖96, que se realizou como um paradigma97 da Alemanha nazista – o campo de concentração. Essa forma do direito que justifica as instâncias legais e ao mesmo tempo a submissão faz parte do estado de exceção que vitimou o legislativo na República de Weimar possibilitando a ―solução final‖. Os campos de concentração e de extermínio98 entre os quais se destacam os de Auschwitz99 se caracterizam pela sua monstruosidade. Tanto no direito romano quanto na figura do Friedlos, o corpo é o alvo dessa intencionalidade que no mundo tecnológico se realiza com o aparato virtual, em um apertar de um botão. Assim funcionou o poder militar criticado no ensaio de Benjamin. O caráter legislador do poder militar se explica com a tendência do direito moderno em considerar que a violência pode ser usada como meio para o atingimento de fins justos (a salvaguarda do povo alemão): ―Uma vez que o serviço militar obrigatório é um caso de aplicação do poder mantenedor do direito (...), sua crítica realmente eficaz não é tão simples como querem os pacifistas e ativistas com suas declamações100‖ O militarismo é caracterizado pela dupla função da violência, estará condicionado à violência instituínte de direito e constitui também uma compulsão da violência como forma de meios para atingir os fins propostos pelo Estado: Se, na ultima guerra, a critica do poder militar se tornou ponto de partida para uma apaixonada critica da violência em geral – critica que pelo menos ensina que a violência não pode ser mais exercida de forma ingênua e nem tolerada - o poder militar tornou-se objeto de critica não apenas como poder 96 Ibidem, p. 112. Ibidem, p. 178. 98 Os nazistas criaram campos de extermínio para que os assassinatos em massa fossem mais eficazes. Diferentemente dos campos de concentração, que serviam principalmente como centros de detenção e de trabalho forçado, os campos de extermínio (também chamados de "centros de extermínio" ou "campos de morte") eram quase que exclusivamente "fábricas de morte". As SS e polícia alemã assassinaram cerca de 2.700.000 judeus nos campos de extermínio, seja utilizando o método de asfixia criada pela emissão de gases ou por fuzilamento. 99 Auschwitz - O complexo dos campos de concentração de Auschwitz era o maior de todos os estabelecidos pelo regime nazista. Nele havia três campos principais de onde os prisioneiros eram distribuídos para fazer trabalho forçado por longo tempo, um deles também funcionou como campo de extermínio. Os campos estavam a aproximadamente 60 quilômetros a oeste da cidade polonesa de Cracóvia, na Alta Silésia, próximos à antiga fronteira alemã e polonesa de antes da guerra, mas que em 1939, após a invasão e a conquista da Polônia, foi anexada à Alemanha nazista. As autoridades das SS estabeleceram os três campos principais perto da cidade polonesa de Oswiecim: Auschwitz I, em maio de 1940; Auschwitz II (também conhecido como Auschwitz-Birkenau), no início de 1942; e Auschwitz III (também chamado de Auschwitz-Monowitz), em outubro de 1942. 100 Walter Benjamin. Crítica da violência, crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie. 10.ed. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 165 97 49 instituinte de um direito, mas foi julgado de maneira que talvez ainda mais 101 arrasadora quanto a uma outra função. (BENJAMIN. 1986) Toda polícia como aparelho de instituição e manutenção do Estado é um prolongamento desse poder. Tem suas semelhanças e a mesma configuração na função exercida. O caráter espectral da polícia é o mesmo do militarismo, ambos se revelam na sua feição panóptica: ―... o que caracteriza o militarismo, que só chegou a ser o que é (...), é uma duplicidade na função da violência. O militarismo é a compulsão para o uso generalizado da violência como um meio para os fins do Estado‖.102 Assim, o militarismo é visto como uma forma de violência latente e assaltante do Poder do Estado, como uma compulsão de seu uso para subordinação e controle dos seus próprios cidadãos. Esse expediente executor não mais limitado a defesa do Estado contra ameaças internas ou externas, ou instrumento de defesa de sua soberania, constitui também um meio de instituir direito interno. ―Evidencia-se o caráter obrigatório do serviço militar‖.103 Com o serviço militar obrigatório o militarismo ultrapassa sua função de defesa e supera sua função executiva para assumir um fim jurídico. Benjamin analisa a compulsão da violência da polícia e dos militares e percebe que este ímpeto para recorrer à violência tem sempre a intenção de servir ao poder estatal, como um meio para atingir fins do direito: ―Ali, a violência* se mostra numa função completamente outra que de seu simples emprego para fins naturais. A compulsão consiste no uso da violência como meio para fins jurídicos‖104. O caráter agressivo do poder militar foi julgado e considerado tão intenso quanto à própria violência que ele pretende reprimir e para cuja função ele existe sob a aparência de defesa. O recurso da violência como elemento normatizador se encontra na guerra. A legislação de guerra baixa decretos e institui pequenos novos direitos de forma imediata e assaltante. A polícia, assim como, os militares possui uma disposição para seguir este modelo: ―(...) se a violência da guerra enquanto primitiva e 101 Ibidem, p. 164-165. Ibidem, p. 165. 103 Ibidem, p. 165 104 Ibidem, p. 165. 102 50 arquetípica pode servir de modelo para qualquer violência para fins naturais, a toda violência desse tipo é inerente um caráter legislador‖.105 A polícia nos regimes democráticos tem a aparência de espectro106, quando funciona como um prolongamento daquilo que os regimes não conseguiram impor com o seu código de governabilidade. No lugar de defender o povo a polícia arbitrariamente investe, na manutenção do poder estatal ultrapassando a sua função executora. Como o militarismo ela também em alguns casos assume um caráter legislador. Benjamin observa que a mesma violência militar baseada na violência assaltante da guerra, se verifica no direito moderno, quando este tende a considerar a naturalidade do uso da violência: ―Ela explica a referida tendência do direito moderno de considerar como sujeito do direito qualquer violência visando fins naturais, pelo menos quando parte do individuo‖, como no caso da auto-tutela.107 O poder do Estado representado pelo ordenamento jurídico se vê sempre confrontado com a possibilidade, pela sua dinamicidade, de instituição de novo direito, quer seja através do próprio Estado, quer seja através de seus opositores. Na sua função de manutenção do status quo o Estado através do direito, irá confrontar-se com a figura do ―grande bandido‖, uma vez que este com seu caráter heróico e romântico exercerá fascínio no povo que por sua vez se vê representado por ele. Este fato faz com que o Estado reconheça o poder e a ameaça do grande bandido, que poderá ser o próprio trabalhador reivindicando direitos: Na figura do grande bandido, o direito se vê confrontado com essa violência, a qual ameaça instituir um novo direito, ameaça que, embora impotente, faz com que o povo, em casos de destaque, se arrepie, hoje em dia como em épocas arcaicas. O Estado, por sua vez, teme essa violência* como um poder que possa instituir um direito, do mesmo modo como tem de reconhecer o poder* legislador de potencias estrangeiras ou de classes sociais que o obrigam a conceder-lhes, respectivamente, o direito de 108 beligerância ou de greve (BENJAMIN. 1986) . 105 Ibidem, p. 164. Fantasma, aparição ilusória. Presença ou iminência ameaçadora; espantalho: o espectro da fome. 107 Walter Benjamin. Crítica da violência, crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 164. 108 Idem, p. 164. 106 51 Uma vez concedido ao povo o direito de beligerância ou de greve, e até de invasões pelo M.S.T.109 terá sua disseminação controlada pelo poder estatal, pois o controle estatal buscará sempre o seu direito de intervir, como forma de prevenção e manutenção do status quo. O Estado aceita esses direitos porque os teme. Na enumeração dos dois poderes, o mítico e o divino, o direito de greve é um meio puro classificado como poder divino, que cede ao homem o poder revolucionário. A violência da guerra terá um alcance muito maior no povo do que se possa imaginar, pois a guerra não será somente um acerto de contas entre um vencedor e um vencido, será uma forma de controle estatal onde a celebração do cerimonial da paz traduzida na imposição da condição de vencedor e de vencido e suas respectivas conseqüências, institui um novo direito. A instituição da polícia é, por assim dizer, uma forma de garantir o Poder Judiciário que se encontra emancipado desta condição, sendo facultado o direito de intervenção por questões de segurança contra seus próprios cidadãos uma vez que o Poder Judiciário não possui a visibilidade panóptica para o controle de fato, ou seja, para a fiscalização. Essa função é cedida à polícia que a ultrapassa muitas vezes usurpando o poder de legislar e às vezes cometendo verdadeiros atentados ao corpo da sociedade. A polícia é na ‖verdade um poder para fins jurídicos (com direito de executar medidas), mas ao mesmo tempo com a autorização de ela própria, dentro de amplos limites, instituir tais fins jurídicos‖110, portanto no uso deste poder de instituir novo direito, e ela o fará conforme Benjamin, através do direito de baixar pequenos decretos. O perigo do uso deste poder da polícia é sua falta de parâmetros quando investe contra o povo em nome da defesa do Estado, de maneira grosseira, não distinguindo o que é instituir ou manter o direito. O próprio decreto é de acordo com a vontade, além da criação do direito, um dispositivo de manutenção desse próprio direito. A polícia por sua vez será a representação do Estado onde ele não consegue mais atingir seu objetivo e impor sua presença, forçando assim seu caráter imediato a uma reação sempre que necessária. 109 Movimento dos sem terras Walter Benjamin. Crítica da violência, crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 166. 110 52 A polícia como objeto de controle e observação social, será sempre diferente na sua concepção do direito positivo ou da lei, pois o direito sempre existirá independentemente de sua utilização ou não, e esta condição é transcendente, existirá a priori a disposição legal ou a determinação do poder. Tanto o poder instituinte do direito como o poder mantenedor do direito estão presentes nesse tipo de instituição do estado moderno; trata-se da polícia que existe numa relação muito mais contrária a natureza do que a pena de morte. Ora, a polícia deveria não poder instituir direito, limitando-se apenas a sua manutenção. Mas ela não se limita a exercer essa função, investe contra a população, desrespeitando às vezes o ordenamento jurídico, no espaço das garantias e direitos individuais: O poder da polícia se emancipou dessas duas condições. É um poder instituinte do direito – cuja função característica não é promulgar leis, mas baixar decretos com expectativa de direito – e um poder mantenedor do 111 direito, uma vez que se põe à disposição de tais fins (BENJAMIN. 1986) . Portanto, devemos sempre estar atentos para a questão da polícia como instituição submissa ao direito positivo. Esta idéia é falsa. Na verdade a polícia postula um direito de intervenção sempre onde o Estado não consegue alcançar, mesmo que para isso se sobreponha ao próprio direito nas suas ações imediatas. Ela cumpre seus chamados pequenos decretos assegurando sua integridade, para depois discutir sua legitimidade ou seu poder, de forma brutal e ameaçadora simplesmente com a força para controle dos cidadãos, não importando a realização da justiça. A sua força jurídica estará sempre pronta a aparecer e a pontuar com violência a sua presença sem representar mais o direito do cidadão. Apenas se utilizando de uma força dentro do Estado para praticar tais discrepâncias: A afirmação de que os fins do poder policial seriam sempre idênticos aos do direito restante ou pelo menos ligados a eles, é falsa. Na verdade o "direito" da polícia é o ponto em que o estado – ou por impotência ou devido às inter-relações imanentes a qualquer ordem judiciária – não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus fins empíricos, que deseja atingir a 112 qualquer preço (BENJAMIN. 1986). 111 112 Ibidem, p. 166. Ibidem, p. 166. 53 Na prática dessa distorção a polícia como instituição normativa muitas vezes intervém em situações jurídicas ainda não decididas, portanto em situações onde a hermenêutica jurídica seria necessária para definir o justo. Sua aparência espectral e efêmera é definida pelo aparecimento súbito com o qual controla o cidadão, imprimindo sua força, com base em um juízo, com se fosse isso um valor legislador: Por isso, "por questões de segurança", a polícia intervém em inúmeros casos, em que não existe situação jurídica definida, sem falar dos casos em que a polícia acompanha ou simplesmente controla o cidadão, sem qualquer referência a fins jurídicos, como um aborrecimento brutal ao longo 113 de uma vida regulamentada por decretos. (BENJAMIN. 1986) Conforme Benjamin, a polícia em contradição ao direito não contém nenhuma essência, sendo seu poder na maioria das vezes amorfo, assim como amorfo será sempre sua aparição inatacável, justificando sua crítica. Ao contrário, o direito na "decisão" fixada no espaço e no tempo, reconhece uma categoria metafísica‖.114 Assim, faz-se necessário uma constante crítica ao poder jurídico ou ao direito enquanto instância representativa da garantia de integridade e da liberdade do cidadão, pois sob o direito, ficará sempre a dúvida se não existiria uma forma não violenta de solução de conflitos.115 113 Ibidem, p. 166. Ibidem, p. 166. 