UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE CIÊNCIAS DA RELIGIÃO RAIMUNDO LÚLIO E AS MISSÕES CRISTÃS AOS MUÇULMANOS por Raimundo Monteiro Montenegro Neto São Paulo 2010 2 RAIMUNDO MONTEIRO MONTENEGRO NETO RAIMUNDO LÚLIO E AS MISSÕES CRISTÃS AOS MUÇULMANOS Dissertação apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de PósGraduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie para a obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Edson Pereira Lopes. São Paulo 2010 3 M777c Montenegro Neto, Raimundo Monteiro Raimundo Lúlio e as missões cristãs aos muçulmanos / Raimundo Monteiro Montenegro Neto - 2010. 114 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2010. Bibliografia: f. 108-114. 1. Missões 2. Muçulmanos 3. diálogo inter-religioso 4. Cruzadas I. Lúcio, Raimundo II. Título LC BV2070 CDD 266 4 Aprovado em ___ / ___ / ___ BANCA EXAMINADORA _________________________________________________________________ Prof. Dr. Edson Pereira Lopes Universidade Presbiteriana Mackenzie _________________________________________________________________ Prof. Dr. Antônio Máspoli de Araújo Gomes Universidade Presbiteriana Mackenzie _________________________________________________________________ Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva Universidade Metodista de São Paulo 5 “[...] torna a tua vontade obediente a teu entendimento” (Lúlio, 2007, p. 101) 6 DEDICATÓRIA Esta pesquisa é dedicada aos membros da minha família, à minha esposa Veridiana, e aos meus filhos, Ester, David, Arthur e Felipe Montenegro, os quais têm experimentado e compartilhado comigo muitos dos mesmos sonhos que havia em Raimundo Lúlio e têm sido bastante compreensivos com as minhas ausências, em virtude das exigências próprias que a conclusão de um projeto de pesquisa de mestrado requerem. 7 AGRADECIMENTOS Embora várias pessoas tenham cooperado para o desenvolvimento desta pesquisa, destaco aqui os meus agradecimentos àqueles que tiveram participação significativa na restauração e no progresso das minhas pesquisas acadêmicas recentes através da Escola Superior de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Estas pessoas foram: o prof. Dr. Rev. Antônio José do Nascimento Filho, que sempre me incentivou a prosseguir com as pesquisas sobre Raimundo Lúlio; o prof. Ms. Esteve Jaulent, que tem dispensado atenção e esclarecimentos a mim sobre as obras de Raimundo Lúlio; o prof. Dr. Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa, que me incentivou a buscar a validação do curso de Teologia; o prof. Dr. João Baptista Borges Pereira, que em suas aulas acabou por me ressaltar a riqueza e a beleza da contribuição da antropologia para o estudo religioso; e por fim, o prof. Dr. Rev. Edson Pereira Lopes, que tanto cooperou para o desenvolvimento desta pesquisa, frente às minhas deficiências metodológicas e com os seus estímulos. 8 RESUMO MONTENEGRO NETO, R. M. – Raimundo Lúlio e as missões cristãs aos muçulmanos. Dissertação de Mestrado de Ciências da Religião. Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2010. Raimundo Lúlio, um cidadão catalão do séc. XIII, desenvolveu um projeto teóricoprático de missões (missiologia luliana) baseado em um vasto trabalho filosófico, literário e apologético em prol da cristianização do mundo a ser alcançada por intermédio da argumentação e demonstração racional da superioridade da fé cristã católica sobre as demais religiões. A missiologia luliana implicava primordialmente a conversão dos adeptos de outras religiões ao cristianismo, especialmente os muçulmanos, mas também incluía a restauração da cristandade através da educação nos seus próprios valores. As tensões entre cristãos e muçulmanos eram grandes nos dias de Lúlio e ainda hoje as missões cristãs aos islâmicos continua sendo um grande desafio. A falta de um diálogo franco e de um debate objetivo de idéias que tenham mútuos respeito, audição e conhecimento ainda têm marcado a relação entre os seguidores de Cristo e os de Maomé. A missiologia luliana buscou, no âmbito dos limites dos seus dias, vencer estas resistências através do diálogo e da alteridade e é aqui apresentada como um paradigma histórico relevante para a realização contemporânea de missões cristãs aos muçulmanos. O reconhecimento daquele distante cenário medieval é necessário para o devido entendimento das polêmicas e críticas à missiologia luliana, assim como para o reconhecimento da sua natureza vanguardista, como se busca demonstrar nesta pesquisa. PALAVRAS-CHAVE Raimundo Lúlio; missões aos muçulmanos; diálogo inter-religioso; cruzadas; e cristandade. 9 ABSTRACT MONTENEGRO NETO, R. M. – Raymond Lully and the Christian Missions to the Muslims. Dissertation for Master of Science of Religion, Mackenzie Presbyterian University. São Paulo, 2010. Raymond Lully, a citizen of the thirteenth century, developed a missions’ theory which he put into practice, in here called Lullyany Missiology. His theory was based on a vast philosophic, literary and apologetic work sympathetic to the Christianization of the world. According to Lully, the people would be reached by the argumentation and demonstration of the superiority of the Catholic Christian faith above all others religions. Lullyany Missiology focused primarily on the conversion from other religions’ people to Christianity, especially Muslims. It also included the restoration of Christianity through educating the people in their own values. During the days of Lully, there were many great conflicts between Christians and Muslims; much like the today’s Christian Missions to the Muslims continue to provide challenges. The lack of true dialog and objective debate of ideas that has a mutual respect, audition and knowledge still marks the relationship between the followers of Christ and Mohammad. Lullyany Missiology sought to win the resistance through dialog and appreciation on the ambit and limitations of her days. It is presented here as an historic paradigm relevant to the realization of contemporary Christian Missions to the Muslims. The knowledge of that distant medieval scenery is necessary for the understanding of polemics and criticism to the Lullyany Missiology, as is the acknowledgement of the vanguard nature in the pursuit to demonstrate the next research. KEY WORDS Raymond Lully; Missions to the Muslims; Interreligious Dialogue; Crusades; and e Christianity. 10 SUMÁRIO Sumário .............................................................................................................................. 10 Introdução ........................................................................................................................... 12 1. O contexto das missões cristãs aos muçulmanos ........................................................... 21 1.1. Cronologia geral da época de Raimundo Lúlio ........................................................... 21 1.2. Missões cristãs na Idade Média ................................................................................... 28 1.2.1 Missões medievais: a catolicização do mundo .......................................................... 28 1.2.2 O mau exemplo histórico da perda dos mongóis....................................................... 30 1.2.3 As condições religiosas do mundo medieval ............................................................ 31 1.2.4 A preocupação de Lúlio com a resposta da Igreja ..................................................... 32 1.3. A tensão entre cristãos e muçulmanos ........................................................................ 34 1.3.1 O surgimento do Islã e a sua relação com os cristãos ............................................... 34 1.3.2 A reação cristã à expansão islâmica .......................................................................... 36 1.3.3 A tensão entre cristãos e muçulmanos na Europa ..................................................... 38 1.3.4 A situação mais específica na Espanha de Lúlio ....................................................... 39 1.4 Missões que influenciaram Raimundo Lúlio ................................................................ 41 1.4.1 As primeiras missões cristãs aos muçulmanos .......................................................... 42 1.4.2 A influência das ordens missionárias ........................................................................ 43 1.4.3. A identificação com o cristianismo institucional ..................................................... 46 1.4.4 A influência de outros Raimundos em Lúlio ............................................................. 47 2. A missiologia luliana, teoria e prática de Raimundo Lúlio ............................................ 50 2.1. A biografia missionária de Raimundo Lúlio ............................................................... 50 2.1.1 Apresentação sucinta de Raimundo Lúlio ................................................................. 51 2.1.2 A vida inicial de Raimundo Lúlio ............................................................................. 51 2.1.3 A conversão e o chamado de Raimundo Lúlio .......................................................... 52 2.1.4 O preparo missionário de Raimundo Lúlio ............................................................... 53 2.1.5 A vida missionária de Raimundo Lúlio ..................................................................... 54 2.1.6 Raimundo Lúlio, missionário até a morte ................................................................. 54 2.1.7 Dialogando com a biografia missionária de Raimundo Lúlio ................................... 55 2.2. A visão missionária de Raimundo Lúlio ..................................................................... 56 2.2.1 O ideal de Raimundo Lúlio ....................................................................................... 57 2.2.2 O desconforto de Raimundo Lúlio ............................................................................ 58 2.2.3 A proposta missionária de Raimundo Lúlio .............................................................. 60 11 2.2.4 Dialogando com a visão missionária de Raimundo Lúlio ......................................... 63 2.3. As letras na missão de Raimundo Lúlio ...................................................................... 64 2.3.1 As letras a serviço da evangelização ......................................................................... 65 2.3.2 As letras para a glória de Deus .................................................................................. 67 2.3.3 Dialogando com as letras de Raimundo Lúlio .......................................................... 68 2.4. O zelo missionário de Raimundo Lúlio ....................................................................... 69 2.4.1 Os valores morais de Raimundo Lúlio ...................................................................... 70 2.4.2 Missões como expressões da fé cristã ....................................................................... 71 2.4.3 Dialogando com o zelo missionário de Raimundo Lúlio .......................................... 74 3. Debatendo cruzada e missão em Raimundo Lúlio ......................................................... 77 3.1. As cruzadas cristãs e os muçulmanos .......................................................................... 77 3.1.1 A origem das cruzadas .............................................................................................. 79 3.1.2 A natureza das cruzadas ............................................................................................ 80 3.1.3 As conseqüências das cruzadas ................................................................................. 81 3.1.4 As cruzadas para os muçulmanos .............................................................................. 83 3.2. As cruzadas para Raimundo Lúlio .............................................................................. 85 3.2.1 A natureza militar das cruzadas para Lúlio ............................................................... 85 3.2.2 A natureza missionária das cruzadas para Lúlio ....................................................... 89 3.3. O diálogo inter-religioso em Raimundo Lúlio ............................................................ 93 3.3.1 Em diálogo e resposta à filosofia islâmica ................................................................ 94 3.3.2 Princípios de alteridade em Raimundo Lúlio ............................................................ 96 3.3.3 Uma proposta de missões com alteridade ................................................................. 99 3.3.4 Uma proposta de escolas missionárias .................................................................... 100 Considerações Finais ........................................................................................................ 102 Referência Bibliográfica ................................................................................................... 108 12 INTRODUÇÃO A presente pesquisa tem como foco estimular e produzir uma reflexão teórica sobre a atuação missionária cristã aos muçulmanos, tendo como paradigma histórico a missiologia luliana, ou seja, o projeto teórico e a subseqüente prática missionária decorrente desenvolvida pelo catalão Ramon Llull (forma original catalã do nome do personagem histórico em estudo; contudo, na presente pesquisa dá-se a preferência pela forma aportuguesada do seu nome, Raimundo Lúlio). Lúlio viveu entre os séculos XIII e XIV, em pleno período medieval marcado por diversos e intensos conflitos religiosos, especialmente entre cristãos e muçulmanos, que disputavam terras não apenas no continente europeu, acentuadamente na península ibérica, mas também na região do Oriente Médio conhecida como Terra Santa. Tais tensões geográfico-religiosas foram vivenciadas intensamente no episódio das Cruzadas. Desde o início da sua jornada espiritual de devoção cristã, Raimundo Lúlio passou a perseguir o ideal de ver o mundo convertido a Cristo; e com tal propósito ele buscou e desenvolveu um modelo missiológico-apologético que se concentrava no debate racional e comparativo do conteúdo das crenças religiosas dos grupos em questão, dando um destaque à mais tensa relação de então: a dos cristãos com os muçulmanos. Respeitando princípios de alteridade, Lúlio desenvolveu a sua missiologia argumentativa e engajada, que na presente pesquisa é nomeada como missiologia de Raimundo Lúlio, ou simplesmente, missiologia luliana, a qual é descrita e proposta como potencialmente útil e relevante tanto ao bom relacionamento inter-religioso, quanto à própria realização das missões cristãs na contemporaneidade. Termos como Idade Média, Evangelização, Missões e Missiologia são recorrentes nesta pesquisa; e embora haja polêmicas em torno de muitos e um certo consenso sobre outros, na presente obra os mesmos são usados com os seguintes significados: Idade Média – adota-se na presente pesquisa o termo Idade Média conforme usado por Bosch, inclusive devido às semelhantes ênfases; sendo assim, tal expressão busca indicar um período compreendido entre os anos 600 e 1500 d.C. – iniciado com o papado de Gregório Magno e o começo da expansão islâmica; e finalizado com a conquista de Constantinopla pelos muçulmanos (1453), a Reconquista de Granada pelos cristãos (1492) 13 e a Conquista do Novo Mundo, o continente americano (Bosch, 2002, p. 265). Este período recebe na presente pesquisa o foco na tensão entre o cristianismo e o islamismo. Evangelização – adota-se na presente pesquisa o termo Evangelização conforme apresentado por Dayton, que assim o define associando natureza, propósito e alvo da evangelização: “A natureza da evangelização é a comunicação das boas-novas. [...] O propósito da evangelização é dar a indivíduos e grupos uma oportunidade válida de aceitar Jesus Cristo. [...] O alvo mensurável da evangelização é persuadir homens e mulheres a aceitar Jesus Cristo como Senhor e Salvador, e servi-Lo na comunhão de Sua Igreja.” (Dayton, 1982, p. 18). A presente pesquisa assume que o foco principal da missão cristã na vida e obra de Raimundo Lúlio foi a evangelização dos muçulmanos, ou seja, o esforço consciente de oferecer aos islâmicos uma comunicação compreensível do que ele entendia ser a mensagem racional do evangelho de Cristo. Missões – adota-se na presente pesquisa o termo Missão e o seu derivativo plural, Missões, como uma combinação dos conceitos de Missão e Projeto Missionário conforme apresentados por Longuini Neto, para quem o “ponto de partida para entender a missão é afirmá-la como o testemunho do amor e da presença de Deus na história pelos cristãos [...] e projeto missionário [é] entendido como o conjunto de esforços, métodos e estratégias para levar adiante a missão” (Longuini Neto, 2002, pp. 67, 68). Portanto, o termo missões é usado na presente pesquisa tão somente como indicadora das ações cristãs que visam o cumprimento da missão da Igreja de dar testemunho aos não-cristãos, através de palavras e ações, sobre a mensagem do Evangelho, conforme compreendida pelos cristãos, e assim se tornar participante da ação redentora de Deus, dirigida aos homens através da sua Igreja. Missiologia – embora se reconheça que o termo Missiologia está técnica e precisamente relacionado à reflexão analítica sobre a atuação missionária da Igreja Cristã, consistindo, portanto no estudo sistemático e crítico da atuação missionária desta a partir da contribuição das ciências bíblicas, teológicas, históricas e sociais, na busca da aplicação de um modelo bíblico de atuação, conforme apresenta Escobar (2001, p. 145), no presente texto, o termo vem comumente associado a outro, luliana, que o adjetiva, qualifica e direciona especificamente nesta obra, de tal maneira que ao se ler missiologia luliana na presente pesquisa, está-se indicando com isto não apenas o estudo teórico sobre a atuação missionária cristã, mas também a proposta e execução práticas desenvolvidas por Raimundo Lúlio como modelo de missões cristãs aos muçulmanos nos seus dias, visto que 14 neste personagem, teoria e prática caminham lado-a-lado; sendo assim, considere-se o uso aqui da seguinte expressão nesta pesquisa. Missiologia Luliana – esta expressão indica na presente pesquisa a proposta teórica e prática de missões cristãs aos muçulmanos apresentada por Raimundo Lúlio, cujo objetivo principal era a evangelização dos islâmicos através da demonstração racional da fé cristã, baseada no debate religioso que exige conhecimento e audição mútuos. A metodologia aqui empregada foi a pesquisa bibliográfica, sendo as obras pertencentes aos seguintes principais sub-temas desenvolvidos no corpo deste: 1) obras de autoria do próprio Raimundo Lúlio; 2) obras que avaliam o legado de Raimundo Lúlio; 3) obras que discorrem sobre o Islamismo; 4) obras que debatem a relação entre o Cristianismo e o Islamismo; 5) obras que versam sobre as Cruzadas; 6) obras que abordam o tema do desafio do diálogo inter-religioso; 7) obras missiológicas analíticas sobre o cumprimento histórico da missão da Igreja; 8) obras que avaliam os desafios da comunicação intercultural; 9) obras que apresentam conceitos importantes à comunicação intercultural; e por fim, 10) obras que propõem caminhos e modelos ao cumprimento cristão da sua missão entre os muçulmanos. O método empregado nesta pesquisa consiste em expor as propostas lulianas para o cumprimento da missão cristã entre os muçulmanos, apresentar avaliações destas propostas feitas por estudiosos da vida e obra de Raimundo Lúlio, debatendo criticamente estas avaliações e as próprias propostas originais lulianas, assim como levantar outras contribuições úteis ao cumprimento da missão cristã aos muçulmanos, sempre fazendo referência crítica ao pensamento de Lúlio, procurando identificar aspectos historicamente circunstanciais e, portanto, anacrônicos à missiologia moderna, mas principalmente demonstrar que em sua grande maioria, as propostas lulianas foram expressões de vanguarda, consideradas e aceitas nesta época contemporânea, assim como algumas outras que ainda teriam muito a colaborar caso fossem consideradas e observadas pelas pessoas nestes dias atuais. Estes foram o método e a metodologia utilizados nesta pesquisa, que identifica método como a descrição do caminho percorrido e da lógica perseguida no desenvolvimento dos argumentos apresentados na pesquisa, embora Hübner proponha isto como metodologia (1998, p. 41), visto que esta é aqui identificada apenas como indicadora da natureza da pesquisa acadêmica desenvolvida no presente texto, no caso, bibliográfica. 15 Sendo assim, o objetivo geral desta pesquisa é demonstrar que a missão apologética de Raimundo Lúlio pode ser útil às missões cristãs contemporâneas nesta época de diversidade e atividade inter-religiosa, enfatizando a atuação missionária cristã aos muçulmanos, tendo como foco de pesquisa o modelo da missiologia luliana. Aqui se pretende como objetivos específicos: • Apresentar o contexto histórico e geográfico geral das missões cristãs aos muçulmanos até os dias de Raimundo Lúlio; • Discorrer a respeito da visão missionária de Raimundo Lúlio aos muçulmanos, apresentando considerações próprias à perspectiva evangélica protestante; • Expor criticamente a proposta de Raimundo Lúlio para as cruzadas e para a missão cristã aos muçulmanos. A questão norteadora desta pesquisa pode ser expressa na seguinte questão: qual foi a relação entre Raimundo Lúlio e as missões cristãs aos muçulmanos? Esta questão central desdobra-se nos seguintes problemas condutores da pretendida pesquisa: • Qual a relevância contexto histórico e geográfico geral das missões cristãs aos muçulmanos para a efetivação destas durante a Idade Média? • Qual foi, em linhas gerais, a proposta apresentada e desenvolvida por Raimundo Lúlio para as missões cristãs aos muçulmanos? • Quais foram as propostas de Raimundo Lúlio para as cruzadas e quais as propostas mais relevantes às missões cristãs aos muçulmanos na contemporaneidade? A presente pesquisa se desenvolve sobre a hipótese central de que a missiologia proposta por Raimundo Lúlio ainda apresenta contribuições úteis à atuação missionária cristã aos muçulmanos; e ao se fazer algumas ressalvas históricas contextuais, a mesma continua relevante à contemporaneidade. Buscando a demonstração desta hipótese central, esta pesquisa se desenvolveu a partir das seguintes hipóteses secundárias: • A primeira hipótese secundária desta pesquisa propõe que um melhor conhecimento do contexto geral no qual viveu Raimundo Lúlio é essencial para a devida avaliação das teorias e práticas missiológicas apresentadas e vivenciadas pela Igreja na Idade Média, pois somente tendo em vista a realidade na qual ela estava inserida, é que se pode reconhecer a contribuição que as missões medievais deram à formação da proposta 16 missionária de Raimundo Lúlio, frente ao desafio de levar o evangelho aos muçulmanos nos seus dias. Esta pesquisa busca apresentar o contexto histórico-cultural-religioso do mundo no qual estava inserido Raimundo Lúlio, e demonstrar que apesar do cenário hostil ao convívio e ao debate inter-religioso, algum trabalho missionário foi feito e especialmente nos dias próximos a Lúlio, identificar aqueles que exerceram influência sobre este, de tal maneira que colaboraram para a formação da sua proposta teórica e modelo prático de missões cristãs aos muçulmanos. • A segunda hipótese secundária desta pesquisa apresenta panoramicamente a proposta missionária de Raimundo Lúlio para as missões cristãs aos muçulmanos, tecendo algumas considerações sob a ótica cristã protestante. A hipótese levantada neste ponto é a de que a proposta de Lúlio foi vanguardista em muitos aspectos, adiantando-se no tempo, serve de modelo para as missões cristas aos muçulmanos em muitos pontos propostos; e foi fruto de uma visão que unia devoção a Deus, idealismo religioso, educação primorosa e dedicação intensa e comprometida com os ideais propostos. Este ponto da pesquisa caminha sobre hipótese e tônica bastante positivas a respeito da missiologia luliana, não entrando nos mais intrincados debates e críticas. A segunda hipótese se desenvolve sob os auspícios de uma reflexão inspirativa para a Igreja protestante contemporânea, ao destacar os aspectos positivos da proposta luliana e apresentar a sua missiologia como um paradigma histórico digno de ser considerado e até mesmo seguido, com as devidas ressalvas necessárias. • Por fim, a terceira e última hipótese secundária desta pesquisa se concentra em dois aspectos centrais da missiologia luliana, a saber: a polêmica a respeito das cruzadas; e depois a construção de uma missiologia que leve em consideração aquele a quem se dirige o esforço missionário, destacando disto a proposta de diálogo inter-religioso em Raimundo Lúlio e as relações entre os religiosos de distintas religiões neste mundo contemporâneo. Esta última hipótese, contrasta-se profundamente com a anterior, pois se apresenta com um tom mais crítico a respeito das propostas missiológicas e da prática de Raimundo Lúlio para com os não-cristãos. Ela apresenta o empreendimento das cruzadas e faz uma avaliação crítica sobre a visão que Raimundo Lúlio tinha da mesma, visto que era um dos seus proponentes, no entanto propõe-se que esta adesão se dá por ele entender motivos de ordem militar e de disputa e defesa de posse de terra e não como recurso essencialmente 17 conversionista. Já quanto às propostas de diálogo inter-religioso e da preparação dos missionários a serem enviados ao mundo para a evangelização dos não-cristãos, apresentase a hipótese de que aqui se encontra a maior contribuição de Raimundo Lúlio para as missões cristãs aos muçulmanos. Não apenas a proposta de qualidade no diálogo inter-religioso feita por Raimundo Lúlio se revela útil ao convívio religioso mais harmonioso, aproximando os diversos segmentos e promovendo um melhor conhecimento mútuo, assim como a construção de uma sociedade mais solidamente democrática, inclusive na esfera religiosa, mas a missiologia luliana se mostra relevante ao legítimo direito do cidadão moderno a: a posse, por convicção pessoal; o anúncio, pela proclamação livre; o debate, pela sincera exposição; a possibilidade de conversão, por decisão pessoal à outra matriz religiosa. As idéias de Lúlio aplicam-se apropriadamente ao fato de que o convívio respeitoso de adeptos de crenças distintas não se dá pelo silêncio inibidor da exposição das convicções, nem pela tolerância apenas à explicitação de uns poucos e superficiais pontos de convergência universalmente aceitos pelas religiões em geral. Muito pelo contrário, Lúlio nos ensina sobre a importância da madura garantia do direito ao debate cordial de idéias e à liberdade de expressão que respeita, tolera, convive e aborda, até mesmo por conhecer melhor, a religião professada pelo outro. Esta pesquisa termina por tentar demonstrar que pela natureza e conteúdo da missiologia luliana a mesma se revela útil e relevante ao mundo contemporâneo como um todo e não apenas à atuação missionária cristã aos muçulmanos, pois ensina a tolerância e o respeitoso convívio de distintos credos na sociedade atual, sem, no entanto, relativizá-los, rejeitá-los, impô-los ou no máximo tolerá-los, mas propõe o caminho da defesa do legítimo direito de existência, manifestação e atuação democrática do diversos credos na sociedade contemporânea, respeitando os direitos humanos básicos de liberdade de expressão, culto, circulação; e, acima de tudo, direito à vida. O meu interesse por Raimundo Lúlio se iniciou por curiosidade, pois tendo este personagem histórico o mesmo nome que o autor deste projeto, o fato me chamou a atenção desde quando ainda no curso teológico (por volta do ano de 1999) eu li pela primeira vez a respeito de alguém homônimo na história das missões cristãs. Posteriormente, quando cursava a especialização em Missiologia, as pesquisas sobre o mesmo personagem recomeçaram (em torno do ano de 2001). Neste ínterim, 18 ocorreu o conhecimento e o contato com o Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio (Ramon Llull), ou simplesmente o IBFCRL. Esta instituição – especialmente através da pessoa do seu diretor, o também catalão Esteve Jaulent – passou a colaborar significativamente nas minhas pesquisas sobre Lúlio. Embora com exigüidade de tempo, Lúlio foi o tema central do meu Trabalho Geral Interdisciplinar – TGI (equivalente ao TCC de outras universidades) na validação do curso de Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. O interesse na pesquisa sobre Lúlio já estava selado e mesmo tendo começado a investigar outras áreas do conhecimento enquanto cursava as disciplinas do mestrado em Ciências da Religião, agora se retornou aqui, na dissertação de mestrado, a este tema que tem me atraído aos exercícios da pesquisa acadêmica. Esta pesquisa pretende justificar-se relevante a partir de várias colaborações que pode oferecer, dentre as quais se destacam as seguintes: Proposta de diálogo inter-religioso. Ora, ainda neste século XXI a questão religiosa é um tema de importante consideração não apenas por motivos religiosos, mas também acadêmicos e até mesmo políticos e diplomáticos, pois persiste na contemporaneidade a dificuldade de se estabelecer um diálogo respeitoso e uma livre atuação e vivência religiosas entre adeptos de diversas religiões, como o Hinduísmo, o Budismo, inclusive as três grandes religiões monoteístas mundiais, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Tensões em escolas na França devido ao uso do véu por parte das meninas muçulmanas ainda é um assunto presente na imprensa mesmo fora daquele país, como se pode verificar no artigo de Reinaldo Azevedo, colunista na Revista Veja, conforme ele postou em 23 de junho de 2009 (Azevedo, 2009, internet). Um melhor diálogo inter-religioso no mundo atual é necessário tendo em vista que muitos têm se mobilizado para promover um mais harmonioso convívio entre grupos de distintas crenças em constante conflito, como ocorreu com o governo brasileiro ao tomar a iniciativa de incentivar os times do Flamengo e do Corinthians a planejarem uma partida amistosa de futebol na Palestina como uma tentativa de através da prática esportiva tentar aproximar judeus e palestinos e promover um convívio pacífico entre eles, conforme se noticiou em jornalismo televisivo (Sportv, 2009, internet). Apesar de se ouvir que “o objetivo da partida é contribuir para a paz na região”, percebe-se que tais iniciativas não abordam um aspecto essencial da tensão, que é a questão religiosa. 