Raimundo Monteiro Montenegro Neto

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
RAIMUNDO LÚLIO E AS MISSÕES CRISTÃS AOS MUÇULMANOS
por Raimundo Monteiro Montenegro Neto
São Paulo
2010
2
RAIMUNDO MONTEIRO MONTENEGRO NETO
RAIMUNDO LÚLIO E AS MISSÕES CRISTÃS AOS MUÇULMANOS
Dissertação apresentada em cumprimento
parcial às exigências do Programa de PósGraduação em Ciências da Religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie para a
obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Edson Pereira Lopes.
São Paulo
2010
3
M777c Montenegro Neto, Raimundo Monteiro
Raimundo Lúlio e as missões cristãs aos
muçulmanos /
Raimundo Monteiro Montenegro Neto - 2010.
114 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2010.
Bibliografia: f. 108-114.
1. Missões 2. Muçulmanos 3. diálogo inter-religioso 4. Cruzadas
I. Lúcio, Raimundo II. Título
LC BV2070
CDD 266
4
Aprovado em ___ / ___ / ___
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Edson Pereira Lopes
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Máspoli de Araújo Gomes
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva
Universidade Metodista de São Paulo
5
“[...] torna a tua vontade obediente a teu entendimento”
(Lúlio, 2007, p. 101)
6
DEDICATÓRIA
Esta pesquisa é dedicada aos membros da minha família, à minha esposa Veridiana,
e aos meus filhos, Ester, David, Arthur e Felipe Montenegro, os quais têm experimentado e
compartilhado comigo muitos dos mesmos sonhos que havia em Raimundo Lúlio e têm
sido bastante compreensivos com as minhas ausências, em virtude das exigências próprias
que a conclusão de um projeto de pesquisa de mestrado requerem.
7
AGRADECIMENTOS
Embora várias pessoas tenham cooperado para o desenvolvimento desta pesquisa,
destaco aqui os meus agradecimentos àqueles que tiveram participação significativa na
restauração e no progresso das minhas pesquisas acadêmicas recentes através da Escola
Superior de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Estas pessoas foram: o
prof. Dr. Rev. Antônio José do Nascimento Filho, que sempre me incentivou a prosseguir
com as pesquisas sobre Raimundo Lúlio; o prof. Ms. Esteve Jaulent, que tem dispensado
atenção e esclarecimentos a mim sobre as obras de Raimundo Lúlio; o prof. Dr. Rev.
Hermisten Maia Pereira da Costa, que me incentivou a buscar a validação do curso de
Teologia; o prof. Dr. João Baptista Borges Pereira, que em suas aulas acabou por me
ressaltar a riqueza e a beleza da contribuição da antropologia para o estudo religioso; e por
fim, o prof. Dr. Rev. Edson Pereira Lopes, que tanto cooperou para o desenvolvimento
desta pesquisa, frente às minhas deficiências metodológicas e com os seus estímulos.
8
RESUMO
MONTENEGRO NETO, R. M. – Raimundo Lúlio e as missões cristãs aos
muçulmanos. Dissertação de Mestrado de Ciências da Religião. Universidade Presbiteriana
Mackenzie. São Paulo, 2010.
Raimundo Lúlio, um cidadão catalão do séc. XIII, desenvolveu um projeto teóricoprático de missões (missiologia luliana) baseado em um vasto trabalho filosófico, literário
e apologético em prol da cristianização do mundo a ser alcançada por intermédio da
argumentação e demonstração racional da superioridade da fé cristã católica sobre as
demais religiões. A missiologia luliana implicava primordialmente a conversão dos
adeptos de outras religiões ao cristianismo, especialmente os muçulmanos, mas também
incluía a restauração da cristandade através da educação nos seus próprios valores.
As tensões entre cristãos e muçulmanos eram grandes nos dias de Lúlio e ainda
hoje as missões cristãs aos islâmicos continua sendo um grande desafio. A falta de um
diálogo franco e de um debate objetivo de idéias que tenham mútuos respeito, audição e
conhecimento ainda têm marcado a relação entre os seguidores de Cristo e os de Maomé.
A missiologia luliana buscou, no âmbito dos limites dos seus dias, vencer estas
resistências através do diálogo e da alteridade e é aqui apresentada como um paradigma
histórico relevante para a realização contemporânea de missões cristãs aos muçulmanos. O
reconhecimento daquele distante cenário medieval é necessário para o devido
entendimento das polêmicas e críticas à missiologia luliana, assim como para o
reconhecimento da sua natureza vanguardista, como se busca demonstrar nesta pesquisa.
PALAVRAS-CHAVE
Raimundo Lúlio; missões aos muçulmanos; diálogo inter-religioso; cruzadas; e
cristandade.
9
ABSTRACT
MONTENEGRO NETO, R. M. – Raymond Lully and the Christian Missions to the
Muslims. Dissertation for Master of Science of Religion, Mackenzie Presbyterian
University. São Paulo, 2010.
Raymond Lully, a citizen of the thirteenth century, developed a missions’ theory
which he put into practice, in here called Lullyany Missiology. His theory was based on a
vast philosophic, literary and apologetic work sympathetic to the Christianization of the
world. According to Lully, the people would be reached by the argumentation and
demonstration of the superiority of the Catholic Christian faith above all others religions.
Lullyany Missiology focused primarily on the conversion from other religions’ people to
Christianity, especially Muslims. It also included the restoration of Christianity through
educating the people in their own values.
During the days of Lully, there were many great conflicts between Christians and
Muslims; much like the today’s Christian Missions to the Muslims continue to provide
challenges. The lack of true dialog and objective debate of ideas that has a mutual respect,
audition and knowledge still marks the relationship between the followers of Christ and
Mohammad.
Lullyany Missiology sought to win the resistance through dialog and appreciation
on the ambit and limitations of her days. It is presented here as an historic paradigm
relevant to the realization of contemporary Christian Missions to the Muslims. The
knowledge of that distant medieval scenery is necessary for the understanding of polemics
and criticism to the Lullyany Missiology, as is the acknowledgement of the vanguard
nature in the pursuit to demonstrate the next research.
KEY WORDS
Raymond Lully; Missions to the Muslims; Interreligious Dialogue; Crusades; and e
Christianity.
10
SUMÁRIO
Sumário .............................................................................................................................. 10
Introdução ........................................................................................................................... 12
1. O contexto das missões cristãs aos muçulmanos ........................................................... 21
1.1. Cronologia geral da época de Raimundo Lúlio ........................................................... 21
1.2. Missões cristãs na Idade Média ................................................................................... 28
1.2.1 Missões medievais: a catolicização do mundo .......................................................... 28
1.2.2 O mau exemplo histórico da perda dos mongóis....................................................... 30
1.2.3 As condições religiosas do mundo medieval ............................................................ 31
1.2.4 A preocupação de Lúlio com a resposta da Igreja ..................................................... 32
1.3. A tensão entre cristãos e muçulmanos ........................................................................ 34
1.3.1 O surgimento do Islã e a sua relação com os cristãos ............................................... 34
1.3.2 A reação cristã à expansão islâmica .......................................................................... 36
1.3.3 A tensão entre cristãos e muçulmanos na Europa ..................................................... 38
1.3.4 A situação mais específica na Espanha de Lúlio ....................................................... 39
1.4 Missões que influenciaram Raimundo Lúlio ................................................................ 41
1.4.1 As primeiras missões cristãs aos muçulmanos .......................................................... 42
1.4.2 A influência das ordens missionárias ........................................................................ 43
1.4.3. A identificação com o cristianismo institucional ..................................................... 46
1.4.4 A influência de outros Raimundos em Lúlio ............................................................. 47
2. A missiologia luliana, teoria e prática de Raimundo Lúlio ............................................ 50
2.1. A biografia missionária de Raimundo Lúlio ............................................................... 50
2.1.1 Apresentação sucinta de Raimundo Lúlio ................................................................. 51
2.1.2 A vida inicial de Raimundo Lúlio ............................................................................. 51
2.1.3 A conversão e o chamado de Raimundo Lúlio .......................................................... 52
2.1.4 O preparo missionário de Raimundo Lúlio ............................................................... 53
2.1.5 A vida missionária de Raimundo Lúlio ..................................................................... 54
2.1.6 Raimundo Lúlio, missionário até a morte ................................................................. 54
2.1.7 Dialogando com a biografia missionária de Raimundo Lúlio ................................... 55
2.2. A visão missionária de Raimundo Lúlio ..................................................................... 56
2.2.1 O ideal de Raimundo Lúlio ....................................................................................... 57
2.2.2 O desconforto de Raimundo Lúlio ............................................................................ 58
2.2.3 A proposta missionária de Raimundo Lúlio .............................................................. 60
11
2.2.4 Dialogando com a visão missionária de Raimundo Lúlio ......................................... 63
2.3. As letras na missão de Raimundo Lúlio ...................................................................... 64
2.3.1 As letras a serviço da evangelização ......................................................................... 65
2.3.2 As letras para a glória de Deus .................................................................................. 67
2.3.3 Dialogando com as letras de Raimundo Lúlio .......................................................... 68
2.4. O zelo missionário de Raimundo Lúlio ....................................................................... 69
2.4.1 Os valores morais de Raimundo Lúlio ...................................................................... 70
2.4.2 Missões como expressões da fé cristã ....................................................................... 71
2.4.3 Dialogando com o zelo missionário de Raimundo Lúlio .......................................... 74
3. Debatendo cruzada e missão em Raimundo Lúlio ......................................................... 77
3.1. As cruzadas cristãs e os muçulmanos .......................................................................... 77
3.1.1 A origem das cruzadas .............................................................................................. 79
3.1.2 A natureza das cruzadas ............................................................................................ 80
3.1.3 As conseqüências das cruzadas ................................................................................. 81
3.1.4 As cruzadas para os muçulmanos .............................................................................. 83
3.2. As cruzadas para Raimundo Lúlio .............................................................................. 85
3.2.1 A natureza militar das cruzadas para Lúlio ............................................................... 85
3.2.2 A natureza missionária das cruzadas para Lúlio ....................................................... 89
3.3. O diálogo inter-religioso em Raimundo Lúlio ............................................................ 93
3.3.1 Em diálogo e resposta à filosofia islâmica ................................................................ 94
3.3.2 Princípios de alteridade em Raimundo Lúlio ............................................................ 96
3.3.3 Uma proposta de missões com alteridade ................................................................. 99
3.3.4 Uma proposta de escolas missionárias .................................................................... 100
Considerações Finais ........................................................................................................ 102
Referência Bibliográfica ................................................................................................... 108
12
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem como foco estimular e produzir uma reflexão teórica sobre
a atuação missionária cristã aos muçulmanos, tendo como paradigma histórico a
missiologia luliana, ou seja, o projeto teórico e a subseqüente prática missionária
decorrente desenvolvida pelo catalão Ramon Llull (forma original catalã do nome do
personagem histórico em estudo; contudo, na presente pesquisa dá-se a preferência pela
forma aportuguesada do seu nome, Raimundo Lúlio).
Lúlio viveu entre os séculos XIII e XIV, em pleno período medieval marcado por
diversos e intensos conflitos religiosos, especialmente entre cristãos e muçulmanos, que
disputavam terras não apenas no continente europeu, acentuadamente na península ibérica,
mas também na região do Oriente Médio conhecida como Terra Santa. Tais tensões
geográfico-religiosas foram vivenciadas intensamente no episódio das Cruzadas.
Desde o início da sua jornada espiritual de devoção cristã, Raimundo Lúlio passou
a perseguir o ideal de ver o mundo convertido a Cristo; e com tal propósito ele buscou e
desenvolveu um modelo missiológico-apologético que se concentrava no debate racional e
comparativo do conteúdo das crenças religiosas dos grupos em questão, dando um
destaque à mais tensa relação de então: a dos cristãos com os muçulmanos. Respeitando
princípios de alteridade, Lúlio desenvolveu a sua missiologia argumentativa e engajada,
que na presente pesquisa é nomeada como missiologia de Raimundo Lúlio, ou
simplesmente, missiologia luliana, a qual é descrita e proposta como potencialmente útil e
relevante tanto ao bom relacionamento inter-religioso, quanto à própria realização das
missões cristãs na contemporaneidade.
Termos como Idade Média, Evangelização, Missões e Missiologia são recorrentes
nesta pesquisa; e embora haja polêmicas em torno de muitos e um certo consenso sobre
outros, na presente obra os mesmos são usados com os seguintes significados:
Idade Média – adota-se na presente pesquisa o termo Idade Média conforme usado
por Bosch, inclusive devido às semelhantes ênfases; sendo assim, tal expressão busca
indicar um período compreendido entre os anos 600 e 1500 d.C. – iniciado com o papado
de Gregório Magno e o começo da expansão islâmica; e finalizado com a conquista de
Constantinopla pelos muçulmanos (1453), a Reconquista de Granada pelos cristãos (1492)
13
e a Conquista do Novo Mundo, o continente americano (Bosch, 2002, p. 265). Este período
recebe na presente pesquisa o foco na tensão entre o cristianismo e o islamismo.
Evangelização – adota-se na presente pesquisa o termo Evangelização conforme
apresentado por Dayton, que assim o define associando natureza, propósito e alvo da
evangelização: “A natureza da evangelização é a comunicação das boas-novas. [...] O
propósito da evangelização é dar a indivíduos e grupos uma oportunidade válida de aceitar
Jesus Cristo. [...] O alvo mensurável da evangelização é persuadir homens e mulheres a
aceitar Jesus Cristo como Senhor e Salvador, e servi-Lo na comunhão de Sua Igreja.”
(Dayton, 1982, p. 18). A presente pesquisa assume que o foco principal da missão cristã na
vida e obra de Raimundo Lúlio foi a evangelização dos muçulmanos, ou seja, o esforço
consciente de oferecer aos islâmicos uma comunicação compreensível do que ele entendia
ser a mensagem racional do evangelho de Cristo.
Missões – adota-se na presente pesquisa o termo Missão e o seu derivativo plural,
Missões, como uma combinação dos conceitos de Missão e Projeto Missionário conforme
apresentados por Longuini Neto, para quem o “ponto de partida para entender a missão é
afirmá-la como o testemunho do amor e da presença de Deus na história pelos cristãos [...]
e projeto missionário [é] entendido como o conjunto de esforços, métodos e estratégias
para levar adiante a missão” (Longuini Neto, 2002, pp. 67, 68). Portanto, o termo missões
é usado na presente pesquisa tão somente como indicadora das ações cristãs que visam o
cumprimento da missão da Igreja de dar testemunho aos não-cristãos, através de palavras e
ações, sobre a mensagem do Evangelho, conforme compreendida pelos cristãos, e assim se
tornar participante da ação redentora de Deus, dirigida aos homens através da sua Igreja.