115 Ibidem, p. 168. Será que a solução não violenta de conflitos é em princípio possível? Sem dúvida, as relações de pessoas entre particulares fornecem muitos exemplos. Um acordo não violento encontra-se em toda parte onde a cultura do coração deu aos homens meios puros para se entenderem. 114 54 3 CRÍTICA E REVOLUÇÃO Walter Benjamin observa no seu ensaio de 1921 que o ordenamento jurídico da República de Weimar não era capaz de impedir o seu próprio desmantelamento, a ascensão do nazismo e a inclinação para o autoritarismo totalitário evidente e inevitável. O mais espantoso de tudo isso foi que esta degenerescência estava amparada pela Constituição, que autorizou o decreto. A crítica de Benjamin consistia exatamente na crítica do ordenamento jurídico incapaz de assegurar a integridade do povo pelo exercício deste poder autoritário, contra o qual Benjamin adverte com o conceito de ―preceito doutrinário imperativo‖,116 onde a crítica de Benjamin investe contra um referencial único, para gerir a ação política impedindo a ação democrática. É dessa forma que observa que o exercício da autoridade tende mais naturalmente ao uso da experiência, consolidada pelo conhecimento na tradição. Quando o poder é condicionado a uma estrutura política como na social democracia alemã ele gera o autoritarismo aliado à força do capitalismo consolidado, mostrando uma nova fase do poder. Esta é a diferença entre o poder do conhecimento e o poder vazio da ideologia. Com fulcro na ideologia do desenvolvimento econômico e na eterna luta para manutenção do poder, a estrutura burocrática nazista apoiada pelas chamadas elites, e pelos detentores do capital e dos meios de produção, usurpam o poder, o que passa a ser legitimado com a aprovação das ―massas‖, seduzidas pela estetização da política.117 A preocupação de Benjamin com a ação política detém sua reflexão sobre uma instância mais dilatada do conhecimento, a educação, compreendida por Benjamin como uma das faces da revolução. Sobre ela o pensador constrói muitos ensaios enunciando as desproporções e contradições da cultura: A vida dos estudantes, Teorias do fascismo alemão e O Surrealismo. Cada um desses ensaios reage aos condicionamentos que desviam o olhar da tematização política. 116 Benjamin, Walter. Origem do drama barroco alemão, trad. apres. e notas de Sergio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1984, Opus site. p. 51 117 Walter Benjamin. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte política. São Paulo: Brasiliense, 1996, Opus site p. 196. 55 Igualmente em Origem do drama barroco alemão escrito em 1925 e publicado em 1928, a crítica benjaminiana ao poder que é violência visa à teoria da soberania do absolutismo do século XVII. Nela se encontra uma motivação que pode ser remetida a uma reflexão política sobre os tempos atuais. Aquele sistema jurídico traz como insígnia da arte de governar a imagem da face de Janus de monarca. Esse símbolo representa um alerta para as possibilidades de se exercitar a governabilidade: por um lado com a utilização de força, quando o monarca revela o seu lado tirânico. Por outro, quando ele se submete ao cumprimento do dever, a todo custo, e torna-se, em muitos casos, o mártir do reino. A situação extrema que emoldura essas polarizações é a guerra. Por ocasião do conflito civil-religioso, provocado pela reforma luterana o direito constitucional recomendava que o príncipe deveria intervir com um estado de exceção: Para o Barroco, o tirano e o mártir são as faces de Jânus do monarca. São as manifestações, necessariamente extremas, da condição principesca. No que se refere ao tirano, isso é evidente. A teoria da soberania, considerando exemplar o caso especial em que o Príncipe assume poderes ditatoriais, quase nos obriga a completar o retrato do soberano, investindo-o com 118 traços de tirano (BENJAMIN. 1984) . Nessa contingência é que surge um fragmento significativo onde a reflexão crítica de Benjamin vê em sua exemplaridade a atitude política adequada aos nossos tempos caracterizados pela exceção, como diz na tese 8 sobre a história. É na transgressão às teses do Direito Constitucional, no absolutismo seiscentista que revoluteia a lógica de uma teoria da soberania baseada sobre o estado de exceção reconceituado por Walter Benjamin, como veremos no segundo ítem desse capitulo. 118 Walter Benjamin.Origem do drama barroco alemão, trad. apres. e notas Sergio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 93. 56 3.1 O poder Instituínte e Mantenedor do Direito A absolutização da ciência na forma de transmissão dos saberes através do poder e condicionada à exteriorização, cada vez mais distanciada da sabedoria dos antigos, desenvolveu por sua vez a cultura da barbárie. Em uma de suas arestas, a cultura, assessorada pelo poder, enfraqueceu a experiência da tradição, limitando seu conteúdo com os processos de normatização e cálculo em que a espontaneidade foi perdida e com ela aqueles elementos da afetividade, do coração que estruturavam as relações de amizade e confiança. O fenômeno da objetivação do mundo foi assumido pela estrutura conceitual positivista, que privilegiando categorias universais, lega ao futuro, um elemento cognitivo objetificante que menospreza o particular. A ironia é que, para Benjamin este particular é o local onde se encontra a verdade em forma de fragmentos perdidos. Continuando com a crítica à ciência como condição e condução única do saber que é posse (ein Haben) Benjamin observa na ciência jurídica a impossibilidade de decidir sobre a verdade (Wahrheit). Na classificação que faz entre poder mítico e poder divino ele reconhece no poder mítico a permissão para a interferência de artifícios da subjetividade na instituição da lei, foi o que aconteceu em Weimar quando a norma foi ferida no seu princípio de justiça. Então a discussão se estabelece agora na questão fundamental do poder: se este poder é um poder legítimo ou não; se é legal ou não; se na questão da legitimidade o foco se estabelece nos meios utilizados para alcançar os seus fins e se há neste contexto uma distinção para que ele seja historicamente reconhecido: A questão central passa a ser a da legitimidade de determinados meios que constituem o poder. Ela não pode ser decidida por princípios de direito natural, (...) No entanto, a teoria do direito positivo é aceitável como base hipotética no ponto de partida da investigação, (...). Distingue entre o poder historicamente reconhecido, o chamado poder sancionado e o nãosancionado. (...) naturalmente não significa que poderes existentes sejam 119 classificados em sancionados ou não-sancionados. (BENJAMIN, 1986) Benjamin se torna reticente com relação a uma classificação do poder em sancionado ou não sancionado. Recorrer a estratégias de uma retórica para aceitar uma determinada norma baseada no argumento de que ela foi sancionada não 119 Walter Benjamin. Crítica da violência crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie. trad. apres. e notas, Willi Bolle. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1986 p. 161. 57 significa necessariamente que essa norma seja capaz de ser justa, porque na verdade a suspensão da Constituição de Weimar nega esse argumento. O Estado uma vez representado pelo direito tem como primeira função instituir o próprio direito e por outro lado a função de manter o direito, subordinando seus cidadãos e aplicando a norma ao seu comportamento. Nessa função ele coincide com a violência: ―Se a primeira função da violência passa a ser a instituição do direito, sua segunda função pode ser chamada de manutenção do direito‖.120 Esse cenário da violência merece uma análise crítica das implicações entre o direito, a justiça e a legalidade uma vez que Benjamin observa que é possível que o sistema jurídico enquanto ciência do direito não consiga a realização da justiça, no caso em que ele venha sobrecarregado de interpretações tendenciosas como nos decretos autorizados por Hitler na perseguição antisemita. Merece também uma avaliação o espaço entre a legalidade e a legitimidade. Agambem mostra uma diferença entre a passagem da legitimidade para a legalidade ao transcrever o tratado de Diotogene em parte recuperado por Estobeo. Nesse silogismo a justiça é sem lei (aneu nomou dikaiosyne) dando a entender que a justiça para ser praticada não precisa da lei e que lei só tem validade quando é capaz de fazer justiça. Portanto o justo é legítimo. O que não se pode afirmar através do tratado com respeito à legalidade. Legal significa de acordo com a lei. Para tratar desse assunto Walter Benjamin estabelece que a relação elementar de todo ordenamento jurídico é a relação dos meios e fins, portanto não podemos simplesmente aceitar a idéia natural de que os fins justificam os meios, que não obsta ser justificado em certos casos e não podemos aplicá-lo como regra geral: ―À tese, defendida pelo direito natural, do poder como dado da natureza, se opõe diametralmente a concepção do direito positivo, que considera o poder como algo que se criou historicamente‖121, em se tratando de fins justificando os meios o direito natural vai buscar sempre na relação dos meios e fins a justificativa dos meios pelos fins, buscando a preservação do mais forte. Na perspectiva de Benjamin a ordem jurídica estabelecida será baseada nesta relação de meios e fins, ora os meios justificando os fins, ora os fins justificando os meios. 120 121 Ibidem, p. 165. Ibidem, p. 161. 58 Se o direito natural pode avaliar qualquer direito existente apenas pela crítica de seus fins, o direito positivo pode avaliar qualquer direito que surja apenas pela crítica de seus meios. Se a justiça é o critério dos fins, a 122 legitimidade é o critério dos meios. (BENJAMIN. 1986) Buscando um critério da justiça, Benjamin percebe que a questão a ser analisada passa a ser a da legitimidade dos meios que constituem o poder. Assim como Benjamin, a filosofia do direito considera que o sistema do direito positivo por si só não é suficiente. Pressupõe ainda legitimidade. No caso do decreto de Hitler todos os requisitos da legalidade foram atendidos, mas não os fundamentos da legitimidade. O decreto que abriu o estado de exceção para perseguir os judeus foi um ato legal. É nessa distancia entre legalidade e legitimidade que se baseia a crítica de Walter Benjamin ao direito. As bases destas instituições direito, justiça e legalidade são as mesmas que apóiam outros pilares da humanidade, forças estas com as quais convivemos diariamente e nem sempre conseguimos entendê-las ou até mesmo perceber quando estão agindo em nossas vidas. Para compreendê-las precisamos de um entendimento da linguagem humana, dos doutrinamentos e especialmente da história, na qual estas forças surgiram. Esta compreensão capacitou Walter Benjamin a poder despertar o mundo de sua época contra as ações nefastas do fascismo alemão, dos horrores do holocausto e mais importante, das forças que marcaram o mundo pós-guerra, bem como de acontecimentos religiosos e políticos. Parece até que Benjamin estava adivinhando o decreto que seria assinado por Hitler, treze anos depois, em 1933, subvertendo a constituição de Weimar. À tese, defendida pelo direito natural, do poder como dado da natureza, se opõe diametralmente a concepção do direito positivo, que considera o poder como algo que se criou historicamente. Se o direito natural pode avaliar qualquer direito existente apenas pela crítica de seus fins, o direito positivo pode avaliar qualquer direito que surja apenas pela crítica de seus meios. Se a justiça é o critério dos fins, a legitimidade é o critério dos meios. No entanto, não obstante essa contradição, ambas as escolas estão de acordo num dogma básico comum: fins justos podem ser obtidos por meios justos, meios justos podem ser empregados para fins justos. O direito natural visa, pela justiça dos fins, "legitimar" os meios, o direito positivo visa "garantir" a 123 justiça dos fins pela legitimidade dos meios (BENJAMIN. 1986) . 122 123 Ibidem, p. 161. Ibidem, p. 161. 59 Com essa análise do direito, Benjamin não estava só criticando o direito, estava dando um verdadeiro pontapé inicial para que as pessoas pudessem dar continuidade à idéia de uma relação necessária entre o julgamento e seu fim justo, levando-se em consideração, na sua crítica, que esse julgamento é função do sistema jurídico. Na visão filosófica de Walter Benjamin, o que importa é a questão da justiça, pois da mesma forma que não existe um modelo perfeito de governo, um modelo perfeito de Poder, não existe também uma norma perfeita para se fazer justiça sem o uso da violência. É preciso que se critique a relação da violência com o poder, em decorrência da norma ou da positivação do direito natural, e esta critica deve ser sempre baseada na relação de meios e fins. A crítica à violência constituiria exatamente a avaliação da relação entre o direito e a garantia da integridade do sujeito colocado em julgamento: A tarefa de uma crítica da violência pode ser definida como a apresentação de suas relações com o direito e a justiça. Pois qualquer que seja o efeito de uma determinada causa, ela só se transforma em violência, no sentido forte da palavra, quando interfere em relações éticas. Esfera de tais relações é designada pelos conceitos de direito e justiça. Quanto ao primeiro, é evidente que a relação elementar de toda ordem jurídica é a de meios e fins. A violência, inicialmente, só pode ser procurada na esfera dos 124 meios, não na dos fins (BENJAMIN. 