19 Muitos outros exemplos poderiam ser apresentados que demonstram falta de diálogo inter-religioso, assim como a persistente presença da intolerância religiosa na atualidade, tal como se pode verificar pela notícia veiculada em 1º de setembro de 2008 no portal do jornal Gazeta do Povo sob o título: “Multidão queima casas em choque religioso na Índia” (Gazeta do Povo, 2008, Internet). Exemplos como estes ressaltam uma possível relevância da presente pesquisa como um elemento de contribuição ao atual diálogo interreligioso. Embora Raimundo Lúlio tenha sido autor de vasta obra literária e destacado filósofo e missionário, o mesmo ainda não goza do conhecimento devido na academia brasileira, especialmente entre os protestantes; no entanto, Lúlio tem muito a contribuir para o enriquecimento da vida acadêmica no Brasil, assim como o de vários espectros do cristianismo, e por que não dizer o de toda a humanidade, pois a sua vida e obra têm muito a contribuir a todos, em diversas áreas da nossa realidade e não apenas a academia, dentre as quais, se pode aplicar a: A Contemporaneidade, devido à atual realidade sócio-cultural que vivemos, de tensão global entre o Ocidente e o Oriente, o Cristianismo e o Islamismo – mais claramente percebida após os atentados de 11 de setembro de 2001 – isto porque Lúlio viveu em dias de similar conflito e a sua atuação foi no meio da tensão, o que pode fazer dele uma lição viva da história, pois ainda que inúmeras vezes a sua presença e argumentação causaram alvoroço entre os seus oponentes, é inegável a superioridade de uma abordagem por argumentação que busca o debate e o diálogo do que aquela que dispensa tal diplomacia, como ocorre em ataques e guerras ainda hoje comuns; A História, pois a pesquisa sobre este personagem da virada do séc. XIII para o séc. XIV pode resgatar algumas contribuições que o cristianismo medieval vivido por Lúlio deixou à posteridade, independente da matriz teológica específica (católica, ortodoxa, protestante, etc.). A riqueza, a diversidade e complexidade do momento histórico vivido por Lúlio justificam a História como ponto de relevância desta pesquisa; A Educação e as Letras, pois dá a conhecer ao público contemporâneo a vasta produção educacional, filosófica e literária deste personagem medieval. Embora ainda sejam poucas as obras sobre Lúlio, assim como as de sua autoria traduzidas e editadas na língua de Camões diante do universo que ele produziu, vai-se, contudo, dando a conhecer ao público de escrita portuguesa a riqueza literária produzida por este mestre catalão, a 20 quem se atribui inclusive a destacada posição de poeta pioneiro que se tem conhecimento na língua catalã. A presente pesquisa, que tem por título “A contribuição de Raimundo Lúlio para as missões cristãs aos muçulmanos” está dividida nos seguintes capítulos e conteúdos: No capítulo 1, intitulado O contexto das missões cristãs aos muçulmanos, procurase apresentar o cenário histórico e geográfico medieval e como nele se desenvolveram as missões cristãs medievais até os dias de Lúlio. Para tanto, esta pesquisa assim se estrutura: 1) cronologia geral da época de Raimundo Lúlio; 2) missões cristãs na Idade Média; 3) a tensão entre cristãos e muçulmanos; e 4) missões que influenciaram Raimundo Lúlio. No capítulo 2, intitulado A Missiologia Luliana, teoria e prática de Raimundo Lúlio, busca-se apresentar uma visão panorâmica da proposta missionária desenvolvida por Lúlio, em sua teoria e prática, destacando os aspectos considerados positivos e sob uma avaliação protestante otimista e inspirativa. Para tanto, esta pesquisa assim se estrutura: 1) a biografia missionária de Raimundo Lúlio; 2) a visão missiológica de Raimundo Lúlio; 3) as letras na missiologia de Raimundo Lúlio; e 4) o zelo missionário de Raimundo Lúlio. No capítulo 3, intitulado Debatendo cruzada e missão em Raimundo Lúlio, procurase apresentar uma visão crítica sobre o episódio das cruzadas e a visão que Lúlio tinha das mesmas – entendendo-as dentro do seu contexto histórico – e também se debruçar sobre as principais propostas missiológicas de Lúlio, dando destaque à sua missiologia como fruto de uma percepção sensível do princípio da alteridade. Para tanto, esta pesquisa assim se estrutura: 1) as cruzadas cristãs e os muçulmanos; 2) as cruzadas para Raimundo Lúlio; 3) O Diálogo inter-religioso em Raimundo Lúlio, destacando a sua relação com o Islamismo e o princípio de alteridade presente na sua proposta missiológica. Desta maneira, dentre as tantas contribuições possíveis vindas do cristão catalão Raimundo Lúlio, esta pesquisa busca apresentar o seu pensamento e a proposta de missão cristã dirigida aos muçulmanos, avaliando criticamente as suas propostas e procurando defender a sua relevância à contemporaneidade. 21 O CONTEXTO DAS MISSÕES CRISTÃS AOS MUÇULMANOS Raimundo Lúlio deve figurar como um dos maiores missionários da história da Igreja. Outros possuíram o mesmo desejo ardente de pregar o Evangelho aos infiéis e de, se necessário, sofrer por ele. Mas coube a Lúlio ser o primeiro a desenvolver uma teoria de missões, não apenas por desejo de pregar o Evangelho, mas para trabalhar com um cuidado pormenorizado na forma de fazê-lo. (Neill, 1997, p. 137). Neill apresenta aqui a importância de Raimundo Lúlio, já o relacionando com a sua contribuição em foco, que foi o seu projeto missionário. No entanto, considerando a distância histórica que separa o presente da época em estudo, inicia-se esta pesquisa com um capítulo que expõe objetivamente ao leitor Lúlio em seu contexto histórico-geográfico, no qual foi desenvolvida a missiologia luliana. 1.1 Cronologia geral da época de Raimundo Lúlio A cronologia apresentada a seguir ambienta o leitor no contexto histórico-geográfico vivido por Lúlio e foi encontrada na internet, no site do Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio (IBFCRL). Com poucos acréscimos, em geral, esta cronologia está baseada nas obras de Hillgarth e Natllori, tendo recebido a forma final aqui apresentada por Badia e Bonner: 1229 Jaume I de Aragão ocupa Maiorca. 1230-50 Entrada de Averroes nas universidades do Ocidente. 1232 Nascimento de LÚLIO em Maiorca. 1235-84 Sigério de Brabante. 1240 Roberto Grosseteste traduz a Ética de Aristóteles. 1243 Nascimento, em Montpellier, de Jaume de Maiorca, segundo filho de Jaume I de Aragão. LÚLIO tornar-se-á seu amigo, primeiro como preceptor, depois como senescal. 1248-54 Primeira cruzada do rei Luis da França. 22 1248-55 Magistério de São Boaventura em Paris. 1252-59 Magistério de São Tomas de Aquino em Paris. 1257 Casamento de LÚLIO com Blanca Picany com a qual tem dois filhos: Domingos e Madalena. 1260-327 Mestre Eckhart. 1262 Jaume de Aragão decide fundar o Reino de Maiorca, que inclui o Roussillon e o Senhorio de Montpellier, para seu segundo filho. 1263 Os Papas Urbano IV e Gregório XI publicam decretos proibindo o ensino de Aristóteles nas universidades. 1263 Conversão de LÚLIO. Peregrinação a Santiago de Compostela e Rocamdor. 1265(66) Nasce em Maxton-on-Tweed Duns Scot. 1265-321 Dante. 1265-74 Anos de formação de LÚLIO em Maiorca e na Abadia cirtercense da Real. LÚLIO estuda árabe com um escravo que se suicidará. 1266-68 Rogério Bacon escreve o Opus majus, opus minus, opus tercium. 1271-74 Escreve as primeiras obras: a Lógica de Gatzel, em versão metrificada, e o Libre de contemplació en Déu. As duas obras foram escritas primeiro em árabe e depois em latim. 1274 Revelação na montanha de Randa. LÚLIO concebe um método ou sistema de unificação de todos os saberes que chamará de Arte. A primeira denominação da Arte foi Ars abreujada d'atrobar veritat, Arte breve para encontrar a verdade. LÚLIO tem aproximadamente 42 anos. 1275 Jaume de Maiorca convoca LÚLIO a Montpellier e submete suas obras a um perito franciscano que as aprovará. 1275-76 LÚLIO separa-se definitivamente de sua esposa. 1276 No dia 26 de julho morre Jaume I e o príncipe Jaume é coroado rei de 23 Maiorca. 1276 No dia 17 de outubro uma bula do Papa confirma a fundação do Mosteiro de Miramar, em Maiorca, subvencionado por Jaume de Maiorca. Nele, treze franciscanos estudam a Arte e a língua árabe. Provavelmente 1275-85 LÚLIO escreve o Livro do amigo e do Amado. 1276-87 Anos sem documentação. 1277 Condenação no dia 7 de março das doutrinas tomistas e averroístas por Estêvão Tempier, bispo de Paris. Kilwardby, arcebispo da Cantuária, algumas semanas mais tarde, condena as mesmas teses. 1282 Vésperas sicilianas. 1283 LÚLIO escreve a Ars demonstrativa, segunda formulação da Arte a base de combinações de quatro elementos. Escreve também a primeira novela de reforma social, o Llibre d'Evast i Blaquerna. 1285 Jaume II perde Maiorca, que não recuperará até 1298. Durante este período, traslada a Corte a Perpignan e a Montpellier. LÚLIO freqüentará essas cidades. 1287 Primeira visita de LÚLIO à Corte Papal. Não consegue nada, porque o Papa Honório IV morre no dia 3 de abril. 1275-85 LÚLIO escreve o Livro da Ordem de Cavalaria, a Doutrina pueril, o Blaquerna. 1287-89 Primeira estadia de LÚLIO em Paris. lê publicamente a Ars e visita a Corte de Felipe IV o Belo. Tomás Le Myésier torna-se discípulo de LÚLIO, que agora está com 55 anos. Redige o Felix ou Livro das Maravilhas, narrativa das viagens em parte alegóricas de um homem que procura a verdade entre as confusões deste mundo. 1289 LÚLIO reside em Montpellier e envia una coleção de escritos seus ao duque de Veneza. 1289 A experiência docente mostra a LÚLIO que a versão atual da Arte é difícil 24 de manipular. Escreve a Art inventiva, baseada num sistema combinatório de três elementos. 1289 No dia 26 de outubro o general dos franciscanos, Raimon Gaufredi, autoriza LÚLIO a pregar nos conventos italianos. Contatos de LÚLIO com os espirituais. 1291 A Cristandade perde São João de Acre. 1291-2 LÚLIO traslada-se a Roma e dedica ao Papa Nicolau IV seu primeiro livro sobre as cruzadas. 1292 Morre o Papa Nicolau IV o dia 4 de abril. 1292-3 Viagem a Gênova, onde, aos 60 anos, LÚLIO sofre uma forte crise psicológica. Empreende sua primeira viagem a África, na Tunísia. 1293-4 LÚLIO na Tunísia. A viagem termina com a expulsão de LÚLIO do país. 1293-7 Duns Scot na Universidade de Paris. Segundo uns historiadores, deixou Paris no mês de julho; segundo outros, no dia 25 de fevereiro de 1298. 1294 Estadia de em Nápoles durante o breve pontificado e abdicação do Papa Celestino V. LÚLIO dirige-lhe a Petição a Celestino V. Redige também a Tabela general, nova formulação da segunda versão da Arte. Eleição do Papa Bonifácio VIII. 1295-6 LÚLIO em Roma e Agnani. Redige a Petição a Bonifácio VIII , o Árvore da Ciência, e o Desconhort. 1297 LÚLIO em Montpellier. Bonifácio VIII canoniza o avô de Felipe o Belo, o rei São Luis. 1297-9 Segunda estadia de LÚLIO em Paris. Dedica a Felipe IV o Belo e à rainha Joana o Árvore da filosofia do Amor, tratado místico que contém fragmentos novelados de grande interesse literário. Também tem um tom místico a Contemplatio Raimundi. Ao público universitário dirige a Declaratio per modum dialogi edita contra aliquorum philosophorum opiniones, o Tractatus Astronomiae, o Liber de geometria nova. O Cant de Ramon é um 25 breve poema lírico que explica o drama e as esperanças de que então estava com 65 anos. 1299 LÚLIO em Barcelona dedica o Dictat de Ramon e o Libre d'Oració a Jaume II. A Corte aragonesa emana um documento a favor de LÚLIO. 1300 Nasce Guilherme de Ockham no condado de Surrey. 1300-3 Duns Scot volta como professor a Paris. Seus contemporâneos: Guilherme de Falgar, Pedro João Olivi, Ricardo de Middleton, Rogério Marston, Pedro de Trabibus e Ghilhermo de Ware. Duns Scot deixa Paris o dia 28 de junho. 1300-68 João Buridan. 1300-1 Primeira longa estadia em Maiorca depois de muitos anos. 1302 LÚLIO em Chipre. Fracasso na sua tentativa de atrair o rei para seus projetos. Encontra-se com o Grão Mestre dos Templários. 1302 Visita em janeiro a Pequena Armênia. Possível visita a Jerusalém. e retorno a Gênova. 1303 O dia 7 de setembro Nogaret e os aliados de Felipe IV o Belo atacam Bonifácio VIII em Agnani. 1304-7 Duns Scot volta a Paris onde fica até setembro de 1307. 1303-5 LÚLIO alterna Gênova e Montpellier. 1303 Escreve o Liber de ascensu et descensu intellectus, redigido em Montepellier no mês de março. Em abril escreve o Liber de fïne, onde coloca ao rei Jaume II de Aragão a necessidade de uma cruzada contra os muçulmanos. A partir do dia 24 de junho começa a receber uma pensão deste rei. Permanece em Barcelona até setembro. Está presente na entrevista que se celebra em Montpellier entre o novo Papa Clemente V e Jaume II de Maiorca. O dia 14 de novembro LÚLIO assiste à coroação de Clemente V em Lião e dirige em vão novas petições a este Papa. 1305-8 LÚLIO começa em Lyon e termina em Pisa a Ars generalis ultima. 26 1306 Terceira visita de LÚLIO a Paris. Está com 74 anos. 1306-7 Permanece em Maiorca. 1307 Segunda missão em Bugia, na África. É encarcerado por seis meses e finalmente expulso. Naufraga perto de Pisa. 1307 O dia 13 de outubro Felipe IV da França apodera-se da Ordem dos Templários. 1308 Morre Duns Scot em Colônia. 1308-9 LÚLIO entre Pisa e Montpellier. Termina a Ars generalis ultima , a versão definitiva de sua Arte, e a mArs brevis. Escreve o Liber clericorum, dirigido à Universidade de Paris. Intenta promover uma cruzada desde Gênova. Em maio dedica desde Montpellier a Ars Dei a Clemente V e a Felipe IV da França. Provável encontro de com Arnau de Vilanova em Marsella. 1309 O Papa Clemente V se instala em Avignon. 1309 LÚLIO permanece em Montpellier. Carta a Jaume II de Aragão. Escreve o Liber de perversione entis removenda e o Liber de acquisitione terrae sanctae. LÚLIO aceita a política de Felipe IV da França sobre as cruzadas. Fracassa uma visita de LÚLIO a Clemente V. Fracassa a cruzada de Jaume II de Aragão em Almeria. 1309-11 Quarta e última estadia de LÚLIO em Paris. Luta contra o averroísmo. Escreve umas trinta obras de caráter polemico, muitas delas endereçadas ao rei da França e com temas antiaverroístas. Redige o Liber natalis parvi pueri Iesu, com tons literários natalinos, e o Liber lamentationis philosophiae. 1310 Quarenta mestres e bacharelandos em Artes e Medicina aprovam a Ars brevis. Cartas de recomendação de Felipe IV para LÚLIO. Escreve o Liber de modo naturali intelligendi contra os que negam que Deus tenha infinito vigor e que o mundo seja criado. Neste ano escreve também o Liber reprobationis aliquorum errorum Averrois, em julho, e a Disputatio Raimundi et Averroista, de outubro a dezembro. 1311 Em fevereiro escreve o Liber de syllogismis contradictoriis . Realiza-se uma 27 compilação de obras lullianas na cartuxa de Vauvert. LÚLIO dita sua Vita coetanea, documento autobiográfico de importância capital. O chanceler da Universidade de Paris aprova o pensamento lulliano. Escreve a Petitio in concilio generali. A caminho do Concílio de Vienne redige o poema Lo concili e o Phantasticus, opúsculo onde se defende das acusações que lhe dirigiam. 1311-12 LÚLIO, aos 80 anos, assiste ao Concílio de Vienne. 1312 Permanece em Montpellier. Dante escreve o Inferno. 1313-14 Permanece em Messina. 1314-15 Última estadia de LÚLIO em África do Norte. Traslada-se à Tunísia, onde dedica obras ao rei e pede a Jaume II de Aragão um frade franciscano para que o ajude a traduzir seus escritos ao latim. 1316 LÚLIO morre, aos 84 anos, perto de Maiorca voltando da Tunísia. Uma lenda piedosa, não desmentida, supõe que foi lapidado. 1323 Estêvão Borrète, bispo de Paris, anula a sentença de Tempier. 1324-28 Ockham é encarcerado em Avignon. 1329 Condenação de mestre Eckhart. 1350 Guilherme de Ockham morre em Munique. 1450 Gutemberg abre uma oficina de impressão em Magúncia. 1450-537 Lefèvre d'Etaples. 1463-94 Pico della Mirandola. 1466-536 Erasmo de Roterdã. 1470 Introdução da imprensa na Universidade de Paris. (Badia e Bonner, 2010, internet). 28 1.2 Missões cristãs na Idade Média Há quarenta anos, raras eram as obras de autores da Idade Média vertidas para o português. Escasseavam até mesmo os bons estudos sobre a Idade Média que, desde o fim do século passado, se multiplicaram na Europa e Estados Unidos. No Brasil, [...] pela difusão de manuais escolares com ranço anticlerical, pesava sobre o período histórico da Idade Média a caliginosa nuvem de preconceito, adensada no século XVIII pela logorréia anticristã dos enciclopedistas (Nunes, 1989, p. 7). Como se pôde verificar, após a virada do século permanece o desafio de se pesquisar sobre a Idade Média, pois para a realização de tal estudo além de se ter que levar o pesquisador a um mundo um tanto quanto distante no tempo, é preciso vencer uma série de imagens preconceituosas que se costuma manter quanto a este período da História, que não por acaso também recebeu a alcunha de “Idade das Trevas”. Tal preconceito apenas reforça uma imagem caricata desta época, assim como uma considerável ignorância sobre tal período e suas contribuições, como bem destaca Nunes, o qual assevera ainda que os países que tiveram uma certa influência da educação francesa, como o Brasil, acabaram absorvendo muito deste preconceito para com a Idade Média, fruto da filosofia iluminista predominante na cultura francesa pós-revolução. (Nunes, 1989, pp. 7,8). Pesquisar sobre Raimundo Lúlio, portanto, é tanto um desafio, quanto uma tentativa de resgatar valores e contribuições oriundas de uma época ainda pouco estudada tendo em vista o reconhecimento das suas contribuições positivas. Embora na presente época e contexto cultural e religioso tenha-se facilidade em se buscar, reconhecer e até mesmo exacerbar a importância do indivíduo, destacando-o do grupo e do contexto, não era assim na Idade Média dos dias de Lúlio. Aquela época foi marcada por uma cultura que promoveu uma vida coletiva, baseada na agricultura, pecuária e artesanato, segundo Comblin (2002, p. 315), a qual destacava e valorizava o bem comum, não havendo muito espaço para o individualismo. 1.2.1 Missões medievais: a catolicização do mundo Freqüentemente se reconhece que a figura do pregador itinerante desapareceu com os apóstolos, ficando a Igreja Cristã durante muitos séculos sem o “missionário típico”, pois nem mesmo a igreja primitiva possuía um método missionário; contudo, a partir do século 4, “o monge substituiu, paulatinamente, o pregador itinerante como missionário em áreas ainda não evangelizadas”, afirma Bosch (2002, p. 239). 29 Segundo Castagnola e Padovani, o rei Carlos Magno pretendia dar uma unidade interior e espiritual ao seu vasto império e, para tanto, empenhou-se em educar intelectual, moral e religiosamente os bárbaros que o constituíam. Para isto, precisaria se implantar paralelamente civilização, religião, cultura clássica e catolicismo. Sendo assim, escolas foram organizadas no Sacro-Império, e sendo o clero a classe mais apta para o magistério, serviu de docente num projeto de amplos objetivos, que envolvia uma educação popular simples e uma educação especial para a classe dirigente em geral, assim como os funcionários do império. Nesta tarefa de implantar escolas no império carolíngio, estes autores destacam a figura de Alcuíno, que vindo da Inglaterra – o viveiro da cultura naquela época – ditou o programa educacional predominante no império, o qual perdurou invariado praticamente por toda a Idade Média. (Castagnola e Padovani, 1962, pp. 171,172). O Império Carolíngio do Séc. VIII ilustra o desafio da unidade no mundo medieval. Assim, os povos recém-conquistados deveriam ser educados tanto para a coroa, quanto para a fé católico-romana, dentro da cultura herdada dos povos clássicos e adaptada à nova ordem. Tal tarefa recaiu basicamente sobre a igreja institucional. Contudo, pensar em alcançar pessoas que professavam uma fé distinta do cristianismo e que vivesse fora dos limites geográficos e das influências lingüísticas e culturais das “terras cristãs” era desconsiderado pela igreja institucional como algo de alto risco, portanto desnecessário, a ponto de alguns terem condenado o esforço de Lúlio de buscar alcançar muçulmanos para Cristo, segundo Tucker (1996, p. 59). Os islâmicos há muito já foram se mostrando uma ameaça numérica ao cristianismo institucional, isso sem mencionar o desconforto e a tensão sentidos por muitos cristãos que conviveram por séculos com a considerada inconveniente presença islâmica na península Ibérica, inclusive nos dias e terra natal de Lúlio, pois a ocupação muçulmana destas deixou a região em estado de tensão por muito tempo, como se verá mais adiante. As mudanças sociais ocorrentes na baixa Idade Média, período compreendido entre os séculos XI e XV, tais como o crescimento das cidades e o êxodo rural subseqüente também foram sentidas na esfera teológica. A igreja seguiu o desenvolvimento da sociedade, surgindo no início do Séc. XIII os dois principais centros de estudos teológicos: as nascentes universidades de Paris e Oxford. Nestas duas cidades os dominicanos fundaram casas e logo tiveram professores nas universidades, segundo Gonzalez (1986, p. 120), o que é importante porque mostra o cristianismo aprimorando-se intelectualmente, algo providencial para um trabalho como o pretendido por Lúlio. 30 A ordem dos franciscanos seguiu o exemplo dos dominicanos e se instalou também nas universidades, chegando a ter professores de grande renome. O destino acadêmico dos franciscanos foi assegurado em 1236 com um professor da Universidade de Paris, Alexandre de Hales, o qual decidiu se unir à ordem; desta forma, os franciscanos passaram a contar com sua primeira cátedra universitária. Viu-se então que “poucos anos depois havia mestres franciscanos em todas as principais universidades da Europa ocidental”, afirma Gonzalez (1986, pp. 121,122). Apesar do fato de que a teologia cristã católica estava se aprimorando intelectualmente, desenvolvendo-se no modelo escolástico de refinada filosofia e debates, e assim, respondendo às alterações ocorrentes no mundo de então, a igreja cristã praticamente abandonou os muçulmanos como um grupo preterido por Deus e não se preocupou em alcançá-los, restringindo-se basicamente a educar os antigos bárbaros e povos primitivos na periferia do mundo cristão europeu, tarefa feita principalmente pelas ordens monásticas dos dominicanos e franciscanos. Lúlio foi uma brilhante exceção a este pensamento, engajado no alcance dos seguidores de Maomé, como se poderá verificar no desenvolvimento desta pesquisa. Tal enfoque na catolicização dos europeus conquistados levou a cristandade a perder de vista os povos do Oriente, como os mongóis, cuja negligência missionária descrita a seguir ilustra bem a visão do cristianismo medieval. 1.2.2 O mau exemplo histórico da perda dos mongóis A apatia e a indiferença missionárias encontram na perda histórica da oportunidade da evangelização dos mongóis um triste exemplo. Marco Polo chega a registrar que o grande senhor dos mongóis havia pedido ao “pontífice que lhe enviasse seis homens sábios e castos para revelar aos idólatras e aos adeptos de outros credos da região – todos obras do diabo – a superioridade e a eficácia da religião cristã” (Polo, 2003, p. 18). Embora a referida narrativa de Polo seja tida como fantasiosa, Alem afirma que havia maior oposição dos mongóis aos muçulmanos do que aos cristãos, posto que já estavam sob maior influência cristã, tendo muitos se associado ao cristianismo nestoriano, mas visto que os cruzados se recusaram a se aliar aos mongóis, pois assim “êsses ter-seiam convertidos ao cristianismo, e a face do mundo teria mudado. Mas os cruzados recusaram, a maioria dos mongóis se tornou muçulmana” (Alem, 1961, p. 36). O povo mongol, segundo Armstrong, não tinha consigo nenhuma espiritualidade específica, antes acabavam por tender ao budismo, sendo não apenas tolerantes a todas as religiões, mas com a tendência pragmática de absorver as tradições locais quando 31 subjugavam um povo; desta forma, segundo ela, através da expansão do povo mongol já na virada do século XIII para o XIV, “todos os quatro impérios mongóis tinham se convertido ao Islã. Os mongóis tornaram-se, portanto, o principal poder muçulmano na importante região islâmica central” (Armstrong, 2001, p. 147). A conversão em massa dos mongóis ao islamismo tendo em face à inicial simpatia para com o cristianismo mostra a grande insensibilidade missionária do cristianismo naqueles dias, especialmente a inabilidade dos cruzados de olharem para o contato com outros povos mais como oportunidades de evangelização do que como ocasiões de guerra a serem travadas e vencidas, assim como revelam também à intolerância quanto às outras segmentações cristãs, distintas da hegemonia católica. Esta cegueira quanto à necessidade dos mongóis revelavam também uma falta de interesse na evangelização dos outros povos e até mesmo de uma aproximação e debate da fé cristã com aqueles que ainda não a professam. Tal indiferença se mostrava ainda mais aguda quando se tratava da relação entre cristãos e muçulmanos, a ponto de se verificar que entre eles não houve na Idade Média um verdadeiro e proveitoso diálogo interreligioso, sendo uma fantasia a busca de evidências neste sentido, conforme as seguintes palavras de alerta de Brague: Assim, na Idade Média, os verdadeiros diálogos entre o Islã e o cristianismo são muito escassos, e, entendendo-se por tais aqueles diálogos que nos parecem desejáveis, simplesmente inexistentes. A literatura polêmica dirige-se a pessoas já convencidas. O diálogo é antes um gênero literário mais do que uma realidade. Os ensaios para tratar ao outro com equidade são de antemão, compreendendo-se bem, uma exceção. Temos o direito de sonhar com tais diálogos entre religiões para o futuro. Mas nada nos autoriza a projetar este sonho no passado medieval. Nossa empreitada é talvez nobre, mas não deve a sua nobreza a quaisquer dos ancestrais (Brague, 2010, internet). 1.2.3 As condições religiosas do mundo medieval Apesar da maior parte da Europa ocidental neste período ter estado sob a influência da religião cristã, Lúlio, lamentava o desinteresse generalizado na evangelização dos não cristãos, pois, segundo ele, o interesse dos reis, cavaleiros e até mesmo dos clérigos não era com a missão aos gentios, mas sim apenas com diversões e banquetes; e esta indiferença quanto à ignorância espiritual dos outros o incomodava profundamente (Lúlio, 2009a, pp. 153,154). No entanto, este desprezo à busca de uma vivência religiosa pura, consciente e saudável não era um privilégio dos cristãos. Aquele, cujas idéias foram tenazmente 32 combatidas por Lúlio, o filósofo árabe e muçulmano Averróis, era defensor de uma vivência dupla da religião islâmica: aos mais cultos, caberia pensar a própria religião de maneira mais filosófica e aos demais, restava-lhes uma crença crédula, até mesmo fanática. Esta dicotomia foi assim expressa por Saranyana: “Seria uma religião que, nos sábios, cede à filosofia, ou a ela se orienta, e no vulgo cede à boa cidadania, ao bom comportamento, tanto individual como social. A religião do vulgo é uma espécie de ‘fideísmo’ – para não dizer fanatismo – sem conteúdos inteligíveis” (Saranyana, 2006, p. 239). De formas distintas, tanto o cristianismo, quanto o islamismo viviam dias de agudas distinções na própria vivência de suas religiosidades, o que na verdade, acabava por expressar os intensos contrastes morais vividos naqueles dias medievais, os quais não eram percebidos apenas em lugares distintos do mesmo país, mas muito próximos, até em uma mesma pessoa, a qual poderia demonstrar “uma fé sublime e uma superstição degradante, uma pureza angelical e uma sensualidade grosseira” (Zwemer, 1977, p. 7). Devido a sua preocupação com o declínio moral e religioso da cristandade, Lúlio escreve ao rei Filipe da França uma dedicatória, na qual roga ao mesmo a que assumindo o seu papel de magistrado cristão, venha a defender a fé cristã nos limites do seu reino, velando pela condição espiritual de todos, removendo os vícios e promovendo as virtudes, de tal maneira que o seu reino fosse “espelho e exemplo para todos os reis cristãos em todas as virtudes próprias do ofício real” (Lúlio, 2001a, p. 115). Desta maneira, Lúlio demonstra tanto a sua preocupação com o estado moral e religioso da cristandade, como também revela e apela à visão vocacional religiosa para o magistrado civil, que teria responsabilidades e competências cívicas de manter e assegurar a qualidade espiritual da sociedade sobre a qual foi por Deus constituído governo. Esta é uma visão que reflete a compreensão de cristandade, tão arraigada em Lúlio, que será mais adiante estudada. 1.2.4 A preocupação de Lúlio com a resposta da Igreja Diante deste quadro religioso e moralmente crítico da cristandade, que demonstra uma pobreza espiritual predominante nos dias de Lúlio, ele expressa o seguinte lamento: “– Amável filho, quase mortas estão a sabedoria, a caridade e a devoção, e poucos são os homens que estão na finalidade para a qual Nosso Senhor Deus os criou. Não existem mais o fervor e a devoção que costumavam existir nos temos dos apóstolos e dos mártires que, por conhecerem e amarem a Deus, definhavam e morriam” (Lúlio, 2009a, p. 30). 33 A carência generalizada de uma vida cristã autêntica era percebida e denunciada como blasfêmia por Lúlio pelo fato de existirem nos seus dias tantos grandes doutores de teologia, que apenas se banqueteavam nos seus refeitórios e, não demonstrando nenhum interesse missionário, eram indiferentes ao fato de sendo tantos, “Deus tivesse falta de louvadores, sendo em tantos lugares blasfemado, desonrado, ignorado e menosprezado pelos ídolos, que são mais amados e louvados que Ele” (Lúlio, 2009b, pp. 194,195). Lúlio se incomodava com o baixo padrão moral e espiritual da cristandade dos seus dias, mas também com a frivolidade e indiferença missionária dos mais capacitados a fazê-lo. Contudo, é importante se perceber que antes de Lúlio propor um projeto missionário visando o alcance dos não-cristãos para a fé cristã, o trabalho missionário que a Igreja conhecera até então, e que fora responsável pela adesão ao cristianismo de praticamente todo o continente europeu consistiu naquilo que se costuma chamar de cristianização dos povos dominados, visto que predominantemente na Idade Média a “conversão” de povos ao cristianismo e a expansão da própria igreja cristã de então se deu quase somente através destas adesões coletivas dos súditos de um reino à religião cristã professa pelo seu monarca, conforme narra Tucker (1996, p. 44). Nestas circunstâncias, restava à missiologia basicamente regular a educação cristã oferecida aos novos “conversos” ao cristianismo num processo de catolicização dos povos, o que gerou o que será mais adiante estudado como a cristandade, uma amálgama resultante da combinação de um modelo estatal social com traços culturais próprios à Europa Ocidental que tem como substrato ideológico a teologia cristã desenvolvida até então. De fato, uma aproximação pacífica e respeitosa, próprias do diálogo inter-religioso atualmente proposto não foi possível naqueles dias medievais. Agora a pesquisa busca descrever a qualidade da relação que havia entre cristãos e muçulmanos nos dias de Lúlio. A história das missões cristãs medievais é bem contrastante, pois se por um lado revela nos primeiros séculos da Idade Média uma forte expansão e consolidação pelo mundo, estendendo-se do Oriente, passando por todo o Oriente Médio, norte da África e encontrando no continente europeu a sua maior expressão, por outro lado o cristianismo fragmentou-se em vários e intrincados credos e disputas teológicas que enfraqueceram a sua unidade e dificultaram a plena compreensão da própria fé por parte daqueles que não eram tão sofisticados filosoficamente para acompanhar o debate, alerta Fletcher (2004, p. 20). Além disso, a missão da Igreja foi-se consolidando cada vez mais como uma responsabilidade de educar os inúmeros pagãos na fé cristã católica, afastando-os das crenças pré-cristãs e do arianismo, este foi um processo de assimilação cultural dos 34 invasores do antigo Império Romano e depois da consolidação de um novo império, o Sacro Império Cristão, sob Carlos Magno, subjugando ou “convertendo” pagãos e opositores, assim como educando a todos sob o catolicismo papal ocidental, segundo Gonzalez (1981, pp. 37,141,149) num modelo que consolidaria o conceito de cristandade. Esta era idéia majoritária de missão dominante na Idade Média, com pouca ou quase nenhuma visão para povos e modelos que não se encaixassem neste processo civilizatório cristão ocidental, como ocorreu com os muçulmanos, com quem a relação se tornaria crescentemente tensa, como se há de observar a seguir. 1.3 A tensão entre cristãos e muçulmanos Em retrospectiva, podemos ver que era impossível qualquer presença islâmica duradoura no continente. [...] Com certeza, resistir a esses inimigos era trabalhar por Deus. O papa Leão IV, pedindo ajuda contra os sarracenos1 em 853, disse que qualquer um que perdesse a vida naquele conflito iria par ao céu. [...] Por vezes a pressão se tornou intensa. Perto do final do século X, foram atribuídas a um soberano de alAndalus 57 campanhas militares contra cristãos em 21 anos. Isso incluiu um ataque a um dos mais sagrados santuários da cristandade no Ocidente, a tumba do apóstolo são Tiago, em Santiago de Compostela, em 997. (Fletcher, 2004, pp. 54,55). Das diversas possíveis relações inter-religiosas do cristianismo católico com outras manifestações de crença, a presente pesquisa passa a considerar e a se concentrar agora com o relacionamento que historicamente foi sendo construído entre os seguidores de Cristo e os seguidores de Maomé. Como o subtítulo já indica, esta foi uma relação crescentemente tensa, chegando às manifestações mais intensas de oposição beligerante possivelmente nos dias vividos por Lúlio. 