Missiologia – embora se reconheça que o termo Missiologia está técnica e
precisamente relacionado à reflexão analítica sobre a atuação missionária da Igreja Cristã,
consistindo, portanto no estudo sistemático e crítico da atuação missionária desta a partir
da contribuição das ciências bíblicas, teológicas, históricas e sociais, na busca da aplicação
de um modelo bíblico de atuação, conforme apresenta Escobar (2001, p. 145), no presente
texto, o termo vem comumente associado a outro, luliana, que o adjetiva, qualifica e
direciona especificamente nesta obra, de tal maneira que ao se ler missiologia luliana na
presente pesquisa, está-se indicando com isto não apenas o estudo teórico sobre a atuação
missionária cristã, mas também a proposta e execução práticas desenvolvidas por
Raimundo Lúlio como modelo de missões cristãs aos muçulmanos nos seus dias, visto que
14
neste personagem, teoria e prática caminham lado-a-lado; sendo assim, considere-se o uso
aqui da seguinte expressão nesta pesquisa.
Missiologia Luliana – esta expressão indica na presente pesquisa a proposta teórica
e prática de missões cristãs aos muçulmanos apresentada por Raimundo Lúlio, cujo
objetivo principal era a evangelização dos islâmicos através da demonstração racional da fé
cristã, baseada no debate religioso que exige conhecimento e audição mútuos.
A metodologia aqui empregada foi a pesquisa bibliográfica, sendo as obras
pertencentes aos seguintes principais sub-temas desenvolvidos no corpo deste: 1) obras de
autoria do próprio Raimundo Lúlio; 2) obras que avaliam o legado de Raimundo Lúlio; 3)
obras que discorrem sobre o Islamismo; 4) obras que debatem a relação entre o
Cristianismo e o Islamismo; 5) obras que versam sobre as Cruzadas; 6) obras que abordam
o tema do desafio do diálogo inter-religioso; 7) obras missiológicas analíticas sobre o
cumprimento histórico da missão da Igreja; 8) obras que avaliam os desafios da
comunicação intercultural; 9) obras que apresentam conceitos importantes à comunicação
intercultural; e por fim, 10) obras que propõem caminhos e modelos ao cumprimento
cristão da sua missão entre os muçulmanos.
O método empregado nesta pesquisa consiste em expor as propostas lulianas para o
cumprimento da missão cristã entre os muçulmanos, apresentar avaliações destas propostas
feitas por estudiosos da vida e obra de Raimundo Lúlio, debatendo criticamente estas
avaliações e as próprias propostas originais lulianas, assim como levantar outras
contribuições úteis ao cumprimento da missão cristã aos muçulmanos, sempre fazendo
referência crítica ao pensamento de Lúlio, procurando identificar aspectos historicamente
circunstanciais e, portanto, anacrônicos à missiologia moderna, mas principalmente
demonstrar que em sua grande maioria, as propostas lulianas foram expressões de
vanguarda, consideradas e aceitas nesta época contemporânea, assim como algumas outras
que ainda teriam muito a colaborar caso fossem consideradas e observadas pelas pessoas
nestes dias atuais.
Estes foram o método e a metodologia utilizados nesta pesquisa, que identifica
método como a descrição do caminho percorrido e da lógica perseguida no
desenvolvimento dos argumentos apresentados na pesquisa, embora Hübner proponha isto
como metodologia (1998, p. 41), visto que esta é aqui identificada apenas como indicadora
da natureza da pesquisa acadêmica desenvolvida no presente texto, no caso, bibliográfica.
15
Sendo assim, o objetivo geral desta pesquisa é demonstrar que a missão apologética
de Raimundo Lúlio pode ser útil às missões cristãs contemporâneas nesta época de
diversidade e atividade inter-religiosa, enfatizando a atuação missionária cristã aos
muçulmanos, tendo como foco de pesquisa o modelo da missiologia luliana. Aqui se
pretende como objetivos específicos:
• Apresentar o contexto histórico e geográfico geral das missões cristãs aos
muçulmanos até os dias de Raimundo Lúlio;
• Discorrer a respeito da visão missionária de Raimundo Lúlio aos muçulmanos,
apresentando considerações próprias à perspectiva evangélica protestante;
• Expor criticamente a proposta de Raimundo Lúlio para as cruzadas e para a
missão cristã aos muçulmanos.
A questão norteadora desta pesquisa pode ser expressa na seguinte questão: qual foi
a relação entre Raimundo Lúlio e as missões cristãs aos muçulmanos? Esta questão
central desdobra-se nos seguintes problemas condutores da pretendida pesquisa:
• Qual a relevância contexto histórico e geográfico geral das missões cristãs aos
muçulmanos para a efetivação destas durante a Idade Média?
• Qual foi, em linhas gerais, a proposta apresentada e desenvolvida por Raimundo
Lúlio para as missões cristãs aos muçulmanos?
• Quais foram as propostas de Raimundo Lúlio para as cruzadas e quais as
propostas mais relevantes às missões cristãs aos muçulmanos na contemporaneidade?
A presente pesquisa se desenvolve sobre a hipótese central de que a missiologia
proposta por Raimundo Lúlio ainda apresenta contribuições úteis à atuação missionária
cristã aos muçulmanos; e ao se fazer algumas ressalvas históricas contextuais, a mesma
continua relevante à contemporaneidade. Buscando a demonstração desta hipótese central,
esta pesquisa se desenvolveu a partir das seguintes hipóteses secundárias:
• A primeira hipótese secundária desta pesquisa propõe que um melhor
conhecimento do contexto geral no qual viveu Raimundo Lúlio é essencial para a devida
avaliação das teorias e práticas missiológicas apresentadas e vivenciadas pela Igreja na
Idade Média, pois somente tendo em vista a realidade na qual ela estava inserida, é que se
pode reconhecer a contribuição que as missões medievais deram à formação da proposta
16
missionária de Raimundo Lúlio, frente ao desafio de levar o evangelho aos muçulmanos
nos seus dias.
Esta pesquisa busca apresentar o contexto histórico-cultural-religioso do mundo no
qual estava inserido Raimundo Lúlio, e demonstrar que apesar do cenário hostil ao
convívio e ao debate inter-religioso, algum trabalho missionário foi feito e especialmente
nos dias próximos a Lúlio, identificar aqueles que exerceram influência sobre este, de tal
maneira que colaboraram para a formação da sua proposta teórica e modelo prático de
missões cristãs aos muçulmanos.
• A segunda hipótese secundária desta pesquisa apresenta panoramicamente a
proposta missionária de Raimundo Lúlio para as missões cristãs aos muçulmanos, tecendo
algumas considerações sob a ótica cristã protestante. A hipótese levantada neste ponto é a
de que a proposta de Lúlio foi vanguardista em muitos aspectos, adiantando-se no tempo,
serve de modelo para as missões cristas aos muçulmanos em muitos pontos propostos; e foi
fruto de uma visão que unia devoção a Deus, idealismo religioso, educação primorosa e
dedicação intensa e comprometida com os ideais propostos.
Este ponto da pesquisa caminha sobre hipótese e tônica bastante positivas a respeito
da missiologia luliana, não entrando nos mais intrincados debates e críticas. A segunda
hipótese se desenvolve sob os auspícios de uma reflexão inspirativa para a Igreja
protestante contemporânea, ao destacar os aspectos positivos da proposta luliana e
apresentar a sua missiologia como um paradigma histórico digno de ser considerado e até
mesmo seguido, com as devidas ressalvas necessárias.
• Por fim, a terceira e última hipótese secundária desta pesquisa se concentra em
dois aspectos centrais da missiologia luliana, a saber: a polêmica a respeito das cruzadas; e
depois a construção de uma missiologia que leve em consideração aquele a quem se dirige
o esforço missionário, destacando disto a proposta de diálogo inter-religioso em Raimundo
Lúlio e as relações entre os religiosos de distintas religiões neste mundo contemporâneo.
Esta última hipótese, contrasta-se profundamente com a anterior, pois se apresenta
com um tom mais crítico a respeito das propostas missiológicas e da prática de Raimundo
Lúlio para com os não-cristãos. Ela apresenta o empreendimento das cruzadas e faz uma
avaliação crítica sobre a visão que Raimundo Lúlio tinha da mesma, visto que era um dos
seus proponentes, no entanto propõe-se que esta adesão se dá por ele entender motivos de
ordem militar e de disputa e defesa de posse de terra e não como recurso essencialmente
17
conversionista. Já quanto às propostas de diálogo inter-religioso e da preparação dos
missionários a serem enviados ao mundo para a evangelização dos não-cristãos, apresentase a hipótese de que aqui se encontra a maior contribuição de Raimundo Lúlio para as
missões cristãs aos muçulmanos.
Não apenas a proposta de qualidade no diálogo inter-religioso feita por Raimundo
Lúlio se revela útil ao convívio religioso mais harmonioso, aproximando os diversos
segmentos e promovendo um melhor conhecimento mútuo, assim como a construção de
uma sociedade mais solidamente democrática, inclusive na esfera religiosa, mas a
missiologia luliana se mostra relevante ao legítimo direito do cidadão moderno a: a posse,
por convicção pessoal; o anúncio, pela proclamação livre; o debate, pela sincera exposição;
a possibilidade de conversão, por decisão pessoal à outra matriz religiosa.
As idéias de Lúlio aplicam-se apropriadamente ao fato de que o convívio respeitoso
de adeptos de crenças distintas não se dá pelo silêncio inibidor da exposição das
convicções, nem pela tolerância apenas à explicitação de uns poucos e superficiais pontos
de convergência universalmente aceitos pelas religiões em geral. Muito pelo contrário,
Lúlio nos ensina sobre a importância da madura garantia do direito ao debate cordial de
idéias e à liberdade de expressão que respeita, tolera, convive e aborda, até mesmo por
conhecer melhor, a religião professada pelo outro.
Esta pesquisa termina por tentar demonstrar que pela natureza e conteúdo da
missiologia luliana a mesma se revela útil e relevante ao mundo contemporâneo como um
todo e não apenas à atuação missionária cristã aos muçulmanos, pois ensina a tolerância e
o respeitoso convívio de distintos credos na sociedade atual, sem, no entanto, relativizá-los,
rejeitá-los, impô-los ou no máximo tolerá-los, mas propõe o caminho da defesa do legítimo
direito de existência, manifestação e atuação democrática do diversos credos na sociedade
contemporânea, respeitando os direitos humanos básicos de liberdade de expressão, culto,
circulação; e, acima de tudo, direito à vida.
O meu interesse por Raimundo Lúlio se iniciou por curiosidade, pois tendo este
personagem histórico o mesmo nome que o autor deste projeto, o fato me chamou a
atenção desde quando ainda no curso teológico (por volta do ano de 1999) eu li pela
primeira vez a respeito de alguém homônimo na história das missões cristãs.
Posteriormente, quando cursava a especialização em Missiologia, as pesquisas
sobre o mesmo personagem recomeçaram (em torno do ano de 2001). Neste ínterim,
18
ocorreu o conhecimento e o contato com o Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência
Raimundo Lúlio (Ramon Llull), ou simplesmente o IBFCRL. Esta instituição –
especialmente através da pessoa do seu diretor, o também catalão Esteve Jaulent – passou a
colaborar significativamente nas minhas pesquisas sobre Lúlio.
Embora com exigüidade de tempo, Lúlio foi o tema central do meu Trabalho Geral
Interdisciplinar – TGI (equivalente ao TCC de outras universidades) na validação do curso
de Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. O interesse na pesquisa sobre
Lúlio já estava selado e mesmo tendo começado a investigar outras áreas do conhecimento
enquanto cursava as disciplinas do mestrado em Ciências da Religião, agora se retornou
aqui, na dissertação de mestrado, a este tema que tem me atraído aos exercícios da
pesquisa acadêmica.
Esta pesquisa pretende justificar-se relevante a partir de várias colaborações que
pode oferecer, dentre as quais se destacam as seguintes:
Proposta de diálogo inter-religioso. Ora, ainda neste século XXI a questão religiosa
é um tema de importante consideração não apenas por motivos religiosos, mas também
acadêmicos e até mesmo políticos e diplomáticos, pois persiste na contemporaneidade a
dificuldade de se estabelecer um diálogo respeitoso e uma livre atuação e vivência
religiosas entre adeptos de diversas religiões, como o Hinduísmo, o Budismo, inclusive as
três grandes religiões monoteístas mundiais, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.
Tensões em escolas na França devido ao uso do véu por parte das meninas muçulmanas
ainda é um assunto presente na imprensa mesmo fora daquele país, como se pode verificar
no artigo de Reinaldo Azevedo, colunista na Revista Veja, conforme ele postou em 23 de
junho de 2009 (Azevedo, 2009, internet).
Um melhor diálogo inter-religioso no mundo atual é necessário tendo em vista que
muitos têm se mobilizado para promover um mais harmonioso convívio entre grupos de
distintas crenças em constante conflito, como ocorreu com o governo brasileiro ao tomar a
iniciativa de incentivar os times do Flamengo e do Corinthians a planejarem uma partida
amistosa de futebol na Palestina como uma tentativa de através da prática esportiva tentar
aproximar judeus e palestinos e promover um convívio pacífico entre eles, conforme se
noticiou em jornalismo televisivo (Sportv, 2009, internet). Apesar de se ouvir que “o
objetivo da partida é contribuir para a paz na região”, percebe-se que tais iniciativas não
abordam um aspecto essencial da tensão, que é a questão religiosa.
19
Muitos outros exemplos poderiam ser apresentados que demonstram falta de
diálogo inter-religioso, assim como a persistente presença da intolerância religiosa na
atualidade, tal como se pode verificar pela notícia veiculada em 1º de setembro de 2008 no
portal do jornal Gazeta do Povo sob o título: “Multidão queima casas em choque religioso
na Índia” (Gazeta do Povo, 2008, Internet). Exemplos como estes ressaltam uma possível
relevância da presente pesquisa como um elemento de contribuição ao atual diálogo interreligioso.