1986) . Na observação de Walter Benjamin, o direito posto, direito positivo ou a sua aplicação pode não assegurar a realização da justiça visto que este direito poderá estar impregnado de violência. Isso acontece quando é decretado um estado de exceção: (...) temos mais dados para a crítica da violência do que talvez pareça. Pois se a violência é um meio, pode parecer que já existe um critério para sua crítica. Tal critério se impõe com a pergunta, se a violência é, em determinados casos, um meio para fins justos ou injustos. Sua crítica, 125 portanto, estará implícita num sistema de fins justos (BENJAMIN. 1986) . Dentro do olhar Benjaminiano o homem apenas tem se fixado como o seu próprio algoz cercado por leis injustas que são legitimadas por ele mesmo. O homem vivenciará apenas, enquanto se mantiver neste estado, a falência da justiça, dos governos e de sua relação com o outro. Este viver alicerçado na violência ameaça a 124 Ibidem, p. 160. Walter Benjamin. Crítica da violência, crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie. 10.ed. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 160. 125 60 vida e cria um homem embrutecido, entorpecido, narcotizado pelo apelo do consumo e da mercadoria. Para Walter Benjamin o que realmente interessa não é só estabelecer a relação existente dos fins e dos meios, mas se estabelecer uma crítica da violência existente na aplicação da norma, ou do poder enquanto representação da lei. Na busca da justiça, independentemente de existir ou não o direito natural ou direito positivo, toda lei, via de regra, é violenta e precisa da violência para sua instituição e manutenção como direito, sempre levando em consideração que o direito positivado é a representação do Poder do Estado ou a representação do próprio Estado. Conforme Benjamin: ―todo poder enquanto meio é, ou instituinte ou mantenedor de direito. Não reivindicando nenhum desses dois atributos, renuncia a qualquer validade‖.126 A validade do direito estará na sua instituição e nos seus dispositivos de manutenção, devendo ser observada a relação de meios e fins sempre com a disposição de meios justos para fins justos. Para Walter Benjamin a ―teoria do direito natural‖ não vê nenhum obstáculo na utilização de meios violentos na busca de seus fins, sendo estes meios justos ou não, pois sendo o direito natural - o direito do mais forte - sua utilização seria também natural, o que se pretende é que para a apreciação desta relação, deve-se observar que não podem ser levados em consideração os fins e somente será levada em consideração a análise dos meios: ―Ter um critério mais exato, uma distinção na esfera dos próprios meios, sem levar em consideração os fins a que servem. (...) caracteriza uma das grandes correntes da filosofia o direito – o direito natural – e talvez seja sua característica mais marcante‖127. Em oposição ao direito natural surge a teoria do direito positivo definida como uma atitude mental que visa dar à filosofia o método positivo das ciências, e às ciências a idéia de conjunto da filosofia. Entretanto o direito positivo na concepção de Benjamin torna-se frágil quando não questiona a ordem jurídica: Sua impotência é total, quando não questiona o próprio corpo da ordem jurídica, mas apenas leis ou costumes jurídicos isolados, que então serão protegidos pelo direito com o seu poder, que consiste na alegação de que só existe um único destino e que justamente o status quo e o elemento 126 127 Ibidem, p. 160. Ibidem, p. 160. 61 ameaçador pertencem à sua ordem de maneira irrevogável (BENJAMIN. 128 1986) . Este poder ameaçador para Benjamin não ameaça no sentido de intimidar, sua ameaça é no sentido de que todas as pessoas estarão sujeitas a suas determinações: ―(...) sua ameaça não tem o sentido de uma intimidação, (...). Ela exigiria uma definição contrária à essência da ameaça e não atingida por lei nenhuma, uma vez que existe a esperança de escapar a seu braço‖129. Neste sentido, o resgate da história universal escovada em seu contrapelo (die Geschichte gegen den Strich zu bürsten) como propôs o autor, na construção de uma teoria para a história, tem seu peso no que se refere à lacuna reservada à história dos vencidos que foram despojados de seu acervo cultural para dar espaço aos vencedores. Ora se esta história está impregnada de lacunas da história dos vencidos, esta mesma história não expressará a verdade da história universal. Se o direito positivo foi estabelecido como uma criação da história universal, este direito também foi criado levando em conta somente a dos vencedores, sendo desta forma o direito positivo concebido apenas com o poder da violência. É notório que a história tradicional universal é exatamente a contada a partir dos olhos do vencedor, nas palavras de Benjamim é a história que se encontra em nossos livros, com sua capacidade de descrever o passado como ―verdadeiro‖, utilizando argumentos ideológicos e políticos recriando através de fatos históricos os arquétipos míticos e promovendo a criação de fatos e personagens como a grande maioria dos heróis. Essa história rematada de heroísmo foi amplamente utilizada por Hitler para o atingimento de seus fins. Benjamim aponta em uma das arestas do sistema jurídico a violência do contrato, pois ele traça ironicamente, uma linha imaginária que não pode ser transgredida, na medida que esse contrato se torna uma norma: ―De uma maneira demoníaca e ambígua, trata-se de direitos iguais: para ambas as partes contratantes, é a mesma linha que não pode ser transgredida‖130. O direito positivo deveria questionar suas raízes históricas, levando em consideração o momento de 128 Ibidem, p. 161. Ibidem, p. 166. 130 Ibidem, p. 161. 129 62 sua instituição. O direito conta com a instituição da vitória, mas essa vitória é arbitrária, ela acontece em detrimento da história dos vencidos, cujos despojos, coragem, determinação, amor e humor, muitas vezes são atribuídos aos vencedores. (...) o direito positivo, quando está consciente de suas raízes, reivindicará o fato de reconhecer em cada indivíduo o interesse da humanidade e de fomentá-lo.Tal interesse consistiria na apresentação e conservação de uma 131 ordem de destino (BENJAMIN. 1986) . Alerta-se para a necessidade de se questionar todo o ordenamento jurídico, desde o momento de sua instituição, pois não se pode mais admitir um direito sem rosto com a promessa de uma garantia mentirosa para a ―liberdade‖. Essa liberdade é enganosa. O poder mantenedor do direito é um poder ameaçador que se cumpre, enquanto punição, na ordem do destino. As limitações de comportamento impostas pelo mito exigem a penitencia. Entre as formas em que a violência mítica se exterioriza está a construção de novo direito com sua violência ameaçadora, pois o direito positivo em especial no direito das punições, a pena de morte, é a expressão máxima de todo seu poder. Deverá ser suscitada essa crítica e também a validade deste direito, na sua constituição e manutenção: A lei se mostra ameaçadora como o destino, do qual depende se o criminoso lhe sucumbe. O sentido mais profundo da indefinição da ameaça do direito se revelará somente pela consideração posterior da esfera do destino, de onde ela se origina. Um indício precioso se encontra na área das punições. Dentre elas, mais do que qualquer outra, a pena de morte suscitou críticas, desde o momento em que se questionou a validade do 132 direito positivo (BENJAMIN. 1995) . Esta ordem do destino é impotente quando se apresenta em nome da liberdade desfigurada e sem rosto que não contempla a liberdade dos vencidos, que na sua derrota tiveram seu patrimônio histórico surrupiado pelos vencedores e somente através de um recontar da história, escovada a seu ―contra pêlo‖133 poderia traduzir uma liberdade superior: 131 Ibidem, p. 165. Ibidem p. 166 133 ―A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo os social-democratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites, idéia correspondente à da perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro lugar, era um processo essencialmente 132 63 Se, por um lado, não se deve poupar críticas a essa ordem, que o direito pretende conservar com razão, por outro lado, qualquer interpelação dessa ordem é impotente, quando se apresenta apenas em nome de uma "liberdade" sem rosto e incapaz de apontar uma ordem de liberdade 134 superior (BENJAMIN. 1986) . O direito retira do vencedor a sua total capacidade de submeter indistintamente o vencido, uma vez que agora seu domínio não mais será absoluto, pois existe um contrato, uma norma a ser seguida que estabelece seus limites. Restaria apenas o novo direito, como comentam Anatole France e Sorel. Para eles também enquanto existir o ordenamento jurídico ou a lei, existirá sempre a tentativa de beneficiamento dos governantes ou dos que detém o poder: Aqui se manifesta, com uma primitividade terrível, a mesma ambigüidade mítica das leis de que fala Anatole France quando diz: Os senhores proíbem igualmente aos pobres e aos ricos de pernoitarem debaixo da ponte. Também Sorel parece tocar numa verdade não apenas histórico-cultural, mas metafísica, ao supor que, nos primórdios, legislar (Recht) tenha sido privilegiar (―Vor‖- recht) os reis ou os grandes, em suma: os poderosos. E assim será, mutatis mutandis, enquanto existir o direito (BENJAMIN. 135 1986) . Igualmente a grandeza que há na reação do governante empossado pelo poder mítico, é o ato de heroísmo sentido pelo transgressor desta ordem, quando indo contra o seu superior ou contra o seu status de governante sem considerar a reação deste ao tentar criar um novo direito, espelha-se na figura do grande bandido, tornando-se um herói para os ―filhos bastardos do poder‖. Os subjugados do poder mítico assumem a culpa de suas transgressões a ordem instituída, mesmo quando ela não é do seu conhecimento. Sobre o prisma da violência enquanto mantenedora do direito não haverá um sentido de igualdade: Pois, da perspectiva da violência, a única a poder garantir o direito, não existe igualdade, mas, na melhor das hipóteses, existem poderes do mesmo tamanho. Há ainda um outro aspecto, sob o qual o estabelecimento de limites é importante para o conhecimento do direito. Limites estabelecidos e circunscritos são, ao menos em tempos arcaicos, leis não escritas 136 (BENJAMIN. 1986) . automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória em flecha ou em espiral. Cada um desses atributos é controvertido e poderia ser criticado. Mas, para ser rigorosa, a crítica precisa ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da idéia do progresso tem como pressuposto a crítica da idéia dessa marcha‖. Walter Benjamin, Sobre o conceito da história. Tese 13. In: Magia e técnica, arte política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 227. 134 Walter Benjamin. Crítica da violência, crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 165. 135 Walter Benjamin. Crítica da violência, crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1995, p.171. 136 Ibidem, p.171 64 Níobe137 transgride uma dessas leis com sua arrogante vaidade ao se vangloriar de ter uma prole maior que Leto, mãe de Artemis e Apolo. Níobe é punida pelos deuses com a morte dos 14 filhos, 7 meninos e 7 meninas: ―a violência (...) desaba sobre Níobe a partir da esfera incerta e ambígua do destino (...) ela se detém diante da vida da mãe (Níobe), deixando-a – apenas mais culpada do que antes por causa da morte dos filhos‖.138 Essa eternização da culpa aparece como um limite entre o homem e os deuses (poder mítico) cuja transgressão tem que ser punida. Não interessa se o transgressor tinha ou não o conhecimento da norma, escrita ou não, pois seria sempre aplicada a penitência ou punição ―O homem pode transgredi-la sem saber e assim ficar sujeito a penitência. A intervenção do direito, motivada pela transgressão da lei não-escrita ou desconhecida, chama-se penitência, para distingui-la da punição‖.139 Benjamin exemplifica: Hermann Cohen, num rápido exame da concepção antigo do destino, o chamou de ―conhecimento inescapável‖, dizendo que é ―a sua própria ordem que parece provocar essa transgressão, esse desrespeito‖. Tal espírito da lei ainda é ilustrado pelo princípio moderno de que o desconhecimento das leis não exime da punição, do mesmo modo que a luta em prol do direito escrito, nos primeiros tempos das comunidades antigas, deve ser entendida como uma rebelião contra o espírito dos 140 decretos míticos (BENJAMIN. 1986) . Nas comunidades primitivas a rebelião era tida como uma revolta contra o poder mítico dos decretos, tal espírito se aplica ao direito moderno sem que exima o infrator da punição pelo fato de desconhecer ou alegar desconhecer a lei. Ela continuará soberana mesmo nos casos de seu total desconhecimento. Percebe-se que a força mítica desses decretos arcaicos subsiste também no poder irrestrito concedido ao monarca. Montaigne a classificou nos Ensaios III de fundamento místico da autoridade. Com ela a tradição medieval, construiu, para o conceito de teocracia, a ―função sacrossanta dada por Deus” ao monarca, que ele supera para fundar o estado de exceção. O estado de exceção rompe o destino mítico, como veremos no próximo ítem. 137 Junito de Souza Brandão. Mitologia Grega. Vol. I. 7. Petrópolis: Vozes. 1991, p. 80. Walter Benjamin. Crítica da violência, crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1986, p.171 139 Idem, p.171. 140 Ibidem, p.172. 