1.3.1 O surgimento do Islã e a sua relação com os cristãos Embora se costume referir à tensa relação entre os cristãos e os muçulmanos na Terra Santa como se reportando às cruzadas, Runciman inicia o primeiro volume que compõe a trilogia da sua pesquisa histórica descrevendo o impacto causado nos cristãos pela entrada do Califa Omar em Jerusalém em fevereiro de 638 d.C., visitando lugares tradicionalmente sagrados para judeus e cristãos e reivindicando para o Islã aqueles onde 1 Sobre o termo sarraceno, referência comum aos muçulmanos, Fletcher comenta: “Aqui, Isidoro de Sevilha, o grande polímata e enciclopedista do fim da Antiguidade, e contemporâneo de Maomé, resume um consenso cristão: Os sarracenos vivem no deserto [...]. Eles também, como já dissemos, insistem em se denominar sarracenos, porque falsamente se vangloriam de descender de Sara” (Fletcher, 2004, p. 25). 35 ele orava. “Isso estava de acordo com os termos de rendição da cidade” (Runciman, 2003a, p. 17). A citada descrição indica a vocação histórica de tensão entre estes que são atualmente os mais numerosos grupos religiosos do mundo, os cristãos e os muçulmanos. Agora, a presente pesquisa estuda este conflito, de essencial compreensão para o devido entendimento do tema em estudo. Além da diferença quanto à compreensão sobre Deus, o Islã não difere tanto do cristianismo medieval pela sua proposta teocrática, pois assim como segundo a instrução corânica, a ordem divina se estende também à sociedade civil, o modelo medieval de cristandade era uma encarnação da realidade civil como expressão da influência e do domínio eclesiástico da fé cristã no mundo. Contudo, para o Islã, até a própria guerra (Jihad) é um serviço religioso e a principal delas é a luta para submeter todas as paixões da alma do fiel a Deus, pois o muçulmano deve se empenhar a defender e estender a fé islâmica, combatendo por Alá, visto que o Corão lhes ordena até a matarem ou serem mortos, conforme registra Mata (2006, p. 21). De fato, é inegável a afirmação do Corão Sagrado no verso 111 da sua 9ª Surata do julgamento e promessa feitos por Alá aos fiéis quanto à disposição destes a matarem e a morrerem pela sua fé, como se lê: Deus cobrará dos crentes o sacrifício de suas pessoas e seus bens em troca do Paraíso. Combaterão pela causa de Deus, matarão e serão mortos. É uma promessa infalível, que está registrada na Tora, no Evangelho e no Alcorão. E quem é mais fiel à sua promessa do que Deus? Regozijai-vos, pois, da troca que haveis feito com Ele. Tal será a bem-aventurança (Alcorão Sagrado, 1975, p. 142). No entanto, houve no início da expansão da fé islâmica uma considerável tolerância dos muçulmanos em seu meio quanto à presença tanto de judeus quanto de cristãos e suas respectivas religiões, desde que pagassem uma taxa anual de imposto, a jizya; no entanto, não tinham permissão para construir seus templos ou manifestarem publicamente seus atos litúrgicos, como sinos e cânticos; também não podiam possuir certos equipamentos militares, homens não muçulmanos não podiam ter relações com mulheres muçulmanas, não se podia manifestar desrespeito ao Islã, nem buscar a conversão de um muçulmano a quaisquer outras religiões (Fletcher, 2004, p. 35). Apesar das restrições, os cristãos orientais bizantinos e os integrantes dos pequenos grupos sectaristas como os jacobitas e os nestorianos – perseguidos como hereges pela maioria católica – tenderam a louvar o domínio islâmico, pois mesmo “os ortodoxos, tendo sido poupados da perseguição que temiam – e pagando impostos, que, apesar da jizya 36 impingida aos cristãos, eram muito menores que nos tempos dos bizantinos –, mostravamse pouco inclinados a questionar seu destino”, segundo Runciman (2003a, p. 31). No entanto, as tensões entre cristãos e muçulmanos que no Oriente Médio não pareciam ser grandes no início da expansão do Islã, foram se intensificando especialmente na Europa Ocidental. Lúlio afirma que um certo sarraceno, nomenclatura comum para os muçulmanos na referência européia, havia escrito a reis cristãos questionando a luta armada dos cristãos tentando reconquistar as terras que antes haviam sido alcançadas pela pregação apostólica, pois ao apelarem às armas, eles estavam usando o caminho descrito pelo profeta Maomé e não aquele ensinado por Cristo (Lúlio, 2009a, p. 100). Desta forma, vê-se não apenas que os conflitos se tornaram bélicos, aguçados pelas cruzadas, como se verá em seguida, mas também destacava a tensão religiosa em si. O período compreendido entre os anos 1050 e 1300 d.C. foi marcado por tensões constantes entre cristãos e muçulmanos; o domínio cristão que havia sido estabelecido na Síria, Palestina, Sicília e península Ibérica estava sendo passo a passo substituído pela expansão islâmica, o que resultou numa guerra permanente entre os dois grupos religiosos no mundo mediterrâneo, segundo Fletcher (2004, p. 94). Esta grande expansão do islamismo, dominando todo o Oriente Médio, o norte da África, a Europa Oriental, estendendo-se pela Ásia adentro, mas especialmente indo ao Ocidente alcançando as ilhas mediterrâneas e encravando-se na península Ibérica através do Estreito de Gibraltar geraria reações adversas nos cristãos europeus ocidentais, como se pode verificar. 1.3.2 A reação cristã à expansão islâmica Fato é que esta rápida, consolidada e recalcitrante expansão islâmica sobre regiões anteriormente ocupadas pelos cristãos, especialmente nas terras européias ocidentais, onde o cristianismo católico era hegemônico, foi recebida com uma intensa resistência. Tendo sido vistos como inimigos invasores e contrários à fé cristã, os muçulmanos não foram tidos como um grupo de pessoas a quem se deveria argumentar a fé cristã, na tentativa de levar-lhes ao caminho da salvação; era um mal a ser combatido; era um invasor a ser expulso; era um apóstata a ser castigado. Sendo assim, predominou entre os cristãos a indisposição ao diálogo inter-religioso para com os islâmicos até este período, segundo Fletcher (2004, p. 136). Desta maneira, o caminho mais razoável e a ordem do dia para se lidar com os maometanos eram as Cruzadas, que como se verá adiante, abarcava uma visão de defesa da posse tanto dos territórios, quanto da fé cristã católica antes professa neles. 37 A visão que a maioria dos cruzados, que eram cristãos ocidentais com um senso de vocação diante dos não católicos, tinha para com os infiéis era a do seu extermínio, posto que inimigos da verdade divina; ou aos que fosse permitido viver, restava a escravidão, já que estavam destinados ao inferno; poucas vozes se opuseram a esta visão restrita de tratamento de juízo, dado especialmente aos muçulmanos, segundo Neill (1997, p. 118). Zwemer denuncia que na época, quase todas as descrições dos islâmicos eram recheadas de ignorância e ódio. No entanto, ele destaca o trabalho pioneiro e sensível de Pedro Venerabilis, visto que teria sido o primeiro a traduzir o Corão e estudado o Islamismo com entendimento e erudição, procurando traduzir ao árabe versículos bíblicos fundamentais à exposição da fé cristã àqueles, assim como afirmou que o próprio Corão continha as armas necessárias a se atacar a fortaleza islâmica, contudo, continua Zwemer, ele se negou à tarefa missionária, alegando não ter tempo para isto visto que vivia ocupado com os seus livros. O sinal de um novo caminho a ser abordar os muçulmanos foi indicado pelo venerável Pedro, que claramente defendia a idéias do não uso das armas, força ou ódio, mas sim das palavras, da razão e do amor, ainda segundo Zwemer (1977, pp. 38,39). Apesar da relação hostil entre cristãos e muçulmanos, especialmente na Europa, do contato resultou contribuições ao mundo cristão ocidental, assim como no início da expansão islâmica o contrário havia se dado, por exemplo, através do funcionalismo público ocupado pelo povo do livro (cristãos), mais acostumado à vida burocrática e urbana, em contraste com a origem tribal e semi-nômade dos árabes (etnia majoritária e classe exclusiva na formação inicial do povo muçulmano), e pouco a pouco muitos destes cristãos foram se aculturando ao Islã, absorvendo costumes, padrões de vestimentas e culinária, assim como se acomodando aos benefícios garantidos aos seguidores do Islã e acabaram migrando de religião, tendo trazido aos maometanos a cultura oriental helenística e persa, traduzindo especialmente para o sírio muitos destes escritos, entre eles os trabalhos de Aristóteles, posteriormente revertidos ao árabe, segundo Fletcher, (2004, p. 50). Curiosamente, o contrário se deu com o contato posterior da cristandade ocidental com os árabes, posto que muito da antiga erudição cristã havia se perdido com a queda de Roma, e veio a ser reintroduzida ao meio cristão através do caminho de retorno, de tal maneira que muitos destes clássicos foram re-introduzidos no cenário da academia cristã através da pena árabe, quando do tenso contato com os cruzados. Apesar das irônicas contribuições mútuas e das incipientes e veneráveis propostas de Pedro, o que predominava era a tensão entre os dois grupos; aliás ela apenas se acentuava, especialmente na Europa. 38 1.3.3 A tensão entre cristãos e muçulmanos na Europa É necessário que se tenha em mente que a percepção do europeu cristianizado acerca da expansão do islamismo sobre o seu continente natal é consideravelmente mais reativa do que a daqueles que não carregam consigo a memória da ocupação islâmica sobre o seu território. Para o homem moderno, globalizado, e especialmente para os filhos do novo continente, a percepção e o peso histórico-geográfico destes acontecimentos não têm a mesma força que têm para os povos do velho continente que conviveram com a histórica e conflituosa correlação entre geografia e religião. Com isto em mente, observe-se a descrição da tensão inter-religiosa em debate por parte dos seguintes estudiosos do tema, todos europeus, os quais revelam maior sensibilidade a devidas percepções a respeito desta questão. Uma bem detalhada descrição da expansão do Islã é feita por Fletcher e é apresentada na sua obra aqui em uso, na qual ele descreve a rápida e eficiente expansão militar e geográfica do Islã sobre as terras antes ocupadas pelos diversos segmentos do cristianismo (Fletcher, 2004, pp. 28-30). Cooperaram para esta expansão a estratégica estrutura militar islâmica, que associada aos relativos benefícios concedidos aos povos jurisdicionados, à simplicidade requerida à conversão à nova fé, às graves restrições ao abandono da mesma, à unidade da realidade sob esta crença; e, finalmente, às constantes, complexas e intermináveis questões teológicas que fragmentaram e puseram em estado de tensão e guerra os diversos segmentos do cristianismo. Fato é que uma a uma as regiões de antiga predominância cristã, agora estavam sendo islamizadas, começando pelo Oriente Médio, estendendo-se a Oriente e a Ocidente, tomando o norte da África e indo até a península Ibérica, cercando assim a Europa a Leste e a Oeste com a fé maometana. Havia, como ainda há, uma mútua e crônica ignorância sobre a mensagem própria de cada uma das duas religiões em destaque. A grande questão da autoridade dos textos tidos como sagrados tanto por cristãos, como por muçulmanos afeta sensivelmente o debate entre os mesmos. Muito da visão que os islâmicos têm do cristianismo vem do testemunho posterior que o Corão dá sobre “o livro e o povo do livro”, restando assim tensões sobre a discussão acerca das devidas autoridades dos respectivos livros sagrados. Esta tensão é assim descrita por Simon: “Dado que os infiéis negavam as autoridades cristãs ou, pelo menos, as interpretavam do seu modo, a disputa inter-religiosa que acudia às autoridades era tão inviável como ociosa” (Simon, 2004, p. 283). Tensões e ignorâncias 39 mútuas ainda perduram entre os seguidores de Cristo e os de Maomé e elas não estão relacionadas apenas aos textos considerados sagrados pelos dois grupos. Decorrentes de tantas tensões, que têm por fundo questões não somente de fé e de autoridade escriturística religiosa, mas também conflitos culturais, tensões sociais e fatores econômicos, como as devidas posses de terra, um grande choque de culturas se estabelecia e ainda se estabelece nesta relação entre cristãos e muçulmanos; e como resultado deste choque, está a dificuldade da conversão dos muçulmanos à fé cristã nos dias e nas terras pátrias de Lúlio, como expressa Jaulent: A conversão dos muçulmanos, porém, não era bem vista pelos senhores de Maiorca em virtude de certos prejuízos econômicos. O batismo devolvia ao escravo a condição de livre e melhorava sua condição de alforria. Por estes motivos, a conversão dos cativos muçulmanos não era muito favorecida e, sem qualquer dúvida, pode-se afirmar que os esforços de Lúlio para promover a cristianização dos muçulmanos contrariaram os interesses de boa parte da sociedade cristã e também das poderosas ordens militares do Templo e do Hospital. [...] Tenha-se em conta também a natural dificuldade que Lúlio encontraria na conversão dos muçulmanos, por possuírem estes uma tradição filosófica e científica que, ainda no século XIII, inexistia no Ocidente. Lúlio, visto por alguns historiadores como antimuçulmano, era, antes de mais nada, um homem de seu tempo, e tinha viva consciência da importância do Islã na vida cultual dos cristãos. (Jaulent, 2001b, pp. 11,12). 1.3.4 A situação mais específica na Espanha de Lúlio Como a citação anterior já começou a apresentar, é preciso se destacar do todo, a percepção da tensão islâmico-cristã particularmente na península ibérica, não apenas porque lá ela ocorreu de forma particularmente mais intensa e longa, mas por ser a macroregião contextual de Lúlio, a sua terra natal. Observe-se a descrição desta tensão através do relato de Zwemer: Nenhum outro país na Europa tinha um contato tão estreito com o Islã, para o bem e para o mal, como os reinos de Castela, Navarra e Aragão. Ali, a disputa era tanto pela mente quanto pela espada. Por três séculos se pelejou uma cruzada tanto sobre a verdade quanto sobre o campo de batalha entre cristãos e muçulmanos. Neste conflito, os antepassados de Raimundo Lúlio fizeram a sua parte. Durante todos os anos da vida de Lúlio, o domínio muçulmano se manteve em Granada contra os reinos espanhóis unidos. Até o ano de 1492 os sarracenos não haviam ainda sido expulsos das terras da Europa meridional (Zwemer, 1977, p. 13). 40 Esta longa ocupação resultou em muitas revoltas por parte dos cristãos que estavam sob o governo de muçulmanos que dominaram a Espanha. Escritos ofensivos ao profeta Maomé e ao islamismo foram produzidos e, embora os cristãos tivessem sido capazes de viver sob o novo regime e domínio islâmico, “secretamente insultavam aqueles que estavam no comando”, comenta Fletcher (2004, p. 41). A série de favorecimentos aos convertidos ao Islã, assim como a constante pressão que o governo muçulmano caracteristicamente exerce sobre os não islâmicos têm sido instrumentos poderosos tanto de conversão quanto especialmente de manutenção na fé maometana entre os seus seguidores. Houve inúmeras conversões de cristãos ao islamismo especialmente no contexto espanhol e catalão em virtude destes favorecimentos, muitas vezes casos de apostasia consciente por parte de cristãos mais preocupados com as condições de sua vida, do que em suportar o preço de permanecer firme em sua confissão de fé cristã, ainda que a julgasse superior, afirma Fletcher, que em seguida corrobora o destaque que se costuma dar à nobreza do líder muçulmano Saladino frente a tensão com os cristãos cruzados: “Os cruzados eram capazes de respeitar tanto o valor moral quanto o marcial dos seus oponentes. Saladino é o principal, mas não o único exemplo, um homem de palavra, pio e sábio, clemente e justo, terrível apenas com aqueles como Renaud de Chântillon, que desprezou as leis da guerra” (Fletcher, 2004, p. 98). Neste ínterim, a Maiorca natal de Lúlio, estava à sombra das tensões vivenciadas pelo rei Jaime I, de Aragão, as quais não sendo apenas de ordem cívico-militar com os islâmicos, mas também de ordem político-pessoais relativas a questões matrimoniais intrincadas. Tendo recebido auxílio do príncipe português Pedro nestas últimas questões, o referido rei aragonês acabou por recompensar a este em 1231 d.C. com o comando da ilha de Maiorca, reconquistada recentemente dos muçulmanos, segundo Fletcher (2004, p. 97); sendo este o contexto histórico no qual surge Lúlio. Percebe-se que a relação entre os cristãos e os muçulmanos nunca foram completamente pacíficas, ainda que em alguns momentos um tivesse oferecido e recebido uma certa tolerância para com o outro grupo, a tendência histórica era, na melhor das hipóteses, de ignorância ou indiferença e nos mais tensos momentos de franca batalha sangrenta. A começar nas questões religiosas, tal conflito envolvia duas concepções muito distintas sobre a vida e sobre o mundo e a inter-relação disto com a fé, apresentada aqui a partir da obra em referência de Fletcher (2004, pp. 17-22). 41 Contudo, a tensão se acentuou com a disputa pela terra, desde a questão do direito de posse dos lugares considerado sagrados por ambos os credos até o próprio direito de defesa das suas respectivas terras, considerado legítimo por ambos. As questões das ocupações territoriais tanto na chamada Terra Santa, quanto na península Ibérica estavam no centro das principais tensões e dos mais sangrentos confrontos entre os adeptos destas duas grandes religiões monoteístas, tendo encontrado o seu ponto de maior tensão no episódio histórico conhecido como cruzadas, que por ter importância vital nesta pesquisa, não apenas em sua contextualização histórica, mas principalmente por ser um dos pontos polêmicos essenciais em Lúlio e por trazer consigo uma das principais controvérsias sobre o seu significado para a compreensão do seu pensamento e propostas, recebe um destaque especial nas considerações críticas do terceiro e último capítulo desta pesquisa. 1.4 Missões que influenciaram Raimundo Lúlio Se o que pôs [Raimundo Lúlio] definitivamente em marcha foi o exemplo do fundador dos franciscanos, seria um dominicano quem o orientaria quanto ao modo de realizar os estudos para os quais ele se sentia chamado. E, de fato, era um dominicano a quem não faltava a experiência nos assuntos que inquietavam a Lúlio, não apenas pela sua avançada idade (cerca de noventa anos), mas antes porque, como se verá, ele mesmo havia se ocupado de fomentar a pregação do cristianismo aos muçulmanos (Mata, 2006, p. 60). De uma forma bem peculiar, como se verá melhor em seguida, esta citação já demonstra como Raimundo Lúlio absorveu o que havia de melhor destas duas ordens missionárias dos seus dias, e assim, utilizando-se das suas contribuições, acabou por desenvolver o seu empreendimento missionário, aqui chamado de missiologia luliana, a qual será o tema de estudo do próximo capítulo. Por hora, a presente pesquisa apresenta as influências deixadas em Lúlio das primeiras missões cristãs aos muçulmanos, assim como destaca os principais personagens que colaboraram com o desenvolvimento da Missiologia de Lúlio, tendo sido simultaneamente os seus precursores. 1.4.1 As primeiras missões cristãs aos muçulmanos Apesar do lamento de Lúlio quanto à qualidade da espiritualidade da cristandade dos seus dias e quanto ao desinteresse pela evangelização dos outros povos, especialmente dos muçulmanos, com quem os relacionamentos só se tornavam ainda mais tensos, 42 trabalhos e iniciativas missionárias pontuais foram acontecendo, os quais foram precursores do que Lúlio viria a fazer e propor, como se pode verificar a seguir. Embora Mata informe que os “dominicanos foram os principais autores contemporâneos de Lúlio que recordaram a conveniência de se pregar aos muçulmanos [...]. Em Castela e em Aragão, eram os dominicanos os pregadores que neste mesmo século XIII tratavam de converter os muçulmanos” (Mata, 2006, p. 121), era muito mais comum a indiferença missionária da cristandade, o que Lúlio denunciava como evidência de miséria espiritual, igualmente passível de condenação, assim como ele também denunciava que o erro e a ignorância da fé cristã por parte de Maomé e dos seus seguidores era culpa da omissão cristã quanto à sua responsabilidade evangelística diante dos islâmicos; tais denúncias, que tinham o propósito de despertamento da cristandade, se podem verificar nas seguintes palavras da sua obra romanceada Félix, o livro das maravilhas: Félix teve uma grande maravilha com aquela grande pena que o corpo sofrerá no Inferno, e disse que grande pena será aquela que terá Maomé, que proporcionou a tantos homens estarem no Inferno, pois na pena de cada um será multiplicada a pena de Maomé. Quando Félix se maravilhou por muito tempo com a grande pena de Maomé, se maravilhou muito fortemente de os cristãos terem tão pouco cuidado de converter os infiéis, e teve a opinião de que, como se preocupavam tão pouco, teriam a mesma pena que os infiéis suportam nos Infernos. Enquanto pensava isso, Félix se lembrou de São Bento, de Santo Agostinho, de São Francisco, de São Domingo, e de muitos outros santos que estão na graça de Deus, por terem proporcionado a muitos homens serem salvos e fugirem dos Infernos. Por isso, se maravilhou de como não existem muitos homens que iniciam coisas novas que sejam úteis por todos os tempos, pelas quais multiplicariam sua glória (Lúlio, 2009b, p. 341). Apesar desta constatação de apatia quase universal dos cristãos para com a evangelização dos outros povos, houve gloriosas exceções naqueles dias próximos, que na maioria das vezes eram missionários enviados pelas ordens missionárias de São Francisco e de São Domingos, como foi o caso dos franciscanos enviados à evangelização da China seguindo a antiga rota da seda, conforme registra Cropani (2003, p. 12). Desta maneira, vê-se que não foi Lúlio quem começou a evangelização dos muçulmanos, em certo sentido, a sua proposta missionária, tanto na teoria quanto na prática, foi uma continuidade nas missões cristãs a outro povos, ainda que se reconheça a deficiência do que estava sendo feito neste sentido. Por isso, não se pode deixar de reconhecer que houve novidade na proposta missionária luliana. Para que se entenda 43 melhor esta relação, a presente pesquisa se dedica à demonstração da influência das missões anteriores na formação da Missiologia Luliana. 1.4.2 A influência das ordens missionárias Como foi citado no ponto anterior, houve sobre a vida e a obra de Raimundo Lúlio uma certa influência por parte das famosas ordens missionárias de São Francisco e São Domingos. Agora, há de se ver qual foi a colaboração de cada uma delas para a formação do missionário catalão em estudo. Visto que os pregadores franciscanos e dominicanos restauraram em parte o interesse eclesiástico pela pregação pública, o destaque que se faz à Lúlio se deve à elaboração de um sistema missiológico que incluía um bom preparo por parte dos missionários, visto que se havia fervor e mobilização nas ordens missionárias, nem sempre houve uma preparação prévia ao contato e à evangelização intercultural, como se pode perceber do exemplo do próprio São Francisco de Assis, que nem sequer sabia falar uma língua comum com aquele a quem se dirigia, conforme a seguinte narrativa: Quando, no outono de 1219, Francisco tentou evangelizar o Sultão do Egito, Melek-el-Kamel, a sua experiência foi frustrante e, poderíamos dizer, inoportuna. Afinal, a tentativa se deu no contexto das cruzadas. Diz o cronista que Francisco, maltratado e “ignorando a língua dos turcos, apenas dizia ‘Saldan, Saldan’”, que quer dizer sultão. Sendo levado à presença deste e não alcançando o seu objetivo, Francisco é “reconduzido por homens armados para junto dos exércitos que cercam Damieta”. A missão foi um fracasso (Steuernagel, 1993, pp. 85,86). Não faltava a São Francisco apenas o conhecimento lingüístico necessário à comunicação intercultural, carência esta que depois receberia uma atenção e cuidado especiais por parte de Lúlio, mas também não havia no fundador do franciscanismo o desenvolvimento daquele tipo de mentalidade que buscava e enfatizava a eficiência na comunicação racionalmente objetiva da fé cristã, tornando-a inteligível ao seu interlocutor, como se verá no próximo capítulo desta pesquisa. Fato é que Francisco de Assis e Raimundo Lúlio são considerados os primeiros grandes vultos da evangelização dos muçulmanos, tendo ambos se destacado como “os únicos cujo entendimento da vontade de Deus os levou a substituir a guerra e a violência pelas mansas palavras do evangelho, como meio de estender as bênçãos de Deus prometidas a Abraão e a seus filhos na fé”, conforme Winter e Howthorne (1987a, p. 179). 44 Propor uma missão evangelizadora entre os muçulmanos em plena época das cruzadas fora algo por si só arrojado e arriscado, tanto para São Francisco, quanto para Raimundo Lúlio, posto que ambos se envolveram pessoalmente neste processo. Porém, Lúlio avançou um pouco mais adiante do que o seu inspirador, pois desenvolveu um ambicioso sistema filosófico-apologético, a Ars Magna, através da qual ele pretendia demonstrar racionalmente a superioridade da fé cristã sobre não apenas o Islã, mas sobre quaisquer outras matrizes de fé, e assim, através de razões lógicas e necessárias, convencer os seus interlocutores da superioridade da fé cristã, conforme Beaver, que resume muito bem a grandeza vanguardista da nada despretensiosa proposta argumentativa e missionária de Raimundo Lúlio nas seguintes palavras, ambientando devidamente a sua proposição no contexto cruzado e das intrincadas relações interculturais entre cristãos e muçulmanos: A série de guerras européias contra os muçulmanos, chamadas de Cruzadas, dificilmente pode ser considerada como forma de verdadeira missão. Elas tornaram as missões junto aos muçulmanos quase impossíveis até o dia de hoje por causa da herança de ódio que deixaram nas terras islâmicas. Assim mesmo, antes de as Cruzadas acabarem, Francisco de Assis pregou cheio de amor ao sultão e criou uma força missionária a fim de pregar em amor e paz. Ramon Lull, o grande franciscano, desistiu do seu status na alta nobreza da corte de Aragão e dedicou a sua vida como missionário junto aos muçulmanos, como o “Louco de Amor”. Ele convencia e convertia pela razão, usando o instrumento do debate. Para este fim escreveu o seu Ars Magna, com a intenção de responder convincentemente a qualquer pergunta ou objeção que pudesse ser feita pelos muçulmanos ou pagãos, idealizou uma espécie de computador intelectual em que os diversos fatores podiam ser registrados e a resposta certa apareceria. Lull implorou incessantemente, durante muitas décadas antes do seu martírio, a papas e reis que criassem colégios para o ensino da língua árabe e outras e para o treinamento de missionários, e recomendou-lhes muitos esquemas para o envio deles ao estrangeiro (Beaver, 1987, p. 231). De fato, Lúlio recebeu influência de ambas as ordens, tanto de dominicanos, quanto de franciscanos, absorvendo de ambas o que elas tinham de melhor a oferecer, pois do contato com a Ordem dos Pregadores, os dominicanos, sentiu a necessidade de estudar para adquirir um melhor domínio doutrinário; e do contato com a Ordem dos Frades Menores, os franciscanos, sentiu a necessidade de oferecer um testemunho do cristianismo marcando-o com um estilo de vida simples, conforme indica Mata (2006, p. 63). Ainda a respeito das influências exercidas pelas ordens missionárias sobre Lúlio, Hillgarth discorre no trecho a seguir um pouco mais, identificando como este soube aproveitar o legado de ambas; assim como, na seqüência, vê-se a preocupação missionária 45 de Lúlio quanto à conveniência e a importância da evangelização dos mongóis, assim como de um acordo diplomático com os mesmos em seus dias, propostas que não recebiam a devida urgência por parte dos papas da época: Lúlio combinou de uma forma extraordinária elementos tanto da ordem dominicana como da ordem franciscana. A sua insistência na preparação intelectual e na fundação de escolas (para ensinar aos missionários as línguas de que necessitavam para dirigir-se aos muçulmanos, aos judeus e aos cristãos cismáticos, a leste), como também nas disputas públicas adequadamente preparadas entre os católicos e outros, provém de Raimundo de Penyafort. Por outro lado, a insistência de Lúlio em que os missionários teriam de estar preparados para o martírio e, ainda, o seu próprio misticismo — formalmente influenciado pelo sufismo muçulmano — provêm das idéias franciscanas. As dúvidas de Lúlio entre as duas ordens se explicam graças às dívidas que havia contraído — não é totalmente certo que se tornasse um terceiro franciscano, embora tenha estado retirado numa igreja franciscana em Maiorca e que estivesse em contato com os franciscanos que mais tarde receberiam o nome de “espirituais”. Ainda que Lúlio tenha de ser compreendido dentro do contexto geral do pensamento papal e mendicante, em alguns aspectos, permanece independente. Para ele o assunto mongol era mais urgente do que parecia aos papas do seu tempo. Por exemplo, em 1309 escreveu: “Há três imperadores [dos mongóis] que, embora apenas faça menos de 80 anos que tenham descido das montanhas, agora governam mais terra que os cristãos e os muçulmanos juntos. Um desses imperadores, o senhor da Pérsia, com todo o seu exército, se havia convertido muçulmano e assim poderia impedir a conquista da Terra Santa. O papa deveria apressar-se em enviar frades bem preparados antes que esse se converta totalmente à fé muçulmana ... Também é provável que os outros dois imperadores se convertam [ao Islã]. Os mongóis poderiam conquistar facilmente Constantinopla e desde aí avançar em direção oeste”. No mesmo livro (De acquisitione Terrae Sanctae) e antes, mais detalhadamente, Lúlio propôs um método prático para negociar com os mongóis. Não há qualquer dúvida de que Lúlio tenha, aí, demonstrado mais perspicácia que muitos dos seus contemporâneos. (Hillgarth, 1996, internet). Apesar da influência das citadas ordens, Hillgarth defende a idéia de que Lúlio acabou exercendo um trabalho bastante independente, não apenas não se ligando aos franciscanos ou dominicanos, mas também independente da própria estrutura, modelo e visão eclesiástica dominante nos seus dias, devidos aos seus ideais estarem além do que era perseguido. Portanto, como compreender a relação de Lúlio com a Ordem dos Frades Menores, ou mesmo com a igreja institucionalizada, é o que se segue nesta pesquisa. 