Embora Raimundo Lúlio tenha sido autor de vasta obra literária e destacado
filósofo e missionário, o mesmo ainda não goza do conhecimento devido na academia
brasileira, especialmente entre os protestantes; no entanto, Lúlio tem muito a contribuir
para o enriquecimento da vida acadêmica no Brasil, assim como o de vários espectros do
cristianismo, e por que não dizer o de toda a humanidade, pois a sua vida e obra têm muito
a contribuir a todos, em diversas áreas da nossa realidade e não apenas a academia, dentre
as quais, se pode aplicar a:
A Contemporaneidade, devido à atual realidade sócio-cultural que vivemos, de
tensão global entre o Ocidente e o Oriente, o Cristianismo e o Islamismo – mais claramente
percebida após os atentados de 11 de setembro de 2001 – isto porque Lúlio viveu em dias
de similar conflito e a sua atuação foi no meio da tensão, o que pode fazer dele uma lição
viva da história, pois ainda que inúmeras vezes a sua presença e argumentação causaram
alvoroço entre os seus oponentes, é inegável a superioridade de uma abordagem por
argumentação que busca o debate e o diálogo do que aquela que dispensa tal diplomacia,
como ocorre em ataques e guerras ainda hoje comuns;
A História, pois a pesquisa sobre este personagem da virada do séc. XIII para o séc.
XIV pode resgatar algumas contribuições que o cristianismo medieval vivido por Lúlio
deixou à posteridade, independente da matriz teológica específica (católica, ortodoxa,
protestante, etc.). A riqueza, a diversidade e complexidade do momento histórico vivido
por Lúlio justificam a História como ponto de relevância desta pesquisa;
A Educação e as Letras, pois dá a conhecer ao público contemporâneo a vasta
produção educacional, filosófica e literária deste personagem medieval. Embora ainda
sejam poucas as obras sobre Lúlio, assim como as de sua autoria traduzidas e editadas na
língua de Camões diante do universo que ele produziu, vai-se, contudo, dando a conhecer
ao público de escrita portuguesa a riqueza literária produzida por este mestre catalão, a
20
quem se atribui inclusive a destacada posição de poeta pioneiro que se tem conhecimento
na língua catalã.
A presente pesquisa, que tem por título “A contribuição de Raimundo Lúlio para as
missões cristãs aos muçulmanos” está dividida nos seguintes capítulos e conteúdos:
No capítulo 1, intitulado O contexto das missões cristãs aos muçulmanos, procurase apresentar o cenário histórico e geográfico medieval e como nele se desenvolveram as
missões cristãs medievais até os dias de Lúlio. Para tanto, esta pesquisa assim se estrutura:
1) cronologia geral da época de Raimundo Lúlio; 2) missões cristãs na Idade Média; 3) a
tensão entre cristãos e muçulmanos; e 4) missões que influenciaram Raimundo Lúlio.
No capítulo 2, intitulado A Missiologia Luliana, teoria e prática de Raimundo
Lúlio, busca-se apresentar uma visão panorâmica da proposta missionária desenvolvida por
Lúlio, em sua teoria e prática, destacando os aspectos considerados positivos e sob uma
avaliação protestante otimista e inspirativa. Para tanto, esta pesquisa assim se estrutura:
1) a biografia missionária de Raimundo Lúlio; 2) a visão missiológica de Raimundo Lúlio;
3) as letras na missiologia de Raimundo Lúlio; e 4) o zelo missionário de Raimundo Lúlio.
No capítulo 3, intitulado Debatendo cruzada e missão em Raimundo Lúlio, procurase apresentar uma visão crítica sobre o episódio das cruzadas e a visão que Lúlio tinha das
mesmas – entendendo-as dentro do seu contexto histórico – e também se debruçar sobre as
principais propostas missiológicas de Lúlio, dando destaque à sua missiologia como fruto
de uma percepção sensível do princípio da alteridade. Para tanto, esta pesquisa assim se
estrutura: 1) as cruzadas cristãs e os muçulmanos; 2) as cruzadas para Raimundo Lúlio;
3) O Diálogo inter-religioso em Raimundo Lúlio, destacando a sua relação com o
Islamismo e o princípio de alteridade presente na sua proposta missiológica.
Desta maneira, dentre as tantas contribuições possíveis vindas do cristão catalão
Raimundo Lúlio, esta pesquisa busca apresentar o seu pensamento e a proposta de missão
cristã dirigida aos muçulmanos, avaliando criticamente as suas propostas e procurando
defender a sua relevância à contemporaneidade.
21
O CONTEXTO DAS MISSÕES CRISTÃS AOS MUÇULMANOS
Raimundo Lúlio deve figurar como um dos maiores missionários da
história da Igreja. Outros possuíram o mesmo desejo ardente de pregar o
Evangelho aos infiéis e de, se necessário, sofrer por ele. Mas coube a
Lúlio ser o primeiro a desenvolver uma teoria de missões, não apenas por
desejo de pregar o Evangelho, mas para trabalhar com um cuidado
pormenorizado na forma de fazê-lo. (Neill, 1997, p. 137).
Neill apresenta aqui a importância de Raimundo Lúlio, já o relacionando com a sua
contribuição em foco, que foi o seu projeto missionário. No entanto, considerando a
distância histórica que separa o presente da época em estudo, inicia-se esta pesquisa com
um capítulo que expõe objetivamente ao leitor Lúlio em seu contexto histórico-geográfico,
no qual foi desenvolvida a missiologia luliana.
1.1 Cronologia geral da época de Raimundo Lúlio
A cronologia apresentada a seguir ambienta o leitor no contexto histórico-geográfico
vivido por Lúlio e foi encontrada na internet, no site do Instituto Brasileiro de Filosofia e
Ciência Raimundo Lúlio (IBFCRL). Com poucos acréscimos, em geral, esta cronologia está
baseada nas obras de Hillgarth e Natllori, tendo recebido a forma final aqui apresentada por
Badia e Bonner:
1229
Jaume I de Aragão ocupa Maiorca.
1230-50
Entrada de Averroes nas universidades do Ocidente.
1232
Nascimento de LÚLIO em Maiorca.
1235-84
Sigério de Brabante.
1240
Roberto Grosseteste traduz a Ética de Aristóteles.
1243
Nascimento, em Montpellier, de Jaume de Maiorca, segundo filho de Jaume
I de Aragão. LÚLIO tornar-se-á seu amigo, primeiro como preceptor, depois
como senescal.
1248-54
Primeira cruzada do rei Luis da França.
22
1248-55
Magistério de São Boaventura em Paris.
1252-59
Magistério de São Tomas de Aquino em Paris.
1257
Casamento de LÚLIO com Blanca Picany com a qual tem dois filhos:
Domingos e Madalena.
1260-327
Mestre Eckhart.
1262
Jaume de Aragão decide fundar o Reino de Maiorca, que inclui o Roussillon
e o Senhorio de Montpellier, para seu segundo filho.
1263
Os Papas Urbano IV e Gregório XI publicam decretos proibindo o ensino de
Aristóteles nas universidades.
1263
Conversão de LÚLIO. Peregrinação a Santiago de Compostela e Rocamdor.
1265(66)
Nasce em Maxton-on-Tweed Duns Scot.
1265-321
Dante.
1265-74
Anos de formação de LÚLIO em Maiorca e na Abadia cirtercense da Real.
LÚLIO estuda árabe com um escravo que se suicidará.
1266-68
Rogério Bacon escreve o Opus majus, opus minus, opus tercium.
1271-74
Escreve as primeiras obras: a Lógica de Gatzel, em versão metrificada, e o
Libre de contemplació en Déu. As duas obras foram escritas primeiro em
árabe e depois em latim.
1274
Revelação na montanha de Randa. LÚLIO concebe um método ou sistema
de unificação de todos os saberes que chamará de Arte. A primeira
denominação da Arte foi Ars abreujada d'atrobar veritat, Arte breve para
encontrar a verdade. LÚLIO tem aproximadamente 42 anos.
1275
Jaume de Maiorca convoca LÚLIO a Montpellier e submete suas obras a um
perito franciscano que as aprovará.
1275-76
LÚLIO separa-se definitivamente de sua esposa.
1276
No dia 26 de julho morre Jaume I e o príncipe Jaume é coroado rei de
23
Maiorca.
1276
No dia 17 de outubro uma bula do Papa confirma a fundação do Mosteiro de
Miramar, em Maiorca, subvencionado por Jaume de Maiorca. Nele, treze
franciscanos estudam a Arte e a língua árabe. Provavelmente 1275-85
LÚLIO escreve o Livro do amigo e do Amado.
1276-87
Anos sem documentação.
1277
Condenação no dia 7 de março das doutrinas tomistas e averroístas por
Estêvão Tempier, bispo de Paris. Kilwardby, arcebispo da Cantuária,
algumas semanas mais tarde, condena as mesmas teses.
1282
Vésperas sicilianas.
1283
LÚLIO escreve a Ars demonstrativa, segunda formulação da Arte a base de
combinações de quatro elementos. Escreve também a primeira novela de
reforma social, o Llibre d'Evast i Blaquerna.
1285
Jaume II perde Maiorca, que não recuperará até 1298. Durante este período,
traslada a Corte a Perpignan e a Montpellier. LÚLIO freqüentará essas
cidades.
1287
Primeira visita de LÚLIO à Corte Papal. Não consegue nada, porque o Papa
Honório IV morre no dia 3 de abril.
1275-85
LÚLIO escreve o Livro da Ordem de Cavalaria, a Doutrina pueril, o
Blaquerna.
1287-89
Primeira estadia de LÚLIO em Paris. lê publicamente a Ars e visita a Corte
de Felipe IV o Belo. Tomás Le Myésier torna-se discípulo de LÚLIO, que
agora está com 55 anos. Redige o Felix ou Livro das Maravilhas, narrativa
das viagens em parte alegóricas de um homem que procura a verdade entre
as confusões deste mundo.
1289
LÚLIO reside em Montpellier e envia una coleção de escritos seus ao duque
de Veneza.
1289
A experiência docente mostra a LÚLIO que a versão atual da Arte é difícil
24
de manipular. Escreve a Art inventiva, baseada num sistema combinatório de
três elementos.
1289
No dia 26 de outubro o general dos franciscanos, Raimon Gaufredi, autoriza
LÚLIO a pregar nos conventos italianos. Contatos de LÚLIO com os
espirituais.
1291
A Cristandade perde São João de Acre.
1291-2
LÚLIO traslada-se a Roma e dedica ao Papa Nicolau IV seu primeiro livro
sobre as cruzadas.
1292
Morre o Papa Nicolau IV o dia 4 de abril.
1292-3
Viagem a Gênova, onde, aos 60 anos, LÚLIO sofre uma forte crise
psicológica. Empreende sua primeira viagem a África, na Tunísia.
1293-4
LÚLIO na Tunísia. A viagem termina com a expulsão de LÚLIO do país.
1293-7
Duns Scot na Universidade de Paris. Segundo uns historiadores, deixou
Paris no mês de julho; segundo outros, no dia 25 de fevereiro de 1298.
1294
Estadia de em Nápoles durante o breve pontificado e abdicação do Papa
Celestino V. LÚLIO dirige-lhe a Petição a Celestino V. Redige também a
Tabela general, nova formulação da segunda versão da Arte. Eleição do
Papa Bonifácio VIII.
1295-6
LÚLIO em Roma e Agnani. Redige a Petição a Bonifácio VIII , o Árvore da
Ciência, e o Desconhort.
1297
LÚLIO em Montpellier. Bonifácio VIII canoniza o avô de Felipe o Belo, o
rei São Luis.
1297-9
Segunda estadia de LÚLIO em Paris. Dedica a Felipe IV o Belo e à rainha
Joana o Árvore da filosofia do Amor, tratado místico que contém fragmentos
novelados de grande interesse literário. Também tem um tom místico a
Contemplatio Raimundi. Ao público universitário dirige a Declaratio per
modum dialogi edita contra aliquorum philosophorum opiniones, o
Tractatus Astronomiae, o Liber de geometria nova. O Cant de Ramon é um
25
breve poema lírico que explica o drama e as esperanças de que então estava
com 65 anos.
1299
LÚLIO em Barcelona dedica o Dictat de Ramon e o Libre d'Oració a Jaume
II. A Corte aragonesa emana um documento a favor de LÚLIO.
1300
Nasce Guilherme de Ockham no condado de Surrey.
1300-3
Duns Scot volta como professor a Paris. Seus contemporâneos: Guilherme
de Falgar, Pedro João Olivi, Ricardo de Middleton, Rogério Marston, Pedro
de Trabibus e Ghilhermo de Ware. Duns Scot deixa Paris o dia 28 de junho.
1300-68
João Buridan.
1300-1
Primeira longa estadia em Maiorca depois de muitos anos.
1302
LÚLIO em Chipre. Fracasso na sua tentativa de atrair o rei para seus
projetos. Encontra-se com o Grão Mestre dos Templários.
1302
Visita em janeiro a Pequena Armênia. Possível visita a Jerusalém. e retorno
a Gênova.
1303
O dia 7 de setembro Nogaret e os aliados de Felipe IV o Belo atacam
Bonifácio VIII em Agnani.
1304-7
Duns Scot volta a Paris onde fica até setembro de 1307.
1303-5
LÚLIO alterna Gênova e Montpellier.
1303
Escreve o Liber de ascensu et descensu intellectus, redigido em
Montepellier no mês de março. Em abril escreve o Liber de fïne, onde
coloca ao rei Jaume II de Aragão a necessidade de uma cruzada contra os
muçulmanos. A partir do dia 24 de junho começa a receber uma pensão
deste rei. Permanece em Barcelona até setembro. Está presente na entrevista
que se celebra em Montpellier entre o novo Papa Clemente V e Jaume II de
Maiorca. O dia 14 de novembro LÚLIO assiste à coroação de Clemente V
em Lião e dirige em vão novas petições a este Papa.
1305-8
LÚLIO começa em Lyon e termina em Pisa a Ars generalis ultima.
26
1306
Terceira visita de LÚLIO a Paris. Está com 74 anos.
1306-7
Permanece em Maiorca.
1307
Segunda missão em Bugia, na África. É encarcerado por seis meses e
finalmente expulso. Naufraga perto de Pisa.
1307
O dia 13 de outubro Felipe IV da França apodera-se da Ordem dos
Templários.
1308
Morre Duns Scot em Colônia.
1308-9
LÚLIO entre Pisa e Montpellier. Termina a Ars generalis ultima , a versão
definitiva de sua Arte, e a mArs brevis. Escreve o Liber clericorum, dirigido
à Universidade de Paris. Intenta promover uma cruzada desde Gênova. Em
maio dedica desde Montpellier a Ars Dei a Clemente V e a Felipe IV da
França. Provável encontro de com Arnau de Vilanova em Marsella.
1309
O Papa Clemente V se instala em Avignon.