138 65 3.2. Imanência Historia-Natureza e Fatalidade No barroco se desenvolve outra concepção para a physis141, bem alheia ao conceito de physis da antiguidade clássica. Enquanto o homem grego via no cosmos 142 uma harmonia pré-estabelecida e na polis o microcosmo para a realização do homem ético, o barroco143, ao contrário vê o mundo em pedaços e na história a degeneração. Enquanto a educação política do homem grego deve conduzi-lo à felicidade, ao segundo só resta obedecer em um sistema patriarcal fechado sem possibilidade de redenção. Na Arte escultural da cidade grega a conjunção matéria e espírito deveriam ensinar ao homem a harmonia de que ele era na verdade constituído. Na escultura barroca a Venus e o Torso mostravam carência e desamparo irremediáveis. O fragmento (Bruchstück), por excelência, o Torso, é a alegoria da incompletude e da falta, e deveria lembrar ao homem a matéria prima de que ele era feito. Essa percepção caótica do mundo, que caracterizava o trompe 141 A palavra grega Physis pode ser traduzida por natureza, mas seu significado é mais amplo referese também à realidade, não aquela pronta e acabada, mas a que se encontra em movimento e transformação, a que nasce e se desenvolve, o fundo eterno, perene, imortal e imperecível de onde tudo brota e para onde tudo retorna. (...) a palavra significa gênese, origem, manifestação. (...) levanta a questão da origem de todas as coisas, a sua essência, que constituem a realidade, que se manifesta no Movimento. A phýsis expressa um princípio de movimento relativo ao fazer-se das coisas nas quais mudam as aparências, enquanto que cada (ser ou) coisa permanece sempre sendo ela mesma. Esse movimento seria a contínua transformação dos seres, mudando de qualidade. Portanto o mundo (Physis) está em mudança contínua, sem por isso perder sua forma, sua ordem e sua estabilidade. (...) uma fase de pensamento voltada para a explicação racional dos fenômenos que constituíam as inquietações dos homens daquela época. 142 Cosmo (gr.kosmos) 1 . Palavra grega que significa "ordem", "universo", "beleza" e "harmonia" e que designa, em sua origem. O céu estrelado enquanto podermos nele detectar certa ordem: as constelações astrais e a esfera das estrelas fixas, designa, na linguagem filosófica, o mundo enquanto é ordenado e se opõe aos caos. 2 .Na tísica aristotélica, o modelo de um cosmo finito, bem ordenado. Na concepção aristotélica e na escolástica do mundo valorizam o "supra lunar" cujos objetos incorruptíveis são organizados numa ordem eterna e perfeita, por oposição ao nosso mundo "sublunar" desordenado, submetido à corrupção e ao "fluxo do devir". Os movimentos do mundo supra lunar são uniformes, circulares e eternos, que traduzem uma "intenção de ordem", pois uma pedra lançada no ar, por um movimento "violento", busca seu lugar " natural" .3. Com a revolução científica do séc.XVII, altera-se a imagem aristotélico-ptolomaica de um mundo fechado, eterno e finito, que é substituída pela concepção de uma causalidade cega num espaço geometrizado. 143 Significado de Barroco - s.m. Arquitetura e Literatura Estilo nascido sob a inspiração da ContraReforma, e que se desenvolveu nos séc. XVI (segunda metade), XVII (período áureo) e XVIII (decadência), como evolução do Renascimento. Surgiu na Itália, estendendo-se depois a outros países. Na arquitetura, o barroco destacou-se pelos efeitos de massa, de movimento, pelo emprego do grandioso e da linha curva; na escultura, pelas figuras surpreendidas em movimentos e pelas roupagens vistosas; na pintura, pelas composições em diagonal, pelos efeitos de perspectiva e de aparências irreais. Na literatura, o barroco distingue-se pelo gosto do patético, pela abundância dos ornatos, pela elaboração formal metáforas preciosas, jogo de palavras, antíteses e paradoxos, hipérbatos e hipérboles —, pela intensificação do pormenor traços estilísticos a que habitualmente se dá o nome de "cultismo", que, ao lado do conceitismo, linguagem de conceitos singulares, de pensamentos preciosos, mais caracteriza o estilo barroco. 66 l’oeil produzia a vertigem, oriunda do sentimento de um desamparo irremediável, onde não havia para o homem religioso o consolo da salvação. As contorções das figuras de El Greco em Laocoonte reproduziam as contorções da alma do homem caído. O barroco guardava a mentalidade de que a realidade se achava aprisionado na imanência história e natureza. As 95 teses de Luthero sobre a inutilidade da indulgência plenária provocam no homem do barroco a sensação de vazio, que por sua vez revela a história como uma sucessão de catástrofes. A idade média tinha sido o resultado da fusão e convergência de dois mundos antagônicos: o ideal pagão da antiguidade clássica representado pelo Platonismo e Aristotelismo encontra um solo fértil na mística cristã. O domínio do mito cristão impunha-se através do medo do poder de Deus sobre a vida terrena. Exatamente através desse instrumento a Igreja obrigava à obediência e à servidão religiosa e impunha uma vivência incondicional dos preceitos morais da religião, não por amor a Deus, mas pelo temor de seu castigo. A Igreja Católica havia descoberto o teatro como um instrumento de pressão doutrinária para obrigar à obediência e submissão aos valores da época o que implicou na manutenção de status quo, com produções teatrais carregadas de dogmatismo religioso. Já no final da idade média a igreja utilizou-se de várias passagens bíblicas no teatro sob o nome genérico dos ―mistérios‖, que geralmente eram encenados na páscoa, no natal, na paixão de Cristo, dando uma conotação de teatro religioso onde ao mesmo tempo em que aparecia o milagre, também aparecia a moralidade. Enquanto que, no teatro religioso por intermédio dos ‗mistérios‘ destacava-se a totalidade da história universal concebida como a história da redenção humana, o drama barroco concebia a história observável, ou a história empírica: ―No entanto, ao passo que o ―mistério‖ e a crônica cristã abrangiam a totalidade da história universal, concebendo-a como história da redenção, o drama das ―ações principais e do Estado‖ tinha como horizonte apenas uma parte da história empírica‖144. De acordo com a obra de Benjamin a cristandade não estava mais coesa pois havia se dividido em vários reinos cristãos, e o processo de salvação estava diluído entre o sagrado do mistério e o profano do drama barroco. De acordo com o 144 Benjamin, Walter. Origem do drama barroco alemão, trad. apres. e notas de Sergio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 101. 67 drama barroco a cólera do tirano não é suficiente para suportar o peso de sua incapacidade, levando-o a loucura. Com essa alegoria da loucura Benjamin mostra a impossibilidade de se governar sem o apoio da cidadania, apontando a sobrecarga de um governo que prescinde dos valores democráticos. O impasse consistia na imposição que sofria o ―príncipe barroco‖ por ter que decidir sozinho. Essa coerção transformava muitas vezes o tirano em um mártir, fato que não é considerado nos manuais de história política: A cristandade européia estava dividida numa multiplicidade de reinos cristãos, cujas ações históricas não mais aspiravam a transcorrer dentro do processo de salvação. O parentesco entre o drama barroco e o mistério é posto em questão pelo desespero radical que parecia ser a última palavra do drama Cristão secularizado. Pois ninguém pode considerar a moralidade estóica, na qual desemboca o martírio do herói, ou a justiça, que transforma a cólera do tirano em loucura, suficientes para suportar a tensão de uma 145 construção. (BENJAMIN, 1984) . O drama barroco alemão surge em ambiente de ―tragédias e mistérios‖, e tem uma atuação muito além de um estilo literário. A arte é a luneta através da qual é realizada a crítica. Ela é uma ―determinação do médium de reflexão, provavelmente a mais fecunda que ele recebeu‖146. Na realidade Walter Benjamin percebe uma recriação do mundo através do estilo forte do Trauerspiel, de suas cenas de crueldade, realçadas no tom claro escuro da dramaturgia luterana de Gryphius, Lohenstein, Hallmann, Opitz e Haugewitz. A Alemanha e a Europa viviam um momento muito especial na história, pois passavam por uma acomodação depois da guerra civil-religiosa e da guerra dos 30 anos que perdurara de 1618 a 1648 até a Paz de Westfalia que determinou a separação definitiva do poder religioso, cabendo somente à política a condução do Estado. Mas a Reforma e a Contra-reforma continuavam buscando seus espaços, fragilizadas ambas pela renúncia à transcendência por parte da história, deixando um rastro de secularização que confundiu o sagrado com o profano: 145 Benjamin, Walter. Origem do drama barroco alemão, trad. apres. e notas de Sergio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 101. 146 Walter Benjamin. O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão, trad. intr. e notas de Márcio Seligmann-Silva, São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 71. 68 Foi aqui que surgiu o universo formal do drama barroco, longe da dramaturgia de Hamburgo, e mais ainda da pós-clássica, na ―tragédia‖, que a Idade Média interpretava mais à luz das suas magras noções sobre a temática do teatro antigo, que de sua realização contemporânea, nos 147 ―mistérios‖ (BENJAMIN, 1984) . O Trauerspiel (drama barroco) vê com uma simplicidade que chega a ser cruel à história da civilização, despindo-a de toda pompa da Renascença, renunciando a transcendência em prol de uma imanência fria, retirando a história da salvação e deixando o homem a revelia de seu próprio destino. No Drama Barroco alemão é o destino que conduz os personagens à morte, e não é na transcendência que o seu sofrimento é recompensado, portanto não há no Drama Barroco uma criação divina. São as forças da natureza que coincidem com as paixões humanas. O barroco anuncia essa catástrofe. A figura da morte vai servir de ordenadora do mundo dos homens. O exemplo das catástrofes deve por um limite às paixões, pois enquanto na tragédia dos antigos o sujeito do destino era da ordem do indeterminável no drama barroco alemão a fatalidade (Verhängnis) que conduz o reino a desgraça é a própria subjetividade arrebatada no torvelinho das paixões. Enquanto o drama barroco usa a alegoria como forma de transmitir a verdade esmagadora: a da miséria da condição humana, no teatro medieval a alegoria era utilizada como instrumento didascalico-místico148 de reafirmação da questão moral. A morte, os vícios, as virtudes apresentavam-se como personagens evidenciando-se o caráter ideológico da igreja e do Estado como forma de impor um comportamento. No Trauerspiel a morte alegórica está permanentemente presente: o teatro acaba por desabar no sem-sentido da morte, nada escapando às ações do homem. Imperavam as ações principais e de Estado (BENJAMIN, 1984) 149, mostrando a que conduz a ambição e o desejo desmedidos. Era comum a cena lutuosa (Trauerbühne) que trazia o slogan ―essa tragédia vem das tuas vaidades‖.(BENJAMIN, 1984) 147 150 Benjamin, Walter. Origem do drama barroco alemão, trad. apres. e notas de Sergio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1984, 101. 148 Significado de Didascálico - adj (gr didaskalikós) 1 Que anotava, comentava ou criticava peças teatrais. 2 Diz-se do poema cujo objeto é a exposição ou discussão de uma ciência ou doutrina. 3 Concernente ao título de uma obra. 4 Didático. 149 Benjamin, Walter. Origem do drama barroco alemão, trad. apres. e notas de Sergio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 146. 150 Idem, p. 143. 69 Nessas ações principais e de estados são personagens reis e príncipes com suas coroas de papel dourado dizendo que nada é mais difícil que governar. O teatro de marionetes que retira da rigidez de suas feições tristes e aflitas o cômico, mostra que o palhaço e o bobo da corte são incômodos para esses personagens, porque sua presença os distingue na sua superioridade desconcertante. É assim que funciona a dialética na filosofia da historia de Benjamin. Na acomodação da história um personagem, ―o príncipe‖, às vezes tirano, aparece de forma clara para exercer a função de legitimador do poder absoluto, devendo ele criar todas as condições para salvar o reino das ameaças, além de garantir a estabilidade do reino. A Cúria prescrevia que ele deveria exercer a autoridade estatal juntamente com a autoridade da igreja. Para o drama o príncipe deveria conseguir a estabilização da história, isto é ―a função do tirano é a restauração da ordem, durante o estado de exceção: uma ditadura cuja vocação utópica será sempre a de substituir as incertezas da história pelas leis de ferro da natureza‖ (BENJAMIN, 1984)151. O conceito de imanência da história com a natureza quer dizer que da mesma forma que a natureza degenera, a história também sucumbe às vicissitudes do poder. O barroco ocorreu numa época de total hegemonia do cristianismo na Europa, pois apesar da aparência profana das coisas a virtude continuava viva no coração do homem simples e exercitada, se não na ação, em ―pretextos meramente intercambiáveis‖ (BENJAMIN, 1984)152 como a pátria, a religião, a liberdade. O motivo da hegemonia cristã encontrava-se no fato de que a rebelião não conseguia sua realização, abrindo caminho para uma verdadeira revolução do conteúdo da vida, uma vez que as vias para a heresia estavam bloqueadas. O Drama Barroco se escreve na cena histórica como o conflito que poderia ser evitado: De todos os períodos perturbados e cindidos que caracterizaram a história européia, o Barroco foi o único que se deu numa época de hegemonia cristã incontestada. A via medieval da revolta – a heresia – estava obstruída, em parte porque o Cristianismo impunha vigorosamente a sua autoridade, mas sobretudo porque o fervor de uma nova vontade mundana não tinha a mais remota oportunidade de exprimir-se nos matizes heterodoxos da doutrina e do comportamento.Assim, como nem a rebelião nem a submissão eram realizáveis em termos religiosos, todas as forças da época se concentravam numa revolução total do conteúdo da vida, preservada a ortodoxia das formas eclesiásticas. Em conseqüência, a expressão autêntica e imediata 151 152 Ibidem, p. 97. Ibidem, p. 112. 