46 1.4.3. A identificação com o cristianismo institucional Embora fosse um ardente defensor da Igreja Católica como legítima expressão do Cristianismo verdadeiro, Lúlio focava na teologia católica o seu apoio, pois não media críticas à instituição católica, a qual queria ver restaurada, expressando maior piedade, amor a Deus e o conseqüente interesse e fervor missionários, conforme o registro de uma da suas orações feitas por Zwemer (1977, p. 112). Tais críticas lhe resultaram fortes oposições e suas idéias chegaram a ser consideradas oficialmente heréticas, por um tempo, embora tal sentença viria a ser revertida depois, visto que ele não foi um marginal, mas um submisso, embora crítico filho da sua Igreja. Sobre este tenso relacionamento, as seguintes palavras, novamente de Zwemer, são bastante elucidativas: Eymerich, dominicano catalão e inquisitor de Aragão depois do ano de 1356, declara expressamente que Lúlio era um leigo comerciante herege. Durante o ano de 1371 o mesmo Eymerich assinalou quinhentas proposições heréticas nas obras de Lúlio e a conseqüência disso foi que Gregório XI proibiu alguns daqueles livros. O franciscano Antônio Wadding e outros defenderam depois calorosamente a Lúlio e aos seus escritos, porém os jesuítas têm sido sempre hostis à sua memória. A Igreja Católica Romana, portanto, vacilou durante muito tempo entre se deveria condenar a Lúlio como um herege ou reconhecê-lo como mártir e santo. Ele nunca foi canonizado por nenhum papa, porém na Espanha e em Maiorca todos os bons católicos o consideram com um santo franciscano. Em uma carta que recebi do atual bispo de Maiorca, ele fala de Raimundo Lúlio como “um homem extraordinário de virtudes apostólicas e digno de toda a admiração” (Zwemer, 1977, p. 33). Deste relato, percebe-se não apenas a tensa relação entre Lúlio e o catolicismo institucional, mas também a associação popular da sua imagem ao franciscanismo. Alguns historiadores se dividem a respeito desta associação ter sido ou não real na vida de Lúlio. Iáñez, na sua obra sobre a literatura medieval, associa o período de estudos teológicos e meditação de Lúlio como um eremita no monte Randa, logo após a sua conversão, com um suposto ingresso seu na “Ordem Terceira de São Francisco” (Iáñez, 1992, p. 199). Embora Bustinza também identifique Lúlio como um franciscano (Bustinza, 2007, p. 805), é preferível seguir a interpretação do lulista brasileiro Costa que assim explica a relação entre Lúlio e o franciscanismo: [...] missionário laico, embora seu pensamento seja fortemente vinculado à espiritualidade franciscana. Ao contrário do que se costuma pensar, não existe nenhuma prova documental que Llull tenha aderido a qualquer ordem religiosa. Durante um período de sua vida esteve propenso a ingressar numa ordem, franciscana ou dominicana, mas não 47 foi persuadido. Na verdade, Llull foi um pensador leigo e a iconografia posterior o franciscanizou. (Costa, 2000, p. XVIII). Enfim, fato é que a história posterior associou Raimundo Lúlio com a imagem de São Francisco de Assis, tendo o tempo, inclusive, deixado os restos mortais de ambos repousarem em tumbas vizinhas, na Igreja de São Francisco, localizada em Palma de Maiorca, terra natal de Lúlio, conforme indica Zwemer (1977, p. 109). Concluindo esta investigação sobre as influências exercidas sobre Raimundo Lúlio, a presente pesquisa passa a discorrer agora sobre alguns dos personagens históricos que possivelmente teriam dado uma maior contribuição à formação missionária de Raimundo Lúlio, ou no mínimo, tiveram grandes similaridades de pensamento, possivelmente corroborando influências sobre este. 1.4.4 A influência de outros Raimundos em Lúlio Como fruto de uma curiosa coincidência, é notável perceber que foram outros Raimundos as pessoas que acabam exercendo uma forte influência na vida de Raimundo Lúlio, contribuindo para a sua formação missionária. Estaria o mesmo se dando com o autor desta pesquisa? Permitindo-se este aqui registrar tal interrogativa pessoal, como uma exceção à regra de distanciamento entre o autor da pesquisa e a sua redação. Dois são os personagens históricos, cujos nomes pessoais também eram Raimundo, que exerceram influência na formação missionária de Lúlio. O primeiro deles, Raimundo de Penyafort aparece bastante entre as redações dos historiadores lulistas como tendo sido aquele que mais forte influência pessoal exerceu sobre o personagem em estudo, conforme se pode verificar das seguintes palavras do lulista, também catalão, Jaulent: Nos anos 1200, o esforço apologético desenvolvido pela Igreja na Coroa catalano-aragonesa apoiou-se fundamentalmente na Ordem dos Pregadores, e sobretudo na pessoa de Raimundo de Penyafort, confessor e conselheiro do rei Jaime I seu protetor. O grande dominicano catalão, alma da política religiosa do rei, tinha idealizado um projeto missionário que incluía a fundação de escolas nas cidades ocupadas pelos reis cristãos, a imposição da pregação cristã nas sinagogas e a organização de controvérsias entre teólogos e rabinos. Seu projeto estendia seu raio de ação até Tunis e Paris. Raimundo de Penyafort soube transmitir seus enfoques e estratégias peculiares aos que o ajudavam na difícil tarefa da conversão dos infiéis. Dentro deste quadro geral, urge Lúlio, que, muito embora nunca tenha se afastado da órbita dominicana e contasse com a amizade de muitos frades – dentre eles o próprio Raimundo de Penyafort –, adotou desde o começo uma postura isolada e original (Jaulent, 2001b, p. 9). 48 Muito embora Jaulent identifique Lúlio como alguém independente e original, percebe-se o paralelo entre os ideais de Penyafort e os de Lúlio. Ao se apontar este paralelo, não se está diminuindo a contribuição original do gênio luliano, mas antes procurando apresentar as possíveis fontes de inspiração ao projeto luliano, a partir dos contatos estabelecidos pelo missionário maiorquino em estudo. Especificando um pouco mais o paralelo entre as idéias de Raimundo de Penyafort e as de Raimundo Lúlio, Bragança e outros destacam do projeto de escolas missionárias de Penyafort – escolas estas que viriam a ser um ponto importante da pauta de reivindicação persistente de Lúlio às maiores autoridade civis e religiosas – a necessidade de se ter em seus currículos o studia linguarum, o que previa o estudo tanto das línguas, quanto também das próprias culturas dos povos árabe e judeu, a quem deveriam se dirigir os missionários formados nestas escolas (Bragança et all, 2007, p. 14). Se no âmbito do contato pessoal, pode-se destacar a influência do dominicano Raimundo Penyafort nas idéias de Lúlio, deve-se considerar Raimundo Martí, outro dominicano catalão, como o legítimo precursor de Raimundo Lúlio na prática missionária cristã aos muçulmanos. Observe-se a seguinte afirmação de Saranyana sobre Martí: Este dominicano catalão nasceu em Subirats (Barcelona) por volta de 1230. Seu nome é citado no capítulo da Ordem dominicana de 1250, celebrado em Toledo, onde lhe é dado o encargo de estudar línguas orientais. [...] Posteriormente, foi enviado a Tunis, onde permaneceu até 1269. Morreu em Barcelona em 1284, ou pouco depois. Por volta de 1258, redigiu uma Explanatio symboli Apostolorum ad institutionem fidelium, descoberta por André Berthier e apresentada em sua tese de doutoramento em 1931. Porém, o tratado mais importante de Martí é o Pugio fidei contra (mauros et) iudaeos, redigido por volta de 1278 (Saranyana, 2006, p. 345). Se e quanto os escritos, tanto os de Raimundo Penyafort, quando os de Raimundo Martí, foram conhecidos e serviram de base para a formulação do projeto missionário de Raimundo Lúlio, aqui não se consegue comprovar, podendo ser tema de aprofundamento e doutoramento futuro, mas pode-se perfeitamente se identificar nestes outros Raimundos os precursores históricos de Raimundo Lúlio no modelo missionário por este desenvolvido, o que incluía a construção de escolas formadoras de missionários treinados na língua e na cultura dos povos a serem alcançados, dentre os quais, os muçulmanos e os judeus, que aparecem constantemente nas propostas e escritos de Lúlio, especialmente aqueles. Contudo, Lúlio ia adiante, pois advogava, como se verá mais adiante, que os 49 missionários deveriam ainda ser versados em bom conhecimento teológico não apenas do Cristianismo, mas também nas doutrinas das respectivas religiões daqueles a quem eles deveriam comunicar a fé cristã; eles também deveriam ser aptos para demonstrar a superioridade da fé cristã sobre as demais através de convincentes escritos apologéticos, assim como de uma vida cristã autêntica, seguindo o modelo dos apóstolos, como se percebe na seguinte exclamação de Lúlio: “Nós temos esperança que Deus envie a este mundo homens de vida santa, que também sejam da Ordem dos Apóstolos e que tenham a ciência e a linguagem para saber pregar e converter os infiéis, com a ajuda de Deus, e que dêem aos cristãos um bom exemplo com sua vida e suas palavras santas” (Lúlio, 2006, 32). Neste ponto encerra-se o presente capítulo como uma exposição contextual histórica e geográfica das missões cristãs que foram exercidas até os dias de Lúlio, destacando a relação entre cristãos e muçulmanos; e encerrando com a identificação do que foi feito na época e um pouco antes de Lúlio quanto à evangelização dos muçulmanos, destacando as ordens mendicantes e aqueles outros Raimundos que foram precursores de Raimundo Lúlio na missão cristã aos muçulmanos. A presente pesquisa passa ao próximo capítulo fazendo uma exposição panorâmica da teoria e prática missionária de Raimundo Lúlio, aqui identificadas juntas como Missiologia Luliana, pois como se há de perceber, teoria e prática estavam profundamente associadas na vida e na pessoa de Lúlio. A exposição de tal missiologia visa demonstrar de que maneira a mesma não foi uma simples compilação das idéias de outros, especialmente dos outros Raimundos há pouco apresentados, mas em que ela de fato veio a oferecer uma contribuição original às missões cristãs aos muçulmanos. 50 A MISSIOLOGIA LULIANA, TEORIA E PRÁTICA DE RAIMUNDO LÚLIO Havia uma grande necessidade de que se escrevesse de um modo adequado sobre a vida de Raimundo Lúlio [...]. Ele foi o maior missionário que já se dirigiu ao mundo muçulmano. Foi uma das figuras destacadas da Igreja Católica do século treze. Foi um cristão de espírito moderno de catolicidade – nem romanista, nem protestante – um homem de juízo espiritual e de amor divino [...]. Amou a Cristo com um amor apaixonado e viu que o único verdadeiro método missionário era o método do amor. [...] A grandeza do caráter de Lúlio se destaca de modo ainda mais marcante quando se considera em como ele se sobressaiu acima do mundo e da Igreja do seu tempo, antecipando em muitos séculos normas morais, conceitos intelectuais e ambições missionárias que nós só temos alcançado com muito trabalho e muito lentamente desde a Reforma [Protestante]. (Speer, 1977, pp. VIII,IX). O presente capítulo discorre a respeito do projeto missionário desenvolvido teórica e praticamente por Lúlio, o que nesta pesquisa é chamado de missiologia luliana, como já foi indicado. Esta íntima relação entre teoria e prática, teologia e vida cristã, missiologia e missão são claramente percebidas no pregador catalão; sendo assim, este projeto ao qual Lúlio dedicou as suas faculdades e vida desde a sua conversão e até a sua morte, passa a ser aqui apresentado numa perspectiva biográfica, apontando as possíveis contribuições do mesmo ao pensamento e à atuação missionária cristã contemporânea, numa perspectiva de atuação e avaliação protestante. 2.1 A biografia missionária de Raimundo Lúlio Ramon Llull estava com uns sessenta anos de idade na primeira vez que viajou para Tunis e mais de oitenta na sua última viagem. (...) [Diferentemente de] Marco Pólo [que] era um mercador. Llull pretendia dialogar com pessoas de religiões diferentes do cristianismo, para encontrar um caminho comum. (...) Llull não escrevia livros de viagens, nem descrevia paisagens. Viajava para falar com as pessoas, para saber o que pensavam e dizer-lhes o que ele pensava... sobre Deus. (...) Llull não se importava que o tivessem por louco, ou que considerassem impossíveis os seus propósitos... com o propósito de mover aos seus interlocutores a usar a razão (Mata, 2006, p.16). Embora Lúlio tenha sido apresentado como pregador, místico e até mesmo como político pragmático, conforme os destaques de Runciman (2003b, p. 374), a sua contribuição maior se deu em duas áreas: na produção literária, pelo que se destaca a variedade de temas abordados, assim como a diversidade de línguas nas quais escreveu, dentre elas o catalão, dando a este idioma a unidade e divulgando-o, pelo que é 51 considerado o primeiro escritor catalão de notoriedade universal, segundo Iáñez (1992, pp. 199-202); e o outro destaque está na sua proposta missionária, pois a missiologia luliana revela como Lúlio utilizou e subordinou o seu vasto e rico conhecimento filosófico ao uso teológico missionário, um contraste com o oponente árabe-muçulmano Averróis, que fazia o contrário, segundo Saranyana (2006, pp. 240,379). 2.1.1 Apresentação sucinta de Raimundo Lúlio Como foi demonstrado no capítulo anterior, a história das missões cristãs medievais indica que até Lúlio, a tarefa missionária da Igreja foi essencialmente a catolicização dos povos pagãos conquistados, o que praticamente restringiu as missões medievais à estratégia da educação cristã destes e a estes povos, com poucas exceções consideráveis. Agora, esta parte da pesquisa apresenta a biografia de Raimundo Lúlio, algo necessário para a devida compreensão da sua obra, especialmente porque nele, vida e obra estão muito interligadas, como reconhece Franch, ao afirmar aos interessados em aprender sobre o pensamento missionário de Lúlio, que a melhor maneira de fazê-lo é através da abordagem da sua própria vida (Franch, 1954, p. 24). Para uma mui breve visão inicial desta biografia, destacam-se as seguintes palavras de Neill, sobre Lúlio: nasceu na ilha de Maiorca, provavelmente em 1235, cinco anos depois de os catalães (sob a chefia de seu rei, Jaime o Conquistador) terem conquistado a ilha dos sarracenos. Até aos trinta anos, Lúlio foi um jovem cortês, galante e frívolo, um poeta sem nenhum pensamento especial acerca da religião. Então, subitamente, teve um dia três visões de Cristo, chamando por ele e pedindo-lhe que servisse o Salvador. A conversão foi completa. Durante os cinqüenta anos seguintes, Lúlio esteve incansavelmente ao serviço do seu Senhor. (Neill, 1997, p. 137). Após esta sucinta apresentação da biografia luliana, segue um detalhamento da mesma, o qual virá dividido a partir das principais fases da vida de Lúlio. 2.1.2 A vida inicial de Raimundo Lúlio Tendo nascido Palma de Maiorca no ano de 1235, segundo a precisão de Iáñez (1989, p. 199), outros estudiosos preferem apresentar o ano do nascimento de Raimundo Lúlio como não tão seguro a ser determinado, mas dentro do período compreendido entre os anos 1232-1235. Costa indica que o pai de Lúlio foi um nobre que participou da conquista da ilha de Maiorca, retomando-a dos muçulmanos em 1229, sob a direção do rei de Aragão Jaime I – o Conquistador, motivo pelo qual a família foi recompensada com 52 “propriedades na ilha – já por volta de 1232 sua família possuía cerca de 159 hectares” (Costa, 2000, p. XV). Lúlio foi educado no refinado ambiente da corte real maiorquina, segundo Iáñez (1992, p. 200), tendo sido preparado para a carreira das armas, como indica Costa (2000, p. XVI); porém, ele não permaneceu muito tempo na então provincial Maiorca, onde teria uma pacata vida típica do interior, pois quando ainda jovem, foi para a Espanha e serviu na corte do rei de Aragão, época na qual viveu em devassidão, embora casado e com filhos, pois como informa Tucker, tinha amantes e “pelo seu próprio testemunho, sua vida era completamente imoral”. (Tucker, 1996, p. 53). Costa indica que o nome da esposa de Lúlio era Blanca Picany, com quem teve dois filhos, Domingos e Madalena; e completa: “Mais ou menos nesta mesma época, foi nomeado administrador da casa real do futuro rei Jaime II de Maiorca” (Costa, 2000, p. XVI). 2.1.3 A conversão e o chamado de Raimundo Lúlio De tantas descrições feitas sobre a conversão deste jovem catalão de hábitos não religiosos e não piedosos, Tucker é quem a descreve de forma mais objetiva, sem contudo ser omissa, ao informar que a conversão de Lúlio foi mística, marcada por visões. Ele haveria tido três visões de Cristo. Na primeira, ele estava compondo uma música erótica, à noite, quando foi surpreendido pela imagem de Cristo pendurado na cruz, com as suas mãos e pés escorrendo sangue, olhando-o com censura; impressionado pela visão, parou a sua composição até tentou retomar tal obra na semana seguinte, quando se dá, novamente, a visão. Então ele se entrega a Cristo, mas é assaltado pela terrível dúvida se podia ele, tão pecador, ser aceito pelo Santo Jesus. Lúlio passa então a viver uma vida ascética, típica da mística monástica de então, até que tem uma terceira visão, através da qual, torna-se consciente da sua responsabilidade para com os que o rodeavam. Nesta visão, ele se encontrara com um peregrino, que ao saber da vocação ascética do mesmo, o repreende pelo seu egoísmo e o desafia a seguir o mundo e levar a outros a mensagem de Cristo. Lúlio procura dedicar-se especialmente aos sarracenos, que eram considerados os mais odiados e temidos inimigos da cristandade. (Tucker, 1996, p. 53). Esse episódio aconteceu por volta de 1265, aproximadamente aos trinta anos de idade de Lúlio, informa Costa (2000, p. XVI) e tal experiência mística marcou tanto a sua conversão como a sua vocação missionária, pois ao mesmo tempo em que ele foi repreendido pela sua promiscuidade, também recebeu a sua chamada missionária, o que honrou até a sua morte. 53 A conversão desse catalão veio acompanhada de três desejos, segundo Costa: 1) o de dedicar a sua vida ao serviço a Deus através da obra missionária de buscar alcançar para o cristianismo os gentios; 2) o de criar escolas onde se estudasse as línguas destes gentios a quem se procurava alcançar; e 3) o de dedicar-se à obra missionária com disposição para enfrentar até a morte, se necessário fosse (Costa, 2000, p. XVII). Caso não bastasse querer ser um missionário cristão, o converso catalão almejava alcançar exatamente o grupo mais hostilizado pela cristandade de então, especialmente os ocupantes da península Ibérica, os muçulmanos, ou simplesmente sarracenos, como costumeiramente Lúlio os chamava, visto ser uma denominação comum dirigida aos islâmicos por parte dos cristãos oriundos da península Ibérica. 2.1.4 O preparo missionário de Raimundo Lúlio Obediente à sua vocação missionária, Lúlio passou a concentrar as suas ambições no alvo da conversão dos islâmicos para Cristo. Para alcançar este objetivo, ele sentiu-se atraído pelos dominicanos, mas não se filiou à ordem deles, pois acabou se identificando melhor com os franciscanos, afirma Neill (1997, p. 137), embora como foi visto, também não tenha oficialmente se tornado um membro da ordem dos frades menores. Tais ordens tiveram um importante papel na renovação da vida religiosa ativa do cristianismo medieval, segundo acrescente ainda Franch (1954, p. 53), o que provavelmente teria levado Lúlio a procurá-las, em virtude do seu desejo de atuar como um missionário cristão. Lúlio não encarou a obra missionária que pretendia de uma forma romântica, como se fosse um idealista sem a percepção das necessidades reais do devido preparo. Ele, porém, estudou com afinco para primeiramente aprender a língua árabe, mas também para entender-lhe a filosofia e a cosmovisão, atesta Costa (2000, p. XVIII). No período no qual Lúlio se dedicava ao estudo da língua árabe, ele comprou um escravo sarraceno, que aborrecido com o apego do seu senhor ao cristianismo, blasfemou de Cristo um dia, muito enfurecendo ao seu senhor, pelo que Lúlio bateu nele e o escravo reagiu, puxando a espada e vindo quase a matar o seu senhor. O escravo foi preso e em seguida cometeu suicídio. Tal incidente abalou profundamente a Lúlio, que aparentemente, se viu mais ardorosamente despertado para a evangelização dos muçulmanos, segundo Tucker (1996, p. 53,54). Lúlio empregou nove anos de estudo do árabe com este seu escravo muçulmano, ao final dos quais ele já estava com quarenta anos de idade, identifica Costa (2000, p. XIX), encerrando esta fase de um aprendizado que foi fruto da mais profunda consagração do seu 54 ser ao serviço a Deus, afirma Franch (1954, p. 48), em obediência à visão do seu chamado e vocação missionária. 2.1.5 A vida missionária de Raimundo Lúlio Por certo, influenciado pela ordem dos franciscanos, Lúlio vendeu os seus bens, tendo deixado uma boa parte de suas riquezas à sua mulher e filhos – o suficiente para o provimento deles, segundo Costa (2000, p. XVIII) – e uma outra parte deu aos pobres; somente após o que ele passou a dedicar-se exclusivamente à obra missionária, afirma Tucker (1996, p.54). Percebe-se em Lúlio a fidelidade aos votos de castidade e pobreza, típicas das ordens mendicantes, mas o distanciamento da vida e do convívio familiar chamam a atenção, tendo em vista que visando cumprir a vocação missionária, ele desobrigou-se da demanda pessoal na relação familiar. Na sua corrida missionária, várias vezes Lúlio foi visto em diferentes pontos do então mundo cristão com o propósito de conseguir apoio ao seu projeto missionário de alcance dos gentios. Ele apareceu nas Universidades de Paris e Montpellier, na corte dos reis de Aragão, de França, da Sicília e até de Chipre; e também na presença de todos os papas que reinaram entre 1265 e 1320; nas repúblicas de Gênova, Pisa e Veneza, que, como já vimos, tinham relações importantes com o mundo muçulmano; e, finalmente, no Conselho Geral que se reuniu em Viena em 1311, segundo indica Neill (1997, pp. 137,138), numa busca incansável de apoio ao seu projeto. Tamanha correria visava estruturar na Igreja Romana condições de alcance dos muçulmanos para Cristo. Percebe-se que Lúlio foi um ardente defensor da causa missionária entre os muçulmanos e não mediu esforços para conseguir empreendê-lo, tanto pessoalmente, quanto influenciando e capacitando outros, mas o seu grande desejo eclesiástico era ver um empenho maior da igreja institucional em alcançar este propósito missionário. 2.1.6 Raimundo Lúlio, missionário até a morte Embora Neill afirme que Lúlio “parece haver visitado quatro vezes a África do Norte para pregar aos muçulmanos e discutir com eles, em pessoa. Na quarta destas visitas, em Bugia, em 1315, foi de tal modo agredido que morreu em resultado dos ferimentos recebidos” (Neill, 1997, p. 140), não se sabe exatamente o que aconteceu, visto não se ter registro documentado, contudo presume-se pela tradição que a sua morte se deu provavelmente no retorno à Espanha. 55 Sobre Lúlio, Iáñez complementa Neill: “passou indubitavelmente por Tunes, onde foi martirizado, e pelo menos duas vezes por Bugia, onde também recebeu maus tratos que – talvez (pois se perde o seu rasto) – o tenham levado à morte em 1315. Beatificado pela Igreja, é conhecido pelo título de ‘Doutor Iluminado’”. (Iáñez, 1992, pp. 199,200). Sobre os eventos que marcaram o final da vida Lúlio, cuja tradição associa ao martírio, importa a leitura da seguinte descrição de Tucker, que comenta a questão, assim como se percebe além da preocupação com a evangelização, o coração pastoral do ancião cristão, ao dirigir-se à sua pequena congregação de convertidos do Islã à fé cristã na Tunísia: Embora a permanência de Lull na Tunísia fosse compensadora, ela não permitiu o prêmio final que ele aspirava – a coroa do martírio. Lull foi influenciado pelo espírito da época em que vivia [...]. Morrer a serviço do Mestre seria o mais alto privilégio. Assim, em 1314 ele voltou a Bugia para visitar seu pequeno grupo de convertidos e submeter sua defesa do cristianismo ao teste final. “Por mais de dez meses o velho missionário permaneceu escondido, conversando e orando com os convertidos e tentando influenciar os que haviam sido ainda persuadidos... Finalmente, cansado da reclusão e ansiando pelo martírio, ele foi até a praça do mercado e apresentou-se ao povo como o mesmo homem a quem haviam uma vez expulso de seu meio... Ele suplicou com amor, mas falou claramente toda a verdade... Enfurecida com sua ousadia, mas incapaz de responder aos seus argumentos, a população agarrou-o e arrastou-o para fora da cidade: ali, por ordem, ou pelo menos com a conivência do rei, ele foi apedrejado a 30 de julho de 1315,” e morreu logo depois (Tucker, 1996, p. 59). Após a sua morte, Lúlio foi reconhecido como um cristão de destacada contribuição às missões cristãs e à medida que os seus escritos vão sendo estudados e a sua obra vai sendo conhecida, maior valor vai-se atribuindo ao missionário cristão natural de Maiorca. 2.1.7 Dialogando com a biografia missionária de Raimundo Lúlio Contemplar o contexto histórico da missiologia luliana deve servir não apenas para o devido entendimento da atuação do missionário cristão maiorquino, mas também para uma necessária e humilde auto-crítica da prática missionária da igreja cristã brasileira contemporânea. Na conclusão do livro no qual o luterano Steuernagel explora a História das Missões Cristãs, com o propósito anunciado de buscar modelos históricos de obediência à prática missionária, o autor lembra que “no decorrer da história da missão foram vários os motivos que levaram a Igreja a se engajar na prática missionária” (Steurnagel, 1993, p. 56 172); e os motivos predominantes teriam sido: o expansionista, o civilizatório ou o fortemente escatológico. O luterano segue afirmando a dificuldade de sermos absolutamente objetivos nesta busca de modelos puramente bíblicos, por sermos “filhos e filhas da época em que vivemos”, mas continua com um importante alerta: “O fundamental, no entanto, é discernir e decodificar as nossas influências e nossos fatores determinantes. Ademais, é fundamental que estejamos abertos para discernir a orientação do Espírito Santo e que nos submetamos renovadamente à autoridade da Palavra de Deus” (Steuernagel, 1993, p. 173), o que é um alerta para a análise não apenas dos exemplos históricos de missões, mas para uma auto-crítica lúcida da atuação missionária cristã contemporânea; e esta deve ser feita, acima de tudo na humilde reflexão dependente da instrução divina através do texto bíblico. 2.2 A visão missionária de Raimundo Lúlio Com estas três coisas firmemente deliberadas em seu pensamento, isto é, colocar sua vida para a honra de Jesus Cristo, fazer os livros acima ditos, e fazer construir e edificar diversos mosteiros, assim como dito acima, partiu daqui o reverendo e mestre e foi-se embora para a Igreja, que não era muito longe, e ali prostrou-se em terra, suplicando apaixonadamente, com lágrimas, que lhe fizesse suportar a um bom fim e conclusão aquelas três coisas que havia deliberado dentro de sua alma (Lúlio, 2010, internet). A visão missionária de Lúlio está essencialmente ligada à sua devoção pessoal. O seu entendimento sobre a responsabilidade missionária da Igreja e a sua estruturação de um sistema que bem conduza os missionários cristãos nesta tarefa são frutos do intenso desejo de sua alma de expressar verdadeiro amor por Deus, o que transparece nos seus escritos, dos quais se destaca como ilustração o seguinte: “O amigo perguntou a seu Amado se havia nEle alguma coisa ainda por amar. O Amado respondeu-lhe que sim: ainda restava por amar aquilo que podia multiplicar o amor do amigo” (Lúlio, 1989, p. 61). Segundo Jaulent, o Livro do amigo e do Amado, de onde foi retirado essa explicitação de amor a Deus “é, sem dúvida nenhuma, a obra mais conhecida e divulgada de Lúlio. ...cujo conteúdo é nada menos o diálogo que a alma apaixonada mantém com o seu Criador” (Jaulent, 1989, p. 35). Essa explicação revela que a fonte visionária de Lúlio foi a sua própria devoção cristã pessoal, o dínamo que energizou a sua missão e reflexão, pois “o filósofo foi absorvido pelo missionário”, como bem resumiu Zwemer (1997, p. 100). 57 Esta parte do trabalho pretende apresentar a visão missionária de Raimundo Lúlio, o que buscará ser feito a partir da identificação de três aspectos dessa visão: o ideal luliano, que é a razão da excelência do seu trabalho; o desconforto luliano diante da preterição missionária aos gentios, especialmente aos muçulmanos; e a missiologia luliana, conseqüente disto tudo e que engloba as bases norteadoras da atuação missionária propostas por Lúlio. 2.2.1 O ideal de Raimundo Lúlio A visão missionária de Lúlio é fruto do seu ideal, que por sua vez está essencialmente ligado à sua nítida vocação missionária. Bragança Jr., Costa e Pastor enfatizam “que o objetivo principal luliano é a conversão do infiel e que toda a sua obra gira em torno dessa premissa. A conversão, segundo Ramon Llull, não se deve realizar mediante ‘autoridades’, mas mediante ‘razões necessárias’, que ensinem ao infiel entender a falsidade da sua religião e a verdade de Cristo” (Bragança Jr. et all, 2007, p. 27). Verifica-se daqui que não apenas os escritos, mas também a própria vida desse missionário maiorquino está focada no propósito de trazer à fé cristã aqueles que ainda não a professam, pois Lúlio carregava consigo a missão de apresentar a fé cristã a todas as pessoas, especialmente àqueles que ainda não eram cristãos. Dessa tarefa, ele via a urgência de converter os muçulmanos para o cristianismo, segundo Mata (2006, p.12). O desejo intenso de Lúlio de ver os gentios convertidos a Cristo transparecia como uma urgência nos seus escritos. Algo marcante em sua vida e que não escondia de ninguém, chegando inclusive a registrar assim no prólogo do Livro das Maravilhas, que é um trecho autobiográfico de Lúlio, o qual assim fez referência ao estado da sua alma ao constatar o desinteresse de tantos por Deus, observado em terras gentílicas: Em tristeza e em fraqueza estava um homem em estranha terra. Fortemente se maravilhava das gentes deste mundo como tão pouco conheciam e amavam a Deus [...] Este homem chorava e se compadecia como neste mundo existem tão poucos amantes e servidores e louvadores de Deus. E para que fosse conhecido, amado e servido fez este Livro de maravilhas... (Lúlio, 2006, p. 22). O desejo de Lúlio é ver um mundo mais piedoso, habitado por pessoas que conheçam a Deus, o adorem e o sirvam como fruto deste amor. O seu sonho era ser parte do processo de conversão de gentios à fé cristã, mas o seu ideal era bem mais abrangente, não se restringia a converter muitas pessoas; não que isso por si só fosse uma tarefa menor, 58 pelo contrário, pois o arrependimento e a conversão de um pecador são apresentados como motivo de júbilo no céu no texto neotestamentário de Lucas 15.10 da Bíblia Sagrada (1993, p. 66). No entanto, a conversão dos nãos cristãos à fé em Cristo era parte de um ideal visionário de ampla reforma da sociedade, pois para Lúlio, “o mundo só poderia ser reformado se, por um lado (o da cristandade), os fiéis fossem educados na religião (a começar pelos príncipes); por outro, os infiéis fossem convertidos, pelo diálogo, pela razão”, afirma Costa (2006, p. 21). O ideal visionário de Lúlio se deparava com um gritante contraste diante da real relação que o cristianismo estava mantendo com os muçulmanos e com os demais povos não cristãos, pois o que reinava era um grande desinteresse missionário e essa percepção gerava um grande desconforto em Lúlio, que é sobre o que se passa a tratar agora. 