1309
LÚLIO permanece em Montpellier. Carta a Jaume II de Aragão. Escreve o
Liber de perversione entis removenda e o Liber de acquisitione terrae
sanctae. LÚLIO aceita a política de Felipe IV da França sobre as cruzadas.
Fracassa uma visita de LÚLIO a Clemente V. Fracassa a cruzada de Jaume
II de Aragão em Almeria.
1309-11
Quarta e última estadia de LÚLIO em Paris. Luta contra o averroísmo.
Escreve umas trinta obras de caráter polemico, muitas delas endereçadas ao
rei da França e com temas antiaverroístas. Redige o Liber natalis parvi pueri
Iesu, com tons literários natalinos, e o Liber lamentationis philosophiae.
1310
Quarenta mestres e bacharelandos em Artes e Medicina aprovam a Ars
brevis. Cartas de recomendação de Felipe IV para LÚLIO. Escreve o Liber
de modo naturali intelligendi contra os que negam que Deus tenha infinito
vigor e que o mundo seja criado. Neste ano escreve também o Liber
reprobationis aliquorum errorum Averrois, em julho, e a Disputatio
Raimundi et Averroista, de outubro a dezembro.
1311
Em fevereiro escreve o Liber de syllogismis contradictoriis . Realiza-se uma
27
compilação de obras lullianas na cartuxa de Vauvert. LÚLIO dita sua Vita
coetanea, documento autobiográfico de importância capital. O chanceler da
Universidade de Paris aprova o pensamento lulliano. Escreve a Petitio in
concilio generali. A caminho do Concílio de Vienne redige o poema Lo
concili e o Phantasticus, opúsculo onde se defende das acusações que lhe
dirigiam.
1311-12
LÚLIO, aos 80 anos, assiste ao Concílio de Vienne.
1312
Permanece em Montpellier. Dante escreve o Inferno.
1313-14
Permanece em Messina.
1314-15
Última estadia de LÚLIO em África do Norte. Traslada-se à Tunísia, onde
dedica obras ao rei e pede a Jaume II de Aragão um frade franciscano para
que o ajude a traduzir seus escritos ao latim.
1316
LÚLIO morre, aos 84 anos, perto de Maiorca voltando da Tunísia. Uma
lenda piedosa, não desmentida, supõe que foi lapidado.
1323
Estêvão Borrète, bispo de Paris, anula a sentença de Tempier.
1324-28
Ockham é encarcerado em Avignon.
1329
Condenação de mestre Eckhart.
1350
Guilherme de Ockham morre em Munique.
1450
Gutemberg abre uma oficina de impressão em Magúncia.
1450-537
Lefèvre d'Etaples.
1463-94
Pico della Mirandola.
1466-536
Erasmo de Roterdã.
1470
Introdução da imprensa na Universidade de Paris.
(Badia e Bonner, 2010, internet).
28
1.2 Missões cristãs na Idade Média
Há quarenta anos, raras eram as obras de autores da Idade Média vertidas
para o português. Escasseavam até mesmo os bons estudos sobre a Idade
Média que, desde o fim do século passado, se multiplicaram na Europa e
Estados Unidos. No Brasil, [...] pela difusão de manuais escolares com
ranço anticlerical, pesava sobre o período histórico da Idade Média a
caliginosa nuvem de preconceito, adensada no século XVIII pela
logorréia anticristã dos enciclopedistas (Nunes, 1989, p. 7).
Como se pôde verificar, após a virada do século permanece o desafio de se
pesquisar sobre a Idade Média, pois para a realização de tal estudo além de se ter que levar
o pesquisador a um mundo um tanto quanto distante no tempo, é preciso vencer uma série
de imagens preconceituosas que se costuma manter quanto a este período da História, que
não por acaso também recebeu a alcunha de “Idade das Trevas”. Tal preconceito apenas
reforça uma imagem caricata desta época, assim como uma considerável ignorância sobre
tal período e suas contribuições, como bem destaca Nunes, o qual assevera ainda que os
países que tiveram uma certa influência da educação francesa, como o Brasil, acabaram
absorvendo muito deste preconceito para com a Idade Média, fruto da filosofia iluminista
predominante na cultura francesa pós-revolução. (Nunes, 1989, pp. 7,8). Pesquisar sobre
Raimundo Lúlio, portanto, é tanto um desafio, quanto uma tentativa de resgatar valores e
contribuições oriundas de uma época ainda pouco estudada tendo em vista o
reconhecimento das suas contribuições positivas.
Embora na presente época e contexto cultural e religioso tenha-se facilidade em se
buscar, reconhecer e até mesmo exacerbar a importância do indivíduo, destacando-o do
grupo e do contexto, não era assim na Idade Média dos dias de Lúlio. Aquela época foi
marcada por uma cultura que promoveu uma vida coletiva, baseada na agricultura,
pecuária e artesanato, segundo Comblin (2002, p. 315), a qual destacava e valorizava o
bem comum, não havendo muito espaço para o individualismo.
1.2.1 Missões medievais: a catolicização do mundo
Freqüentemente se reconhece que a figura do pregador itinerante desapareceu com
os apóstolos, ficando a Igreja Cristã durante muitos séculos sem o “missionário típico”,
pois nem mesmo a igreja primitiva possuía um método missionário; contudo, a partir do
século 4, “o monge substituiu, paulatinamente, o pregador itinerante como missionário em
áreas ainda não evangelizadas”, afirma Bosch (2002, p. 239).
29
Segundo Castagnola e Padovani, o rei Carlos Magno pretendia dar uma unidade
interior e espiritual ao seu vasto império e, para tanto, empenhou-se em educar intelectual,
moral e religiosamente os bárbaros que o constituíam. Para isto, precisaria se implantar
paralelamente civilização, religião, cultura clássica e catolicismo. Sendo assim, escolas
foram organizadas no Sacro-Império, e sendo o clero a classe mais apta para o magistério,
serviu de docente num projeto de amplos objetivos, que envolvia uma educação popular
simples e uma educação especial para a classe dirigente em geral, assim como os
funcionários do império. Nesta tarefa de implantar escolas no império carolíngio, estes
autores destacam a figura de Alcuíno, que vindo da Inglaterra – o viveiro da cultura
naquela época – ditou o programa educacional predominante no império, o qual perdurou
invariado praticamente por toda a Idade Média. (Castagnola e Padovani, 1962, pp.
171,172).
O Império Carolíngio do Séc. VIII ilustra o desafio da unidade no mundo medieval.
Assim, os povos recém-conquistados deveriam ser educados tanto para a coroa, quanto
para a fé católico-romana, dentro da cultura herdada dos povos clássicos e adaptada à nova
ordem. Tal tarefa recaiu basicamente sobre a igreja institucional.
Contudo, pensar em alcançar pessoas que professavam uma fé distinta do
cristianismo e que vivesse fora dos limites geográficos e das influências lingüísticas e
culturais das “terras cristãs” era desconsiderado pela igreja institucional como algo de alto
risco, portanto desnecessário, a ponto de alguns terem condenado o esforço de Lúlio de
buscar alcançar muçulmanos para Cristo, segundo Tucker (1996, p. 59).
Os islâmicos há muito já foram se mostrando uma ameaça numérica ao cristianismo
institucional, isso sem mencionar o desconforto e a tensão sentidos por muitos cristãos que
conviveram por séculos com a considerada inconveniente presença islâmica na península
Ibérica, inclusive nos dias e terra natal de Lúlio, pois a ocupação muçulmana destas deixou
a região em estado de tensão por muito tempo, como se verá mais adiante.
As mudanças sociais ocorrentes na baixa Idade Média, período compreendido entre
os séculos XI e XV, tais como o crescimento das cidades e o êxodo rural subseqüente
também foram sentidas na esfera teológica. A igreja seguiu o desenvolvimento da
sociedade, surgindo no início do Séc. XIII os dois principais centros de estudos teológicos:
as nascentes universidades de Paris e Oxford. Nestas duas cidades os dominicanos
fundaram casas e logo tiveram professores nas universidades, segundo Gonzalez (1986, p.
120), o que é importante porque mostra o cristianismo aprimorando-se intelectualmente,
algo providencial para um trabalho como o pretendido por Lúlio.
30
A ordem dos franciscanos seguiu o exemplo dos dominicanos e se instalou também
nas universidades, chegando a ter professores de grande renome. O destino acadêmico dos
franciscanos foi assegurado em 1236 com um professor da Universidade de Paris,
Alexandre de Hales, o qual decidiu se unir à ordem; desta forma, os franciscanos passaram
a contar com sua primeira cátedra universitária. Viu-se então que “poucos anos depois
havia mestres franciscanos em todas as principais universidades da Europa ocidental”,
afirma Gonzalez (1986, pp. 121,122).
Apesar do fato de que a teologia cristã católica estava se aprimorando
intelectualmente, desenvolvendo-se no modelo escolástico de refinada filosofia e debates, e
assim, respondendo às alterações ocorrentes no mundo de então, a igreja cristã
praticamente abandonou os muçulmanos como um grupo preterido por Deus e não se
preocupou em alcançá-los, restringindo-se basicamente a educar os antigos bárbaros e
povos primitivos na periferia do mundo cristão europeu, tarefa feita principalmente pelas
ordens monásticas dos dominicanos e franciscanos. Lúlio foi uma brilhante exceção a este
pensamento, engajado no alcance dos seguidores de Maomé, como se poderá verificar no
desenvolvimento desta pesquisa. Tal enfoque na catolicização dos europeus conquistados
levou a cristandade a perder de vista os povos do Oriente, como os mongóis, cuja
negligência missionária descrita a seguir ilustra bem a visão do cristianismo medieval.
1.2.2 O mau exemplo histórico da perda dos mongóis
A apatia e a indiferença missionárias encontram na perda histórica da oportunidade
da evangelização dos mongóis um triste exemplo. Marco Polo chega a registrar que o
grande senhor dos mongóis havia pedido ao “pontífice que lhe enviasse seis homens sábios
e castos para revelar aos idólatras e aos adeptos de outros credos da região – todos obras do
diabo – a superioridade e a eficácia da religião cristã” (Polo, 2003, p. 18).
Embora a referida narrativa de Polo seja tida como fantasiosa, Alem afirma que
havia maior oposição dos mongóis aos muçulmanos do que aos cristãos, posto que já
estavam sob maior influência cristã, tendo muitos se associado ao cristianismo nestoriano,
mas visto que os cruzados se recusaram a se aliar aos mongóis, pois assim “êsses ter-seiam convertidos ao cristianismo, e a face do mundo teria mudado. Mas os cruzados
recusaram, a maioria dos mongóis se tornou muçulmana” (Alem, 1961, p. 36).
O povo mongol, segundo Armstrong, não tinha consigo nenhuma espiritualidade
específica, antes acabavam por tender ao budismo, sendo não apenas tolerantes a todas as
religiões, mas com a tendência pragmática de absorver as tradições locais quando
31
subjugavam um povo; desta forma, segundo ela, através da expansão do povo mongol já na
virada do século XIII para o XIV, “todos os quatro impérios mongóis tinham se convertido
ao Islã. Os mongóis tornaram-se, portanto, o principal poder muçulmano na importante
região islâmica central” (Armstrong, 2001, p. 147).
A conversão em massa dos mongóis ao islamismo tendo em face à inicial simpatia
para com o cristianismo mostra a grande insensibilidade missionária do cristianismo
naqueles dias, especialmente a inabilidade dos cruzados de olharem para o contato com
outros povos mais como oportunidades de evangelização do que como ocasiões de guerra a
serem travadas e vencidas, assim como revelam também à intolerância quanto às outras
segmentações cristãs, distintas da hegemonia católica.
Esta cegueira quanto à necessidade dos mongóis revelavam também uma falta de
interesse na evangelização dos outros povos e até mesmo de uma aproximação e debate da
fé cristã com aqueles que ainda não a professam. Tal indiferença se mostrava ainda mais
aguda quando se tratava da relação entre cristãos e muçulmanos, a ponto de se verificar
que entre eles não houve na Idade Média um verdadeiro e proveitoso diálogo interreligioso, sendo uma fantasia a busca de evidências neste sentido, conforme as seguintes
palavras de alerta de Brague:
Assim, na Idade Média, os verdadeiros diálogos entre o Islã e o
cristianismo são muito escassos, e, entendendo-se por tais aqueles
diálogos que nos parecem desejáveis, simplesmente inexistentes. A
literatura polêmica dirige-se a pessoas já convencidas. O diálogo é antes
um gênero literário mais do que uma realidade. Os ensaios para tratar ao
outro com equidade são de antemão, compreendendo-se bem, uma
exceção. Temos o direito de sonhar com tais diálogos entre religiões para
o futuro. Mas nada nos autoriza a projetar este sonho no passado
medieval. Nossa empreitada é talvez nobre, mas não deve a sua nobreza a
quaisquer dos ancestrais (Brague, 2010, internet).
1.2.3 As condições religiosas do mundo medieval
Apesar da maior parte da Europa ocidental neste período ter estado sob a influência
da religião cristã, Lúlio, lamentava o desinteresse generalizado na evangelização dos não
cristãos, pois, segundo ele, o interesse dos reis, cavaleiros e até mesmo dos clérigos não era
com a missão aos gentios, mas sim apenas com diversões e banquetes; e esta indiferença
quanto à ignorância espiritual dos outros o incomodava profundamente (Lúlio, 2009a, pp.
153,154).
No entanto, este desprezo à busca de uma vivência religiosa pura, consciente e
saudável não era um privilégio dos cristãos. Aquele, cujas idéias foram tenazmente
32
combatidas por Lúlio, o filósofo árabe e muçulmano Averróis, era defensor de uma
vivência dupla da religião islâmica: aos mais cultos, caberia pensar a própria religião de
maneira mais filosófica e aos demais, restava-lhes uma crença crédula, até mesmo fanática.
Esta dicotomia foi assim expressa por Saranyana: “Seria uma religião que, nos sábios, cede
à filosofia, ou a ela se orienta, e no vulgo cede à boa cidadania, ao bom comportamento,
tanto individual como social. A religião do vulgo é uma espécie de ‘fideísmo’ – para não
dizer fanatismo – sem conteúdos inteligíveis” (Saranyana, 2006, p. 239).
De formas distintas, tanto o cristianismo, quanto o islamismo viviam dias de agudas
distinções na própria vivência de suas religiosidades, o que na verdade, acabava por
expressar os intensos contrastes morais vividos naqueles dias medievais, os quais não eram
percebidos apenas em lugares distintos do mesmo país, mas muito próximos, até em uma
mesma pessoa, a qual poderia demonstrar “uma fé sublime e uma superstição degradante,
uma pureza angelical e uma sensualidade grosseira” (Zwemer, 1977, p. 7).