70 do homem estava excluída. Pois ela teria levado à exteriorização clara da vontade da época, e ao confronto com a vida cristã, a que mais tarde 153 sucumbiu o romantismo (BENJAMIN, 1984) . Na renascença o céu com sua leveza e clareza somente poderia supor uma felicidade transcendente, agora no barroco o céu passa a ter o peso da decisão humana. O barroco não representa a ressurreição de Cristo – porque ela caracteriza a esperança. Na pintura barroca, o céu aparece com nuvens pesadas movendo-se ameaçadoras sobre os homens. Nele a austeridade e a ironia, sempre juntas, faziam uma releitura da história, sugerindo sempre um clima de guerra, uma sensação de abandono do mundo: O clima espiritual dominante, por maior que fosse sua tendência a acentuar os momentos de êxtase, via neles menos uma transfiguração do mundo, que um céu nublado se estendendo sobre a superfície do mundo. Os pintores da Renascença sabiam manter o céu em sua altitude inacessível, ao passo que nos quadros a nuvem se move, de forma sombria ou radiosa, 154 em direção à terra. (BENJAMIN, 1984) O clima de guerra e luta que caracterizava a existência não a concilia com o espírito cristão da esperança, mas com as cenas exemplares do Velho Testamento, emoldurando a realidade do ―olho por olho, dente por dente‖, que só mais tarde foi substituída, na paixão de Cristo pelo perdão: os jesuítas ―não adotavam mais por tema o drama da redenção como um todo, e cada vez mais raramente o episódio da Paixão, preferindo recorrer aos temas do Velho Testamento, graças aos quais exprimem suas intenções missionárias com maior eficácia que através das lendas dos 155 santos‖ (BENJAMIN, 1984) . As cenas brutais da perseguição de um rei na história de Heródes representada pelo Antigo Testamento são compatíveis com a realidade absolutista da corte dominada pela imanência história e natureza, pois ―o destino 153 156 é a força Ibidem, p. 102. Ibidem, p. 102. 155 Ibidem, p. 102. 156 Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia. Trad. 1. Ed. de Alfredo Bosi, 5.ed. rev. e ampl. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 285 – Destino – Ação necessitante que a ordem do mundo exerce sobre cada um de seus seres singulares. Na sua formulação tradicional, esse conceito implica: 1. Necessidade, quase sempre desconhecida e por isso cega, que domina cada indivíduo do mundo, por ser ele parte da ordem total; 2. Adaptação perfeita de cada individuo ao seu lugar, ao seu papel ou à sua função no mundo, visto que, como engrenagem da ordem total, cada ser é feito para aquilo que faz. O conceito de destino é antiqüíssimo e bastante difundido, porque compartilhado por todas as filosofias que, de algum modo, admitem uma ordem necessária do mundo. Aqui só faremos alusão às que designam explicitamente essa ordem com o termo em questão. O destino é noção dominante 154 71 elementar da natureza no processo histórico‖ (BENJAMIN, 1984)157 ao contrário, no drama Espanhol a força do destino é debelada quando o rei, por ser o grande restaurador da ordem, mesmo não podendo ―cruzar a fronteira da transcendência‖ (BENJAMIN, 1984)158, procura assegurar-se dela por desvios como num jogo. A imanência natureza-história que realiza a fatalidade distribuída, entre as configurações do drama, encontra-se também entre as coisas num movimento apaixonado da vida da criatura, introduzindo na ação o ―fatídico adereço cênico (Requisit)‖ (BENJAMIN, 1984)159. Esses objetos constituem a ―agulha sismográfica‖ para medir as vibrações passionais. Nesse espaço, onde ―o sujeito do destino é indeterminado‖ só há configuração e não personagem porque esse ultimo vocábulo sugere a idéia de um sujeito, incompatível com a pressão do destino a que todos igualmente irão se sujeitar. Sem acompanhar exatamente essa ordem, o aparecimento do soberano na cena é para mostrar a possibilidade de salvar o reino, o que ele consegue na total anomia da lei. Com este ato supera a teoria da soberania absolutista e em meio à configuração de personagens sem nenhum sopro de ideal revolucionário ele é o único a exibir o esplendor da dignidade ética (BENJAMIN, 1984)160, ―na medida em que concilia o ato moral ao ato racional‖.(CALLADO, 2006)161 Para isso ele teve que renunciar a sua própria condição transcendente para assumir a condição imanente. Em situação de guerras de religião entre o mesmo povo, o Direito Constitucional ordenava o estado de exceçao: Quem reina já está desde o início destinado a exercer poderes ditatoriais, num estado de exceção quando este é provocado por guerras, revoltas e catastrofes‖ (BENJAMIN, 1984)162, pois aquele principado acreditava que impedir essa catástrofe era a mais importante função do na filosofia estóica. Crispo, Posidônio, Zenão, Boeto o reconheceram como a "causa necessária" de tudo ou a "razão" pela qual o mundo é dirigido. Identificavam-no com a providência (D.L., VII, 149). Os estóicos latinos retomam essa noção e apontam seus reflexos morais (Sêneca, Natur. quaest, II, 36, 45; Marco Aurélio, Memórias, IX, 15). Segundo Plotino, ao destino que domina todas as coisas exteriores só escapa a alma que toma como guia "a razão pura e impassível que lhe pertence de pleno direito", que haure em si, e não no exterior, o princípio de sua própria ação (...). 157 Benjamin, Walter. Origem do drama barroco alemão, trad. apres. e notas de Sergio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 152. 158 Idem, p. 104 159 Idem, p. 155. 160 Idem, Opus cit., p. 111. 161 Tereza de Castro Callado. ―O comportamento ex officio do estadista na teoria da soberania em origem do drama barroco alemão‖ In: Ética e metafísica, Coleção Argentum Nostrun. Fortaleza: EDUECE, 2007. p. 120. 162 Idem, p. 89. 72 Princípe. No entanto essa recomendação do sistema jurídico não conseguia resolver as questões geradas na situação de conflito civil religioso da Reforma. O impasse entre católicos e protestantes só era amenizado com o estado de exceção na alma, quando um monarca apoiado pela concretude do seu corpo rompe a destinaçao mítica ao utilizar-se do estado de exceção em prol da governabilidade. 73 3.3 PODER DIVINO E REVOLUÇÃO A solução de conflitos de forma não violenta nasceria de decisões simples alicerçadas no amor, na simpatia e nas relações de coração. Benjamin se interroga sobre essa possibilidade: ―Será que a solução não - violenta de conflitos é em princípio possível?‖163 O filósofo vai descobrir a resposta longe dos princípios formais do sistema jurídico. A resposta positiva de Benjamin está nas relações primárias entre pessoas, baseadas na confiança, no amor pela paz e em outras qualidades: Sem dúvida. As relações entre pessoas particulares fornecem muitos exemplos. Um acordo não- violento encontra-se em toda parte, onde a cultura do coração deu aos homens meios puros para se entenderem. Aos meios legítimos e ilegítimos de toda espécie – que são, todos, expressão da violência – podem ser confrontados como meios puros os não-violentos. A atenção do coração, a simpatia, o amor pela paz, a confiança e outras 164 qualidades a mais são seu pressuposto subjetivo. (BENJAMIN, 1986) Contudo, Benjamin não vê como meios puros possam ser utilizados para solucionarem questões de conflitos políticos. As questões políticas pressupõem a existência de um contrato e um compromisso. O sistema jurídico sem a violência que o criou entra em colapso, chegando a sua extinção. Por isso, a linguagem165, no sentido mais amplo da palavra, no entendimento, é a área mais própria da solução de conflitos. Segundo o ensaio de Benjamin, o direito apesar de não punir a mentira, teve a preocupação de punir o logro: ―(...) não devido a cogitações morais, mas por causa do medo das ações violentas que o logro poderia desencadear na pessoa lograda. Uma vez que esse medo está em conflito com a própria natureza violenta do direito desde suas origens, tais fins são inadequados aos meios legítimos do direito‖166. O 163 Walter Benjamin. Crítica da violência, crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie. 10.ed. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 168. 164 Idem, p. 168 165 Um exemplo talvez seja a conversa, considerada como uma técnica de mútuo entendimento civil, como proposta por Jürgen Habermas. Jürgen Habermas. Consciência moral e o agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro. 1989. 166 Walter Benjamin. Crítica da violência, crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie.. 10.ed. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 168. 74 direito na tentativa de proibir o logro: ―(...) restringe o uso de meios totalmente nãoviolentos, já que poderiam produzir violência como reação‖ (BENJAMIN, 1986)167. O engano não é um meio violento. Então a justiça, diante da falta da violência, pune com violência a situação que causa a sua decadência, o erro, sem ter sido praticado por questões violentas. Mas o que realmente é temido é a possível reação do enganado. A mesma coisa acontece com o direito de greve. O Estado só aceita o direito à greve porque este retarda as ações violentas dos empregados. Benjamin aponta a greve como um meio puro: ―Essa tendência do direito também contribuiu para a concessão do direito de greve, contraditório aos interesses do Estado. O direito concede (o direito de greve), por inibir ações violentas, as quais (o Estado) teme enfrentar (...) para motivar as pessoas a fazer um acordo pacifico de seus interesses, aquém de toda ordem jurídica, (...) um motivo eficaz que freqüentemente emprega os meios puros.(BENJAMIN. 1986).168 Benjamin observa que na luta de classes ou de nações, as ordens superiores ameaçam a todos, vencedor e vencido, como uma analogia aos que regulam a intenção pacifista, promovendo uma subtração da sensibilidade e da inteligência da maioria das pessoas: (...) na luta de classes ou de nações, porque aqui as ordens superiores, que ameaçam vencer tanto o vencedor quanto o vencido, se subtraem à sensibilidade da maioria e à inteligência de quase todos. (...) seria o motivo mais forte para uma política dos meios puros, aqui levaria longe demais. Por isso só serão apontados aqueles meios puros da política que são análogos aos que regulam a intenção pacifica de pessoas particulares (BENJAMIN, 169 1986) . George-Eugene Sorel, citado por Benjamin no ensaio estudado, define dois tipos de greve como política geral e greve geral revolucionária: ―Aqui, trata-se de caracterizar mais detalhadamente dois tipos essencialmente diferentes de greve, cuja possibilidade já tinha sido cogitada. Cabe a Sorel o mérito de ter estabelecido a primeira distinção entre eles (...)170, contudo, com a primeira, pode haver a construção de uma nova ordem jurídica, mas o Estado não perde a sua força. O poder apenas muda de mãos, quando uma classe privilegiada dá vez a outra classe privilegiada de assumir o poder, mesmo que para isso tenha que lançar mão de artifícios mentirosos em forma de decretos: 167 Ibidem, p. 168. Ibidem, p. 168. 169 Ibidem, p. 168-169. 170 Ibidem, p. 168. 168 75 Sorel opõe à greve geral política a greve geral proletária. (...)Para os partidários da greve geral política, vale o seguinte: ―A base de suas concepções é o fortalecimento do poder* do Estado; em suas organizações atuais, os políticos (...) preparam desde já a instituição de um poder* fortemente centralizado e disciplinado, que não se deixará intimidar pelas críticas da oposição, saberá impor o silêncio e baixará seus decretos mentirosos. ―A greve geral política demonstra como o Estado não perderá nada de sua força, como o poder passa de privilegiados para privilegiados, 171 como a massa dos produtores mudará de donos.‖(BENJAMIN, 1986). A greve geral política não é justa, na verdade ela é um embate pelo poder que passa de um dono a outro dono. Em Origem do Drama Barroco Alemão Benjamin mostra a substituição incessante de príncipes, movida pelo processo conspiratório. Quando o conspirador conseguia a queda do monarca, assumia o seu lugar e a política permanecia da mesma forma. Acompanhando o pensamento de Benjamin de que a história se repete, vamos encontrar no ensaio de Sorel de 1908 Reflexões sobre a violência, uma crítica à realidade do Século XX. Ele observa que só existe uma força contra esse poder tirânico: é a greve geral proletária, que não é violenta. Não vislumbra a volta ao trabalho, mas a transformação do trabalho: Contra essa greve política geral (...), a greve geral proletária se propõe, como única tarefa, a aniquilar o poder do Estado. Ela ―elimina todas as conseqüências ideológicas de qualquer política social possível; seus partidários consideram como burguesas mesmo as reformas mais populares‖. ―Este tipo de greve geral manifesta claramente sua indiferença quanto ao ganho material da conquista, com a declaração de que pretende 172 superar o Estado;‖ (BENJAMIN, 1986) . Na sua concepção e depositando créditos para o estabelecimento desta distinção a Sorel, a greve proletária em certos aspectos é uma greve ou uma manifestação não violenta. Ela deriva do poder divino, é portanto considerada meio puro. A greve geral política se baseia em reflexões políticas carregadas de ideologia de interesses de grupos: Enquanto a primeira forma de parar o trabalho é violenta, uma vez que provoca só uma modificação exterior das condições de trabalho, a segunda, enquanto meio puro é não-violenta. Pois ela não ocorre com a disposição de retomar o trabalho depois de concessões superficiais ou de uma ou outra modificação das condições de trabalho, mas com a resolução da retomar só um trabalho totalmente transformado, não compulsório por parte do Estado, uma subversão, não apenas desencadeada mas levada ao termo por esse tipo de greve. Por isso, o primeiro tipo de greve é instituinte de direito, o 173 segundo, anarquista (BENJAMIN, 1986) . 