2.2.2 O desconforto de Raimundo Lúlio Da biografia de Lúlio, sabemos que ele cresceu com a proximidade da sombra do crescente islâmico, tendo em vista a ocupação moura na península ibérica, da qual fazia parte a ilha de Maiorca. No entanto, após a sua conversão o sentimento de Lúlio era de que a Igreja deveria envidar esforços para alcançar estes pela persuasão, pensamento dominante nas recém-nascidas ordens dos dominicanos e dos franciscanos, que segundo Cairns, “surgiram como respostas ao problema de trazer os muçulmanos e os hereges à fé, pela persuasão, através da educação ou do esforço missionário” (Cairns, 1995, p. 181). Este mesmo autor indica que as causas das cruzadas foram variadas, incluindo interesses econômicos ou políticos, mas identifica a motivação principal como religiosa (Cairns, 1995, p. 178), pois dentro da cosmovisão católica dominante havia uma estreita relação entre o reino de Deus e a chamada “Terra Santa”. Contudo, é praticamente ponto em comum entre os historiadores considerar as cruzadas como um desastre que marcou definitivamente a História, como faz também Armstrong (2001, p. 142), pois além da morte de muitos cruzados cristãos, inclusive crianças que foram enviadas na absurda “Cruzada das Crianças de 1212”, houve inúmeras outras conseqüências negativas na Europa, desde a desestabilização política e social de inúmeros reinos e feudos que perderam importantes cavaleiros no combate, até o agravamento das relações entre os cristãos orientais ortodoxos com os ocidentais católicos, pois além dos saques produzidos pelos esfomeados peregrinos ocidentais que vinham às cruzadas no Oriente, sobrou o clima absolutamente tenso da relação dos cristãos orientais a quem restou conviver com a maioria muçulmana que não havia sido vitimada pelas 59 cruzadas. Curiosamente, as cruzadas deixaram de positivo o fato de terem introduzido a Europa ocidental na diversidade cultural, ao lhes incluir no mundo islâmico, afirma Cairns (1995, pp. 180,181). Duas percepções se têm da leitura deste relato: 1) a mancha negra histórica que o cristianismo deixou impresso na sua imagem em decorrência dos vários erros cometidos nas cruzadas; 2) a nítida leitura revisionista histórica, comum na contemporaneidade. Apesar do seu espírito progressista e de ter sido vanguarda em muitos aspectos, Lúlio foi alguém do seu tempo, que escreveu e defendeu estruturas e modelos sociais dos seus dias medievais, contudo com o seu desejo intenso de ver santificada pelas virtudes cristãs as ações sociais e o mundo real dos seus dias. O livro da ordem de cavalaria é uma demonstração disso, pois é uma apologia luliana ao modelo da cavalaria, na defesa de que os atos e as responsabilidades dos cavaleiros sejam exercidos sob forte qualificação cristã, como explica Costa através das seguintes palavras: Para Llull, o cavaleiro adquire todas as virtudes teologales, necessárias e fundamentais para o seu ofício, mediante a fé. E de todas as qualidades derivativas da fé, as das obrigações mais importantes para o cavaleiro do Séc. XIII eram: a peregrinação à Terra Santa e a luta na cruzada. Da fé derivam também as outras virtudes teologales (caridade e esperança), o que faz com que o sistema luliano seja entrelaçado por um profundo sentido unitário. Esse mesmo entrelaçamento se dá com as virtudes cardinales e os vicios que elas combatem. (Costa, 2001, p. 37). Embora se possa considerar Lúlio excessivamente tolerante com as cruzadas, como já foi destacado, havia uma função de polícia religiosa nestes cruzados, aos quais ele procura educar; contudo, não se deixa de perceber as implicações da tolerância para com o pensamento do direito de posse sobre a terra de Canaã, motivo de conflito até os dias de hoje, só que entre os povos das outras duas religiões monoteístas naquela região, os adeptos do islamismo e os do judaísmo. Complementando esta discussão, Mata nos lembra que diferente do que em dias recentes se passa a ouvir, que busca apresentar o islamismo como uma religião de paz e tolerância em oposição à historicamente criticada prática dos cruzados (como foi visto em Armstrong), o ensino explícito do Corão caracteriza a religião islâmica como um sistema que nasce no contexto das guerras tribais árabes, procurando estabelecer um monoteísmo sufocando as reações dos contrários com muito mais do que o calor e a poeira dos desertos árabes, pois o Corão sanciona a guerra santa, conhecida como Jihad. Mata indica várias passagens do Corão islâmico que incitam a morte aos infiéis, leia-se estes como os não 60 muçulmanos; dessas passagens destaca-se aqui apenas duas: “Combatam por Alá: matem ou [eles] lhes matam”, ainda que se recomende a moderação neste combate, pois Alá não teria prazer em quem se excede nisto; “Combatei contra eles até que deixem de induzi-los a apostatar e se rendam ao culto a Alá. Se cessam, [que] não haja mais hostilidades contra os ímpios” (Mata, 2006, p. 21,22). Dá para se perceber a dimensão da dificuldade de se fazer missões cristãs entre os muçulmanos. A triste constatação das cruzadas é que as práticas de cada respectivo grupo envolvido foi essencialmente contrária à fé professada por eles, pois na ocasião, a tolerância gentil pregada no evangelho cristão foi vivida em grande medida pelos islâmicos e o combate letal contra os infiéis ensinado no Corão foi praticado em grande medida pelos cristãos. Lúlio não se rendeu à relação “cruzada” entre os cristãos e os muçulmanos tal como se tornou, abusiva, nem muito menos a apoio como recurso de “conversão” religiosa, pois ele entendia que os cristãos tinham uma responsabilidade maior, mais precisa e essencialmente evangélica de se aproximar e em se relacionando com os não cristãos, tentar apresentar-lhes racionalmente a fé cristã; esta percepção desdobrou-se na sua proposta missionário, próximo tópico de estudo neste trabalho. 2.2.3 A proposta missionária de Raimundo Lúlio O ideal luliano visto há pouco produziu nele um certo desconforto, levando-o a gerar a sua proposta missionária, que apesar da característica fortemente contemplativa pessoal de Lúlio, era profundamente prática e sofisticadamente racional. Apesar de Lúlio não ter convencido a igreja institucional para apoiar o seu projeto de reforma social, isto não comprometeu a sua determinação em perseguir a concretização deste ideal, pois embora nem Roma nem Paris quisessem abraçar tal alvo, segundo Costa (2006, p. 21), o missionário catalão prosseguiu firmemente procurando atingi-lo, de onde ele seguiu produzindo a sua proposta missionária. Lúlio definitivamente não tinha uma visão relativista dos diversos credos religiosos, ele não cria que Deus também poderia ser igualmente encontrado em religiões distintas do cristianismo, contudo Lúlio entendia que não se devia impor pela força aos muçulmanos que deixassem de seguir a Maomé e passassem a adorar a Cristo, visto que a religião cristã verdadeira se estabelece através de um princípio de culto pessoal, não cabendo a coação na busca da conversão ao cristianismo, afirma Mata (2006, p. 22). 61 Embora, segundo Costa, Lúlio visse que uma das duas principais obrigações do cavaleiro do Séc. XIII fosse lutar na cruzada (Costa, 2001, p. 37), essa luta não poderia ter propósito de conversão, mas militar, ainda que imbuída de valores religiosos. Para Lúlio, a devida instrução do missionário cristão era uma ferramenta fundamental para o seu trabalho missionário, por isso ele mesmo se dedicou de 1262 a 1264 a aprender a língua árabe, passando também a estudar latim, teologia e o pensamento filosófico distinto de cristãos, muçulmanos e judeus. Costa indica ainda a tendência de Lúlio de buscar a síntese desse conhecimento adquirido com a prática escolástica que era dominante na academia cristã do Séc. XIII (Costa, 2000, p. XVIII). Aquilo que Lúlio buscou, se ampliou dentro de si desembocando na convicção de que o devido conhecimento de teologia cristã, de literatura, das culturas e filosofias gerais e das línguas nativas dos povos aos quais se pretendia alcançar era parte necessária da bagagem cultural que o missionário cristão deveria ter. Sendo assim, Lúlio tentou persuadir tanto o rei da França quanto os intelectuais da Universidade de Paris da razoabilidade da sua argumentação apologética, tentando sem sucesso convencê-los, especialmente ao monarca, da necessidade da construção de escolas missionárias monásticas, onde se oferecesse treinamento missionário aos monges, o que incluía o estudo da língua dos povos pagãos a serem alcançados e o da capacidade de argumentação racional sobre a fé cristã, segundo Costa (2006, p. 20). Essa missiologia luliana era uma realidade em construção, pois a “ação missionária sofre necessariamente o influxo de quem a realiza. À medida que a pessoa ganha experiência e amadurece, muda e aperfeiçoa seus métodos e técnicas de conversão”, expressa Jaulent (2001b, p. 13). A grandiosidade de Lúlio se manifesta no fato de que o seu aprendizado missionário não era só dele, nem só para ele ou para o seu ministério pessoal, mas imediatamente se transformava em um projeto da igreja cristã para alcançar os não-cristãos; e assim Lúlio ia desenvolvendo a sua rica missiologia, que envolvia aspectos teóricos e práticos, como se pode ver. No coração da missiologia luliana havia três condições essenciais que formavam a tríade missiológica de Raimundo Lúlio, segundo Neill, a qual deveria ser aplicada para o alcance dos seus contemporâneos sarracenos. A primeira condição seria a necessária compreensão rigorosa da linguagem do povo a ser alcançado, por esta preocupação Lúlio planejou a fundação de escolas de línguas orientais e perseguiu tal objetivo até obter o apoio do Conselho de Viena em 1311, em parceria com as maiores e melhores universidades do mundo, para a fundação de cinco 62 colégios. O seu propósito com o estudo das línguas era penetrar profundamente na cultura dos sarracenos e assim, poder entendê-los e fazê-los receber com profundidade o Evangelho. A segunda condição era a composição de um livro que comprovasse racionalmente o cristianismo ao povo a ser alcançado, pois teve contato com muçulmanos cultos e compreendeu o seu ponto de vista, estes haviam desenvolvido uma escolástica própria, através da qual, defendiam suas doutrinas com muita razoabilidade, sendo útil e necessário, portanto, a produção de material didático com conteúdo e qualidade capazes de demonstrar a fé cristã aos leitores islâmicos. E a terceira condição era a disposição ao martírio como um testemunho fiel e corajoso perante o povo a ser alcançado, o que de fato ocorreu, pois testemunhar em países muçulmanos era uma decisão perigosa, visto que sob a lei islâmica, tal ofensa já devia ser punida com morte. Neill registra que o próprio Lúlio escreveu: “Os missionários converterão o mundo por meio da pregação, mas também vertendo lágrimas e sangue, e através de grandes trabalhos e no meio de uma morte amarga” (Neill, 1997, p. 138-140). Observa-se que esta teoria missiológica não se restringe aos sarracenos, mas pode muito bem ser estendida ao trabalho missionário transcultural. Nisto, Lúlio também estava bem à frente do seu tempo, por isso também, ele foi tão mal compreendido. Destaca-se das suas três condições, um perfil integral, pois envolve todo o ser do missionário: a sua inteligência, a sua emoção e a sua vontade, dirigindo-o para uma tarefa evangelística bem pensada, estruturada e desenvolvida. Em Lúlio, a dependência e a crença numa obra sobrenatural de Deus na redenção espiritual dos não-cristãos não excluíam o devido preparo para uma melhor atuação missionária dos cristãos. A visão missionária de Raimundo Lúlio era decorrente do seu ideal de ver a igreja cristã alcançando os não cristãos, especialmente os muçulmanos, cuja única aproximação significativa de cristãos conhecida estava sendo as cruzadas; para Lúlio, esta não era a visão principal que os muçulmanos deveriam ter dos cristãos, mas sim o evangelho. A missiologia luliana ensinava que aos não cristãos deveria se anunciar a fé salvadora, através de missionários devidamente educados e engajados nessa tarefa, o que indicava a necessidade da Igreja de se empenhar em edificar escolas missionárias, financiadas também pelos magistrados cristãos, com o propósito de bem preparar monges missionários, os quais deveriam ser educados na teologia cristã, na vasta literatura, nas filosofias universais, nas línguas dos povos a serem evangelizados e também na devida 63 maneira de apresentar e argumentar sobre a fé cristã com o propósito de persuadir pelo entendimento iluminado pelo Espírito Santo os não cristãos à sua conversão espiritual. 2.2.4 Dialogando com a visão missionária de Raimundo Lúlio A visão missionária luliana é essencialmente bíblica, pois é fruto do seu desejo de alcançar para a fé cristã aqueles que ainda não a possuem e pretendia fazê-lo através do devido preparo dos seus missionários para a fiel e eficiente comunicação da mensagem do evangelho àqueles que viviam sem a fé em Cristo. O desconforto sentido por Lúlio ao reconhecer a relação equivocada e omissa da igreja cristã dos seus dias com os povos não cristãos, revela-se escasso também nos cristãos contemporâneos, embora exista algum, pois a necessidade do mundo atual de receber missionários cristãos, especialmente entre os povos não cristãos, cuja carência atual não é menor do que a os dias de Lúlio, conforme nos informa Lidório: há no mundo hoje cerca de 24.000 grupos étnicos distintos, levando em consideração os dialetos e sub-culturas, espalhados por todos os continentes. (...) Dentre estas 24.000 etnias existentes, cerca de 8.000 ainda não foram alcançadas, ou seja, não possuem nenhum testemunho do evangelho ou uma igreja autóctone forte o suficiente para dar continuidade à expansão da fé naquela determinada região. (Lidório, 1996, pp. 74,75) Ainda segundo Lidório, metade da população mundial deve ser considerada como povo não alcançado, no entanto eles contam com apenas cerca de 3% do quadro total de obreiros protestantes mundiais (Lidório, 1996, p. 97). Os muçulmanos merecem ainda hoje uma atenção específica, pois além de serem o segmento religioso de maior velocidade de crescimento atualmente, são o seu segundo maior grupo religioso do mundo, com mais de um bilhão de seguidores no planeta. Esta parte do trabalho se encerra com um apelo de um palestrante, descrito apenas como VNN, um convertido a Cristo oriundo do mundo muçulmano. Ele exclama: Os muçulmanos são alcançáveis! Vocês acreditam nisso? A Bíblia diz que se teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer, se ele tem sede, dá-lhe de beber. Os muçulmanos hoje em dias têm fome e sede de Deus. O islã não é a resposta, Maomé não é a resposta. A resposta é Jesus Cristo, o Filho de Deus, e nós temos as boas notícias para compartilhar. Não falamos de alguma filosofia, mas sim de Jesus Cristo, que é o único Salvador do mundo. (...) Queremos ver novas formas da atuação de Deus usando as pessoas. Vocês têm visto isto em seus países. Venham compartilhar conosco nas igrejas e nos países islâmicos! (VNN, 1993, pp. 45,51). 64 As visão de urgência de Raimundo Lúlio diante da ignorância que o mundo muçulmano tem do evangelho, revela-se, portanto, ainda uma realidade bastante atual. 2.3 As letras na missão de Raimundo Lúlio Raimundo Lúlio, beato e mártir, o Doctor illuminatus, foi lapidado por ódio à fé cristã pela população fanática de Bugia, na Berberia (África Ocidental) [...]. Foi escritor feracíssimo e um homem de ação que pôs o pensamento a serviço de sua atividade de apóstolo cristão. [...] As suas andanças pelo mundo, as suas cansativas e múltiplas viagens, as estadas e o magistério em Paris e a copiosa obras regada a suor e lágrimas, as iniciativas e os planos, só tinham por objetivo a sua idéia dominante de missionário: a conversão dos muçulmanos (Nunes, 1989, pp. 8,9) Como foi visto, Lúlio foi extremamente ousado no seu sonho missionário, pois embora seja razoável se imaginar que ele não tivesse a real pretensão de conseguir alcançar toda a humanidade para Cristo, em muitos dos seus escritos é isto que ele parece transmitir. Se por um lado, transparece que ele anuncia um alvo por demais elevado para ser alcançado, por outro lado fica absolutamente claro o seu desejo de ver convertido o maior número possível de pessoas para a fé cristã. Em O livro dos gentios e dos três sábios, Lúlio descreve o anseio de um dos sábios como sendo o da bem-aventurança de ver todos os homens professando uma única e a mesma fé, formando um só povo no caminho da salvação, pelo que o sábio pede que se considere os benefícios de tal realidade (Lúlio, 2001b, pp. 47,48). Certamente o desejo daquele sábio era uma ilustração do incansável anseio de Lúlio de ver mais e mais pessoas convertidas a Cristo. O legado literário de Raimundo Lúlio é impressionante. Costa identificou 244 obras que sobrevivem até os dias de hoje (Costa, 2001, p. 23), o que faz de Lúlio um escritor de altíssima capacidade de produção literária, especialmente ao se considerar o fato de que ele viveu no Séc. XIII. No entanto, a relação de Lúlio com a literatura é singular, parecendo conviver bem, embora aparentemente em contradição com a sua inclinação à contemplação e à prática missionária, um verdadeiro paradoxo pessoal. Sobre a importância dos escritos lulianos, Jaulent não poupa louvores na sua reivindicação por um lugar mais honroso para Lúlio e os seus escritos na lista dos destacados autores da literatura cristã e até mesmo da universal. Assim ele comenta sobre o Livro do amigo e do amado de Raimundo Lúlio: 65 Lúlio pretende, pois, que o homem se eleve até Deus a partir da realidade criada e, depois, bem firmado em Deus, contemple nEle essa realidade. Parece-nos, assim, que Lúlio foi um precursor, por isso não estranha Menédez y Pelayo ter dito, referindo-se ao conjunto dos místicos espanhóis, que ‘Lúlio abre a série dos grandes’. Seu mérito, contudo, não se reduziu a adiantar-se aos tempos, mas consistiu em fazê-lo com um lirismo não igualado em toda a literatura da Idade Média (Jaulent, 1989, pp. 38, 39). Lúlio já ocupa um reconhecido lugar como escritor de destaque na época medieval, contudo, nesta parte do trabalho, busca-se apresentar a importância da literatura e dos estudos para Raimundo Lúlio, qual era a sua intenção de uso com o conhecimento das letras e com a sua produção literária. Como se verá, tais usos estavam relacionados à sua missiologia, à sua ambiciosa tarefa de argumentação apologética. 2.3.1 As letras a serviço da evangelização Jaulent nos recorda da “forte convicção que Lúlio alimentava de utilizar apenas argumentos racionais na defesa das verdades cristãs” (Jaulent, 2001b, p. 15). O seu compromisso com a verdade, relacionando-a essencialmente ao cristianismo, se conforma com o adágio reformado de que “toda verdade é verdade de Deus”. O próprio Lúlio indica a sua visão da estreita relação entre Deus e a verdade, na fábula do Livro das Bestas, através das palavras da Serpente em resposta ao Galo: “a batalha foi travada para que a Verdade confundisse e destruísse a Falsidade. Deus é Verdade, toda pessoa que sustenta a Falsidade combate contra Deus e Sua Verdade.” (Lúlio, 2006, p. 76). Esta percepção levou Lúlio a produzir literatura com o explícito propósito de converter não cristãos através de argumentos verdadeiros, racionais, como novamente o próprio Lúlio demonstra ao iniciar assim o prólogo do seu Livro do gentio e dos três sábios: Tendo convivido longo tempo com os infiéis, entendi suas erradas opiniões. Eu, homem culpado, mesquinho, pobre, desprezado por todos, indigno de escrever meu nome neste livro ou em qualquer outro, esforçarme-ei plenamente, conforme o método do livro árabe Do Gentio e confiando na ajuda do Altíssimo, em procurar novos caminhos e argumentos pelos quais os que erram possam ser encaminhados à glória sem fim, escapando dos infinitos trabalhos, e deste modo louvem a Deus nosso Senhor e chaguem ao caminho da salvação eterna. (Lúlio, 2001b, p. 41). 66 Percebe-se dessas palavras lulianas a sua firme esperança de que Deus se utilize dos seus escritos literários, ainda que parcos, para trazer à salvação mediante a demonstração racional da fé cristã, aqueles que estavam antes ignorantes quanto ao teor da sua mensagem. Esta literatura, entende Lúlio, não está acabada, mas deve ser buscada de diversas e novas maneiras, o que significa a escrita de diversas e novas obras literárias, as quais certamente deveriam responder melhor e mais adequadamente à demanda racional de cada contexto missionário. Isso é um sério alerta contra a acomodação à simples repetição das mesmas doutrinas, nos mesmos moldes; e a simples reedição dos mesmos livros. A tarefa missionária da literatura requer tanto a firmeza teológica bíblica, quanto à capacidade de discernimento e criatividade para se apresentar racionalmente as respostas cristãs às indagações feitas pelos não cristãos dos nossos dias também. Lúlio continua, demonstrando que na tarefa missionária ocorre um verdadeiro embate racional de confrontação de idéias e argumentos, e não deveríamos fugir desta conclusão, presumindo que em nossos dias podemos evangelizar sem comparação ou mesmo confrontação de idéias, como se pode verificar a seguir: Este livro é dividido em quatro. O primeiro prova que Deus existe, que existem nele as flores da primeira árvore, e que existe a ressurreição. O segundo livro é do judeu pretendendo provar ser sua crença melhor que a do cristão e do sarraceno. O terceiro é do cristão, pretendendo provar que sua crença vale mais do que a do judeu e do sarraceno. O quarto livro é do sarraceno pretendendo provar sua crença valer mais do que a do judeu e a do cristão. (Lúlio, 2001b, p. 42) A intenção de Lúlio com a sua vasta produção literária não deve ser entendida como simplesmente levar as pessoas a “aceitar Jesus como seu salvador pessoal”; ele não usava algo semelhante a reducionistas “quatro leis espirituais”; a sua intenção evangelística literária era mais profunda, o conteúdo apresentado e a demonstração do mesmo eram mais amplos, pois o propósito de Lúlio era levar os seus ouvintes e leitores a uma conversão espiritual consciente, fruto de uma confrontação densa de valores e sistemas de crença, para então colocar no coração e mente do seu leitor um quadro de referências e de valores cristãos, que serviriam de norte também para vida deles, como princípios a conduzi-los na fé que racionalmente lhes fora demonstrada no processo de evangelização calcado na demonstração da sublimidade da fé cristã. 67 2.3.2 As letras para a glória de Deus Apesar de toda a sua precisão racional, Lúlio entendia que a fé pessoal, salvadora, não estava condicionada à capacidade primeira das pessoas entenderem plena e racionalmente o conteúdo da mensagem cristã. Tal visão da fé pode ser percebida através das seguintes palavras lulianas: 1. Com a fé crê nas verdades que não entendes. 2. Com a crença conseguirás ciência. (...) 4. Não descreiais todas as coisas que não podes entender. 5. Primeiro crê, depois entende. 6. Subitamente crê e entende com deliberação. 7. Com fé tem vontade ativa e entendimento passivo. 8. Onde mais crês, mais poder entender. 9. Onde mais entendes, mais podes crer. (...) 17. Combate a falsa crença com argumentos. (Lúlio, 2007, p. 67,68) Ou seja, para Lúlio, a fé é uma graça que capacita o entendimento do conteúdo da fé que foi abraçado voluntariamente como seu. Há um paradoxo entre as afirmações de Lúlio e a sua apologética, pois apesar dele crer que não é a capacidade de entendimento do homem que o leva a crer na fé cristã, ele se empenha por comunicar ao pecador esta fé através da mais perfeita racionalidade possível. Percebe-se que para Lúlio, o problema do homem não é epistemológico, mas moral, não reside no fato dele não ter capacidade intelectual para crer, mas dele não ter a inclinação para fazê-lo; contudo, a solução divina consiste em usar a devida explicação racional da fé para alcançar, transformar e conquistar para a fé em Cristo o ser humano, que através desta confiança no evangelho, passa a contar com as disposições internas do seu coração voltadas para a devida compreensão da singela fé que o salvou. Analisando a relação entre entendimento e vontade nos escritos lulianos, Jaulent explica a natureza moral da fé e relaciona o devido entendimento da mesma através da virtude do amor a Deus, pois somente se o homem amar “a Deus com todas as suas forças, contemplará o mundo sob uma perspectiva divina. (...) Seu entendimento será bom e produzirá um saber igualmente bom, que multiplicará as boas obras” Mas, continua, se o homem se mantiver “esquecido de Deus, que é o seu fim, o homem se habitua a considerar apenas os bens sensíveis, aos poucos, entretido no que é passageiro e material, verá intoxicar-se sua capacidade intelectual (...)’” (Jaulent, 1989, p. 142). Essa explicação de Jaulent revela a compreensão de Lúlio quanto à natureza da mensagem do evangelho relacionada ao propósito da existência humana. Não ter em Deus o propósito da sua existência, deixará o ser humano, segundo Lúlio, disfuncional e incapaz 68 de perceber as realidades e os significados essenciais de todas as coisas, visto que que existem em relação a Deus. Esta cegueira espiritual é um profundo problema de natureza moral, pois o potencial racional do ser humano fora da comunhão com Deus ficaria alterado, semelhante a uma orquestra cujos instrumentos estão em desarmonia, produzem os sons, mas numa falta de sincronia tal, que o sentido que se deveria emitir é perdido no meio dos solos instrumentais que perderam o seu lugar no todo. Esta relação entre fé, vontade e entendimento no pensamento luliano não é racionalista e cartesiano como se parece num primeiro momento, mas com determinantes e essenciais elementos morais e espirituais, sem contudo, eliminar o papel da persuasão no ato da transmissão da fé cristã, como se pode verificar nos seguintes provérbios sobre a fé, da autoria de Lúlio: “19. A força da fé está pela vontade e a força do argumento está pelo entendimento. 20. O entendimento sabe que a fé ilumina vários caminhos com amor. 21. A fé é propícia à vontade e distante do entendimento” (Lúlio, 2007, p. 68) O ser humano aqui nos é apresentado como um conjunto, uma unidade de partes distintas que se interferem e interagem. Entendimento, fé e vontade estão relacionados, afetando-se mutuamente, de tal maneira que não se alcança o entendimento devido da fé aquele que não crê, assim como não se crê corretamente quem não quer seguir, nem se consegue ser cristão, quem não queira compreender esta fé. Do prólogo do Livro dos mil provérbios, lemos as seguintes palavras lulianas: “Como o homem foi criado para conhecer, amar, lembrar, honrar e servir a Deus, fizemos estes mil provérbios, com os quais damos doutrina para que o homem saiba se manter na finalidade para a qual foi criado” (Lúlio, 2007, 35), as quais encerram com precisão a apresentação do propósito não simplesmente evangelístico dos seus escritos, como se fossem meramente proselitistas, mas elevadamente doxológico. 2.3.3 Dialogando com as letras de Raimundo Lúlio Quando se toma conhecimento da dimensão do preparo intelectual necessário ao missionário cristão para que o mesmo desempenhe minimamente a contento a sua tarefa missionária, o estudante do assunto se surpreende com a seriedade com a qual a missiologia luliana tratava da questão. Este é um alerta necessário à atual igreja protestante brasileira, pois se por um lado, deve-se se alegrar pelo crescente interesse por missões, por outro lado, é necessário dosar a euforia com o alerta sobre a real necessidade do devido preparo dos mensageiros cristãos, os quais deverão ser capazes de dar razão da sua fé, conforme afirma 1Pe 3.15 no Novo Testamento da Bíblia Sagrada (1993, p. 192). 69 Sobre a humildade necessária antes da “aventura missionária”, Steuernagel diz: “o movimento missionário que começa a surgir na América Latina precisa ter humildade para aprender da história. Uma euforia adolescente só prejudica este necessário processo de aprendizado” (Steuernagel, 1993, p. 183). Em seguida, ele destaca quatro áreas de maior necessidade de aprendizado, a saber, as quais seguem com comentários do autor deste trabalho: 1) a questão da cultura, sempre problemática em termos de missões transculturais; 2) o treinamento missionário, já bem apresentado nesta parte do trabalho, na perspectiva luliana; 3) a questão da resistência no campo, apontando para a necessidade da perseverança e da persistência no campo missionário transcultural, pois muitos latinos desistem e voltam rapidamente do campo missionário frustrados com a escassez dos resultados esperados; e 4) a questão da fidelidade no sustento, visto que há grande prejuízo às missões a inconstância dos mantenedores, a Igreja, na tarefa do financiamento da obra missionária, conforme identifica Steuernagel (1993, p. 183). Lúlio alerta tanto para a necessidade de preparo acadêmico de qualidade por parte dos missionários cristãos, quanto demonstra a necessidade de uma incansável produção argumentativa. As capacidades de estudo e de expressão são essenciais também à formação dos atuais comunicadores do evangelho. Letras a serviço da missão, resume bem tanto a vasta obra literária de Lúlio, como também a sua ciência, conhecida como arte, a sua metafísica e a sua lógica, pois tudo tinha para ele um só propósito e objetivo último: a missão”, conforme atestam Fidora e Higuera (2001, p. 8). 2.4 O zelo missionário de Raimundo Lúlio Lúlio propôs aos seus interlocutores demonstra-lhes [a doutrina da Trindade] “com razões claras, por meio de uma arte até pouco tempo revelada por Deus, segundo creio, a um ermitão cristão [...] De fato, lhes demonstraria que a segunda Pessoas (da Santíssima Trindade) “racionalmente leva a si unida a natureza humana” e nela “muito razoavelmente” sofreu paixão para redimir aos homens do pecado. Pôs-se, pois, Raimundo [Lúlio] a pregar, até que um homem, temeroso, segundo o autor da Vita, de que aquele levaria a ruína a religião deste, o denunciou ao califa Abu-Hafs Omar I, hafsida que governou Tunis de 1284 a 1295. O conselho do califa decidiu por maioria condenar o pregador à morte (Mata, 2006, p. 178). A disposição de Lúlio para levar o evangelho aos muçulmanos já em idade bastante avançada, correndo risco de morte, mas esmerando-se por demonstrar como e por que a obra de Cristo é necessária à salvação revela muito bem o seu zelo missionário. 70 Para se entender a obra de Raimundo Lúlio, precisa-se reconhecer que para o missionário catalão, assim como para muitos filósofos medievais, as virtus (virtudes) do trabalho deveriam ser expressões da potência da volição que foi convencida pela razão do que deve ser feito conseqüentemente ao que se sabe ser verdadeiro, tendo o próprio Deus como referência, por considerá-lo um ser volitivo, segundo registra Costa (2001, p. 33). A filosofia cristã de Lúlio produziu mais este belo aspecto da sua missiologia: ela via que a teologia cristã tinha a necessidade de se expressar através de uma praxis que bem a refletisse através de atos piedosos, de virtudes que deveriam manifestar valores cristãos, até como expressão da imagem e semelhança divinas presentes no cristão, pois se Deus faz todas as coisas santas e justas, segundo o conselho da sua boa vontade, os cristãos deveriam, necessariamente, expressar através de um sério engajamento prático, a natureza da sua fé. Essa foi a força motriz poderosa da imensidão do labor missionário de Lúlio, o qual se passa a estudar agora. 2.4.1 Os valores morais de Raimundo Lúlio Apesar de facilmente se constatar que Lúlio havia sido um cristão contemplativo com mui requintada capacidade de abstração filosófica, isso ao invés de inibir a sua potência prática, parece ter sido precisamente o seu combustível motivacional, pois todo seu vasto conhecimento e refinado raciocínio não o distanciaram do front de batalha, antes serviram de reguladores e motivadores internos para o serviço missionário. Que a ação deve refletir os valores cristãos, Lúlio não tinha dúvida. Através de O livro da ordem da cavalaria ele não apenas regulava a atuação dos cavaleiros, em cujo sistema ele cria, mas aplicou esse raciocínio aos demais que compõem a cristandade, revelando uma cosmovisão essencialmente moral do cristianismo, como se pode perceber claramente das seguintes palavras de Rubió, analisando o livro da cavalaria citado e o pensamento subjacente nesta obra e presente na vida de Lúlio: Llull segue a tradição cavaleiresca quando disse que a honra do cavaleiro está primeiro com seu Senhor, com o domínio que defende e com os que nele habitam. Mas também diz, anos depois, que os estudantes e professores da Universidade de Paris desonram a Deus. O tema da honra e da ação virtuosa mostrará a relação entre as formas de atribuir a honra e a desonra tanto a cavaleiros como a clérigos; estudantes e professores membros de uma faculdade. (...) [A Arte era] um instrumento geral de conhecimento integrado da ciência sagrada, uma [argumentação] universal ao tratar de Deus, com a ciência adquirida pelo intelecto humano. (Rubió, 2001, pp. 82,83). 