Devido a sua preocupação com o declínio moral e religioso da cristandade, Lúlio
escreve ao rei Filipe da França uma dedicatória, na qual roga ao mesmo a que assumindo o
seu papel de magistrado cristão, venha a defender a fé cristã nos limites do seu reino,
velando pela condição espiritual de todos, removendo os vícios e promovendo as virtudes,
de tal maneira que o seu reino fosse “espelho e exemplo para todos os reis cristãos em
todas as virtudes próprias do ofício real” (Lúlio, 2001a, p. 115). Desta maneira, Lúlio
demonstra tanto a sua preocupação com o estado moral e religioso da cristandade, como
também revela e apela à visão vocacional religiosa para o magistrado civil, que teria
responsabilidades e competências cívicas de manter e assegurar a qualidade espiritual da
sociedade sobre a qual foi por Deus constituído governo. Esta é uma visão que reflete a
compreensão de cristandade, tão arraigada em Lúlio, que será mais adiante estudada.
1.2.4 A preocupação de Lúlio com a resposta da Igreja
Diante deste quadro religioso e moralmente crítico da cristandade, que demonstra
uma pobreza espiritual predominante nos dias de Lúlio, ele expressa o seguinte lamento:
“– Amável filho, quase mortas estão a sabedoria, a caridade e a devoção, e poucos
são os homens que estão na finalidade para a qual Nosso Senhor Deus os criou. Não
existem mais o fervor e a devoção que costumavam existir nos temos dos apóstolos e dos
mártires que, por conhecerem e amarem a Deus, definhavam e morriam” (Lúlio, 2009a, p.
30).
33
A carência generalizada de uma vida cristã autêntica era percebida e denunciada
como blasfêmia por Lúlio pelo fato de existirem nos seus dias tantos grandes doutores de
teologia, que apenas se banqueteavam nos seus refeitórios e, não demonstrando nenhum
interesse missionário, eram indiferentes ao fato de sendo tantos, “Deus tivesse falta de
louvadores, sendo em tantos lugares blasfemado, desonrado, ignorado e menosprezado
pelos ídolos, que são mais amados e louvados que Ele” (Lúlio, 2009b, pp. 194,195). Lúlio
se incomodava com o baixo padrão moral e espiritual da cristandade dos seus dias, mas
também com a frivolidade e indiferença missionária dos mais capacitados a fazê-lo.
Contudo, é importante se perceber que antes de Lúlio propor um projeto missionário
visando o alcance dos não-cristãos para a fé cristã, o trabalho missionário que a Igreja
conhecera até então, e que fora responsável pela adesão ao cristianismo de praticamente
todo o continente europeu consistiu naquilo que se costuma chamar de cristianização dos
povos dominados, visto que predominantemente na Idade Média a “conversão” de povos
ao cristianismo e a expansão da própria igreja cristã de então se deu quase somente através
destas adesões coletivas dos súditos de um reino à religião cristã professa pelo seu
monarca, conforme narra Tucker (1996, p. 44). Nestas circunstâncias, restava à missiologia
basicamente regular a educação cristã oferecida aos novos “conversos” ao cristianismo
num processo de catolicização dos povos, o que gerou o que será mais adiante estudado
como a cristandade, uma amálgama resultante da combinação de um modelo estatal social
com traços culturais próprios à Europa Ocidental que tem como substrato ideológico a
teologia cristã desenvolvida até então.
De fato, uma aproximação pacífica e respeitosa, próprias do diálogo inter-religioso
atualmente proposto não foi possível naqueles dias medievais. Agora a pesquisa busca
descrever a qualidade da relação que havia entre cristãos e muçulmanos nos dias de Lúlio.
A história das missões cristãs medievais é bem contrastante, pois se por um lado
revela nos primeiros séculos da Idade Média uma forte expansão e consolidação pelo
mundo, estendendo-se do Oriente, passando por todo o Oriente Médio, norte da África e
encontrando no continente europeu a sua maior expressão, por outro lado o cristianismo
fragmentou-se em vários e intrincados credos e disputas teológicas que enfraqueceram a
sua unidade e dificultaram a plena compreensão da própria fé por parte daqueles que não
eram tão sofisticados filosoficamente para acompanhar o debate, alerta Fletcher (2004, p.
20). Além disso, a missão da Igreja foi-se consolidando cada vez mais como uma
responsabilidade de educar os inúmeros pagãos na fé cristã católica, afastando-os das
crenças pré-cristãs e do arianismo, este foi um processo de assimilação cultural dos
34
invasores do antigo Império Romano e depois da consolidação de um novo império, o
Sacro Império Cristão, sob Carlos Magno, subjugando ou “convertendo” pagãos e
opositores, assim como educando a todos sob o catolicismo papal ocidental, segundo
Gonzalez (1981, pp. 37,141,149) num modelo que consolidaria o conceito de cristandade.
Esta era idéia majoritária de missão dominante na Idade Média, com pouca ou quase
nenhuma visão para povos e modelos que não se encaixassem neste processo civilizatório
cristão ocidental, como ocorreu com os muçulmanos, com quem a relação se tornaria
crescentemente tensa, como se há de observar a seguir.
1.3 A tensão entre cristãos e muçulmanos
Em retrospectiva, podemos ver que era impossível qualquer presença
islâmica duradoura no continente. [...] Com certeza, resistir a esses
inimigos era trabalhar por Deus. O papa Leão IV, pedindo ajuda contra
os sarracenos1 em 853, disse que qualquer um que perdesse a vida
naquele conflito iria par ao céu. [...] Por vezes a pressão se tornou
intensa. Perto do final do século X, foram atribuídas a um soberano de alAndalus 57 campanhas militares contra cristãos em 21 anos. Isso incluiu
um ataque a um dos mais sagrados santuários da cristandade no
Ocidente, a tumba do apóstolo são Tiago, em Santiago de Compostela,
em 997. (Fletcher, 2004, pp. 54,55).
Das diversas possíveis relações inter-religiosas do cristianismo católico com outras
manifestações de crença, a presente pesquisa passa a considerar e a se concentrar agora
com o relacionamento que historicamente foi sendo construído entre os seguidores de
Cristo e os seguidores de Maomé. Como o subtítulo já indica, esta foi uma relação
crescentemente tensa, chegando às manifestações mais intensas de oposição beligerante
possivelmente nos dias vividos por Lúlio.
1.3.1 O surgimento do Islã e a sua relação com os cristãos
Embora se costume referir à tensa relação entre os cristãos e os muçulmanos na
Terra Santa como se reportando às cruzadas, Runciman inicia o primeiro volume que
compõe a trilogia da sua pesquisa histórica descrevendo o impacto causado nos cristãos
pela entrada do Califa Omar em Jerusalém em fevereiro de 638 d.C., visitando lugares
tradicionalmente sagrados para judeus e cristãos e reivindicando para o Islã aqueles onde
1
Sobre o termo sarraceno, referência comum aos muçulmanos, Fletcher comenta: “Aqui, Isidoro de Sevilha,
o grande polímata e enciclopedista do fim da Antiguidade, e contemporâneo de Maomé, resume um consenso
cristão: Os sarracenos vivem no deserto [...]. Eles também, como já dissemos, insistem em se denominar
sarracenos, porque falsamente se vangloriam de descender de Sara” (Fletcher, 2004, p. 25).
35
ele orava. “Isso estava de acordo com os termos de rendição da cidade” (Runciman, 2003a,
p. 17). A citada descrição indica a vocação histórica de tensão entre estes que são
atualmente os mais numerosos grupos religiosos do mundo, os cristãos e os muçulmanos.
Agora, a presente pesquisa estuda este conflito, de essencial compreensão para o devido
entendimento do tema em estudo.
Além da diferença quanto à compreensão sobre Deus, o Islã não difere tanto do
cristianismo medieval pela sua proposta teocrática, pois assim como segundo a instrução
corânica, a ordem divina se estende também à sociedade civil, o modelo medieval de
cristandade era uma encarnação da realidade civil como expressão da influência e do
domínio eclesiástico da fé cristã no mundo. Contudo, para o Islã, até a própria guerra
(Jihad) é um serviço religioso e a principal delas é a luta para submeter todas as paixões da
alma do fiel a Deus, pois o muçulmano deve se empenhar a defender e estender a fé
islâmica, combatendo por Alá, visto que o Corão lhes ordena até a matarem ou serem
mortos, conforme registra Mata (2006, p. 21). De fato, é inegável a afirmação do Corão
Sagrado no verso 111 da sua 9ª Surata do julgamento e promessa feitos por Alá aos fiéis
quanto à disposição destes a matarem e a morrerem pela sua fé, como se lê:
Deus cobrará dos crentes o sacrifício de suas pessoas e seus bens em
troca do Paraíso. Combaterão pela causa de Deus, matarão e serão
mortos. É uma promessa infalível, que está registrada na Tora, no
Evangelho e no Alcorão. E quem é mais fiel à sua promessa do que
Deus? Regozijai-vos, pois, da troca que haveis feito com Ele. Tal será a
bem-aventurança (Alcorão Sagrado, 1975, p. 142).
No entanto, houve no início da expansão da fé islâmica uma considerável tolerância
dos muçulmanos em seu meio quanto à presença tanto de judeus quanto de cristãos e suas
respectivas religiões, desde que pagassem uma taxa anual de imposto, a jizya; no entanto,
não tinham permissão para construir seus templos ou manifestarem publicamente seus atos
litúrgicos, como sinos e cânticos; também não podiam possuir certos equipamentos
militares, homens não muçulmanos não podiam ter relações com mulheres muçulmanas,
não se podia manifestar desrespeito ao Islã, nem buscar a conversão de um muçulmano a
quaisquer outras religiões (Fletcher, 2004, p. 35).
Apesar das restrições, os cristãos orientais bizantinos e os integrantes dos pequenos
grupos sectaristas como os jacobitas e os nestorianos – perseguidos como hereges pela
maioria católica – tenderam a louvar o domínio islâmico, pois mesmo “os ortodoxos, tendo
sido poupados da perseguição que temiam – e pagando impostos, que, apesar da jizya
36
impingida aos cristãos, eram muito menores que nos tempos dos bizantinos –, mostravamse pouco inclinados a questionar seu destino”, segundo Runciman (2003a, p. 31).
No entanto, as tensões entre cristãos e muçulmanos que no Oriente Médio não
pareciam ser grandes no início da expansão do Islã, foram se intensificando especialmente
na Europa Ocidental. Lúlio afirma que um certo sarraceno, nomenclatura comum para os
muçulmanos na referência européia, havia escrito a reis cristãos questionando a luta
armada dos cristãos tentando reconquistar as terras que antes haviam sido alcançadas pela
pregação apostólica, pois ao apelarem às armas, eles estavam usando o caminho descrito
pelo profeta Maomé e não aquele ensinado por Cristo (Lúlio, 2009a, p. 100). Desta forma,
vê-se não apenas que os conflitos se tornaram bélicos, aguçados pelas cruzadas, como se
verá em seguida, mas também destacava a tensão religiosa em si.
O período compreendido entre os anos 1050 e 1300 d.C. foi marcado por tensões
constantes entre cristãos e muçulmanos; o domínio cristão que havia sido estabelecido na
Síria, Palestina, Sicília e península Ibérica estava sendo passo a passo substituído pela
expansão islâmica, o que resultou numa guerra permanente entre os dois grupos religiosos
no mundo mediterrâneo, segundo Fletcher (2004, p. 94). Esta grande expansão do
islamismo, dominando todo o Oriente Médio, o norte da África, a Europa Oriental,
estendendo-se pela Ásia adentro, mas especialmente indo ao Ocidente alcançando as ilhas
mediterrâneas e encravando-se na península Ibérica através do Estreito de Gibraltar geraria
reações adversas nos cristãos europeus ocidentais, como se pode verificar.
1.3.2 A reação cristã à expansão islâmica
Fato é que esta rápida, consolidada e recalcitrante expansão islâmica sobre regiões
anteriormente ocupadas pelos cristãos, especialmente nas terras européias ocidentais, onde
o cristianismo católico era hegemônico, foi recebida com uma intensa resistência. Tendo
sido vistos como inimigos invasores e contrários à fé cristã, os muçulmanos não foram
tidos como um grupo de pessoas a quem se deveria argumentar a fé cristã, na tentativa de
levar-lhes ao caminho da salvação; era um mal a ser combatido; era um invasor a ser
expulso; era um apóstata a ser castigado. Sendo assim, predominou entre os cristãos a
indisposição ao diálogo inter-religioso para com os islâmicos até este período, segundo
Fletcher (2004, p. 136). Desta maneira, o caminho mais razoável e a ordem do dia para se
lidar com os maometanos eram as Cruzadas, que como se verá adiante, abarcava uma visão
de defesa da posse tanto dos territórios, quanto da fé cristã católica antes professa neles.
37
A visão que a maioria dos cruzados, que eram cristãos ocidentais com um senso de
vocação diante dos não católicos, tinha para com os infiéis era a do seu extermínio, posto
que inimigos da verdade divina; ou aos que fosse permitido viver, restava a escravidão, já
que estavam destinados ao inferno; poucas vozes se opuseram a esta visão restrita de
tratamento de juízo, dado especialmente aos muçulmanos, segundo Neill (1997, p. 118).
Zwemer denuncia que na época, quase todas as descrições dos islâmicos eram
recheadas de ignorância e ódio. No entanto, ele destaca o trabalho pioneiro e sensível de
Pedro Venerabilis, visto que teria sido o primeiro a traduzir o Corão e estudado o
Islamismo com entendimento e erudição, procurando traduzir ao árabe versículos bíblicos
fundamentais à exposição da fé cristã àqueles, assim como afirmou que o próprio Corão
continha as armas necessárias a se atacar a fortaleza islâmica, contudo, continua Zwemer,
ele se negou à tarefa missionária, alegando não ter tempo para isto visto que vivia ocupado
com os seus livros. O sinal de um novo caminho a ser abordar os muçulmanos foi indicado
pelo venerável Pedro, que claramente defendia a idéias do não uso das armas, força ou
ódio, mas sim das palavras, da razão e do amor, ainda segundo Zwemer (1977, pp. 38,39).