171 Ibidem, p.169. Ibidem, p.169. 173 Ibidem, p. 169-170. 172 76 De acordo com Sorel, a greve geral política sucumbe a toda possibilidade de poder puro, pois a greve geral política no seu impulso idealista e utópico, deseja sempre uma normatização de seus resultados Uma vez que seus resultados se fixem, se tornarão norma, seja mesmo através de um contrato e assim o sendo, essa greve política pressupõe que haverá a possibilidade de violência quando da execução deste contrato: Sorel recusa para o movimento revolucionário qualquer tipo de programas ou utopias, ou seja, numa palavra: de institucionalizações jurídicas: ―Com a greve geral, desaparecem todas essas belas coisas; a revolução aparece como uma revolta pura e simples, e não há lugares reservados nem para os sociólogos nem para os elegantes amadores de reformas sociais, e nem para os intelectuais que escolheram a profissão de pensar pelo 174 proletariado.‖ (BENJAMIN, 1986) Em alguns momentos é notória a gravidade das greves parciais pois elas assumem muitas vezes o caráter da chantagem: ―...na greve dos médicos (...) se mostra de maneira mais repugnante o uso da violência sem escrúpulos. A crítica benjaminiana julga severamente essa classe profissional por negligenciar a vida de ―maneira premeditada‖, observa Sorel. (BENJAMIN, 1986)175 Um ponto positivo a ser destacado de acordo com o texto repousa na observação à tarefa dos diplomatas, à ―essência de seu trabalho‖ pois sua maneira de agir na solução de conflitos se dá, muitas vezes, através de meios puros: da ―conversa‖, do ―acordo‖, do ―entendimento‖, em que é feita uma analise de cada caso, dirimindo os conflitos entre os países de maneira pontual e de conformidade com as negociações empreendidas. Portanto cabe aos diplomatas esse exercício de poder puro, não violento, muito superior a ―arbitragem‖ - onde na sua imposição haverá a possibilidade de violência coativa de uma das partes envolvidas, provando que em toda esfera de poder como também do poder judiciário, estará sempre presente a latência da violência. Apenas ocasionalmente, a tarefa dos diplomatas, no trato mútuo, consiste na modificação de ordens jurídicas. A essência do seu trabalho consiste – em perfeita analogia com os acordos entre pessoas particulares – em resolver, em nome de seus países, os conflitos, pacificamente, sem contratos caso por caso. Uma tarefa delicada, que é solucionada de maneira mais resoluta pelos tribunais de arbitragem, e no entanto, um método de solução que por principio é superior ao da arbitragem, uma vez 174 175 Ibidem, p. 170. Ibidem, p. 170. 77 que se situa alem de toda ordem jurídica e, portanto além da violência. 176 (BENJAMIN, 1986) . Benjamin considera semelhante ao entendimento entre pessoas particulares a missão dos diplomatas na criação de formulas orientadas a solução de conflitos. Enquanto estes, com ―virtudes próprias‖, interferem nas relações entre os países, o entendimento entre pessoas particulares contribui igualmente para a harmonia em uma esfera restrita. Em vista dessas relações analisadas no espaço público e privado sobre poder e a ação humana de acordo com a história universal, restará sempre a duvida se em algum momento conseguiríamos um dia, amenizar todo e qualquer tipo de violência: Mas como qualquer idéia, qualquer solução imaginável das tarefas humanas – sem falar de uma salvação do círculo compulsório de todas as situações existenciais já ocorridas na historia mundial – é irrealizável, quando se exclui por principio todo e qualquer poder, impõe-se a pergunta se existem outros tipos de poder, alem daqueles focalizados pela teoria do 177 direito (BENJAMIN, 1986) . A história universal deveria ser encarada em primeiro lugar como um desenvolvimento inacabado e contendo lacunas. É o que conclui Benjamin quando revendo a história oficial dividida entre os vencedores e os vencidos, os poderosos e os oprimidos resolve optar pela escrita de uma outra história que possa narrar o que realmente aconteceu sem a interferência mítica que normalmente é traduzida pela empatia178 do historiador com uma determinada época. A decisão benjaminiana de fazer a arqueologia dos fatos históricos para que possa emergir deles a historiografia inconsciente vai servir de estrutura para sua teoria do conhecimento, que deve valorizar os fragmentos de valor dispersos na tradição. Para recuperá-los na construção do presente, é preciso escovar a história a contrapelo (die Geschichte gegen den Strich zu bürsten). Esse método será capaz de detectar aquele tipo de poder que é violência impedindo que ele seja substituído por outro, e assim sucessivamente numa cadeia de violência: O que aconteceria, se esse tipo de poder, dependente do destino e usando meios legítimos, se encontrasse num conflito inconciliável com os fins justos em si, e se, ao mesmo tempo, aparecesse um poder de outro tipo, o qual então, evidentemente, não pudesse ser nem o meio legitimo nem o ilegítimo 176 Ibidem, p. 170. Ibidem, p. 170. 178 Walter Benjamin. Sobre os conceitos da história, Tese 7. In: Magia e técnica, arte política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 225. 177 78 para aqueles fins, mas se relacionaria com os fins não como meio mas como algo diferente? Assim se lançaria luz sobre a experiência singular e em principio desanimadora de que, em ultima instância, é impossível decidir 179 qualquer problema jurídico. (BENJAMIN, 1986) Benjamin não vê nesse problema jurídico a não ser uma aporia que só é possível se mensurar com a violência de tal linguagem e seus transtornos através da evolução histórica. Para Benjamin ―(as) terminologias (são) tentativas mal sucedidas de nomeação em que a intenção tem o peso maior do que a linguagem‖ (BENJAMIN, 1984)180. Dessa citação podemos concluir que as forças míticas se interpõem entre a palavra e o ato de nomear cabendo exclusivamente ao poder divino a possibilidade de uma decidibilidade absoluta: ―quem decide sobre a legitimidade (...) e a justiça (...) não é jamais a razão, mas o poder do destino, e quem decide sobre este é Deus‖.(BENJAMIN, 1986)181 A oposição divina ao mito, e do mito ao divino, vai ocorrer em todas as áreas em que estas relações de poder concentradas na palavra legitimadora da lei se estabeleçam. O exemplo pode ser dado na tragédia de Sófocles: Antígona182. Onde o direito e a obrigação moral se confrontam, provando que a violência mítica provoca tragédias: Se o poder mítico é instituinte do direito o poder divino é destruidor do direito; se aquele estabelece limites, este rebenta todos os limites; se o poder mítico é ao mesmo tempo autor da culpa e da penitência, o poder divino absolve a culpa; se o primeiro é ameaçador e sangrento, o segundo é 183 golpeador e letal, de maneira não-sangrenta (BENJAMIN, 1986). . 179 Walter Benjamin. Crítica da violência, crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie. 10.ed. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 171. 180 Benjamin, Walter. Origem do drama barroco alemão, trad. apres. e notas de Sergio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 59. 181 Walter Benjamin. Crítica da violência, crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 171. 182 No combate às portas de Tebas os irmãos Polinice e Etéocles (filhos de Jocasta e Édipo) caem no campo de batalha, um ferido pela mão do outro. Creonte (o tio que havia usurpado o trono de Tebas) decide distinguir Etéocles como herói da cidade, homenageando-o com os funerais de um guerreiro que morrera defendendo Tebas e castiga a Polinice como traidor, negando-lhe os funerais tradicionais. Decreta ainda a pena de morte contra aquele que ousasse enterrar Polinice, para assegurar-lhe a vida eterna nos Campos Eliseos. Desta forma Creonte cria um conflito existencial para as irmãs de Polinice – Antígona e Ismena -, que segundo a tradição grega devem enterrar os seus mortos segundo um certo ritual. Ambas enfrentam de diferentes maneiras o conflito entre a Lei do Oikos, ou dos deuses, e a lei da Polis ou dos homens: Antígona obedece à primeira lei; Ismena à segunda. – Barbara Freitag. Itinerários de Antígona – A questão da moralidade. Campinas.SP. Papirus. 1992. p. 22. 183 . Walter Benjamin. Crítica da violência, crítica do poder. In: Documentos de cultura documentos de barbárie. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 173. 79 O poder divino diferentemente do poder mítico atinge a todos não privilegiando ninguém na mais imparcial das manifestações, enquanto o poder mítico tende a beneficiar as classes que representa. O poder divino não está restrito a manifestação religiosa ou a manifestações sagradas, ele está presente em todos os segmentos da vida contemporânea, diluído entre as pessoas. O poder divino atua na forma da existência: O poder divino não é testemunhado apenas pela tradição religiosa, mas encontra-se também na vida contemporânea em pelo menos uma manifestação sagrada. O poder educativo em sua forma perfeita, fora da alçada do direito, é uma de suas formas manifestas. (...) Tal extensão do poder puro ou divino sem dúvida provocará, hoje em dia, as mais violentas 184 invectivas (BENJAMIN, 1986) . O poder divino é a Gewalt exercida de forma pura como sendo capaz de analisar as relações humanas, mostrando-lhes caminhos, apontando os erros, e não lhes concedendo limitações. É possível experimentarmos na terra o poder divino? Diz Benjamim que sim quando aponta o poder educativo como uma destas manifestações. A formação (Bildung) de um ideal na construção de uma germanidade sempre levou em consideração na tradição alemã o espaço de um humanismo que deveria reger o espírito de seu povo e da nação. A produção de Walter Benjamin é impregnada desse sentimento. O delineamento e o contorno das suas reflexões estão sempre privilegiando todas as fases da existência, apontando caminhos e saídas para a infância, adolescência, a juventude, o período universitário e a maturidade. Nem mesmo a velhice deixa de ser celebrada pela sabedoria acumulada durante todos os anos. O mais velho ensina ao mais jovem pois ele guarda a experiência que deve ser recepcionada pelo outro como a um modelo. Portanto Benjamin vê no poder divino um fluxo de sabedoria que emana do próprio caráter sagrado da vida em forma de educação. Por se tratar do caráter divino e sagrado da vida o mandamento ―não matarás‖, terá sua aplicação a toda espécie de vida na terra, seja vida animal ou vegetal. Não podendo ser aceita a argumentação de uma lei sagrada para o direito de matar, pois nenhuma lei pode ser tão sagrada e poderosa ao ponto de devolver a própria existência: ―trata-se da tese do caráter sagrado da vida, quer aplicada por eles a toda vida animal quer restrita à vida humana‖ (BENJAMIN, 1986)185. 184 185 Ibidem, p. 173. Ibidem, p. 174. 80 Walter Benjamin prega o aniquilamento do direito mas não da lei, desde que esta não seja usada para a realização do julgamento, mas que seja utilizada como guia para orientar a conduta dos homens. Diferentemente da lei imposta pelo sistema jurídico existem leis da própria existência como a lei que disciplina a revolução, realizada num plano individual. Benjamin aceita esse tipo de lei, mesmo porque sendo judeu precisa conhecer as leis da Halacha (o manuscrito originário das leis dadas por Deus aos homens) e de reatualizá-las na Hagada.186 Dessa forma Benjamin vê como lei suprema a da existência, que deve ser amparada pela justiça em todos os seus aspectos. Por isso a afirmação de que a existência teria valor maior que a existência justa não poderá ser considerada, pois o que seria a vida sem a justiça? Temos o exemplo disso na construção histórica da história dos vencidos: ―é falsa e vil a afirmação de que a existência teria um valor mais alto que a existência justa, quando se toma ―existência‖ apenas no sentido da ―mera vida‖ – e é esse o sentido do termo na referida reflexão.‖ (BENJAMIN, 1986)187 O corpo do homem representa sua vida terrena, que precisa ser preenchida de sentido, na medida em que a vida vegetativa que representa também a vida das plantas e dos animais, precisa ser superada na sua condição de mera vida, devendo por isso a existência ser contemplada com a vida justa. A vida justa é a vida integrada na comunidade, compartilhada com o outro, socializada e reconhecida. É o que Aristóteles chamaria bios, em oposição à zoé. Vida significa vida política, qualificada. Por outro lado para Benjamin valeria a pena investigar o dogma do caráter sagrado da vida, pois por se tratar de um dogma esse caráter sagrado não está isento de suas raízes míticas. Sem dúvida, valeria a pena investigar o dogma do caráter sagrado da vida. Talvez, ou mesmo provavelmente, esse dogma seja recente, o último erro da enfraquecida tradição ocidental de procurar na impenetrabilidade cosmológica o sagrado que ela perdeu. (...) finalmente é significativo que a qualificação de sagrado recaia sobre algo que, segundo o antigo pensamento mítico, é marcado para ser portado da culpa da mera vida 188 (BENJAMIN, 1986) . Esse dogma, estabelecido de acordo com a vontade do poder mítico do direito na sua realização como poder, terá sua força e obediência ao mito do direito e suas formas, de maneira dependente e quando estas se renovam ou se revoltam 186 Jeanne Marie Gagnebin. Prefácio de Magia e técnica arte e política. opus cit. p. 17. Ibidem, p. 174. 