71 Avaliando a influência da teologia cristã sobre o pensamento luliano e o seu desdobramento na sua missiologia, que como se viu, tem uma natureza dupla, sendo conceitual e prática simultaneamente, Jaulent assim se expressa: Quais são esses dados que a moral luliana recebe da teologia cristã? Em primeiro lugar, a noção do verdadeiro fim do homem, que é um fim sobrenatural. Isto porque nas ciências práticas – e a moral é uma delas – os fins fazem o papel de princípios ordenadores do agir humano. Em segundo lugar, a noção das condições existenciais em que se encontra a criatura humana: possuir uma natureza ferida pelo pecado original. Por último, todas as conclusões teológicas que interessam à ordem prática: a graça, o organismo sobrenatural das virtudes e dos dons etc., serão também utilizados por Lúlio na construção da ciência moral. (Jaulent, 1989, p. 162) Destaca-se, ainda destas percepções de Jaulent, duas implicações que, às vezes, parece fugir à academia cristã, especialmente no campo da Teologia Pastoral, visto que se encontra no âmbito da ciência moral, que são: a influência do pecado original no exercício racional de todo homem e a incoerência de se refletir sobre algo prático sem a predisposição de tornar em ação aquilo que essencialmente está ligado à praxis. Lúlio novamente surpreende, pois a diversidade das suas atividades, a abrangência das pessoas abordadas por ele em busca de apoio à causa missionária, a vastidão suas obras e a extensão geográfica, lingüística e cultural percorrida por ele para a execução pessoal da obra missionária e a coordenação geral de um vasto projeto neste mesmo sentido, revelam claramente que Lúlio foi um cristão de ação, não apenas um teórico de missões, mas um missionário de larga, bem executada e rica experiência prática no campo missionário; o seu gênio se completa pelo fato de ele ter não apenas unido as qualidades da erudição ao trabalho prático, mas que a sua atuação não era pragmática, mas sim uma demonstração concreta daquilo que popularmente é chamado de “colocar a mão na massa”, em resposta ao que ele acreditava ser o dever missionário da Igreja Cristã. 2.4.2 Missões como expressões da fé cristã Como se percebe, em Lúlio, filosofia é mãe da ação, ou delimitando mais precisamente a sua natureza conceitual: a sua teologia produziu a sua missiologia. Se era grande a percepção luliana quanto ao conteúdo da fé cristã, não foram menores a proposta e a ação missionárias dela decorrentes. 72 Como já deve ter ficado evidente, para Lúlio seria uma tremenda aberração alguém se limitar a ser um teórico das missões; o devido entendimento da dimensão da tarefa reclama uma necessária e urgente resposta. Para o catalão em foco, a sua resposta não se limitou a traçar esboços de planos, currículos, construções, etc.; enfim, à elaboração teórica de um projeto missionário, a qual foi feita com qualidade, o que por si só já seria uma expressão prática do devido entendimento da questão missionária. Contudo, Lúlio envolveu-se e comprometeu-se pessoalmente Lúlio na atividade missionária, tendo se preparado para a demanda. Mata comenta que toda a vida de Lúlio fora marcada pela perseguição de uma jornada missionária de pregações, escritos e viagens que tinham o propósito de levar à fé cristã os adeptos de outras religiões, estando ciente e até disposto a morrer nesta tarefa, caso fosse necessário (Mata, 2006, p. 16). Essas palavras parecem contrastar com a maneira festiva, turística e glamorosa de algumas atividades chamadas viagens missionárias que ocorrem no meio cristão nacional. A intenção de Lúlio, o meio utilizado, o risco envolvido, o tipo de oposição encontrada e a dedicada argumentação evangelística que dominava a pauta das suas viagens revelam o perfil de uma incursão missionária, que é algo bastante distinto de uma excursão turística feita por cristãos. Ainda que um certo turismo religioso tenha o seu lugar no mundo mercantilizado contemporâneo, fica o questionamento se seria justo elevar tais passeios à condição de incursões missionárias, pois estas são de natureza e propósito distintos, embora semelhantes fisicamente e às vezes também próximos na forma como são apresentados. A propriedade destas qualificações deveria observar o conjunto da obra de cada uma dessas atividades, posto que revela a coerência com a devida dignidade do discurso missionário. O preço e o risco envolvidos nas incursões missionárias lulianas revelam a dignidade da sua natureza, pois como indica Costa, em virtude do desejo de ver crescer a fé cristã através da conversão dos povos não cristãos, bárbaros, muçulmanos sarracenos e outros gentios, Lúlio estava absolutamente consciente do risco envolvido e entendia ser necessário estar preparado para o martírio, pois este, inclusive e juntamente com a grandeza da demonstração pessoal de caridade, poderia ser o instrumento usado por Deus para atrair a Cristo e à composição da cristandade, todo o mundo (Costa, 2006, p. 20). Um solene alerta é dado aqui no foco essencial destas incursões missionárias, pois o alvo é efetivamente a conversão do outro, estando o missionário disposto a pagar com a própria vida nesta tarefa, o que de fato, deve ter ocorrido com Lúlio, pois ele enxergava no martírio cristão – o que não é nunca a retirada deliberada da própria vida, mas a disposição 73 para permanecer fiel no cumprimento do anúncio do Evangelho, mesmo que isto lhe custe a própria vida – um recurso da graça divina para impactar os gentios com a dimensão do valor que o evangelho tem para os que nele crêem, na expectativa de que tal testemunho reflita a glória do seu conteúdo e atraia a séria atenção da pretendida audiência. No início do Livro das Bestas, de Raimundo Lúlio, já apresenta um quadro de monges andarilhos missionários que refletem o entendimento luliano do relacionamento estreito entre a fé cristã e a sua essencial vocação proclamadora, em simplicidade e árdua dedicação neste exercício, como se percebe a partir deste breve diálogo entre Felix e o grupo peregrino, personagens da fábula literária citada: – Belos senhores, disse Félix, de onde vindes? De qual ordem sois? Porque, segundo vossas vestimentas, parece-me que sois de alguma ordem. – Senhor, disseram os homens, nós viemos de terras distantes e passamos por uma planície próxima daqui. Naquela planície há um grande encontro de bestas selvagens que desejam eleger um rei. Nós somos chamados de a Ordem dos Apóstolos, e nossas vestimentas e pobreza significam a conduta que os apóstolos tinham enquanto viveram neste mundo (Lúlio, 2006, p. 31). Além da natural identificação de Lúlio com a filosofia das ordens mendicantes, destaca-se aqui outra característica destas ordens, pois eram também predicantes, essencialmente missionárias, apegadas ao anúncio do evangelho. Esse desapego à vida frívola se elevava a níveis de incômodo com a vida terrenal, tal anseio pela glória celestial está presente nos diversos escritos de Lúlio, que apesar disto não assumia nem defendia a postura de um eremita. O mundo era visto como uma prisão e a percepção de estar no cárcere era decorrente do anseio pela parousia (Reino de Deus) por vir. Estes sentimentos e percepções estão ricamente ilustrados na conclusão do Livro do amigo e do amado, de Lúlio, que assim afirma: 365. – Dize, louco de amor: Que coisa é este mundo? – Cárcere dos que amam, dos que servem meu Amado. – E quem os põe na prisão? – Sua consciência, seu amor, seu temor, sua renúncia, sua contrição e a companhia de gente má. E este mundo é trabalho sem galardão, lugar de reparação (Lúlio, 1989, p. 129) Absolutamente distinto da Teologia da Prosperidade, Lúlio não esperava nenhuma recompensa terrena, no tempo nem na essência. 74 2.4.3 Dialogando com o zelo missionário de Raimundo Lúlio A juventude protestante brasileira deveria considerar seriamente a possibilidade de usar recursos e facilidades disponíveis em prol da atuação missionária entre povos não alcançados, especialmente entre os muçulmanos. As famílias cristãs, as agências missionárias e as denominações protestantes nacionais estabelecidas – e também os seus pastores – deveriam ouvir o seguinte alerta de Gasca, relativo aos motivos de serem poucos e majoritariamente mal sucedidos os missionários latino-americanos enviados à evangelização de muçulmanos: Muitas instituições não elaboram nenhuma pesquisa para fazer um treinamento adequado, com o objetivo de fazer missões em grupos de diferentes culturas e idiomas. A maioria dos países da América Latina é multi-cultural e pluri-ligüísta. A capacitação atual não dá alternativas para que o pastor trabalhe num campo mais amplo, ainda que dentro do seu país. Não inclui um treinamento prático que possa ser útil ao trabalho e à vida em outras nações. (Gasca, 1993, p. 113). Além de Gasca, outro palestrante, identificado como M. M. M., destacou cinco responsabilidades dos obreiros cristãos que quisessem ser bem sucedidos como missionários entre os muçulmanos atualmente em países islâmicos: 1) estudar intensamente a Bíblia e a sua doutrina, mais do que o Corão; 2) estudar apologética, focando-se nos pontos comuns de dúvida entre os muçulmanos; 3) estudar sobre aconselhamento, pois o trabalho missionário traz uma relação pessoal com o cristão e revela uma série de problemas pessoais para os quais o missionário deve apresentar respostas bíblicas; 4) exercer legítima e verdadeiramente uma ocupação profissional, pois além de desviar a desconfiança, atrai credibilidade ao estrangeiro; e 5) o mais importante, “começar o seu ministério entre os muçulmanos que vivem no seu próprio país”, pois não existe outra forma, aprende-se a evangelizar muçulmanos, evangelizando-se muçulmanos (MMM., 1993, p. 80,81). Embora relacionado à questão do preparo, estas orientações reclamam ação urgente e zelosa por parte dos interessados em realizar a obra missionária entre os muçulmanos. A História da Igreja tem inúmeros exemplos de dedicação que podem servir de inspiração para os atuais desejosos de realizar a obra missionária, não apenas entre os muçulmanos, mas entre todos os povos ainda não-alcançados. Steuernagel faz uma apropriada advertência sobre a maneira mais adequada para os cristãos atuais se aproximarem dos exemplos históricos de atuação missionária concreta já 75 realizada; o que ele afirma em sua obra acerca dos exemplos considerados, também são válidos à avaliação e à aproximação da atuação missionária de Lúlio. Destaca-se da referida advertência a seguinte observação: toda prática missionária na qual viermos a nos envolver será sempre instrumental. Todo objetivo missionário que viermos a elaborar, bem como toda retaguarda, institucional ou não, que viermos a estabelecer, será secundário e deverá estar a serviço da Missio Dei e submeter-se aos critérios desta. Como diz Paul Hiebert, ‘Missão é, antes de tudo, não o que nós fazemos, mas o que Deus faz’. (Steuernagel, 1993, p. 173). A tarefa que se tem a realizar é grandiosa. Parece que olhando ao redor não se encontra modelos de inspiração pessoal aos interessados em realizar atualmente a obra missionária, embora existam alguns. Lúlio, apesar de estar há quase mil anos de distância da cristandade atual, pode ser um modelo de zelo e entendimento combinados no serviço missionário. Ao se considerar os contextos histórico, cultural, religioso e social nos quais o referido missionário atuou buscando alcançar os islâmicos para a fé cristã, percebe-se que o seu trabalho ultrapassou os limites circunstanciais da sua época e pode ser visto como um verdadeiro paradigma histórico compatível com a prática missionária cristã em geral. Esta pesquisa procura apresentar a missiologia luliana a partir da sua visão essencialmente evangélica, pois segundo Tucker, quando Lúlio teve oportunidade de defender o cristianismo, ele estabeleceu uma posição doutrinária “ortodoxa e evangélica por completo” com “pouca teologia medieval e ... um mínimo de idéias romanas”, de tal maneira que os princípios básicos de seu argumento continuam plenamente válidos hoje num debate com muçulmanos, afirma Tucker (1996, p. 55). A relevância da missiologia de Raimundo Lúlio para a missiologia cristã contemporânea é percebida através da proposta de envolvimento pessoal intenso de Lúlio nesta causa, fruto da sua visão de que é imperativa à Igreja a ordem de Cristo de que se faça discípulos seus de entre todas as nações; e para isto, Lúlio compreendeu que a Igreja deveria se empenhar devidamente no preciso e vasto preparo dos seus missionários, capacitando-os para bem compreender a sua própria fé cristã, o pensamento humano universal, a cultura do povo a quem se pretende alcançar, assim como a capacidade de se expressar devidamente na língua nativa dos não cristãos, visando alcançá-los para a fé cristã através da persuasão argumentativa capaz, adornada pela própria vida piedosa e engajada nesta tarefa. 76 Três elementos são centrais e essenciais na missiologia luliana: 1) a necessidade de uma compreensão rigorosa da linguagem do povo a ser alcançado, por entender que somente com tal compreensão da linguagem e da cultura do povo a quem se pretende alcançar, é que se consegue transmitir devidamente a mensagem cristã; 2) o esforço por produzir literatura capaz de demonstrar racionalmente a fé cristã ao povo que se pretende alcançar, por entender que a conversão espiritual se dá através da persuasão racional da alma, o que expressa a sua convicção da superioridade racional do cristianismo, em virtude de ser tido por ele como a verdade; e 3) o oferecimento de um testemunho fiel e corajoso perante o povo a ser alcançado, pois Lúlio compreendia que a verdade do cristianismo e a seriedade da sua mensagem reclamavam uma atuação missionária engajada, o que serviria de eloqüente testemunho do seu próprio conteúdo. A relevância dos escritos e do conhecimento sobre Lúlio é grandiosa, enfatiza Jaulent, assim elevando-os a um nível muito superior ao que lhes tem sido indicado: “Lúlio, na verdade, tem sido muito pouco estudado ainda. No dia em que for mais bem conhecido, não resta dúvida que a crítica lírica e a teologia mística e colocarão ao lado de São Boaventura, o príncipe da teologia contemplativa” (Jaulent, 1989, p. 39). A vastidão da obra de Lúlio é um universo ainda a ser desvendado na academia de língua portuguesa, pois os seus escritos revelam uma grandiosidade potencial não devidamente pesquisado, portanto, ainda desconhecido. Mesmo discordando da ideologia política implícita de Armstrong em sua obra Islã, a sua seguinte observação é digna da última citação deste trabalho: “Para os ocidentais, nunca foi mais importante fazer uma apreciação justa e compreensiva do Islã. O mundo mudou em 11 de setembro. Agora nos damos conta de que nós, habitantes dos privilegiados países ocidentais, não podemos mais pretender que os acontecimentos que se passam no resto do mundo não são da nossa conta.”, comenta Armstrong (2001, p. 249). De fato, o referido atentado terrorista trouxe o mundo árabe e a fé islâmica para a pauta de discussão no Ocidente; e neste sentido, o estudo sobre a missiologia de Raimundo Lúlio se mostra mais uma vez relevante e necessário. 77 DEBATENDO CRUZADA E MISSÃO EM RAIMUNDO LÚLIO O que se diz das interpretações forçosas acerca das medidas políticoprudenciais do papado medieval e dos Concílios no tocante às Cruzadas serve, igualmente, para Lúlio, incensado por boa parte da historiografia como precursor disto que hoje está consagrado pela Hierarquia eclesiástica como “diálogo inter-religioso”. [Em três das suas obras,] Lúlio mostra um ímpeto cruzadístico impressionante [...] ao falar ao Papa da necessidade de empreender uma luta permanente contra os sarracenos; ao afirmar que “os anjos do Paraíso e os santos desejam que a Terra Santa e outras terras que os infiéis tomaram dos latinos sejam recuperadas [...] (Silveira, 2009, p. VI). De toda a visão panoramicamente passada sobre a missiologia luliana, o presente capítulo se debruça sobre duas questões pinçadas como essenciais para a compreensão da contribuição de Raimundo Lúlio para as missões cristãs entre os muçulmanos, as suas propostas para a realização das cruzadas e para a realização de um diálogo inter-religioso. Aparentemente contraditórias; e trazendo consigo opiniões também contraditórias sobre a intrincada relação de Lúlio com as cruzadas, este terceiro e último capítulo da presente pesquisa concentra-se na exposição um pouco mais esmiuçada destas duas questões, essenciais à compreensão do próprio Raimundo Lúlio, da sua proposta missionária, e conseqüentemente, da sua real contribuição às missões cristãs aos muçulmanos. 3.1 As cruzadas cristãs e os muçulmanos Na véspera do segundo milênio cristão, os cruzados massacraram cerca de trinta mil judeus e muçulmanos em Jerusalém, transformando a florescente cidade santa islâmica numa fétida câmara mortuária. Durante pelo menos cinco meses, os vales e fossos ao redor da cidade ficaram cheios de corpos em putrefação, numerosos demais para o pequeno número de cruzados que permaneceu para trás depois da expedição para eliminar a sujeira, e um fedor pairou sobre Jerusalém, onde as três religiões de Abraão tinham sido capazes de coexistir em relativa harmonia sob o domínio islâmico por quase quinhentos anos. Essa foi a primeira experiência dos muçulmanos com o Ocidente cristão, enquanto este se erguia da era escura que o envolvera depois do colapso do império romano no século V, e lutava para voltar à cena internacional. (Armstrong, 2001, p. 236). De fato, é preciso se reconhecer não apenas as atrocidades cometidas pelos cruzados durante a execução da sua jihad, mas também todos os demais malefícios que a empreitada deles trouxe. No entanto, Silveira faz um alerta importante sobre os riscos de se cair em uma crítica histórica sem o devido conhecimento da natureza e dos elementos que 78 compõem a complexidade das cruzadas, cuja tendência na história revisionista é apresentar outras caricaturas, agora associadas aos cristãos cruzados, e não mais aos muçulmanos, como se fazia naqueles dias. Vale a pena ler a seguinte crítica à história revisionista contemporânea: O mesmo Saladino, incensado no filme Cruzada (Kingdom os Heaven, 2005) como um homem tolerante e respeitoso para com o Cristianismo, na cena final pega um crucifixo caído no chão. A imagem sugere claramente que ele terá em seu futuro governo na cidade de Jerusalém uma atitude de respeito – coisa que os cristãos não teriam tido anteriormente. Mentira histórica: Saladino destruiu todas as Igrejas da cidade, erguendo mesquitas em seu lugar (Silveira, 2009, p. XIII). Esta citação já posiciona o leitor diante da dimensão do conflito que está por trás das cruzadas, particularmente quanto à relação entre os cristãos e os muçulmanos e como isto afetou, assim como foi interpretado por Lúlio em seus dias. O envolvimento que este teve no projeto cruzadista da realeza dos seus dias e a relação entre o seu apoio às cruzadas e a sua proposta missionária e/ou de diálogo inter-religioso são temas dos mais profundos debates e polêmicas relacionadas ao personagem aqui em estudo, por isso esta pesquisa dedica-se agora a explorar um pouco melhor o tema das cruzadas, encerrando este capítulo final discutindo a percepção de Lúlio a respeito da mesma. Antes de ser elemento essencial para a compreensão da proposta missionária de Raimundo Lúlio, as cruzadas foram acima de tudo algo determinante para a formatação não apenas das relações entre cristãos e muçulmanos, mas além disso para a construção do mundo como se conhece hoje, conforme atesta Runciman nas seguintes palavras sobre a relevância das cruzadas para a civilização: “as Cruzadas constituem um fato histórico crucial da história da Idade Média. Antes de terem início, o centro da nossa civilização situava-se em Bizâncio e nas terras do califado árabe. Antes de chegarem ao fim, a hegemonia da civilização passara às mãos da Europa Ocidental. Foi dessa transferência que nasceu a história moderna” (Runciman, 2003a, p. 11). Percebe-se, portanto, que independente dos erros cometidos pelos cruzados, entre as quais não se pode esquecer das atrocidades destes já citadas na referência que abre este capítulo da pesquisa, as cruzadas foram um evento histórico de alcance muito maior do que as questões religiosas envolvidas. No entanto, no que tange as relações entre cristãos e muçulmanos, qual a importância e impacto que se deve considerar delas conseqüentes? 79 3.1.1 A origem das cruzadas Como começaram as cruzadas? Se ao se buscar responder a esta pergunta está-se procurando saber não qual foi a primeira cruzada como tal, mas sim qual teria sido o gérmen de um grande deslocamento geográfico com propósito religioso, então as cruzadas remontam às antigas peregrinações religiosas a lugares tidos como sacros pela cristandade. As peregrinações que desde o século IV foram se tornando cada vez mais populares entre os cristãos tinham como um dos destinos prediletos à chamada Terra Santa, ou seja, os lugares onde se deram os fatos descritos nos evangelhos relativos a Cristo. O trânsito de peregrinos, muitos deles europeus, que viam nesta longa jornada até a região da Palestina uma maneira de expurgar os próprios pecados foi tolerado até mesmo quando os árabes tomaram os lugares sagrados cristãos. No entanto quando o controle da região foi sendo dividido entre turcos e árabes, o seu cenário foi ficando tenso e as peregrinações perigosas, o que provocou em alguns peregrinos o anseio pelo martírio durante a peregrinação, mas em outros provocou o desejo de proteção frente aos perigos. Desta forma, “houve peregrinações que pareciam ser pequenos exércitos. E nelas encontramos algumas raízes das cruzadas”, afirma Gonzalez (1986, pp. 48-50). Não foram poucas as peregrinações, nem poucos os peregrinos, o aumento deste tipo de interesse já ocorrera no século VIII, com peregrinos vindo até mesmo da Inglaterra, segundo afirma Runciman (2003a, p. 50). No entanto, não eram cruzadas. O nascimento das cruzadas como tal não foi assim percebido por aqueles que dela tomaram parte, mas é assim identificada nas seguintes palavras de Fletcher: Dede tempos imemoriais havia sido política romano-bizantina contratar tropas mercenárias estrangeiras. Podiam ser bandos sob o comando de um líder próprio com contrato temporário ou contingentes permanentes sob estreito controle imperial, como a famosa Guarda Varegue recrutada da Escandinávia e da Inglaterra. De modo que, quando o imperador Alexius I despachou enviados para o papa Urbano II, em 1095, em busca de divulgação para um pedido de ajuda militar, ele não estava fazendo nada de novo ou fora do comum. Temos uma idéia razoavelmente boa do tipo de resposta que ele esperava: forças militares organizadas, formadas por guerreiros bem armados e disciplinados, que podiam ser empregadas para tarefa militares específicas sob o comando de seus generais. Nesse caso, o que ele conseguiu foi uma multidão de guerreiros entusiasmados, mas na maior parte sem instrução, resistentes ao controle imperial, que atravessaram desordenadamente seus territórios e seguiram aos trancos e barrancos até a Síria e a Palestina, onde tomaram Jerusalém, em julho de 1099. Nós chamamos isso de Primeira Cruzada, mas os participantes, é claro, não. Eles não podiam ter idéia de que tomavam parte em uma operação que seria a primeira de uma série (Fletcher, 2004, pp. 86,87). 80 O grupo entusiasta, ao invés de um exército disciplinado, que chegou à Terra Santa, por onde passou deixou um rastro de saques, acentuando o abismo entre os cristãos orientais e ocidentais, mas acabaram sendo seguidos por outros grupos de nobres que melhor elaboraram as próximas frentes. O grupo pioneiro saiu insuflado pelo sermão proferido pelo papa Urbano no concílio de Clermont, na França; sob a promessa de indulgência plena de pecados a quem morresse na jornada, a orbe fanática saiu ensandecida, despreparada militarmente e sem provisões rumo à Terra Santa, sob os gritos de “Deus o quer!” e tendo alimentada a fantasia por pregadores populares como Pedro, o Ermitão, segundo Gonzalez (1986, pp. 50-53). Referindo-se àquele sermão do papa Urbano que teria estimulado a participação dos seus ouvintes na primeira cruzada, afirma Fletcher: está razoavelmente claro que ele proclamou que os participantes de uma peregrinação armada a Jerusalém não só levariam auxílio aos seus irmãos cristãos do Oriente, mas também adquiririam mérito espiritual e conquistariam para si um lugar no paraíso. Não era novidade falar-se em peregrinações, guerras santas, ameaças à cristandade e na santidade sagrada de Jerusalém: o que o papa fez foi amarrá-la todas juntas de tal maneira que se tornassem irresistíveis à pouco sofisticada devoção da nobreza européia do Ocidente (Fletcher, 2004, p. 87). Embora muitos queiram isentar Lúlio de quaisquer visões cruzadistas, não há como negar que havia nele sim muito desta visão tipicamente medieval sobre as cruzadas, mas com consideráveis distinções do pensamento predominante nos seus dias, como se verá adiante nesta pesquisa. 3.1.2 A natureza das cruzadas Uma justa compreensão das cruzadas passa necessariamente por uma correta compreensão da sua natureza; logo, a pergunta que se levanta é: definitivamente, o que foram as cruzadas? Como entender um exército armado marchando em nome de Cristo em direção a grupos de pessoas que professassem um credo distinto do seu, carregando consigo tanto espadas, como imagens da cruz de Cristo, as quais deveriam ser fundidas uma na outra, para lembrar ao cavaleiro da sua tarefa como o desempenho de um ofício sagrado, segundo Lúlio? (2000, p. 77). Não apenas o papa Urbano esteve associado ao estímulo às Cruzadas, mas também o papa Gregório XIII, o qual louvou a participação dos cristãos armênios na “Grande Cruzada da Cristandade”, identificada pelo pontífice como as “santas guerras” dos cristãos, 81 segundo Alem (1961, pp. 37,38). Desta forma, delineiam-se as Cruzadas como um empreendimento que, embora exercido como uma atividade de conotação e vocação religiosa, era essencialmente bélica e política, um poderio militar para inicialmente a resolução de conflitos de posses de terra e reconquista de territórios outrora sob o domínio cristão, embora posteriormente as Cruzadas tivessem sido usadas também para pressionar, perseguir, sufocar e até mesmo executar grupos tidos como heréticos, como ocorreu com a Cruzada contra os albingenses, ordenada pelo não inocente papa Inocêncio III, a qual em 1209 executou cristãos tanto albingenses, quanto ortodoxos no sul da França, segundo narra Gonzalez (1986, p. 83). Ainda que muitos cristãos comuns tenham visto e outros continuem vendo as Cruzadas como “guerras missionárias”, elas deveriam mesmo ser vistas simplesmente como uma ação militar, pois o papa Urbano II não pretendia a conversão dos muçulmanos, pois “o islamismo constituía, antes, uma ameaça que precisava ser aniquilada antes que suplantasse a igreja”, explica Bosch (2002, p. 277). As Cruzadas foram uma campanha de pessoas de vindas de várias nações européias em direção ao estrangeiro numa trágica loucura em nome de Deus; e delas, deve-se ficar com a grande lição de que boa vontade e disposição sacrificial não podem “substituir uma clara compreensão da” vontade de Deus, segundo Winter e Howthorne (1987a, p. 179). O que as Cruzadas foram é um empreendimento cívico-religioso-militar violento essencialmente de retomada de terras por parte dos cristãos, sob a convicção de se estar no direito sagrado e com a bênção divina neste empreendimento de reconquista. Esta visão revela uma nítida imagem predominante na Idade Média de uma sociedade modelar teocrática, a Cristandade, a qual dominava o ideário de Lúlio para o mundo, como se verificará mais adiante nesta pesquisa. 3.1.3 As conseqüências das cruzadas Empreendimentos da envergadura das Cruzadas deixam marcas profundas, o que de fato aconteceu. As Cruzadas trouxeram variadas conseqüências, como se pôde verificar já na abertura deste capítulo. Se positivamente Gonzalez destaca o aquecimento econômico – com o intercâmbio mais amplo dos países europeus com os do Oriente e o crescimento das cidades – e também o enriquecimento cultural europeu, oriundo do contato com os diversos saberes desenvolvidos pelos muçulmanos, como a filosofia, a arquitetura, a literatura e a matemática, especialmente na Espanha, devido à longa ocupação moura (Gonzalez, 1986, p. 83), negativamente ele apresenta assim as Cruzadas: 82 De todos os ideais elevados que cativaram o espírito da época, nenhum foi tão avassalador, tão dramático, nem tão contraditório como o das cruzadas. Durante vários séculos a Europa ocidental derramou seu fervor e seu sangue em uma série de expedições cujos resultados foram, nos melhores casos, de pouca duração; e nos piores casos trágicos (Gonzalez, 1986, p. 47). A última tentativa de se empreender uma Cruzada ilustra em si mesma o declínio absoluto que este empreendimento experimentara. Tendo sido conclamada por um papa moribundo, Pio II, contra os turcos, esta Cruzada foi perdendo todo o apoio que inicialmente parecia ter conseguido, embora tivesse o próprio papa assumido a cruz na Basílica de São Pedro, apesar de moribundo; ele anunciara com valentia em 18 de julho de 1464 d.C. que lideraria uma esquadra de galeras a partir de Ancona, apesar da sua saúde precária, mas ele acabou vendo-se sendo abandonado por todos os que lhe prometeram companhia e financiamento ao longo dos dias que se seguiram e na própria jornada ao porto, vindo por fim ele mesmo a expirar em 14 de agosto, tendo ainda sido poupado da notícia do fracasso da sua empreitada, conforme comenta assim Runciman: Quase quatro séculos antes, a pregação do Papa Urbano II induzira milhares de homens a arriscarem suas vidas na Guerra Santa. Agora, tudo que um papa que assumiu a Cruz conseguiu obter foi um punhado de mercenários que abandonaram a causa antes mesmo que a campanha tivesse início. O espírito cruzado chegara ao fim (Runciman, 2003b, p. 405). Focando a visão nas razões histórico-geográficas das Cruzadas e da Reconquista, Silveira as identifica e concentra a sua avaliação das mesmas como uma reação de retomada e resposta militar às cruéis ações iniciais dos muçulmanos quando em choque com os cristãos, como ocorreu na invasão da península Ibérica. Assim expressa Silveira: “[...] sobre as Cruzadas, assim como acerca da reconquista da península Ibérica pelos cristãos. Nos dois casos, tratou-se de uma luta de retomada das terras violentamente açambarcadas pelos muçulmanos, muitas vezes à custa de verdadeiras carnificinas” (Silveira, 2009, pp. XII). Esta não deixa de ser uma maneira corajosa de historiografar tais episódios nestes dias já denunciados de revisionismo. O autor denuncia ainda a crueldade do atualmente ovacionado Saladino quando este tomou novamente Jerusalém dos cristãos depois do curto 83 sucesso da ocupação cruzada. Tal denúncia do suposto tão somente nobre sultão, que teria sido registrada pelo seu próprio secretário, assim se inicia, segundo Silveira: Na segunda-feira, dia 27 do mês de rabi 2 [6 de julho], dois dias após a vitória, [o sultão] mandou trazer os templários e hospitalários cativos e declarou: ‘Purificarei a terra dessas duas ordens imundas’. Dava cinqüenta dinares a quem quer que apresentasse um templário ou um hospitalário cativo. Logo os soldados apresentaram centenas (...) Ordenou que fossem decapitados, preferindo matá-los a reduzi-los à escravidão. Havia junto a ele um grupo de doutores e místicos, certo número de pessoas devotadas à castidade e à renúncia. Cada uma delas pediu o favor de executar um prisioneiro, desembainhou seu sabre e descobriu o antebraço. O sultão estava sentado; seu rosto estava radiante, enquanto aqueles dos fiéis estavam sombrios [...] (Silveira, 2009, pp. XII,XIII). De certo, é necessário um juízo cuidadoso sobre as Cruzadas, e não apenas sobre as suas conseqüências, que realmente acentuaram a já tensa relação entre cristãos e islâmicos, mas também é necessário um olhar mais crítico ao revisionismo histórico que tende a cair na tentação oposta de tão somente vilanizar os cristãos e inocentar os islâmicos. Por hora conclui-se que mesmo tendo sido um empreendimento sócio-militar as Cruzadas deixaram conseqüências de alcance universais, estendendo-se para muito além da relação interreligiosa, mas afetando os rumos da economia, da cultura e contato entre as civilizações ocidental e oriental. As cruzadas deram um novo rumo especialmente à história da Europa. 