Apesar da relação hostil entre cristãos e muçulmanos, especialmente na Europa, do
contato resultou contribuições ao mundo cristão ocidental, assim como no início da
expansão islâmica o contrário havia se dado, por exemplo, através do funcionalismo
público ocupado pelo povo do livro (cristãos), mais acostumado à vida burocrática e
urbana, em contraste com a origem tribal e semi-nômade dos árabes (etnia majoritária e
classe exclusiva na formação inicial do povo muçulmano), e pouco a pouco muitos destes
cristãos foram se aculturando ao Islã, absorvendo costumes, padrões de vestimentas e
culinária, assim como se acomodando aos benefícios garantidos aos seguidores do Islã e
acabaram migrando de religião, tendo trazido aos maometanos a cultura oriental helenística
e persa, traduzindo especialmente para o sírio muitos destes escritos, entre eles os trabalhos
de Aristóteles, posteriormente revertidos ao árabe, segundo Fletcher, (2004, p. 50).
Curiosamente, o contrário se deu com o contato posterior da cristandade ocidental com os
árabes, posto que muito da antiga erudição cristã havia se perdido com a queda de Roma, e
veio a ser reintroduzida ao meio cristão através do caminho de retorno, de tal maneira que
muitos destes clássicos foram re-introduzidos no cenário da academia cristã através da
pena árabe, quando do tenso contato com os cruzados.
Apesar das irônicas contribuições mútuas e das incipientes e veneráveis propostas
de Pedro, o que predominava era a tensão entre os dois grupos; aliás ela apenas se
acentuava, especialmente na Europa.
38
1.3.3 A tensão entre cristãos e muçulmanos na Europa
É necessário que se tenha em mente que a percepção do europeu cristianizado
acerca da expansão do islamismo sobre o seu continente natal é consideravelmente mais
reativa do que a daqueles que não carregam consigo a memória da ocupação islâmica sobre
o seu território. Para o homem moderno, globalizado, e especialmente para os filhos do
novo continente, a percepção e o peso histórico-geográfico destes acontecimentos não têm
a mesma força que têm para os povos do velho continente que conviveram com a histórica
e conflituosa correlação entre geografia e religião. Com isto em mente, observe-se a
descrição da tensão inter-religiosa em debate por parte dos seguintes estudiosos do tema,
todos europeus, os quais revelam maior sensibilidade a devidas percepções a respeito desta
questão.
Uma bem detalhada descrição da expansão do Islã é feita por Fletcher e é
apresentada na sua obra aqui em uso, na qual ele descreve a rápida e eficiente expansão
militar e geográfica do Islã sobre as terras antes ocupadas pelos diversos segmentos do
cristianismo (Fletcher, 2004, pp. 28-30). Cooperaram para esta expansão a estratégica
estrutura militar islâmica, que associada aos relativos benefícios concedidos aos povos
jurisdicionados, à simplicidade requerida à conversão à nova fé, às graves restrições ao
abandono da mesma, à unidade da realidade sob esta crença; e, finalmente, às constantes,
complexas e intermináveis questões teológicas que fragmentaram e puseram em estado de
tensão e guerra os diversos segmentos do cristianismo. Fato é que uma a uma as regiões de
antiga predominância cristã, agora estavam sendo islamizadas, começando pelo Oriente
Médio, estendendo-se a Oriente e a Ocidente, tomando o norte da África e indo até a
península Ibérica, cercando assim a Europa a Leste e a Oeste com a fé maometana.
Havia, como ainda há, uma mútua e crônica ignorância sobre a mensagem própria
de cada uma das duas religiões em destaque. A grande questão da autoridade dos textos
tidos como sagrados tanto por cristãos, como por muçulmanos afeta sensivelmente o
debate entre os mesmos. Muito da visão que os islâmicos têm do cristianismo vem do
testemunho posterior que o Corão dá sobre “o livro e o povo do livro”, restando assim
tensões sobre a discussão acerca das devidas autoridades dos respectivos livros sagrados.
Esta tensão é assim descrita por Simon: “Dado que os infiéis negavam as autoridades
cristãs ou, pelo menos, as interpretavam do seu modo, a disputa inter-religiosa que acudia
às autoridades era tão inviável como ociosa” (Simon, 2004, p. 283). Tensões e ignorâncias
39
mútuas ainda perduram entre os seguidores de Cristo e os de Maomé e elas não estão
relacionadas apenas aos textos considerados sagrados pelos dois grupos.
Decorrentes de tantas tensões, que têm por fundo questões não somente de fé e de
autoridade escriturística religiosa, mas também conflitos culturais, tensões sociais e fatores
econômicos, como as devidas posses de terra, um grande choque de culturas se estabelecia
e ainda se estabelece nesta relação entre cristãos e muçulmanos; e como resultado deste
choque, está a dificuldade da conversão dos muçulmanos à fé cristã nos dias e nas terras
pátrias de Lúlio, como expressa Jaulent:
A conversão dos muçulmanos, porém, não era bem vista pelos senhores
de Maiorca em virtude de certos prejuízos econômicos. O batismo
devolvia ao escravo a condição de livre e melhorava sua condição de
alforria. Por estes motivos, a conversão dos cativos muçulmanos não era
muito favorecida e, sem qualquer dúvida, pode-se afirmar que os
esforços de Lúlio para promover a cristianização dos muçulmanos
contrariaram os interesses de boa parte da sociedade cristã e também das
poderosas ordens militares do Templo e do Hospital. [...]
Tenha-se em conta também a natural dificuldade que Lúlio encontraria
na conversão dos muçulmanos, por possuírem estes uma tradição
filosófica e científica que, ainda no século XIII, inexistia no Ocidente.
Lúlio, visto por alguns historiadores como antimuçulmano, era, antes de
mais nada, um homem de seu tempo, e tinha viva consciência da
importância do Islã na vida cultual dos cristãos. (Jaulent, 2001b, pp.
11,12).
1.3.4 A situação mais específica na Espanha de Lúlio
Como a citação anterior já começou a apresentar, é preciso se destacar do todo, a
percepção da tensão islâmico-cristã particularmente na península ibérica, não apenas
porque lá ela ocorreu de forma particularmente mais intensa e longa, mas por ser a macroregião contextual de Lúlio, a sua terra natal. Observe-se a descrição desta tensão através do
relato de Zwemer:
Nenhum outro país na Europa tinha um contato tão estreito com o Islã,
para o bem e para o mal, como os reinos de Castela, Navarra e Aragão.
Ali, a disputa era tanto pela mente quanto pela espada. Por três séculos se
pelejou uma cruzada tanto sobre a verdade quanto sobre o campo de
batalha entre cristãos e muçulmanos. Neste conflito, os antepassados de
Raimundo Lúlio fizeram a sua parte. Durante todos os anos da vida de
Lúlio, o domínio muçulmano se manteve em Granada contra os reinos
espanhóis unidos. Até o ano de 1492 os sarracenos não haviam ainda
sido expulsos das terras da Europa meridional (Zwemer, 1977, p. 13).
40
Esta longa ocupação resultou em muitas revoltas por parte dos cristãos que estavam
sob o governo de muçulmanos que dominaram a Espanha. Escritos ofensivos ao profeta
Maomé e ao islamismo foram produzidos e, embora os cristãos tivessem sido capazes de
viver sob o novo regime e domínio islâmico, “secretamente insultavam aqueles que
estavam no comando”, comenta Fletcher (2004, p. 41).
A série de favorecimentos aos convertidos ao Islã, assim como a constante pressão
que o governo muçulmano caracteristicamente exerce sobre os não islâmicos têm sido
instrumentos poderosos tanto de conversão quanto especialmente de manutenção na fé
maometana entre os seus seguidores. Houve inúmeras conversões de cristãos ao islamismo
especialmente no contexto espanhol e catalão em virtude destes favorecimentos, muitas
vezes casos de apostasia consciente por parte de cristãos mais preocupados com as
condições de sua vida, do que em suportar o preço de permanecer firme em sua confissão
de fé cristã, ainda que a julgasse superior, afirma Fletcher, que em seguida corrobora o
destaque que se costuma dar à nobreza do líder muçulmano Saladino frente a tensão com
os cristãos cruzados: “Os cruzados eram capazes de respeitar tanto o valor moral quanto o
marcial dos seus oponentes. Saladino é o principal, mas não o único exemplo, um homem
de palavra, pio e sábio, clemente e justo, terrível apenas com aqueles como Renaud de
Chântillon, que desprezou as leis da guerra” (Fletcher, 2004, p. 98).
Neste ínterim, a Maiorca natal de Lúlio, estava à sombra das tensões vivenciadas
pelo rei Jaime I, de Aragão, as quais não sendo apenas de ordem cívico-militar com os
islâmicos, mas também de ordem político-pessoais relativas a questões matrimoniais
intrincadas. Tendo recebido auxílio do príncipe português Pedro nestas últimas questões, o
referido rei aragonês acabou por recompensar a este em 1231 d.C. com o comando da ilha
de Maiorca, reconquistada recentemente dos muçulmanos, segundo Fletcher (2004, p. 97);
sendo este o contexto histórico no qual surge Lúlio.
Percebe-se que a relação entre os cristãos e os muçulmanos nunca foram
completamente pacíficas, ainda que em alguns momentos um tivesse oferecido e recebido
uma certa tolerância para com o outro grupo, a tendência histórica era, na melhor das
hipóteses, de ignorância ou indiferença e nos mais tensos momentos de franca batalha
sangrenta. A começar nas questões religiosas, tal conflito envolvia duas concepções muito
distintas sobre a vida e sobre o mundo e a inter-relação disto com a fé, apresentada aqui a
partir da obra em referência de Fletcher (2004, pp. 17-22).
41
Contudo, a tensão se acentuou com a disputa pela terra, desde a questão do direito
de posse dos lugares considerado sagrados por ambos os credos até o próprio direito de
defesa das suas respectivas terras, considerado legítimo por ambos.
As questões das ocupações territoriais tanto na chamada Terra Santa, quanto na
península Ibérica estavam no centro das principais tensões e dos mais sangrentos
confrontos entre os adeptos destas duas grandes religiões monoteístas, tendo encontrado o
seu ponto de maior tensão no episódio histórico conhecido como cruzadas, que por ter
importância vital nesta pesquisa, não apenas em sua contextualização histórica, mas
principalmente por ser um dos pontos polêmicos essenciais em Lúlio e por trazer consigo
uma das principais controvérsias sobre o seu significado para a compreensão do seu
pensamento e propostas, recebe um destaque especial nas considerações críticas do terceiro
e último capítulo desta pesquisa.
1.4 Missões que influenciaram Raimundo Lúlio
Se o que pôs [Raimundo Lúlio] definitivamente em marcha foi o
exemplo do fundador dos franciscanos, seria um dominicano quem o
orientaria quanto ao modo de realizar os estudos para os quais ele se
sentia chamado. E, de fato, era um dominicano a quem não faltava a
experiência nos assuntos que inquietavam a Lúlio, não apenas pela sua
avançada idade (cerca de noventa anos), mas antes porque, como se verá,
ele mesmo havia se ocupado de fomentar a pregação do cristianismo aos
muçulmanos (Mata, 2006, p. 60).
De uma forma bem peculiar, como se verá melhor em seguida, esta citação já
demonstra como Raimundo Lúlio absorveu o que havia de melhor destas duas ordens
missionárias dos seus dias, e assim, utilizando-se das suas contribuições, acabou por
desenvolver o seu empreendimento missionário, aqui chamado de missiologia luliana, a
qual será o tema de estudo do próximo capítulo. Por hora, a presente pesquisa apresenta as
influências deixadas em Lúlio das primeiras missões cristãs aos muçulmanos, assim como
destaca os principais personagens que colaboraram com o desenvolvimento da Missiologia
de Lúlio, tendo sido simultaneamente os seus precursores.
1.4.1 As primeiras missões cristãs aos muçulmanos
Apesar do lamento de Lúlio quanto à qualidade da espiritualidade da cristandade
dos seus dias e quanto ao desinteresse pela evangelização dos outros povos, especialmente
dos muçulmanos, com quem os relacionamentos só se tornavam ainda mais tensos,
42
trabalhos e iniciativas missionárias pontuais foram acontecendo, os quais foram
precursores do que Lúlio viria a fazer e propor, como se pode verificar a seguir.
Embora Mata informe que os “dominicanos foram os principais autores
contemporâneos de Lúlio que recordaram a conveniência de se pregar aos muçulmanos
[...]. Em Castela e em Aragão, eram os dominicanos os pregadores que neste mesmo século
XIII tratavam de converter os muçulmanos” (Mata, 2006, p. 121), era muito mais comum a
indiferença missionária da cristandade, o que Lúlio denunciava como evidência de miséria
espiritual, igualmente passível de condenação, assim como ele também denunciava que o
erro e a ignorância da fé cristã por parte de Maomé e dos seus seguidores era culpa da
omissão cristã quanto à sua responsabilidade evangelística diante dos islâmicos; tais
denúncias, que tinham o propósito de despertamento da cristandade, se podem verificar nas
seguintes palavras da sua obra romanceada Félix, o livro das maravilhas:
Félix teve uma grande maravilha com aquela grande pena que o corpo
sofrerá no Inferno, e disse que grande pena será aquela que terá Maomé,
que proporcionou a tantos homens estarem no Inferno, pois na pena de
cada um será multiplicada a pena de Maomé.
Quando Félix se maravilhou por muito tempo com a grande pena de
Maomé, se maravilhou muito fortemente de os cristãos terem tão pouco
cuidado de converter os infiéis, e teve a opinião de que, como se
preocupavam tão pouco, teriam a mesma pena que os infiéis suportam
nos Infernos.
Enquanto pensava isso, Félix se lembrou de São Bento, de Santo
Agostinho, de São Francisco, de São Domingo, e de muitos outros santos
que estão na graça de Deus, por terem proporcionado a muitos homens
serem salvos e fugirem dos Infernos. Por isso, se maravilhou de como
não existem muitos homens que iniciam coisas novas que sejam úteis por
todos os tempos, pelas quais multiplicariam sua glória (Lúlio, 2009b, p.
341).
Apesar desta constatação de apatia quase universal dos cristãos para com a
evangelização dos outros povos, houve gloriosas exceções naqueles dias próximos, que na
maioria das vezes eram missionários enviados pelas ordens missionárias de São Francisco
e de São Domingos, como foi o caso dos franciscanos enviados à evangelização da China
seguindo a antiga rota da seda, conforme registra Cropani (2003, p. 12).
Desta maneira, vê-se que não foi Lúlio quem começou a evangelização dos
muçulmanos, em certo sentido, a sua proposta missionária, tanto na teoria quanto na
prática, foi uma continuidade nas missões cristãs a outro povos, ainda que se reconheça a
deficiência do que estava sendo feito neste sentido. Por isso, não se pode deixar de
reconhecer que houve novidade na proposta missionária luliana. Para que se entenda
43
melhor esta relação, a presente pesquisa se dedica à demonstração da influência das
missões anteriores na formação da Missiologia Luliana.