188 Ibidem, p. 174. 187 81 poderão ter a pretensão de destruir o próprio direito, gerando uma nova e conseqüente explosão de poder, destruindo o poder estabelecido e mudando a história para mais uma vez estabelecer outro direito: ―A ruptura dessa trajetória, que obedece a formas míticas de direito, a destituição de direito e dos poderes dos quais depende (como eles dependem dele), em ultima instância, a destituição do poder do Estado, fundamenta uma nova era histórica‖. (BENJAMIN, 1986)189. Mas esse percurso de poderes legitimados pelo direito pode ser rompido. Pelo menos Benjamin acredita nessa possibilidade. A dominação do poder mítico que perpetua a violência será quebrada com a manifestação do poder puro através do poder revolucionário e messiânico, que liberta o homem do mito, na medida em que abre a possibilidade de permanência do poder divino: Se a dominação do mito em alguns pontos já foi rompida, na atualidade, o Novo não se situa num ponto de fuga tão inconcebivelmente longínquo, que uma palavra contra o direito seja supérflua. Se a existência do poder, enquanto poder puro e imediato, é garantida, também além do direito, fica provada a possibilidade do poder revolucionário, termo pelo qual deve ser designada a mais alta manifestação do poder puro, por parte do homem 190 (BENJAMIN, 1986) . O poder puro ou poder divino é o único que pode dispor das formas eternas e puras das quais o poder mítico se apoderou para transformar em instrumento de violência, como o poder de julgar: A manifestação do poder divino se realiza entre os homens através de sua frágil força messiânica que infere na construção de uma humanidade redimida. Essa remissão se dá quando o passado oprimido lançando um apelo ao presente é recepcionado por este, que reconhece a história dos vencidos, para fazer-lhes justiça: ―o puro poder divino dispõe de todas as formas eternas que o mito transformou em bastardos do direito. O poder divino pode aparecer tanto na guerra verdadeira quanto no juízo divino da multidão sobre o criminoso‖.(BENJAMIN, 1986)191. Portanto o poder mítico e o poder puro são duas forças antagônicas em todos os aspectos: Deve ser rejeitado, porem, todo poder mítico, o poder instituinte do direito, que pode ser chamado de poder que o homem põe (schaltende Gewalt). Igualmente vil é também o poder mantenedor do direito, o poder administrado (verwaltete Gewalt) que lhe serve. O poder divino, que é insígnia e chancela, jamais um meio de execução sagrada, pode ser 189 Ibidem, p. 175. Ibidem, p. 175. 191 Ibidem, p. 175. 190 82 chamado de um poder de que Deus dispõe (waltende Gewalt) (BENJAMIN, 192 1986) . O poder divino não pretende jamais ser uma execução sagrada, ou uma forma de julgar o homem e suas ações, o poder divino é o poder dado por Deus para a absolvição da culpa. Para sua remissão este poder propõe a educação, pois somente através da educação o homem pode libertar-se do elemento mítico, que exige o sacrifício pelo sangue para a purificação do pecado. O sangue continua na tradição sendo o símbolo da absolvição: Pois sangue é o símbolo da pura vida. O desencadeamento do poder jurídico remonta – o que não se pode mostrar aqui de maneira mais detalhada – ao processo de culpa da vida pura e natural, o qual entrega o ser humano inocente e infeliz à penitência, com a qual expia sua culpa – e também absolve o culpado, não de uma culpa, mas do direito. Pois com a vida termina a dominação do direito sobre os vivos. O poder mítico é o poder sangrento sobre a vida, sendo esse poder o seu fim próprio, ao passo que o poder divino é o poder puro sobre a vida toda, sendo a vida o seu fim. O primeiro poder exige sacrifícios, o segundo poder os aceita (BENJAMIN, 193 1986) . O sangue visto como um instrumento divino de purificação da culpa é uma forma de distanciar o estigma do poder-violência para deixar passar a redenção, que no Drama Barroco é conseguida com o sacrifício do mártir. Essa é a visão dialética que Benjamin aprende com a teologia medieval como última instancia de sentido do símbolo, contra o qual Benjamin propõe a riqueza de significações da alegoria. O poder mítico só concebe um sentido, o do arquétipo, nisso consiste a violência da norma ao querer nivelar o comportamento. O poder mítico realiza essa violência aos infratores da norma, exigindo sacrifícios enquanto que o poder divino absolve a própria culpa, sendo, portanto um poder libertador. Nem a manifestação mítica do poder imediato e nem qualquer poder jurídico pode abrir novas perspectivas ou mais puras. Estas são forças paliativas incapazes de satisfazer as necessidades para as quais foram idealizadas. A dialética vida e morte compreendida teologicamente é uma visão extrema para aquisição do sentido. É nesse ponto que a teoria da soberania de Benjamin tem a ensinar ao teor inovador da revolução concebida por Sorel. Tanto Benjamin com Sorel recusam para o movimento revolucionário qualquer tipo de ―programas e utopias‖, isto é, de ―institucionalizações jurídicas‖. Mas para Benjamin a revolução não tem o caráter anárquico, ela acontece numa superfície 192 193 Ibidem, p. 175. Ibidem, p. 173. 83 que só pode ser compreendida pelo estado de exceção. É assim que Benjamin no texto O Surrealismo publicado logo depois de Origem do Drama Barroco Alemão complementa a teorização para a ação política iniciada no Trauerspielbuch. Ali o conceito de revolução assume uma dimensão particular interior sedimentada passo a passo pela educação, experiência e sabedoria. É com ―essas armas‖ que o soberano barroco, negando a legitimidade do Direito Constitucional da época instaura o estado de exceção na medida em que recorre ao meio puro para alcançar a absolvição para o ato infrator. 84 CONCLUSÃO O jovem Benjamin viveu em uma época conturbada pela instabilidade política e econômicas criadas pelo surgimento recente da frágil República de Weimar devido às constantes e sucessivas disputas pelo poder, pelas pesadas condições de reparação de guerra impostas pelo Tratado de Versalhes, pela perda dos Territórios, pelo descontrole inflacionário e a expansão do Nacional Socialismo como uma tentativa de unificação e criação do Mito da Grande Alemanha. Walter Benjamin como que em uma premonição do que aconteceria na Alemanha 12 anos depois escreve a ―Critica da violência, critica do poder‖, onde observa na ambivalência da palavra germânica ―Gewalt‖, os significados de Violência e Poder, e sugere que os conceitos de poder e violência nas manifestações míticas do poder totalitário estão sempre juntos. Ao criticar as formas de instituição do poder nesta obra, Walter Benjamin destaca que a violência é ao mesmo tempo instituidora de direito e também sua mantenedora, podendo ser detectadas duas formas de Poder, o poder mítico e o poder divino. Benjamin ainda abre espaço para a possibilidade da criação de novas manifestações de poder além das duas acima citadas. O poder mítico mantém uma relação com o Poder Autoritário enquanto o poder divino sugere a educação, que se cumpre na existência do homem. De acordo com esse pensamento, quando se exerce o poder de forma divina, o governante exerce a soberania em sua plenitude, isto é de forma democrática, mas quando se exerce o poder de forma mítica o estadista passa a ser tirano. De acordo com Benjamin, a instituição jurídica tem sempre latente a violência (Gewalt), uma vez que nesta latência, presentifica-se a força da lei, que se traduz na sua aplicação e eficácia, na sua legitimação, pois a violência (Gewalt) da lei como força coerciva é legitima. Se não fosse assim a história oficial (derivada da tradição historicista que Benjamin quer superar com o conceito de historiografia) não teria criado os conceitos de história dos vencedores e dos vencidos, que segrega pela força. 85 O estilo escolhido por Benjamin – a crítica - permite a realização de uma avaliação do mérito estético, lógico, intelectual e moral da Violência e do Poder. Ele logo aprendeu de seus contemporâneos que a crítica de arte era uma forma de reflexão. No estilo kantiano das antinomias a crítica começa fazendo uma comparação com o direito natural e o direito positivo. Não se constitui um erro para o direito natural o uso da violência para fins justos. Esta é a lei do mais forte ou a praticada por todos os seres vivos. A violência no poder natural é um tipo de matéria prima com o qual o direito natural é feito. Portanto, a compreensão do uso da violência no direito natural passa exclusivamente pelo estudo dos meios, pois a violência é um meio para fins justos. O ponto oposto do direito natural é o direito positivo que é um direito criado historicamente e não aceita a concepção de padrão social no qual a justiça deva ser baseada. Isto não permite que o direito positivo possa justificar a violência para realizar fins justos. Posto esta diferença estas duas escolas do direito concordam no entanto que fins justos podem ser obtidos por meios justos, meios justos podem ser empregados para fins justos. Com base nos exemplos que o historicismo oferece trazendo à tona a marcha do poder Benjamin parece propor a construção de um outro conceito de história. Benjamin chama a atenção para o fato de que a humanidade tem a sua história contada somente parcialmente, isto é contada pelos vencedores, o que pode inviabilizar qualquer tentativa de realização de justiça. Uma análise parcial da história gera altos e baixos na configuração das forças instituintes e mantenedoras do direito. Com a sublevação o que aconteceu nas guerras civis religiosas do absolutismo seiscentista, após o enfraquecimento dos meios mantenedores do poder do tirano outro poder será gerado o daquele que através da conspiração provocou a queda do soberano para usurpar-lhe o trono o que significa que não haverá direito duradouro quando este for construído sobre os interesses das necessidades do poder dos homens, pois estes sempre levam a violência a seus atos. A maior manifestação de poder dos homens que não constitui violência é o poder revolucionário que é a mais alta concretização do poder puro advindo de Deus. A manutenção de certas ordens sociais exige uma determinada força para legitimar governos de uma minoria, enquanto a violência implica na destruição desta 86 ordem. Esta minoria tem agido assim desde muito tempo, contudo o proletariado começou a reagir contra a minoria de classe média e contra o Estado instituído pela violência. A justiça autêntica só será vivenciada com a construção do poder alicerçado no amor, no olhar sobre o homem e sua história de acordo com a lógica divina da criação, onde existe um estado de graça. A crítica de Benjamin deve ser vista muito mais como uma tentativa de destruição de uma ordem legal, do que como um questionamento do status quo da lei na atualidade, tanto que Santo Tomás nos Escritos políticos já dizia que ―há leis que não servem para os homens e que as leis humanas deveriam ser propostas no singular‖. Tanto no poder positivo quanto no natural os fins justos são encontrados de acordo com o equilíbrio entre meios e fins. O poder mítico é baseado na falsa premissa de que fins justos podem compor um direito universal possível. Contra essa idéia mítica o crítico tenta denunciar as forças do poder de polícia e do poder virtual dos parlamentos. O poder de polícia é descrito como uma grande violência contra o povo por ser capaz de justificar intervenções grosseiras e investir cegamente nas áreas mais vulneráveis, exercendo o poder de baixar pequenos decretos quando julgar necessário. O poder divino é o único poder não violento, dispondo da condição de absolver o homem da culpa. Deus é o único que pode decidir sobre a legitimidade dos meios e a justiça dos fins sem ser violento. É a racionalidade que existe no poder divino que decide. O poder divino não é sentido somente pelas religiões, mas também no poder educativo. O poder educativo em sua forma perfeita é uma expressão do poder divino fora da alçada do direito. A educação é uma forma de poder criar uma nova realidade humana e não violenta, sem obrigatoriamente ter uma participação direta de Deus. Diante do exposto o próprio Benjamin questiona se é possível encontrar uma solução não violenta para os conflitos entre os homens. A resposta a esta pergunta está além dos princípios formais do direito que sempre se caracterizam como violentos. A resposta positiva de Benjamin encontra-se nas relações primárias entre pessoas onde ele vê a possibilidade de solucionar problemas sem recorrer 87 obrigatoriamente a meios violentos. Os pilares das soluções não violentas são apontados por Benjamin como sendo a atenção do coração, a simpatia, o amor pela paz, a confiança e outras qualidades. Isto é, existe uma esfera de entendimento humano, não- violenta, a esfera propriamente dita do "entendimento", a linguagem. Existe também emanando do poder divino um poder puro que pode propiciar a revolução onde Benjamin reconhece o direito de greve. Todavia, revolução tem também um sentido específico para Benjamin. Diferentemente de Karl Max, Benjamin desenvolve um conceito de revolução equacionado pela educação. Tratase da revolução que se dá na esfera da interioridade. Revolução para Benjamin antes de constituir um complexo de forças articuladas a se manifestar de forma ostensiva, por armas, se dá mais de maneira disciplinada pela educação