3.1.4 As cruzadas para os muçulmanos É mais comum a idéia e que as Cruzadas foram ofensivas aos muçulmanos. No entanto, o estudo deste episódio e do seu significado para os seguidores do Islã requer mais luz, pois há muitas diferenças de percepções entre o Ocidente e o Oriente. Neill defende a idéia de que as cruzadas afetaram especialmente a relação entre os cristãos e os muçulmanos devido à ampla memória histórica típica dos povos do Oriente, daí haver ainda hoje resistência à mensagem do Príncipe da Paz, pois para “cada muçulmano das terras mediterrâneas, os cruzados são um acontecimento de ontem e as feridas estão prontas a abrirem-se de um momento para outro” (Neill, 1997, pp. 116,117). Alguns historiadores caminham no sentido oposto, defendendo a idéia de que houve “indiferença do mundo islâmico medieval às Cruzadas” e esta reação apenas expressava-se como uma parte integrante da indiferença comum do Islã para com a Cristandade, conforme propõe Fletcher (2004, p. 93). 84 Além de se verificar a opinião dos historiadores sobre a percepção das Cruzadas por parte dos muçulmanos, é importante ir em busca do registro de compreensões que os próprios islâmicos fazem sobre este assunto. Sendo assim, dá-se para perceber a partir da leitura do registro de um muçulmano que eles se vêem tanto como vítimas da Cruzada da Reconquista, como interpretam tal episódio como uma tentativa violenta de convertê-los ao Cristianismo, numa empreitada que também demonstrava a insensibilidade cultural daqueles cristãos, conforme assim se pode verificar do seguinte registro de Hammidulah: As ruínas da arquitetura muçulmana, ainda encontradas na Península Ibérica, mostram o progresso espantoso que foi alcançado nesse campo. Após a queda política, os muçulmanos foram vítimas de sangrentas perseguições, visando convertê-los ao cristianismo, com uma destruição em massa de suas bibliotecas com as quais se perderam centenas de milhares de manuscritos, queimados quando a imprensa ainda não tinha se projetado. A perda foi irreparável (1990, p. 287). De fato, tais palavras indicam precisamente que a leitura feita pelos muçulmanos do episódio das Cruzadas é a pior possível, na contramão daquilo que aqui se está tentando demonstrar como verdadeiro. Mas, não esconderia esta narrativa outros fatores além dos histórico-culturais que temos considerado? Apresentando uma avaliação peculiar sobre um aparente interesse mais recente dos muçulmanos sobre as Cruzadas, destaca-se as seguintes palavras de Armstrong: As Cruzadas foram acontecimentos desastrosos, mas formativos na história ocidental; elas foram desastrosas para os muçulmanos do Oriente Próximo, mas para a grande maioria de muçulmanos do Iraque, Irã, Ásia Central, Malásia, Afeganistão e Índia, elas representaram apenas remotos incidentes de fronteiras. Somente no século XX, é que os historiadores muçulmanos iriam se preocupar com as Cruzadas medievais, recordando com nostalgia o vitorioso Saladino e ansiando por um líder que fosse capaz de conter a nova Cruzada do imperialismo ocidental (2001, pp. 142,143). Com estas palavras, Armstrong ressalta não apenas o poder aqui já comentado da memória coletiva dos povos do Oriente, mas acima de tudo, a tensão que se vive entre a hegemonia do Ocidente nos âmbitos da produção de riquezas, de tecnologia e do poder de fogo mundial, o que alimenta uma tensão atual entre as duas civilizações. As Cruzadas afetaram especialmente as relações entre os cristãos e os muçulmanos, pois embora estes tivessem no passado ocupado as terras que nas Cruzadas os cristãos estavam reclamando de volta, houve muita resistência da parte dos islâmicos e também 85 crueldade da parte dos cristãos. Os muçulmanos viram-se, de fato, como vítimas desta empreitada e tendem a cultivar esta memória especialmente nestes dias, diante da hegemonia de uma nação ocidental, tida como cristã, e historicamente associada a um sacro destino manifesto cristão. Independente dos méritos ou deméritos de cristãos ou muçulmanos nas Cruzadas, é necessária a sensibilidade para com a percepção islâmica deste importante episódio histórico e sua valorização da parte dos adeptos do Islã. 3.2 As cruzadas para Raimundo Lúlio As obras dedicadas à cruzada são um espelho fiel da ambigüidade e dos mal-entendidos a que ela deu lugar. É evidente que essa sobrecarga ideológica já pertencente à história cruzada, embora nada tenha a ver com as cruzadas nem com os que, como Lúlio, no século XIII falavam dela. [...] [...] O que Lúlio entende por cruzada pode estar (e está amiúde) em clara oposição ao que seu intérprete entende. O resultado de tal análise interpretativa é evidentemente absurdo, pois não tenta compreender o autor, mas ajustá-lo à interpretação preconcebida pelo intérprete (Reboiras, 2009, p. XXVII). De fato, é muito difícil ao cidadão moderno ter uma interpretação das cruzadas distinta daquela que apresenta os cruzados como um grupo de ignorantes, muitos dos quais nobres, que em nome de uma fé cega em Deus e no poder da espada, se lançaram contra muçulmanos numa busca desenfreada de retomar à força da espada as chamadas Terras Santas; depois estendidas para a reconquista das demais terras ocupadas pelos muçulmanos e até mesmo contra grupos julgados como heréticos, o movimento das cruzadas acabou por ter a sua imagem associada à imposição da fé pela força, mas como, então se deve entender o apoio, estímulo e até dicas de guerra cruzada que o personagem em estudo, conhecido pela sua proposta de diálogo inter-religioso, fez? Esta parte da pesquisa, depois de ter ambientado o leitor no universo das cruzadas, procura mostrar qual a visão que Raimundo Lúlio tinha das cruzadas, e assim, elucidar a razão do seu apoio às mesmas. 3.2.1 A natureza militar das cruzadas para Lúlio Considerando o fato de que os primeiros livros editados em português sobre Raimundo Lúlio, assim como a maioria das referências a ele em manuais de história da Igreja tendem a fazer referências às quase que incontestáveis contribuições positivas e vanguardistas de Raimundo Lúlio, os primeiros contatos com as suas propostas cruzadistas pode causar além de estranheza, um certo desconforto, para não dizer decepção. No 86 entanto, ao se estudar as suas propostas dentro dos seu contexto histórico, conforme foi apresentado objetivamente no primeiro tópico deste capítulo, fica-se mais fácil perceber como ao mesmo tempo Lúlio pode ser apresentado como um missionário de vanguarda, um verdadeiro modelo a ser seguido, mas também um defensor das cruzadas. Inicie-se pelas suas próprias proposições. Lúlio defendia a idéia da unificação de todas as ordens cruzadas em uma única ordem e sob um único chefe, um rei cruzado; tais propostas deveriam promover um maior controle dos abusos dos cruzados, promovendo também nestes um maior senso de responsabilidade, ao apelar-se à vocação cavaleiresca. Assim propõe Lúlio: O senhor papa e os senhores cardeais instituirão e ordenarão uma ordem nobre, que será denominada Ordem da Milícia. O cabeça, mestre e senhor desta ordem será chamado rei guerreiro. Será chamado “guerreiro” como o requer a matéria desta distinção; “rei”, porque será o cabeça da milícia e porque lhe será dado um reino. Se for possível, que lhe seja dado o reino de Jerusalém. É justo que seja assim, porque este rei terá um cargo mais nobre que o de qualquer outro rei deste mundo, e porque a intenção principal deste rei guerreiro será conquistar Jerusalém. Se inicialmente não lhe for possível dar este reino, por ora lhe será dado outro reino, que seja possível conquistar. Por isso, este rei guerreiro há de ser filho de um rei, tanto pela honra do cargo que assumirá quanto para que as outras ordens militares sejam colocadas às suas ordens de bom grado. Assim, quando morrer este rei guerreiro, filho de rei, será eleito outro em seu lugar, filho de rei igualmente. Assim se estabelecerá a sucessão. Mais ainda: o senhor papa, com os senhores cardeais, ordenarão e criarão uma só Ordem da Milícia, que mencionamos acima, formada da união das Ordens do Templo, do Hospital, dos Alemães, de Uclés, de Calatrava e de todas as outras ordens militares (Lúlio, 2009, pp. 63,65). Tal proposta de Raimundo Lúlio revela a visão tipicamente medieval de teocracia, reveste-se da crença de que a Terra Santa é um direito legítimo à Cristandade, de que a cavalaria é uma realidade militar de natureza vocacional religiosa, visto que comandada por um rei constituído pela Igreja, com sucessão também pela via eclesiástica. Tal ordem, que não veio a ser criada, teria poderes incomparáveis, posto que estariam as cavalarias unidas em um só exército religioso, o que deveria concentrar as forças, coibir as tensões entre as mesmas, posto que unidas e demovê-las de atuações mais arbitrárias, visto que não estariam a disposição de quaisquer reinos, nem reis. Se inicialmente estranha-se a proposta luliana, ao se avaliá-la pode-se concluir que ela é educativa e visando maior eficiência e melhor padrão da conduta dos cruzados, posto que resgata a vocação religiosa das ordens cruzadas, mantendo-as. 87 Na defesa do seu modelo de cavalaria, Lúlio indica assim o papel dos cavaleiros cruzados, elevando à condição de martírio a morte nos campos de batalha cruzadas: Pela fé que existe nos cavaleiros bem acostumados, vão os cavaleiros a Terra Santa de Ultramar em peregrinação e fazem armas contra os inimigos da cruz, e são mártires quando morrem para exaltar a santa fé católica. E pela fé defendem os clérigos dos malvados homens que por fraqueza de fé os menosprezam, e os roubam, e limpam tanto quanto podem de seus bens (Lúlio, 2000, p. 89). Não apenas sobre os cavaleiros, mas todas as ações de todos os que são citados acima estão avaliadas à luz da fé, o que demonstra que para Lúlio, embora a cruzada fosse uma prática militar, deveria ser exercida como expressão de convicção religiosa, e as batalhas que ela envolvia, deveriam ser vistas como verdadeiras batalhas pela fé cristã católica hegemônica. Percebe-se nesta postura, ainda, entre os fiéis do católico-romano a pretensão à exclusividade ou no máximo a primazia dentre os demais grupos cristãos, pois tendem a sobrepor a realidade do cristianismo à da instituição católico-romana, demonstrando assim um espírito de intolerância estranho ao evangelho de Cristo, mas comum às manifestações religiosas fundamentalistas. A posição de Lúlio quanto às cruzadas, no entanto, não foi a mesma durante toda a sua vida, antes ele foi se aliando à política expansionista da corte francesa à medida que ia sendo convencido da utilidade e necessidade das cruzadas como força de combate da cristandade católica, tanto na reconquista da península Ibérica e da Terra Santa – terras indevidamente ocupadas pelos islâmicos –, quanto na reunificação da cristandade sob a égide romana – na conquista de Constantinopla, atraindo os ortodoxos à autoridade do pontífice romano, conforme indica Jaulent nas seguintes palavras: [Lúlio] considerava como primeiro objetivo a conquista de Constantinopla, antes mesmo de Granada. Escreve assim o maiorquino: “[...] que a cidade de Constantinopla se submeta à Igreja romana, como uma filha à sua mãe, e o cisma grego seja destruído. Destruído pela ciência, pela inteligência e pela força da espada [...]. Com a conquista de Constantinopla, a conquista da Terra Santa será mais fácil e cômoda, mas sem a conquista da primeira, a da segunda será mais difícil e demorada” (Jaulent, 2001a, p. 14). Se a espada do cruzado não serviria de argumento para trazer à fé o muçulmano, ela é bem-vinda em Lúlio como instrumento de reconquista de terras, e por que não dizer, também como poder de manutenção de toda a cristandade sob o domínio de Roma? 88 É perceptível o paradoxo em Lúlio quanto às cruzadas, pois ao mesmo tempo que ele defende e se empenha pessoalmente na conversão dos não-cristãos ao Cristianismo, ele também defende e promove as cruzadas; ele tanto oferece orientações táticas de guerras aos cruzados como anuncia-se humildemente como um “indigno, que, com bom zelo pela conversão dos infiéis, longamente não cessou de trabalhar” (Lúlio, 2009c, p. 37). Para se entender a visão de Lúlio das cruzadas e a razão do seu apoio às mesmas, é fundamental que se compreenda que o mesmo via a ocupação islâmica tanto das terras peninsulares da Ibéria, quanto à Terra Santa como território natural dos cristãos, tomado pelos islâmicos, que nelas passaram a blasfemar de Deus e da religião cristã, tida como verdadeira, numa época onde o conceito de Cristandade era predominante, e o Estado caminhava associado à Igreja, o que dificultava outra possível interpretação para Lúlio para a realidade da ocupação islâmica; para ele também isto fora um mal a ser extirpado de tais terras e as cruzadas eram o veículo apropriado, sendo ele um pregoeiro desta empreitada, conforme se pode perceber das seguintes palavras do próprio Lúlio: Por muito tempo o mundo permaneceu em mau estado, e ainda podemos temer o pior, pois como são poucos os cristãos e muitos os infiéis que dia a dia se esforçam para destruir os cristãos, aqueles, ao multiplicar-se tomam e ocupam as terras destes, blasfemam e negam vilmente a Santíssima, Verdadeira e Digníssima Trindade e a Encarnação do Nosso Senhor Jesus Cristo, para escárnio da corte celestial, possuindo a Terra Santa. Como parece que os cristãos não desejam remediar esse malvado e injusto estado de coisas, um homem deixou tudo o que possuía, e por muito tempo trabalhou, correndo quase todo o mundo, para poder impetrar do senhor papa, dos senhores cardeais e também dos outros príncipes deste mundo remédio e ajuda para pôr fim, se possível, a uma desgraça tão grande e tão indecorosa (Lúlio, 2009c, p. 37). Esta visão revela uma percepção histórico-cultural própria, mas não se pode fazer vista grossa à mesma, pois na prática acabava por revelar intolerância e incapacidade de convívio com o diferente. No mundo em que se vive hoje, tão plural e globalizado, não é necessária à negação da fé para o convívio harmonioso, nem mesmo a diminuição da sua importância, pois o problema não está no direito ao culto e à liberdade religiosa, o que inclui o direito de anúncio assim como o de convívio com os que a rejeitam, os quais continuam sendo cidadãos com plenos direitos civis e devem ser ainda objetos do amor pelos cristãos; o problema está na indisposição à tolerância e à convivência com o outro. Enfim, para Lúlio as cruzadas não eram argumento missionário, quando muito, poderia impor uma certa submissão de todos os cristãos à Roma, mas quanto aos infiéis o 89 seu papel era militar, ainda que sob um projeto teocrático, de busca de restauração de posses de terras a quem se julgava de direito. Este tipo de pensamento é bem complicado de ser defendido nos dias atuais, pois se não se está negando a nenhum povo ou nação o direito de lutar pelo seu chão, há de se reconhecer que tomar Deus como partidário de disputas por espaços geográficos só tende e piorar situações de conflito, como o que ocorre entre judeus e palestinos no Oriente Médio. Duas importantes críticas devem ser feitas ao modelo cruzadista de Lúlio quanto à atuação missionária da Igreja cristã contemporânea: a primeira delas diz respeito à comum, mas ainda relevante denúncia de que historicamente as missões incorreram no erro de levar juntamente com o evangelho, os valores culturais e os padrões sociais da cultura dos missionários. Isto é claramente percebido em Lúlio, que sendo incapaz de separar os conceitos de Cristandade e Cristianismo, propõe uma única ordem militar que luta pela manutenção e defesa de um Estado cristão, uma verdadeira teocracia, a se estender e guerrear com outros que se oponham à sua concepção de direito de posse à Terra Santa. 3.2.2 A natureza missionária das cruzadas para Lúlio Ainda mais polêmicas são as propostas de Raimundo Lúlio para o uso das cruzadas como meios úteis à evangelização dos povos, especialmente a dos muçulmanos. Teria o maiorquino defendido o uso da espada como instrumento de persuasão à fé cristã? Sobre este tipo de interpretação da proposta luliana, Bosh recomendaria cautela, pois afirma: “Até Raimundo Lulo [sic], que rejeitava toda tentativa de forçar muçulmanos e pagãos a converter-se à fé católica, apoiou a idéia de uma cruzada, dentro das fronteiras da cristandade, contra os hereges” (Bosch, 2002, p. 271). No entanto, esta visão parece ter estado presente mais no início da sua vida e jornada, pois segundo estudiosos apontam, ele teria ampliado a sua perspectiva das possibilidades de uso das cruzadas, a ponto de alguns, como Reboiras levantarem o questionamento da hipótese de ter Lúlio até mesmo desistido do seu projeto original de levar os muçulmanos à fé cristã somente pela razão, sem o uso da espada, talvez por ter-se cansado de insistir em um caminho que dava tão pouco resultado. Fato é que, segundo Reboiras, somente em uma obra posterior, o Liber de passagio, discute Lúlio pela primeira vez (assim se vem confirmando) e trata detalhadamente de táticas militares, ou seja, do uso da força em confronto com o infiel, uma opção que ele claramente havia rejeitado em obras anteriores. Este será o primeiro de uma série de opúsculos que 90 aparecerão regularmente, [...] nos quais, com maior ou menor extensão e com mais ou menos diferenças acidentais de conteúdo, se formulam planos de missão e ações bélicas contra infiéis e cismáticos. Este opúsculo e os tratados que sobre este tema cronologicamente o sucederam são a base textual de uma longa e prolífica discussão sobre o conceito de missão em Raimundo Lúlio e sua atitude ante a cruzada (Reboiras, 2009, p. XXII). Apesar de Reboiras identificar esta mudança de tom de Lúlio de contrário para favorável às cruzadas em um dado momento da sua vida, algo devidamente identificado e datado a partir dos escritos lulianos, a pergunta essencial a ser respondida é: qual era o papel das cruzadas no plano missionário de Raimundo Lúlio? É aqui que se deve concentrar a pesquisa, visto que dependendo da resposta, se afeta consideravelmente toda a sua perspectiva de missão, de precursor do diálogo inter-religioso, etc. Sobre a mudança de compreensão e atitude de Raimundo Lúlio diante das cruzadas, Jaulent assim explica: Num primeiro momento, Lúlio não alimentava nenhum projeto a respeito da cruzada. Sua primeira obra sobre o tema, o Tractatus de modo convertendi infidelis, fora escrito pouco depois de 1291, após a queda de São João de Acre sob o poder dos egípcios. A conquista de São João de Acre foi uma hecatombe para o Ocidente. Nos anos seguintes, caíram os últimos baluartes do reino de Jerusalém [...]. Depois destes acontecimentos de graves conseqüências para a cristandade, Lúlio dedicou o Tractatus ao papa Nicolau IV, então empenhado na convocação da cruzada, dando-lhe a conhecer os seus planos estratégicos. Todavia, [...] nessa obra Lúlio encara as cruzadas apenas como um meio para atingir o principal objetivo que guiava a sua frenética atividade: a conversão dos infiéis. Admitia o domínio pela força apenas como meio de possibilitar o diálogo. Somente o diálogo seria capaz de levar à conversão Lúlio sempre defendeu a capacidade da razão humana de destruir erros e de alcançar a verdade da fé cristã (Jaulent, 2001a, pp. 12,13). Embora se aproxime perigosamente de uma visão conversionista das cruzadas, seria mais apropriado entender a proposta de Lúlio de aproveitamento das cruzadas em seus propósitos de reconquista de terras como uma ferramenta útil à evangelização dos nãocristãos, uma vez que se poderia obrigá-los, pela força da espada, a ouvir a mensagem cristã, uma vez que dela eram ignorantes e não queriam saber, mas estavam sob o domínio da espada cristã. Esta visão reflete algo bem próprio à época de Lúlio, como já se discutiu anteriormente; contudo, tal proposta não tem nenhuma validade para um mundo póscristandade, além do que se mostra incompatível com a natureza espiritual do evangelho e a docilidade do seu convite. 91 Sobre o grande equívoco, a respeito da relação entre o ser cristão e o lutar por uma terra cristã, em oposição aos outros, enxergando-os como tendo menos direito, mentalidade própria ao conceito de cristandade, Comblin comenta: Esse povo de Deus situa-se na mesma terra em que moram os outros povos, não dispõe de terra própria, mas é feito de pessoas que já pertencem a outros povos. É um povo entre os povos [...] Não substitui os outros povos nem os absorve, mas influi neles. Na América Latina é difícil imaginar a Igreja católica fora da imagem de cristandade. O imaginário católico ainda é de cristandade (Comblin, 2002, p. 283). Certamente seria exigir muito de Lúlio a compreensão necessária quanto à natureza não essencialmente territorial do Reino de Deus, não sobrescrita a um povo, cultura ou Estado; ocorre que neste missionário as cruzadas ofereciam oportunidade para se anunciar forçadamente a mensagem cristã àqueles que não a conheciam, conforme atesta Veiga, afirmando que ao não impor a fé pelas cruzadas, mas sim a pregação da fé, “Lúlio nos revela o grande respeito que tinha pela liberdade religiosa e pela liberdade das consciências” (Veiga, 2009, p. 93). Para concluir-se a percepção de Lúlio acerca do uso missionário das cruzadas, não há mais elucidativas palavras do que as seguintes, de sua própria autoria, retirada do seu Tractatus de modo convertendi infideles, datado de cerca de 1292-1293, no qual afirma: [...] com os sarracenos presos entre os cristãos, ordene-se que alguns dos próprios idôneos sejam recebidos, aos quais seja mostrada a nossa fé, e que outras razões nossas destruam a seita deles. Caso não queiram vir para a fé, que se discuta com eles por algum tempo e, depois disso, que possam ir livremente para sua terra com nossos empréstimos e presentes da corte, e eles mesmos contarão aos outros sarracenos nossa fé, as razões que temos e o modo de crer que mantemos. Assim as coisas preditas deveriam ser feitas; que todas essas coisas seriam semeadas entre eles e que eles fiquem em dúvida e preparem o caminho para sua conversão (Lúlio, 2009c, p. 19). Esta citação de Lúlio elucida bastante e precisamente a distinção, assim como a conveniência da missão dentro do propósito cruzadista. Fato é que ele assumia a visão militar de cruzada, educando-a segundo os critérios da cavalaria, veja-se o Livro de ordem da cavalaria, que é a sua proposta normativa quanto à formação e atuação das ordens militares, recheada de orientações morais e religiosas que seriam uma espécie de simples modelo dos direitos civis em estados de guerra. Contudo, também é fato que para ele a 92 conversão só se dá e só deve ser buscada através de razões necessárias. Ninguém deveria ser forçado à mudar de religião, pois ainda que ele defenda a idéia de que no contexto cruzadista, poder-se-ia forçar os muçulmanos a ouvir a mensagem cristã, contudo, ele sempre respeitou a liberdade da consciência alheia, no que diz respeito ao direito inalienável à autonomia em questões de fé. Lúlio era filho da sua época, e como tal, via nas cruzadas um meio legítimo de se lutar pelo direito de posse de terras; ele procurou regular humanizando o empreendimento; e se mostrou bastante sensível à consciência alheia quando assegura aos muçulmanos cativos das cruzadas o seu direito a permanência na fé maometana; no autêntico espírito cruzado, eles deveriam ser encaminhados em direção a terras sob domínio islâmico, financiado pelos cristãos, para, tendo a vida preservada e assegurada pelos cristãos, e o seu retorno às terras dos seus compatriotas financiado, levasse consigo o testemunho pessoal daquilo que ouvira da mensagem cristã, tornando-se assim, um “pré-missionário”, preparando os corações dos demais à futura audição da mensagem cristã. É nítida a primazia da preocupação de Lúlio com a comunicação racional da mensagem cristã; nele, é inegociável o elemento da conversão pela razão, mesmo no mais tenso ambiente cruzadista e admitindo algum uso desta força para impor condição de audição; contudo, ele busca separar definitivamente a natureza das duas tarefas, uma é a da missão e outra é a da cruzada, ainda que até mesmo andassem juntas. Quanto à contemporaneidade, contudo, é absolutamente inadequada a idéia do uso da força e da mentalidade de guerra que estava presente de alguma maneira no espírito cruzado dos dias de Lúlio, em contraste a isto, deve-se desenvolver um espírito de serviço e mansidão, como indica Fernando (2001, p. 295), que ressalta ainda através das seguintes palavras a conveniência de um estilo de vida mais simples, como também propunha Lúlio, por parte dos missionários cristãos contemporâneos, devido às instabilidades e deficiências econômicas que marcam a realidade da população residente em muitos dos países de destino destes, inclusive muitas nações de maioria populacional muçulmana: Em tempos como este, uma vida de privação voluntária pelos ministros cristãos poderia ser um grande recurso para ganhar credibilidade. À medida que o pobre vê o rico ficar mais rico, enquanto eles ficam mais pobres, e também à medida que cresce a raiva deles contra o rico, seria refrescante para eles [os pobres] verem algumas pessoas que poderiam estar em um [sic] melhor situação de vida escolhendo se privar para servir o pobre (Fernando, 2001, p. 304). 93 3.3 O diálogo inter-religioso em Raimundo Lúlio “Conhecer e amar a Deus (amar a Deus era um preceito cristão [Mc 12,30 e Lc 10,27]. Porém, amar e conhecer a Deus era uma característica da teologia muçulmana, o que indica uma influência islâmica no pensamento de Ramon” (Costa, 2000, pp. XXIV,XXV). A inter-relação entre as religiões, bastante propalada recentemente no discurso do diálogo inter-religioso foi algo intensamente vivido por Raimundo Lúlio; discernir como e até que ponto se deu este convívio e diálogo interno entre as religiões no personagem é o desafio desta etapa da pesquisa. O que teria ocorrido com Lúlio? Uma abertura tal ao diálogo inter-religioso a ponto dele assimilar conceitos islâmicos à sua proposta cristã? Mas, isto não seria uma espécie de sincretismo religioso? Não necessariamente, pois segundo Fornet-Betancourt, para que ocorra um verdadeiro diálogo inter-religioso, os “dialogantes”, como ele chama, precisam não apenas se permitir ouvir realmente um ao outro, mas mais do que isto, precisam estar comprometidos com esta audição mútua. Assim se expressa este proponente: A “permissão” é, com efeito, “compromisso” porque a “permissão”, ou melhor, sua solicitude e/ou aceitação, compromete-nos para dialogar realmente. O que supõe tudo o que já sabemos que é, de fato e de direito, necessário para um diálogo verdadeiro, a saber, abrir-se ao outro, escutar sua palavra sem reservas nem preconceitos, amar sua diferença, mesmo que não alcancemos poder entendê-la plenamente, e aventurar-se com ele para um processo de acompanhamento e de aprendizagem recíprocos (Fornet-Betancourt, 2007, pp. 38,39). A busca de um diálogo que se mostre real, no qual haja verdadeira abertura um para a idéia do outro, a disposição a uma audição honesta, que possibilite a reflexão comparativa das propostas religiosas é a idéia fartamente defendida por Lúlio e a base sobre a qual muitas das suas obras foram escritas, dente elas o Livro dos gentios e dos três sábios, que se desenvolve a partir desta proposta e premissa básica aqui discorrida, conforme identifica o próprio Lúlio no epílogo desta obra com as seguintes palavras: Quando o gentio ouviu todas as razões dos três sábios, começou a repetir tudo aquilo que havia dito o judeu, e pôde repetir tudo aquilo que havia dito o cristão, e isso mesmo fez de tudo aquilo que lhe havia dito o sarraceno. Deste modo os três sábios tiveram um prazer muito grande, 94 porque o gentio entendeu e reteve suas palavras, e juntos disseram ao gentio que bem entendiam que não tinham falado com um homem sem coração nem ouvidos. O gentio, uma vez repetido aquilo que acima foi dito, endireitou-se um pouco e seu entendimento do caminho da salvação, seu coração começou a amar, seu olhos a chorar e adorou a Deus [...] (Lúlio, 2001b, pp. 237,238). O diálogo inter-religioso, portanto está no cerne da proposta missiológica luliana, como um meio eficiente para se ter acesso à mente e ao coração daquele a quem se busca levar a fé cristã. Contudo, diferentemente da compreensão mais aberta de alguns atuais proponentes do diálogo inter-religioso, Lúlio acreditava que a salvação estava ligada exclusivamente à fé cristã, como já se foi demonstrado aqui, daí a sua insistência na comunicação da mesma. Considere-se a idéia defendida por Küng a este respeito, como segue: “A salvação do homem também é possível fora da igreja católica, ou mesmo fora do cristianismo: a questão da verdade e a questão da salvação não são a mesma coisa” (Küng, 2004, p. 282). Por outro lado, este mesmo autor apresenta uma idéia com a qual Lúlio não só concordaria, mas que expressa a sua própria premissa ao debate, que é a seguinte: “Uma ilimitada abertura e disposição para o diálogo em relação às outras religiões não exclui o profundo envolvimento com a própria religião, e vice-versa” (Küng, 2004, p. 281). Veja-se agora, contudo como o próprio Lúlio recebeu influência da religião com a qual ele foi o maior proponente do diálogo e do debate religioso, o Islamismo. 3.3.1 Em diálogo e resposta à filosofia islâmica O primeiro ponto de similaridade que se percebe entre Lúlio e o Islamismo está nas características da fé islâmica conforme manifestada no sufismo, que tinha na sua simplicidade ascética, o maior vigor e a melhor expressão da sua espiritualidade, segundo Armstrong (2001, p. 121); e certamente estas eram características acentuadas em Lúlio. No entanto, isto não indicaria, necessariamente, que Lúlio teria copiado tais características do sufismo, embora, a influência do sufismo em Lúlio teria sido tão acentuada que alguns chegaram ao ponto de identificá-lo, como fez Ribera, como “um sufi cristão”, comenta Bustinza (2007, p. 800). Lúlio foi um grande debatedor das idéias de Averróis, cuja importância e alcance destaca Saranyana (2006, p. 236). Ambos teólogos e filósofos, aquele cristão e este muçulmano; Averróis caminhava num sentido ao qual Lúlio se opôs na relação entre a filosofia e a teologia, pois se aquele, muçulmano, subordinava a teologia à filosofia, este, 95 cristão, por sua vez, sujeitou toda a sua capacidade filosófica às suas convicções cristãs, conforme indica novamente Saranyana (2006, pp. 240,379). O movimento sufi encontrou uma grande expressão dentro do Islã durante o século XIII, conforme indica Küng (2004, p. 273); e o contato de Lúlio com os mesmos teria se dado a tal ponto que Ribera chegou a propor “pela primeira vez na história que Ibnc Arabi fora a fonte concreta e imediata da influência sufi exercida sobre o pensamento de Lúlio”, comenta Bustinza (2007, p. 795). Discorrendo mais a respeito desta influência, Bustinza afirma que alguns textos lulianos são quase cópias de textos árabes, embora conclua reconhecendo que diante de hipótese de “plágio” de obras sufi em Lúlio, “nos encontramos, com toda certeza, diante de ‘evidências indiscutíveis’ muito frágeis” (Bustinza, 2007, p. 822). Lúlio esteve profundamente comprometido com a sua missão aos muçulmanos, e não poupou esforços para conhecê-los melhor; aprendeu a língua deles, estudou a sua religião, os seus principais escritos e conheceu a sua filosofia, enfim, teve todo um cuidado em perceber e reconhecer o outro a quem ele pretendia e efetivamente se empenhou por levar à fé cristã, conseguindo alguns discípulos, conforme registra Tucker, tendo gasto o tempo que antecedeu o seu apedrejamento no norte da África confirmando na fé cristã aqueles convertidos pelo seu difícil trabalho missionário na região2 (Tucker, 1996, p. 59). Sobre a atual resistência de muitos cristãos em se empenharem na evangelização dos muçulmanos nos dias atuais, Engqvist denuncia que o que falta é amor para se completar a missão cristão ao Islã (Engqvist, 2001, p. 610). No entanto, é necessário se lembrar que o atual trabalho continua árduo e estatisticamente desafiador. Ainda a respeito à natureza deste diálogo, pode-se afirmar que para Lúlio, ele se revestia de uma verdadeira confrontação de idéias, como já foi demonstrado, podendo para muitos, portanto, ser melhor qualificado como um debate inter-religioso, ao invés de um diálogo, no entanto, considerando o compromisso com a audição do outro e a real disposição à mudança como elementos necessários, conclui-se que Lúlio era proponente de um diálogo inter-religioso que partisse das convicções seguras dos debatedores, tendo ele mesmo proposto certa vez aos intelectuais do Islã um franco debate religioso, a ser acompanhado por uma predisposição sincera à conversão caso alguém fosse convencido da melhor razoabilidade da fé do outro debatedor, segundo registra Zwemer (1977, p. 66). 