1.4.2 A influência das ordens missionárias
Como foi citado no ponto anterior, houve sobre a vida e a obra de Raimundo Lúlio
uma certa influência por parte das famosas ordens missionárias de São Francisco e São
Domingos. Agora, há de se ver qual foi a colaboração de cada uma delas para a formação
do missionário catalão em estudo.
Visto que os pregadores franciscanos e dominicanos restauraram em parte o
interesse eclesiástico pela pregação pública, o destaque que se faz à Lúlio se deve à
elaboração de um sistema missiológico que incluía um bom preparo por parte dos
missionários, visto que se havia fervor e mobilização nas ordens missionárias, nem sempre
houve uma preparação prévia ao contato e à evangelização intercultural, como se pode
perceber do exemplo do próprio São Francisco de Assis, que nem sequer sabia falar uma
língua comum com aquele a quem se dirigia, conforme a seguinte narrativa:
Quando, no outono de 1219, Francisco tentou evangelizar o Sultão do
Egito, Melek-el-Kamel, a sua experiência foi frustrante e, poderíamos
dizer, inoportuna. Afinal, a tentativa se deu no contexto das cruzadas.
Diz o cronista que Francisco, maltratado e “ignorando a língua dos
turcos, apenas dizia ‘Saldan, Saldan’”, que quer dizer sultão. Sendo
levado à presença deste e não alcançando o seu objetivo, Francisco é
“reconduzido por homens armados para junto dos exércitos que cercam
Damieta”. A missão foi um fracasso (Steuernagel, 1993, pp. 85,86).
Não faltava a São Francisco apenas o conhecimento lingüístico necessário à
comunicação intercultural, carência esta que depois receberia uma atenção e cuidado
especiais por parte de Lúlio, mas também não havia no fundador do franciscanismo o
desenvolvimento daquele tipo de mentalidade que buscava e enfatizava a eficiência na
comunicação racionalmente objetiva da fé cristã, tornando-a inteligível ao seu interlocutor,
como se verá no próximo capítulo desta pesquisa.
Fato é que Francisco de Assis e Raimundo Lúlio são considerados os primeiros
grandes vultos da evangelização dos muçulmanos, tendo ambos se destacado como “os
únicos cujo entendimento da vontade de Deus os levou a substituir a guerra e a violência
pelas mansas palavras do evangelho, como meio de estender as bênçãos de Deus
prometidas a Abraão e a seus filhos na fé”, conforme Winter e Howthorne (1987a, p. 179).
44
Propor uma missão evangelizadora entre os muçulmanos em plena época das
cruzadas fora algo por si só arrojado e arriscado, tanto para São Francisco, quanto para
Raimundo Lúlio, posto que ambos se envolveram pessoalmente neste processo. Porém,
Lúlio avançou um pouco mais adiante do que o seu inspirador, pois desenvolveu um
ambicioso sistema filosófico-apologético, a Ars Magna, através da qual ele pretendia
demonstrar racionalmente a superioridade da fé cristã sobre não apenas o Islã, mas sobre
quaisquer outras matrizes de fé, e assim, através de razões lógicas e necessárias, convencer
os seus interlocutores da superioridade da fé cristã, conforme Beaver, que resume muito
bem a grandeza vanguardista da nada despretensiosa proposta argumentativa e missionária
de Raimundo Lúlio nas seguintes palavras, ambientando devidamente a sua proposição no
contexto cruzado e das intrincadas relações interculturais entre cristãos e muçulmanos:
A série de guerras européias contra os muçulmanos, chamadas de
Cruzadas, dificilmente pode ser considerada como forma de verdadeira
missão. Elas tornaram as missões junto aos muçulmanos quase
impossíveis até o dia de hoje por causa da herança de ódio que deixaram
nas terras islâmicas. Assim mesmo, antes de as Cruzadas acabarem,
Francisco de Assis pregou cheio de amor ao sultão e criou uma força
missionária a fim de pregar em amor e paz. Ramon Lull, o grande
franciscano, desistiu do seu status na alta nobreza da corte de Aragão e
dedicou a sua vida como missionário junto aos muçulmanos, como o
“Louco de Amor”. Ele convencia e convertia pela razão, usando o
instrumento do debate. Para este fim escreveu o seu Ars Magna, com a
intenção de responder convincentemente a qualquer pergunta ou objeção
que pudesse ser feita pelos muçulmanos ou pagãos, idealizou uma
espécie de computador intelectual em que os diversos fatores podiam ser
registrados e a resposta certa apareceria. Lull implorou incessantemente,
durante muitas décadas antes do seu martírio, a papas e reis que criassem
colégios para o ensino da língua árabe e outras e para o treinamento de
missionários, e recomendou-lhes muitos esquemas para o envio deles ao
estrangeiro (Beaver, 1987, p. 231).
De fato, Lúlio recebeu influência de ambas as ordens, tanto de dominicanos, quanto
de franciscanos, absorvendo de ambas o que elas tinham de melhor a oferecer, pois do
contato com a Ordem dos Pregadores, os dominicanos, sentiu a necessidade de estudar
para adquirir um melhor domínio doutrinário; e do contato com a Ordem dos Frades
Menores, os franciscanos, sentiu a necessidade de oferecer um testemunho do cristianismo
marcando-o com um estilo de vida simples, conforme indica Mata (2006, p. 63).
Ainda a respeito das influências exercidas pelas ordens missionárias sobre Lúlio,
Hillgarth discorre no trecho a seguir um pouco mais, identificando como este soube
aproveitar o legado de ambas; assim como, na seqüência, vê-se a preocupação missionária
45
de Lúlio quanto à conveniência e a importância da evangelização dos mongóis, assim
como de um acordo diplomático com os mesmos em seus dias, propostas que não recebiam
a devida urgência por parte dos papas da época:
Lúlio combinou de uma forma extraordinária elementos tanto da ordem
dominicana como da ordem franciscana. A sua insistência na preparação
intelectual e na fundação de escolas (para ensinar aos missionários as
línguas de que necessitavam para dirigir-se aos muçulmanos, aos judeus
e aos cristãos cismáticos, a leste), como também nas disputas públicas
adequadamente preparadas entre os católicos e outros, provém de
Raimundo de Penyafort. Por outro lado, a insistência de Lúlio em que os
missionários teriam de estar preparados para o martírio e, ainda, o seu
próprio misticismo — formalmente influenciado pelo sufismo
muçulmano — provêm das idéias franciscanas. As dúvidas de Lúlio entre
as duas ordens se explicam graças às dívidas que havia contraído — não
é totalmente certo que se tornasse um terceiro franciscano, embora tenha
estado retirado numa igreja franciscana em Maiorca e que estivesse em
contato com os franciscanos que mais tarde receberiam o nome de
“espirituais”.
Ainda que Lúlio tenha de ser compreendido dentro do contexto geral do
pensamento papal e mendicante, em alguns aspectos, permanece
independente. Para ele o assunto mongol era mais urgente do que parecia
aos papas do seu tempo. Por exemplo, em 1309 escreveu:
“Há três imperadores [dos mongóis] que, embora apenas faça menos de
80 anos que tenham descido das montanhas, agora governam mais terra
que os cristãos e os muçulmanos juntos. Um desses imperadores, o
senhor da Pérsia, com todo o seu exército, se havia convertido
muçulmano e assim poderia impedir a conquista da Terra Santa. O papa
deveria apressar-se em enviar frades bem preparados antes que esse se
converta totalmente à fé muçulmana ... Também é provável que os outros
dois imperadores se convertam [ao Islã]. Os mongóis poderiam
conquistar facilmente Constantinopla e desde aí avançar em direção
oeste”.
No mesmo livro (De acquisitione Terrae Sanctae) e antes, mais
detalhadamente, Lúlio propôs um método prático para negociar com os
mongóis. Não há qualquer dúvida de que Lúlio tenha, aí, demonstrado
mais perspicácia que muitos dos seus contemporâneos. (Hillgarth, 1996,
internet).
Apesar da influência das citadas ordens, Hillgarth defende a idéia de que Lúlio
acabou exercendo um trabalho bastante independente, não apenas não se ligando aos
franciscanos ou dominicanos, mas também independente da própria estrutura, modelo e
visão eclesiástica dominante nos seus dias, devidos aos seus ideais estarem além do que era
perseguido.
Portanto, como compreender a relação de Lúlio com a Ordem dos Frades Menores,
ou mesmo com a igreja institucionalizada, é o que se segue nesta pesquisa.
46
1.4.3. A identificação com o cristianismo institucional
Embora fosse um ardente defensor da Igreja Católica como legítima expressão do
Cristianismo verdadeiro, Lúlio focava na teologia católica o seu apoio, pois não media
críticas à instituição católica, a qual queria ver restaurada, expressando maior piedade,
amor a Deus e o conseqüente interesse e fervor missionários, conforme o registro de uma
da suas orações feitas por Zwemer (1977, p. 112). Tais críticas lhe resultaram fortes
oposições e suas idéias chegaram a ser consideradas oficialmente heréticas, por um tempo,
embora tal sentença viria a ser revertida depois, visto que ele não foi um marginal, mas um
submisso, embora crítico filho da sua Igreja. Sobre este tenso relacionamento, as seguintes
palavras, novamente de Zwemer, são bastante elucidativas:
Eymerich, dominicano catalão e inquisitor de Aragão depois do ano de
1356, declara expressamente que Lúlio era um leigo comerciante herege.
Durante o ano de 1371 o mesmo Eymerich assinalou quinhentas
proposições heréticas nas obras de Lúlio e a conseqüência disso foi que
Gregório XI proibiu alguns daqueles livros. O franciscano Antônio
Wadding e outros defenderam depois calorosamente a Lúlio e aos seus
escritos, porém os jesuítas têm sido sempre hostis à sua memória. A
Igreja Católica Romana, portanto, vacilou durante muito tempo entre se
deveria condenar a Lúlio como um herege ou reconhecê-lo como mártir e
santo. Ele nunca foi canonizado por nenhum papa, porém na Espanha e
em Maiorca todos os bons católicos o consideram com um santo
franciscano. Em uma carta que recebi do atual bispo de Maiorca, ele fala
de Raimundo Lúlio como “um homem extraordinário de virtudes
apostólicas e digno de toda a admiração” (Zwemer, 1977, p. 33).
Deste relato, percebe-se não apenas a tensa relação entre Lúlio e o catolicismo
institucional, mas também a associação popular da sua imagem ao franciscanismo. Alguns
historiadores se dividem a respeito desta associação ter sido ou não real na vida de Lúlio.
Iáñez, na sua obra sobre a literatura medieval, associa o período de estudos teológicos e
meditação de Lúlio como um eremita no monte Randa, logo após a sua conversão, com um
suposto ingresso seu na “Ordem Terceira de São Francisco” (Iáñez, 1992, p. 199).
Embora Bustinza também identifique Lúlio como um franciscano (Bustinza, 2007,
p. 805), é preferível seguir a interpretação do lulista brasileiro Costa que assim explica a
relação entre Lúlio e o franciscanismo:
[...] missionário laico, embora seu pensamento seja fortemente
vinculado à espiritualidade franciscana. Ao contrário do que se costuma
pensar, não existe nenhuma prova documental que Llull tenha aderido a
qualquer ordem religiosa. Durante um período de sua vida esteve
propenso a ingressar numa ordem, franciscana ou dominicana, mas não
47
foi persuadido. Na verdade, Llull foi um pensador leigo e a iconografia
posterior o franciscanizou. (Costa, 2000, p. XVIII).
Enfim, fato é que a história posterior associou Raimundo Lúlio com a imagem de
São Francisco de Assis, tendo o tempo, inclusive, deixado os restos mortais de ambos
repousarem em tumbas vizinhas, na Igreja de São Francisco, localizada em Palma de
Maiorca, terra natal de Lúlio, conforme indica Zwemer (1977, p. 109).
Concluindo esta investigação sobre as influências exercidas sobre Raimundo Lúlio,
a presente pesquisa passa a discorrer agora sobre alguns dos personagens históricos que
possivelmente teriam dado uma maior contribuição à formação missionária de Raimundo
Lúlio, ou no mínimo, tiveram grandes similaridades de pensamento, possivelmente
corroborando influências sobre este.
1.4.4 A influência de outros Raimundos em Lúlio
Como fruto de uma curiosa coincidência, é notável perceber que foram outros
Raimundos as pessoas que acabam exercendo uma forte influência na vida de Raimundo
Lúlio, contribuindo para a sua formação missionária. Estaria o mesmo se dando com o
autor desta pesquisa? Permitindo-se este aqui registrar tal interrogativa pessoal, como uma
exceção à regra de distanciamento entre o autor da pesquisa e a sua redação.
Dois são os personagens históricos, cujos nomes pessoais também eram Raimundo,
que exerceram influência na formação missionária de Lúlio. O primeiro deles, Raimundo
de Penyafort aparece bastante entre as redações dos historiadores lulistas como tendo sido
aquele que mais forte influência pessoal exerceu sobre o personagem em estudo, conforme
se pode verificar das seguintes palavras do lulista, também catalão, Jaulent:
Nos anos 1200, o esforço apologético desenvolvido pela Igreja na Coroa
catalano-aragonesa apoiou-se fundamentalmente na Ordem dos
Pregadores, e sobretudo na pessoa de Raimundo de Penyafort, confessor
e conselheiro do rei Jaime I seu protetor. O grande dominicano catalão,
alma da política religiosa do rei, tinha idealizado um projeto missionário
que incluía a fundação de escolas nas cidades ocupadas pelos reis
cristãos, a imposição da pregação cristã nas sinagogas e a organização de
controvérsias entre teólogos e rabinos. Seu projeto estendia seu raio de
ação até Tunis e Paris. Raimundo de Penyafort soube transmitir seus
enfoques e estratégias peculiares aos que o ajudavam na difícil tarefa da
conversão dos infiéis. Dentro deste quadro geral, urge Lúlio, que, muito
embora nunca tenha se afastado da órbita dominicana e contasse com a
amizade de muitos frades – dentre eles o próprio Raimundo de Penyafort
–, adotou desde o começo uma postura isolada e original (Jaulent, 2001b,
p. 9).