e pelo conhecimento acatado por cada um e processado com fins de emancipação. Benjamim propõe a construção de uma formação política sob o prisma do estabelecimento do ‗estado de exceção’, a partir da emancipação das ciências, e da mediação da filosofia na tradição. Ele registra a destruição do ethos histórico, a perda da experiência e o empobrecimento da tradição. Este processo tem como conseqüência a observação das metamorfoses heróicas a que a consciência burguesa teve que se submeter. É nesse sentido que Benjamin denuncia através da alegorização, as patogêneses da hierarquia burguesa no seu interior como a ascensão do nazismo. E como resposta ao estado de exceção de Hitler ele propõe um verdadeiro ‗estado de exceção’, rompendo com as forças míticas presentes no sistema jurídico alemão. Reflete sobre a barbárie com a qual o mundo foi assombrado. Esse espanto, diferentemente daquele que levou os primeiros filósofos a se interrogarem sobre o cosmos, não gera nenhum conhecimento filosófico, a não ser a indignação com a certeza de que esta concepção de história da qual dispomos não se sustenta, uma vez que não possui validade para a construção humana. Benjamin denuncia a perda da dimensão humana e do patrimônio cultural, que cortou o vínculo do homem com a experiência, que lhe permitia assumir o compromisso com a ação política na realização da consciência história, emergida das forças do inconsciente. Contra a violência do poder mítico a construção do estado de exceção verdadeiro é muito mais decisiva do que se mostrou a primeira vista, trata-se de uma revolução de tudo que nos rodeia, de todo nosso modo de pensar e agir. Pois a ação humana também é estado de exceção aberto na alma do 88 homem que se torna justo. Somente através da restauração do ethos histórico pela experiência, boa vontade e presença de espírito, poderemos libertar o futuro da sua forma presente desfigurada. O questionamento sobre as categorias filosóficas existentes no estado de exceção analisado por Benjamin contra as categorias filosóficas estruturadas sobre o poder da ação humana se justifica quando levamos em consideração que todas estas ações colocam em risco exatamente aquilo que a filosofia se propõe a clarificar e proteger, que é o direito de existir. Benjamin não exclui. Antes agrega junta, compartilha, compõe seu mosaico filosófico. Seu método é o do desvio, do caminho indireto na busca de peças que se completem, não em uma aglutinação, mas na justaposição. A percepção filosófica de Benjamin ensina a cada um a construir com pouco para formar o mais à maneira da criança. 89 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de Filosofia. Trad. 1. Ed. de Alfredo Bosi, 5.ed. rev. e ampl. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 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Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche. Podemos imaginar uma contrapartida filosófica desse mecanismo. O fantoche chamado ―materialismo histórico‖ ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje, ela é reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se. Tese 2 ―Entre os atributos mais surpreendentes da alma humana‖, diz Lotze, ―está, ao lado de tanto egoísmo individual, uma ausência geral de inveja de cada presente com relação a seu futuro‖. Essa reflexão conduz-nos a pensar que nossa imagem da felicidade é totalmente marcada pela época que nos foi atribuída pelo curso da nossa existência. A felicidade capaz de suscitar nossa inveja está toda, inteira, no ar que já respiramos, nos homens com os quais poderíamos ter conversado, nas mulheres que poderíamos ter possuído. Em outras palavras, a imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à da salvação. O mesmo ocorre com a imagem do passado, que a história transforma em coisa sua. O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso. Tese 3 O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada 95 momento vivido transforma-se numa citation à l‘ordre du jour — e esse dia é justamente o do juízo final. Tese 4 ―Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário, e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo". Hegel, 1807 A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas. Tese 5 A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. ―A verdade nunca nos escapará‖ — essa frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto exato em que o historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela. Tese 6 Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ―como ele de fato foi‖. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. 96 Tese 7 ―Pensa na escuridão e no grande frio Que reinam nesse vale, onde soam lamentos.‖ Brecht, Ópera dos três vinténs Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressuscitar uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. Impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua origem é a inércia do coração, a acedia, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a acedia era o primeiro fundamento da tristeza. Flaubert, que a conhecia, escreveu: ―Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage‖. A natureza dessa tristeza se tomará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. Tese 8 A tradição dos oprimidos nos ensina que o ―estado de exceção‖ em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no séculos XX ―ainda‖ sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável. 97 Tese 9 ―Minhas asas estão prontas para o vôo, Se pudesse, eu retrocederia Pois eu seria menos feliz Se permanecesse imerso no tempo vivo." Gerhard Scholem, Saudação do anjo Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prendese em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. Tese 10 Os temas que as regras do claustro impunham à meditação dos monges tinham como função desviá-los do mundo e das suas pompas. Nossas reflexões partem de uma preocupação semelhante. Neste momento, em que os políticos nos quais os adversários do fascismo tinham depositado as suas esperanças jazem por terra e agravam sua derrota com a traição à sua própria causa, temos que arrancar a política das malhas do mundo profano, em que ela havia sido enredado por aqueles traidores. Nosso ponto de partida é a idéia de que a obtusa fé no progresso desses políticos, sua confiança no ―apoio das massas‖ e, finalmente, sua subordinação servil a um aparelho incontrolável são três aspectos da mesma realidade. Estas reflexões tentam mostrar como é alto o preço que nossos hábitos mentais têm que pagar quando nos associamos a uma concepção da história que recusa toda cumplicidade com aquela à qual continuam aderindo esses políticos. Tese 11 O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas idéias econômicas. E uma das causas do seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava uma grande conquista política. A antiga moral protestante do trabalho, secularizada, festejava uma ressurreição na classe trabalhadora alemã. O Programa de Gotha já continha elementos dessa confusão. Nele, o trabalho é definido como ―a fonte de toda riqueza e de toda civilização‖. Pressentindo o pior, Marx replicou que o homem que não possui outra propriedade que a sua força de trabalho está condenado a ser ―o escravo de outros homens, que 98 se tornaram... proprietários‖. Apesar disso, a confusão continuou a propagar-se, e pouco depois Josef Dietzgen anunciava: ―O trabalho é o Redentor dos tempos modernos... No aperfeiçoamento... do trabalho reside a riqueza, que agora pode realizar o que não foi realizado por nenhum salvador‖. Esse conceito de trabalho, típico do marxismo vulgar, não examina a questão de como seus produtos podem beneficiar trabalhadores que deles não dispõem. Seu interesse se dirige apenas aos progressos na dominação da natureza, e não aos retrocessos na organização da sociedade. Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo. Entre eles, figura uma concepção da natureza que contrasta sinistramente com as utopias socialistas anteriores a março de 1848. O trabalho, como agora compreendido, visa uma exploração da natureza, comparada, com ingênua complacência, à exploração do proletariado. Ao lado dessa concepção positivista, as fantasias de um Fourier, tão ridicularizadas, revelam-se surpreendentemente razoáveis. Segundo Fourier, o trabalho social bem organizado teria entre seus efeitos que quatro luas ilumina-riam a noite, que o gelo se retiraria dos pólos, que a água marinha deixaria de ser salgada e que os animais predatórios entrariam a serviço do homem. Essas fantasias ilustram um tipo de trabalho que, longe de explorar a natureza, libera as criações que dormem, como virtualidades, em seu ventre. Ao conceito corrompido de trabalho corresponde o conceito complementar de uma natureza, que segundo Dietzgen, ―está ali, grátis‖. Tese 12 ―Precisamos da história, mas não como precisam dela os ociosos que passeiam no jardim da ciência.‖ Nietzsche, Vantagens e desvantagens da história para a vida O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida. Em Marx, ela aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora que consuma a tarefa de libertação em nome das gerações de derrotados. Essa consciência, reativada durante algum tempo no movimento espartaquista, foi sempre inaceitável para a social-democracia. Em três decênios, ela quase conseguiu extinguir o nome de Blanqui, cujo eco abalara o século passado. Preferiu atribuir à classe operária o papel de salvar gerações futuras. Com isso, ela a privou das suas melhores forças. A classe operária desa-prendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Porque um e outro se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não dos descendentes liberados. Tese 13 “Nossa causa está cada dia mais clara e o povo cada dia mais esclarecido.” Josef Dietzgen, Filosofia social-democrata A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo os social-democratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites, idéia correspondente à da perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória em flecha ou em espiral. Cada 99 um desses atributos é controvertido e poderia ser criticado. Mas, para ser rigorosa, a crítica precisa ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da idéia do progresso tem como pressuposto a crítica da idéia dessa marcha. Tese 14 ―A Origem é o Alvo.‖ Karl Kraus, Palavras em verso A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ―agoras‖. Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de ―agoras‖, que ele fez explodir do continuum da história. A Revolução Francesa se via como uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário antigo. A moda tem um faro para o atual, onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado. Somente, ele se dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o livre céu da história, é o salto dialético da Revolução, como o concebeu Marx. Tese 15 A consciência de fazer explodir o continuum da história é própria às classes revolucionárias no momento da ação. A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa um novo calendário funciona como um acelerador histórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias da reminiscência. Assim, os calendários não marcam o tempo do mesmo modo que os relógios. Eles são monumentos de uma consciência histórica da qual não parece mais haver na Europa, há cem anos, o mínimo vestígio. A Revolução de julho registrou ainda um incidente em que essa consciência se manifestou. Terminado o primeiro dia de combate, verificou-se que em vários bairros de Paris, independentes uns dos outros e na mesma hora, foram disparados tiros contra os relógios localizados nas torres. Uma testemunha ocular, que talvez deva à rima a sua intuição profética, escreveu: ―Qui le croirait! on dit qu‘irrités contre l‘heure De nouveaux Josués, au pied de chaque tour, Tiraient sur les cadrans pour arrêter le jour.‖ Tese 16 O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas pára no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O historicista apresenta a imagem ―eterna‖ do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz ―era uma vez‖. Ele fica senhor das suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história. 100 Tese 17 O historicismo culmina legitimamente na história universal. Em seu método, a historiografia materialista se distancia dela talvez mais radicalmente que de qualquer outra. A história universal não tem qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio. Ao contrário, a historiografia marxista tem em sua base um princípio construtivo. Pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento pára, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido. Ele aproveita essa oportunidade para extrair uma época determinada do curso homogêneo da história; do mesmo modo, ele extrai da época uma vida deter-minada e, da obra composta durante essa vida, uma obra determinada. Seu método resulta em que na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico são preservados e transcendidos. O fruto nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas, mas insípidas. Tese 18 ―Comparados com a história da vida orgânica na Terra‖, diz um biólogo contemporâneo, ―os míseros 50 000 anos do Homo sapiens representam algo como dois segundos ao fim de um dia de 24 horas, Por essa escala, toda a história da humanidade civilizada preencheria um quinto do último segundo da última hora.‖ O ―agora‖, que como modelo do messiânico abrevia num resumo incomensurável a história de toda a humanidade, coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela história humana.