2 Para a leitura da citação direta e completa, busque-se a citação presente na página 46 desta dissertação. 96 Quanto à utilidade dos debates, vale lembrar que nem todos se mostram úteis, como bem observou o antropólogo Malinowski (1997, p. 147), no entanto, no contexto das missões cristãs aos muçulmanos e aos judeus é preciso que se esteja ciente de que tais debates religiosos costumam ser intensos e difíceis com judeus e muçulmanos, como bem lembra Hesselgrave (1995, p. 299). A cristandade acostumada a pregações unilaterais precisa ser sensível à necessidade e preferência da presente geração, a qual requer maior debate e troca de idéias, especialmente no contexto do mundo secularizado europeu, como indica Fornet-Betancourt (2007, p. 120), mas também nas missões aos muçulmanos, como aqui se demonstra. 3.3.2 Princípios de alteridade em Raimundo Lúlio Ainda que Lúlio tivesse uma visão demasiadamente acentuada da cristandade – algo típico nos seus dias – e visse na reforma desta a restauração do modelo social o caminho para a construção de um mundo que melhor glorificasse a Deus, conforme indica Costa (2006, p. 22), tal visão trazia consigo sérios riscos da perigosa associação já aqui denunciada da posse que a Igreja tinha sobre as duas espadas, a temporal e a espiritual, como indica Silveira, 2009, p. V), mesmo que para evitar isso, Lúlio tivesse se empenhado por educar os cavaleiros no devido cuidado ao desempenhar o seu ofício, comparável ao dos clérigos, porém na esfera física (2000, p. 23). Como já foi dito, Lúlio se via como um missionário a converter muçulmanos e cismáticos (Lúlio, 2009c, p. 3) e teve na pregação o seu principal instrumento de missão, posto que a própria pregação estava no centro da espiritualidade luliana, conforme identifica Mata (2006, p. 126). No entanto, para Lúlio, o conceito e padrão da pregação era bastante elevado, pois a mensagem que ele levava fora previamente preparada tendo em vista o devido entendimento do conteúdo da fé professada por aqueles a quem ele se dirigia, identificado como o logos da religião deles; sendo esta compreensão essencial a um real e proveitoso diálogo inter-religioso, segundo Veiga (2009, p. 57). A missão cristã aos muçulmanos, segundo Hiebert, não pode se realizar ainda com aquela típica mentalidade européia cruzadista da vitória da espada; desta maneira este missiólogo faz numa franca e necessária denúncia deste equívoco mais facilmente tolerado nos dias de Lúlio, mas inaceitável nos dias atuais, pois segundo ele, é preciso que se tenha muito claramente demonstrado na mente e no coração o contraste entre as cosmovisões3 3 Admite-se aqui como satisfatória a seguinte definição simplificada de cosmovisão: “Uma cosmovisão é exatamente o que a palavra diz. É a visão que uma pessoa tem do seu mundo, seu cosmos. É a maneira como 97 bíblica e européia no atual empreendimento missionário, pois enquanto esta associa-se às imagens da espada e do sucesso guerreiro, marcado pela imposição e domínio da força, aquela está marcada pela imagem da cruz e do serviço sacrificial, marcado pelo amor que se doa para a salvação do outro, segundo Hiebert (2001, pp. 241,243). Um diálogo que não se esmere por conhecer, identificar e se pautar no real conteúdo singular de cada crença em questão pode cair num esvaziamento tipicamente pósmoderno de subjetividades e superficialidades, dados os temores quanto ao convívio com o contraditório, conforme adverte Wright (2001, p. 133), que também alerta sobre a ainda atual necessidade e desafio de se empenhar em realizar as missões cristãs aos muçulmanos nos dias atuais (Wright, 2001, pp. 100,101). Lúlio havia proposto que os diálogos inter-religiosos partissem dos pontos de convergência doutrinária das crenças em debate (2009c, p. 43), o que no caso de um diálogo entre cristãos e muçulmanos, significava os atributos divinos comuns a estes dois monoteísmos, conforme indica Mata (2006, p. 89). A sinceridade era a palavra de ordem para entender as disputas religiosas propostas e efetivadas por Lúlio, pois embora alguns possam questionar a sua validade em virtude das tensões relacionadas, é preciso que se reconheça que dado o contexto de que no Islã “une-se o espiritual e o temporal em um todo único”, conforme indica Hamidullah (1990, p. 66) e que “Portanto, a apostasia é naturalmente considerada como traição política”, novamente segundo Hamidullah (1990, p. 245), seria natural compreender porque era tão difícil e tensa a proposta de diálogo inter-religioso de Lúlio aos muçulmanos, para quem a identidade pessoal é fortemente marcada em oposição ao cristianismo, visto que a construção e a afirmação da identidade étnica é reforçada e afirmada como necessária no contexto de fricção inter-étnica, conforme demonstra Oliveira (1976, p. 6). Aliás, a relação entre religião muçulmana e etnia árabe é muito estreita, daí desde os dias de Lúlio, os muçulmanos tendem a ser muito intolerantes com aqueles que dentre eles professam uma fé distinta da sua, tendo ocorrido logo no início da expansão islâmica uma grande intolerância dirigida especialmente aos árabes cristãos, como afirma Runciman (2003a, p. 37). Se a identidade islâmica está fortemente associada e integrada às outras identidades: nacional, étnica e lingüística, como fatores de reforço do senso de pertença, como costuma ela compreende e interpreta as coisas que acontecem com ela e com outras pessoas. É a maneira de a pessoa compreende a vida e o mundo em que vive. É a convicção da pessoa quanto ao que é real e ao que não é (O’Donovan Jr., 1999, p. 13). 98 ocorrer universalmente, segundo Pujals (2008, pp. 46,78), então comprova-se teoricamente o que já se tem observado na prática, que o caminho trilhado para a conversão de um muçulmano a outra religião é longo e árduo, como identifica Dennett (1993, p. 9), devendo o muçulmano convertido a Cristo ser objeto de apoio, compreensão, empatia e acolhida dos cristãos para consigo, conforme identifica Marsh a seguir: O que o mundo muçulmano mais necessita hoje é de pessoas que saibam colocar-se no lugar dos cristãos que antes foram muçulmanos; que possam apreciar seus problemas, compartilhar de seus sofrimentos e fazê-los sentir que são compreendidos e aceitos realmente pelos centros cristãos. Com freqüência, existe um tremendo abismo entre o missionário com sua casa confortável e seu automóvel moderno e o homem que enfrenta o ostracismo em cada momento do dia, ou a jovem casada com um muçulmano. Nos países muçulmanos, o novo cristão enfrenta literalmente a perda de todas as coisas por amor de Cristo. Freqüentemente, perde seu lar, trabalho, posição na comunidade, status, família e às vezes zombaria e em certas ocasiões até sua integridade física é comprometida. É visto como um traidor de sua pátria. Rejeitado por sua comunidade, com freqüência é olhado com receio pelos cristãos, que se mostram relutantes em recebê-lo em sua igreja local. É de suma importância que ele sinta que os lares cristãos estão abertos. Que tenha certeza de que será bem recebido a qualquer momento e que encontre alguém com quem possa fazer compartilhar seus problemas e orar. Aqui também a principal lição que o missionário pode tirar é aprender a ouvir toda a história até o final (Marsch, 1993, p. 89). Este relato revela quão grandes são os obstáculos a serem enfrentados por um muçulmano que considere a possibilidade da conversão ao Cristianismo, pois a integração no Islã pesa-lhe contrariamente à conversão, visto que “É com razão que os muçulmanos não consideram o Islam apenas como um ideal abstrato destinado à adoração imaterial. O Islam é um código de vida, uma força ativa que se manifesta em todos os campos da vida humana”, como indica Abdalati (2008, p. 137). Embora o Corão expresse alguma consideração para com judeus e os cristãos, revela também uma crítica aguda a ambos, ao afirmar que os mesmos rejeitaram os livros sagrados anteriores enviados por Deus a eles, a saber, a Bíblia Hebraica e os Evangelhos, respectivamente, pelo que se tornaram ímpios, segundo o registro da 2ª Surata, nos versos 87-89 (Alcorão Sagrado, 1975, p. 11). Especificamente aos cristãos, o livro sagrado islâmico afirma na 57ª Surata, no verso 27, que são um grupo de apóstatas, alguns por sincera e enganosa tradição e outros por verdadeira corrupção (Alcorão Sagrado, 1975, p. 407); e, por fim, destaca-se aqui a afirmação corânica de que a divisão da cristandade é uma evidência do juízo de Deus sobre a apostasia cristã, conforme a 5ª Surata, verso 14 99 (Alcorão Sagrado, 1975, p. 76). Ainda que estas duas últimas afirmações, mas especificamente dirigidas aos cristãos, tenha verossimilhança, não deixa de ser uma crítica aguda, que leva os muçulmanos a considerarem uma conversão à fé cristã como uma verdadeira queda espiritual, além de apostasia e de todas as sanções sócio-políticas há pouco apresentadas. Fato é que assim como hoje, a atuação missionária cristã entre os muçulmanos também era difícil nos dias de Lúlio, e exige preparação e sensibilidades grandes por parte dos missionários que abracem tal vocação. Alguns podem estranhar e questionar a validade e a sinceridade de Raimundo Lúlio nas suas propostas de diálogo inter-religioso, afirmando que não seria um verdadeiro diálogo visto que o desejo do maiorquino era convencer os outros dos seus erros e demonstrar os seus próprios acertos, desta maneira, seria mais apropriado falar-se em debate inter-religioso, e não em diálogo. Contudo, tais propostas se baseavam num conhecimento adequado tanto da fé islâmica, quanto da fé cristã, o que o levava a acreditar na necessidade de uma demonstração clara, precisa, contrastante e confrontadora dos seus ouvintes com as proposições do evangelho em oposição ao Corão. 3.3.3 Uma proposta de missões com alteridade A própria idéia de um diálogo inter-religioso já pressupõe alteridade nas missões, posto que se abre tanto para o anúncio, quanto para a audição da mensagem do outro. Lúlio, contrariando a tendência dos seus dias, rompeu com o obscurantismo anti-islâmico predominante, indica Zwemer (1977, pp. 37,38), lançou-se na busca e uso da língua árabe tanto em suas obras literárias, quanto em suas pregações, como indica Costa (2006, p. 24), necessidade que continua sendo atestado por aqueles que trabalham com os islâmicos, como aponta Acosta (1993a, p. 21). No Islã ocorre uma alta valorização da língua árabe, visto que o próprio Corão se apresenta como uma revelação divina e a língua árabe como o seu veículo, na 13ª Surata, verso 37, o seguinte: “Deste modo to temos revelado, para que seja um código em língua árabe. [...]” (Alcorão Sagrado, 1975, p. 178). Com tal apoio escriturístico, não é de se estranhar o seguinte depoimento islâmico sobre o árabe, como língua: “Na verdade, quando a escrita árabe é utilizada com todos os seus símbolos de vocalização, ela é incomparavelmente superior a qualquer e todas as outras escritas do mundo desde o pontode-vista de precisão e ausência de ambigüidade”, exclama Hamidullah (1990, p. 293). 100 Portanto, a visão que o muçulmano tem do árabe é bem mais elevada do que os mais dedicados fundamentalistas protestantes nutrem pela versão King James do seu próprio livro sagrado. Os passos de Lúlio e as suas recomendações ao envio de missionários letrados e devidamente aculturados no universo do Islã (Lúlio, 2009c, p. 15) também devem ser seguidos pelos missionários cristãos contemporâneos no mesmo ideal de eficiente comunicação da mensagem cristã aos islâmicos. Apesar da ênfase, o trabalho missionário proposto por Lúlio aos muçulmanos, não se restringia à argumentação, o seu ideário de simplicidade e o seu engajamento pessoal demonstram que para o missionário maiorquino, mais do que a razão, eram necessários também o amor, a inteligência, a liberdade e o diálogo, obrigatoriamente, atesta Jaulent (1989, pp. 27-30). O diálogo religioso como estratégia de comunicação de fé na contemporaneidade precisa ser usado não como fruto de uma flacidez nas convicções próprias do relativismo enganoso da nossa época, mas como a busca consciente de uma aproximação irênica do outro a quem se comunica a fé, pois o diálogo como meio de comunicação, num consciente abandono de outras forças coercitivas, pressupõe fé na providência divina e humildade, afirma Bosch (2002, pp. 577, 580,581); e estas são marcas essenciais da fé cristã. 3.3.4 Uma proposta de escolas missionárias Mais adiante, ao pensar que, malgrado fizesse isto, não sabia a língua mourisca ou arábica, e nada aproveitaria. Mais adiante, considerando estar só neste exercício tão grande, pensou em partir ao santo papa e aos príncipes dos cristãos para impetrar que fizessem diversos monastérios, onde homens sábios e literatos estudassem e aprendessem a língua árabe e de todos os outros infiéis para poderem pregar e manifestar entre eles a verdade da santa fé católica (Lúlio, 2010, internet). Destacando da proposta missionária de Lúlio outro princípio de alteridade, este último ponto da pesquisa indica a criação de escolas preparatórias dos missionários a serem enviados ao mundo islâmico. Tais missionários deveriam receber um excelente treinamento na apologética, para melhor demonstrar a fé cristã, atesta Jaulent (2001b, p. 14,50). As escolas haveriam de ser mosteiros a serem construídos em cidades estratégicas como Roma, Paris e Toledo e neles “homens sábios e devotos estudariam várias línguas e depois iriam pregar o Evangelho por todo o mundo, como está preceituado”, conforme indicado em De modo praedicandi, da autoria do próprio Lúlio (2009c, p. 115). 101 Apesar de todo este projeto, que lhe custou muita insistência até a aprovação papal para a construção dos tais três mosteiros solicitados, “[...] Ramon Llull não teve sucesso em converter os muçulmanos para o cristianismo. Os diálogo inter-religiosos que aconteceram na África aparentemente resultaram em fracasso, Não temos notícia comprovada de nenhuma conversão de um muçulmano para o cristianismo baseada na Arte luliana ou em suas pregações públicas” (Costa, 2010, internet). Contudo, não se deve medir o valor e a importância das missões cristãs aos muçulmanos determinados pela produtividade estatística própria da sociedade ocidental secularizada, pois assim como foi nos dias de Lúlio, permanece hoje a necessidade de tal tarefa missionária não pautada pela produtividade, pois a busca por resultados estatísticos acaba historicamente esbarrando com a urgência da necessidade das missões aos muçulmanos, conforme indica Chastain (1987c, p. 807). Antes de números, as missões aos muçulmanos precisam dos mesmos princípios dialógicos e de alteridade exercidos por Lúlio e atualmente reafirmados por missionários como Dennett, que baseado em sua experiência e observação diz: “Os muçulmanos vão falar livremente da sua religião e você deve encorajá-los, ouvindo calma e atentamente. Eles estão muito mais conscientes do mundo espiritual que os ocidentais comuns e, normalmente, estão prontos para discutir tais assuntos” (Dennett, 1993, p. 36). A evangelização dos muçulmanos deve ser exercida com alteridade, segundo Escobar (1996, p. 49), fugindo dos esteriótipos e reconhecendo valores, como sugere Dennett (1993, p. 47), da mesma forma como fez Lúlio ao reconhecer e se apropriar de vários valores dos muçulmanos, como destaca Costa das seguintes palavras: Ramon Llull aprendeu árabe, viajou e debateu em terras muçulmanas, tentou ser ele próprio a materialização de seus propósitos de conversão do mundo para o cristianismo. Tinha um grande respeito pela cultura islâmica, bem explicitado numa passagem do Livro das Maravilhas, onde afirma que as roupas e a alimentação sarracenas são mais adequadas ao homem e proporcionam aos muçulmanos uma vida mais longa e sadia” (Costa, 2010, internet). Com estas palavras sobre a alteridade em Lúlio, encerra-se as referências à sua proposta missionária e conclui-se o presente capítulo e corpo central da pesquisa ressaltando-se o alerta à necessidade contemporânea de boa convivência com distintos credos, mantendo-se a própria fé em um vívido aprendizado do exercício do diálogo interreligioso, conforme afirma Bosch (2002, pp. 576,577). 102 CONSIDERAÇÕES FINAIS Discorrer sobre a contribuição de Raimundo Lúlio para as missões cristãs aos muçulmanos numa dissertação de mestrado em Ciências da Religião feita por um teólogo e pastor cristão protestante não é uma tarefa fácil, pois há várias barreiras a serem vencidas, muitas vezes, sem sucesso. A necessidade de um distanciamento pessoal de um assunto tão vital e caro às convicções religiosas é um desafio muito grande, e que por mais empenho e auto-vigilância que fosse imposto pelo próprio autor, não foi possível alcançá-lo a contento. Além disto, há a admiração para com o personagem que é objeto da presente pesquisa, e isto acabou por se tornar explícito em muitos momentos. Possivelmente o segundo capítulo, dos três, tenha sido aquele no qual mais explicitamente tais falhas tenham aparecido, em virtude de concentrar-se numa visão mais panorâmica sobre a missiologia luliana, o que permite uma liberdade mais propícia a tais desvios. A vastidão da obra de Raimundo Lúlio a ser consultada, assim como as tantas rotas de considerações e debates a serem travados sobre a sua proposta missionária foram fatores que também dificultaram à delimitação mais pronta do foco da presente pesquisa. Embora hoje já se tenha algum material editado no Brasil da autoria de Raimundo Lúlio, bem mais do que obras que especificamente debatem as suas idéias e propostas, há uma vastidão de material produzido pelo próprio Lúlio, conforme indicado nesta pesquisa, que oferece material suficiente para várias pesquisas em variados temas. A área aqui explorada é uma das menos consideradas nos estudos lulianos, a sua proposta missão e missiologia, pois dada a variedade temática dos seus escritos originais, as pesquisas podem se concentrar nos campos da teologia, filosofia, literatura e até mesmo na mais destacada atualmente área do diálogo inter-religioso, dentro do contexto de relações entre pessoas e grupos humanos neste mundo globalizado que assiste a grandes e tensas migrações populacionais, particularmente de grupos oriundos do norte da África à Europa, restabelecendo a tensão cultural Oriente X Ocidente, com o agravante de que a Europa hoje vive uma grave crise de identidade pós-cristã relacionada a uma intensa secularização da sua cultura, como bem identifica Fornet-Betancourt (2007, pp. 83,87). Avaliando a missão cristã exercida e proposta por Raimundo Lúlio para a evangelização dos muçulmanos em seus dias, apesar de se verificar a rejeição por parte dos muçulmanos do trabalho missionário de Lúlio e de se supor que no máximo foram poucos os convertidos à fé cristã que o missionário catalão conseguiu entre os islâmicos do norte da África, restando hoje apenas lendas residuais sobre tal atuação na região, como frutos 103 tardios do testemunho de Lúlio na região, segundo VNN (1993, p.48), não se deve concluir que não houve nenhuma contribuição às missões cristãs aos muçulmanos como conseqüência da atuação missionária de Lúlio, pois este catalão alertou à Igreja Cristã dos seus dias sobre a necessidade da percepção dos muçulmanos como um grupo de pessoas a ser evangelizado, assim como demonstrou a necessidade de fazê-lo com sensibilidade e conhecimento lingüístico, cultural, filosófico e religioso, demonstrando claramente uma gênese do que hoje se costuma chamar de princípio de alteridade. É conhecida a crítica histórica que se faz à exportação dos modelos culturais das nações que os levaram fundidos ao conteúdo do evangelho na mensagem cristã que entregaram aos povos colonizados, como indica Hiebert (1999, p. 54); e isso associado a uma prática histórica muitas vezes condenável pelo próprio evangelho, gerando não apenas distorções destes, mas potencialmente podendo trazer grandes danos às culturas quando uma cosmovisão é substituída por outra, que tendo sido mal compreendida, mal apresentada no processo da evangelização intercultural, ou simplesmente apresentada sem a devida reflexão sobre as implicações que tal mudança poderia trazer graves e variados males aos habitantes locais, como foi o caso de Madagascar, onde ocorreu uma grande crise cultural, conforme relata o antropólogo Linton: Em Madagascar, porém, a introdução do cristianismo teve efeitos profundamente desintegrantes. Aí, grande parte da vida nativa era influenciada pelo culto original dos antepassados. O medo de desagradar ao antepassado era o principal estímulo para o comportamento socialmente recomendável. Ao ser removido este estímulo, a configuração cultural inteira se rompeu e embora esteja agora em processo de reintegração, certos valores parecem estar definitivamente perdidos (Linton, 1962, p. 386). Portanto, quanto ao modelo proposto por Raimundo Lúlio, não se deve ficar com a sua visão tipicamente medieval de cristandade, deve-se buscar a comunicação e a vivência de um evangelho que consiga se contextualizar sem mudar a essência da sua mensagem, ainda que se reconheça a dificuldade da execução objetiva desta proposição. As manifestações do evangelho devem respeitar cada cultura, pois tendo sensibilidade e alteridade, o missionário cristão haverá de reconhecer que em alguns aspectos, o povo ao qual se destina vivência melhor do que o próprio missionário e a sua cultura de origem algumas das propostas evangélicas. Quanto ao diálogo inter-religioso, deve-se implementá-lo numa sincera busca de efetiva comunicação, especialmente neste mundo contemporâneo, onde as informações 104 estão mais democratizadas e as pessoas têm tido mais oportunidades de crescimento na educação formal, o que lhes desenvolve o raciocínio crítico. Por outro lado, deve-se evitar o diálogo como uma caminho de relativização da fé, pois não há real tolerância com o credo distinto, quando as crenças são relativizadas, conforme alerta Ratzinger (2007, pp. 113,114), que prossegue denunciando que nesta tendência relativista, o que se pode conseguir é no máximo um consenso religioso, o que é muito diferente do conhecimento, diálogo e tolerância (Ratzinger, 2007, p. 227). O diálogo pressupõe uma audição real, assim como a capacidade de um debate respeitoso, a busca do entendimento necessário à proposto do interlocutor e a capacidade de convivência com a diversidade, ainda que se parta para o diálogo, mantendo-se a priori os princípios de fé e o credo abraçado. Da missiologia luliana apreende-se também o valoroso e necessário princípio da alteridade, tão cara aos contatos interculturais, e conseqüentemente aos trabalhos missionários em outras culturas. Devido ao contato com cultura distintas, o missionário precisa lembrar-se e apropriar-se do importante alerta da antropologia, que afirma que o pecado sem perdão para a antropologia é o etnocentrismo, exclama Zaluar (1986, p. 110). Tal alerta é constantemente repetido por missionários bem treinados, como faz Hiebert (1999, pp. 97,109). O sincretismo religioso é outro grave equívoco a ser evitado pelo missionário em contexto cultural distinto; e quanto a isso deve-se manter claramente em foco uma tensão com uma necessária auto-crítica sobre o que se está fazendo é uma devida contextualização ou um sincretismo religioso, alerta Comblin (2002, p. 291). Os modelos propostos por Lúlio ensinam, finalmente, a respeito da necessidade do bom preparo do missionário cristão a ser enviado aos não cristãos, e não apenas aos muçulmanos; seu empenho e o seu currículo proposto não apenas denunciam uma ainda atual indiferença institucional à necessidade do preparo e do envio missionário, posto que as energias e os currículos tendem a quase exclusivamente, citando o contexto da formação de ministros religiosos da Igreja Presbiteriana do Brasil, à qual o autor da pesquisa está filiado, se concentrar na formação de pastores a repor o quadro daqueles que estando na ativa vão encerrando a sua atuação, numa clara formação, que ainda que prime por uma certa qualidade acadêmica, concentra praticamente toda a formação para a demanda doméstica, sem nem mesmo ter uma ênfase no alcance do próprio nacional, mas a manutenção da grei já arrebanhada; o que não dizer de outros povos? Se apenas se olhasse para o próprio universo nacional, se haveria de perceber que há inúmeras oportunidades para trabalhos interculturais dentro do próprio Brasil; se nem mesmo se considere as grandes diferenças existentes entre as culturas de cada região 105 brasileira, tome-se as múltiplas amostras de significativos números de imigrantes e descendentes estrangeiros em nosso solo. São afro-descendentes e comunidades quilombolas; são nipo-brasileiros, muitos dos quais tentando preservar uma certa identidade cultural; são cidades localizadas especialmente no sul do país onde ainda se pode perceber pessoas se expressando como língua primária através de um outro idioma que não o legado lingüístico colonial português; e dentre tantos, há aqueles de etnia árabe e de fé muçulmana, como muitos libaneses; além dos mais recentes, que se amontoam em galpões exercendo funções fabris ou manuais com baixíssima renda, como ocorre com peruanos e bolivianos localizados em bairros como o Brás e o Pari; e até mesmo aqueles endividados comprometidos em saldar a dívida do seu traslado clandestino da China até esta pátria verde-amarela. Além destes, há a difícil, polêmica e não pouco contestável tarefa da evangelização dos indígenas brasileiros, cuja discussão do simples envolvimento envolve disputas e discussões antropológicas, acadêmicas, sociais e até mesmo políticas como a recente demarcação da Reserva Indígena em Roraima demonstrou. Enfim, todas estas necessidades são despertadas na consciência do leitor de Raimundo Lúlio, que o ler tendo em mente a sua proposta missionária. A presente pesquisa procurou demonstrar qual foi, então, a contribuição deste cidadão medieval para a tarefa missionária da Igreja, em seus dias e com implicações aos dias atuais, ficando o desafio da comunicação intercultural do evangelho entre cristãos e muçulmanos. Na contemporaneidade, a principal contribuição de Raimundo Lúlio às missões cristãos aos muçulmanos, por aplicação, se refere ao que se tem afirmado sobre o mesmo como um vanguardista embrionário do que hoje se refere como diálogo inter-religioso. Embora seja um anacronismo tentar enxergar tal visão nos moldes atuais em Lúlio, não seria errado afirmar que ao buscar estar inteirado do conhecimento, da língua, da filosofia, do livro sagrado e dos ensinos religiosos dos islâmicos; e ao propor uma evangelização franca, aberta, calcada num debate racional, de mútua audição e conhecimento, Lúlio lega à contemporaneidade uma visão que se aplica à importância da necessária convivência e tolerância não apenas com a pluralidade religiosa, mas com a necessária capacidade de debate inter-religioso, assim como o direito assegurado à mudança religiosa, calcada na liberdade individual de escolha consciente do cidadão contemporâneo. Acima de tudo, Lúlio ensina à igreja contemporânea os valores cristãos da abnegação, da contextualização e dos esforços missionários conscientes de divulgação da fé cristã ao mundo não evangelizado através de atos e palavras que expressam consciente dedicação na evangelização que prioriza os povos não-alcançados, através de uma 106 encarnação do modelo apostólico expresso por Paulo em Atos 20.24 e em Romanos 15.20,21, palavras do Novo Testamento da Bíblia Sagrada, que dizem: Porém em nada considero a vida preciosa para mim mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus para testemunhar o evangelho da graça de Deus. [...] esforçando-me, deste modo, por pregar o evangelho, não onde Cristo já fora anunciado, para não edificar sobre fundamento alheio; antes como está escrito: Hão de vê-lo aqueles que não tiveram notícia dele, e compreendê-lo os que nada tinham ouvido a seu respeito. (Bíblia Sagrada, 1993, p. 116). A presente pesquisa, contudo, apenas abre um leque de possibilidades investigativas sobre a missiologia luliana. Aprofundar a pesquisa sobre qual a importância dada por Lúlio à necessidade da devida compreensão da língua e da cultura dos povos a quem se pretende alcançar e relacionar esta percepção com o atual nível de compromisso de respeito ao princípio de alteridade nas missões cristãs contemporâneas é uma vertente a ser pesquisada com ênfase missiológica e potencialmente com grande utilidade missionária. As pesquisas do autor deste trabalho sobre a obra luliana revelaram uma vastíssima produção literária do próprio Lúlio, praticamente todas com o propósito de difundir a fé cristã e valores morais decorrentes da “cristianização” da cultura dos seus dias, sendo assim, um projeto futuro poderia tentar catalogar estas obras literárias, associando-as à sua contribuição à evangelização de povos não cristãos. Sobre esse ilustre catalão medieval, há um vasto universo de estudos sendo desenvolvidos pelo mundo afora, mas pouquíssimo material em língua portuguesa, sendo assim, por fim, grande contribuição poderia ser dada sobre as pesquisas lulianas, a simples divulgação de sua biografia, apontando-se as suas principais contribuições, que ultrapassam a questão missiológica, sendo até mais conhecidas nas áreas de filosofia, educação e literatura. A vida e a obra de Raimundo Lúlio são um vasto universo de conhecimento e estudos científicos, filosóficos, educacionais, éticos e morais que pode e deve ser mais explorado no universo da academia de língua portuguesa, e particularmente por nós da Universidade Presbiteriana Mackenzie, pois além dele ter sido latino como nós, foi um cristão professo e engajado, o fato de ter sido católico revelaria da nossa parte, ainda, a capacidade de ver e reconhecer valores em outros matizes da cristandade e saber usar e aproveitar os mesmos onde eles se apresentarem. 107 Além do que já foi aqui demonstrado, fica como proposta para futuras pesquisas também, a demonstração de como a missiologia luliana antecipou muitos princípios considerados modernos pela missiologia e de que maneira ela pode ser útil e deve ser avaliada pela Igreja cristã contemporânea. Encerram-se aqui estas considerações finais com uma consciência de que embora tenha sido almejada a excelência na presente pesquisa, a sua redação ficou distante do pretendido, ainda que também se tenha buscado expressar uma outra consciência, reflexo da que havia no próprio Raimundo Lúlio, que era a da responsabilidade missionária cristã frente aos povos não cristãos, tal visão pode ser bem expressa nessa última citação, através das seguintes palavras do teólogo reformado holandês Johannes Blauw: “De acôrdo com esta idéia cristã dos primeiros tempos, a Igreja deve proclamar o Evangelho ao ‘mundo todo em cada geração’” (Blauw, 1966, p. 107). 108 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA4 Obras impressas citadas no corpo desta pesquisa: ABDALATI, H. O Islam em foco. São Bernardo do Campo: Makkah, 2008. ALCORÃO SAGRADO. São Paulo: Tangará, 1975. ALEM, J. A Armênia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1961. ARMSRONG, K. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. BERTUZZI, F.(ed.). 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