48
Muito embora Jaulent identifique Lúlio como alguém independente e original,
percebe-se o paralelo entre os ideais de Penyafort e os de Lúlio. Ao se apontar este
paralelo, não se está diminuindo a contribuição original do gênio luliano, mas antes
procurando apresentar as possíveis fontes de inspiração ao projeto luliano, a partir dos
contatos estabelecidos pelo missionário maiorquino em estudo.
Especificando um pouco mais o paralelo entre as idéias de Raimundo de Penyafort
e as de Raimundo Lúlio, Bragança e outros destacam do projeto de escolas missionárias de
Penyafort – escolas estas que viriam a ser um ponto importante da pauta de reivindicação
persistente de Lúlio às maiores autoridade civis e religiosas – a necessidade de se ter em
seus currículos o studia linguarum, o que previa o estudo tanto das línguas, quanto também
das próprias culturas dos povos árabe e judeu, a quem deveriam se dirigir os missionários
formados nestas escolas (Bragança et all, 2007, p. 14).
Se no âmbito do contato pessoal, pode-se destacar a influência do dominicano
Raimundo Penyafort nas idéias de Lúlio, deve-se considerar Raimundo Martí, outro
dominicano catalão, como o legítimo precursor de Raimundo Lúlio na prática missionária
cristã aos muçulmanos. Observe-se a seguinte afirmação de Saranyana sobre Martí:
Este dominicano catalão nasceu em Subirats (Barcelona) por volta de
1230. Seu nome é citado no capítulo da Ordem dominicana de 1250,
celebrado em Toledo, onde lhe é dado o encargo de estudar línguas
orientais. [...] Posteriormente, foi enviado a Tunis, onde permaneceu até
1269. Morreu em Barcelona em 1284, ou pouco depois. Por volta de
1258, redigiu uma Explanatio symboli Apostolorum ad institutionem
fidelium, descoberta por André Berthier e apresentada em sua tese de
doutoramento em 1931. Porém, o tratado mais importante de Martí é o
Pugio fidei contra (mauros et) iudaeos, redigido por volta de 1278
(Saranyana, 2006, p. 345).
Se e quanto os escritos, tanto os de Raimundo Penyafort, quando os de Raimundo
Martí, foram conhecidos e serviram de base para a formulação do projeto missionário de
Raimundo Lúlio, aqui não se consegue comprovar, podendo ser tema de aprofundamento e
doutoramento futuro, mas pode-se perfeitamente se identificar nestes outros Raimundos os
precursores históricos de Raimundo Lúlio no modelo missionário por este desenvolvido, o
que incluía a construção de escolas formadoras de missionários treinados na língua e na
cultura dos povos a serem alcançados, dentre os quais, os muçulmanos e os judeus, que
aparecem constantemente nas propostas e escritos de Lúlio, especialmente aqueles.
Contudo, Lúlio ia adiante, pois advogava, como se verá mais adiante, que os
49
missionários deveriam ainda ser versados em bom conhecimento teológico não apenas do
Cristianismo, mas também nas doutrinas das respectivas religiões daqueles a quem eles
deveriam comunicar a fé cristã; eles também deveriam ser aptos para demonstrar a
superioridade da fé cristã sobre as demais através de convincentes escritos apologéticos,
assim como de uma vida cristã autêntica, seguindo o modelo dos apóstolos, como se
percebe na seguinte exclamação de Lúlio: “Nós temos esperança que Deus envie a este
mundo homens de vida santa, que também sejam da Ordem dos Apóstolos e que tenham a
ciência e a linguagem para saber pregar e converter os infiéis, com a ajuda de Deus, e que
dêem aos cristãos um bom exemplo com sua vida e suas palavras santas” (Lúlio, 2006, 32).
Neste ponto encerra-se o presente capítulo como uma exposição contextual
histórica e geográfica das missões cristãs que foram exercidas até os dias de Lúlio,
destacando a relação entre cristãos e muçulmanos; e encerrando com a identificação do que
foi feito na época e um pouco antes de Lúlio quanto à evangelização dos muçulmanos,
destacando as ordens mendicantes e aqueles outros Raimundos que foram precursores de
Raimundo Lúlio na missão cristã aos muçulmanos.
A presente pesquisa passa ao próximo capítulo fazendo uma exposição panorâmica
da teoria e prática missionária de Raimundo Lúlio, aqui identificadas juntas como
Missiologia Luliana, pois como se há de perceber, teoria e prática estavam profundamente
associadas na vida e na pessoa de Lúlio. A exposição de tal missiologia visa demonstrar de
que maneira a mesma não foi uma simples compilação das idéias de outros, especialmente
dos outros Raimundos há pouco apresentados, mas em que ela de fato veio a oferecer uma
contribuição original às missões cristãs aos muçulmanos.
50
A MISSIOLOGIA LULIANA, TEORIA E PRÁTICA DE RAIMUNDO LÚLIO
Havia uma grande necessidade de que se escrevesse de um modo
adequado sobre a vida de Raimundo Lúlio [...]. Ele foi o maior
missionário que já se dirigiu ao mundo muçulmano. Foi uma das figuras
destacadas da Igreja Católica do século treze. Foi um cristão de espírito
moderno de catolicidade – nem romanista, nem protestante – um homem
de juízo espiritual e de amor divino [...]. Amou a Cristo com um amor
apaixonado e viu que o único verdadeiro método missionário era o
método do amor. [...] A grandeza do caráter de Lúlio se destaca de modo
ainda mais marcante quando se considera em como ele se sobressaiu
acima do mundo e da Igreja do seu tempo, antecipando em muitos séculos
normas morais, conceitos intelectuais e ambições missionárias que nós só
temos alcançado com muito trabalho e muito lentamente desde a Reforma
[Protestante]. (Speer, 1977, pp. VIII,IX).
O presente capítulo discorre a respeito do projeto missionário desenvolvido teórica
e praticamente por Lúlio, o que nesta pesquisa é chamado de missiologia luliana, como já
foi indicado. Esta íntima relação entre teoria e prática, teologia e vida cristã, missiologia e
missão são claramente percebidas no pregador catalão; sendo assim, este projeto ao qual
Lúlio dedicou as suas faculdades e vida desde a sua conversão e até a sua morte, passa a
ser aqui apresentado numa perspectiva biográfica, apontando as possíveis contribuições do
mesmo ao pensamento e à atuação missionária cristã contemporânea, numa perspectiva de
atuação e avaliação protestante.
2.1 A biografia missionária de Raimundo Lúlio
Ramon Llull estava com uns sessenta anos de idade na primeira vez que
viajou para Tunis e mais de oitenta na sua última viagem. (...)
[Diferentemente de] Marco Pólo [que] era um mercador. Llull pretendia
dialogar com pessoas de religiões diferentes do cristianismo, para
encontrar um caminho comum. (...) Llull não escrevia livros de viagens,
nem descrevia paisagens. Viajava para falar com as pessoas, para saber o
que pensavam e dizer-lhes o que ele pensava... sobre Deus. (...) Llull não
se importava que o tivessem por louco, ou que considerassem impossíveis
os seus propósitos... com o propósito de mover aos seus interlocutores a
usar a razão (Mata, 2006, p.16).
Embora Lúlio tenha sido apresentado como pregador, místico e até mesmo como
político pragmático, conforme os destaques de Runciman (2003b, p. 374), a sua
contribuição maior se deu em duas áreas: na produção literária, pelo que se destaca a
variedade de temas abordados, assim como a diversidade de línguas nas quais escreveu,
dentre elas o catalão, dando a este idioma a unidade e divulgando-o, pelo que é
51
considerado o primeiro escritor catalão de notoriedade universal, segundo Iáñez (1992, pp.
199-202); e o outro destaque está na sua proposta missionária, pois a missiologia luliana
revela como Lúlio utilizou e subordinou o seu vasto e rico conhecimento filosófico ao uso
teológico missionário, um contraste com o oponente árabe-muçulmano Averróis, que fazia
o contrário, segundo Saranyana (2006, pp. 240,379).
2.1.1 Apresentação sucinta de Raimundo Lúlio
Como foi demonstrado no capítulo anterior, a história das missões cristãs medievais
indica que até Lúlio, a tarefa missionária da Igreja foi essencialmente a catolicização dos
povos pagãos conquistados, o que praticamente restringiu as missões medievais à
estratégia da educação cristã destes e a estes povos, com poucas exceções consideráveis.
Agora, esta parte da pesquisa apresenta a biografia de Raimundo Lúlio, algo
necessário para a devida compreensão da sua obra, especialmente porque nele, vida e obra
estão muito interligadas, como reconhece Franch, ao afirmar aos interessados em aprender
sobre o pensamento missionário de Lúlio, que a melhor maneira de fazê-lo é através da
abordagem da sua própria vida (Franch, 1954, p. 24). Para uma mui breve visão inicial
desta biografia, destacam-se as seguintes palavras de Neill, sobre Lúlio:
nasceu na ilha de Maiorca, provavelmente em 1235, cinco anos depois de
os catalães (sob a chefia de seu rei, Jaime o Conquistador) terem
conquistado a ilha dos sarracenos. Até aos trinta anos, Lúlio foi um jovem
cortês, galante e frívolo, um poeta sem nenhum pensamento especial
acerca da religião. Então, subitamente, teve um dia três visões de Cristo,
chamando por ele e pedindo-lhe que servisse o Salvador. A conversão foi
completa. Durante os cinqüenta anos seguintes, Lúlio esteve
incansavelmente ao serviço do seu Senhor. (Neill, 1997, p. 137).
Após esta sucinta apresentação da biografia luliana, segue um detalhamento da
mesma, o qual virá dividido a partir das principais fases da vida de Lúlio.
2.1.2 A vida inicial de Raimundo Lúlio
Tendo nascido Palma de Maiorca no ano de 1235, segundo a precisão de Iáñez
(1989, p. 199), outros estudiosos preferem apresentar o ano do nascimento de Raimundo
Lúlio como não tão seguro a ser determinado, mas dentro do período compreendido entre
os anos 1232-1235. Costa indica que o pai de Lúlio foi um nobre que participou da
conquista da ilha de Maiorca, retomando-a dos muçulmanos em 1229, sob a direção do rei
de Aragão Jaime I – o Conquistador, motivo pelo qual a família foi recompensada com
52
“propriedades na ilha – já por volta de 1232 sua família possuía cerca de 159 hectares”
(Costa, 2000, p. XV).
Lúlio foi educado no refinado ambiente da corte real maiorquina, segundo Iáñez
(1992, p. 200), tendo sido preparado para a carreira das armas, como indica Costa (2000, p.
XVI); porém, ele não permaneceu muito tempo na então provincial Maiorca, onde teria
uma pacata vida típica do interior, pois quando ainda jovem, foi para a Espanha e serviu na
corte do rei de Aragão, época na qual viveu em devassidão, embora casado e com filhos,
pois como informa Tucker, tinha amantes e “pelo seu próprio testemunho, sua vida era
completamente imoral”. (Tucker, 1996, p. 53). Costa indica que o nome da esposa de Lúlio
era Blanca Picany, com quem teve dois filhos, Domingos e Madalena; e completa: “Mais
ou menos nesta mesma época, foi nomeado administrador da casa real do futuro rei Jaime
II de Maiorca” (Costa, 2000, p. XVI).
2.1.3 A conversão e o chamado de Raimundo Lúlio
De tantas descrições feitas sobre a conversão deste jovem catalão de hábitos não
religiosos e não piedosos, Tucker é quem a descreve de forma mais objetiva, sem contudo
ser omissa, ao informar que
a conversão de Lúlio foi mística, marcada por visões. Ele haveria tido três
visões de Cristo. Na primeira, ele estava compondo uma música erótica, à
noite, quando foi surpreendido pela imagem de Cristo pendurado na cruz,
com as suas mãos e pés escorrendo sangue, olhando-o com censura;
impressionado pela visão, parou a sua composição até tentou retomar tal
obra na semana seguinte, quando se dá, novamente, a visão. Então ele se
entrega a Cristo, mas é assaltado pela terrível dúvida se podia ele, tão
pecador, ser aceito pelo Santo Jesus. Lúlio passa então a viver uma vida
ascética, típica da mística monástica de então, até que tem uma terceira
visão, através da qual, torna-se consciente da sua responsabilidade para
com os que o rodeavam. Nesta visão, ele se encontrara com um peregrino,
que ao saber da vocação ascética do mesmo, o repreende pelo seu
egoísmo e o desafia a seguir o mundo e levar a outros a mensagem de
Cristo. Lúlio procura dedicar-se especialmente aos sarracenos, que eram
considerados os mais odiados e temidos inimigos da cristandade. (Tucker,
1996, p. 53).
Esse episódio aconteceu por volta de 1265, aproximadamente aos trinta anos de
idade de Lúlio, informa Costa (2000, p. XVI) e tal experiência mística marcou tanto a sua
conversão como a sua vocação missionária, pois ao mesmo tempo em que ele foi
repreendido pela sua promiscuidade, também recebeu a sua chamada missionária, o que
honrou até a sua morte.
53
A conversão desse catalão veio acompanhada de três desejos, segundo Costa: 1) o
de dedicar a sua vida ao serviço a Deus através da obra missionária de buscar alcançar para
o cristianismo os gentios; 2) o de criar escolas onde se estudasse as línguas destes gentios a
quem se procurava alcançar; e 3) o de dedicar-se à obra missionária com disposição para
enfrentar até a morte, se necessário fosse (Costa, 2000, p. XVII).
Caso não bastasse querer ser um missionário cristão, o converso catalão almejava
alcançar exatamente o grupo mais hostilizado pela cristandade de então, especialmente os
ocupantes da península Ibérica, os muçulmanos, ou simplesmente sarracenos, como
costumeiramente Lúlio os chamava, visto ser uma denominação comum dirigida aos
islâmicos por parte dos cristãos oriundos da península Ibérica.
2.1.4 O preparo missionário de Raimundo Lúlio
Obediente à sua vocação missionária, Lúlio passou a concentrar as suas ambições
no alvo da conversão dos islâmicos para Cristo. Para alcançar este objetivo, ele sentiu-se
atraído pelos dominicanos, mas não se filiou à ordem deles, pois acabou se identificando
melhor com os franciscanos, afirma Neill (1997, p. 137), embora como foi visto, também
não tenha oficialmente se tornado um membro da ordem dos frades menores. Tais ordens
tiveram um importante papel na renovação da vida religiosa ativa do cristianismo
medieval, segundo acrescente ainda Franch (1954, p. 53), o que provavelmente teria levado
Lúlio a procurá-las, em virtude do seu desejo de atuar como um missionário cristão.
Lúlio não encarou a obra missionária que pretendia de uma forma romântica, como
se fosse um idealista sem a percepção das necessidades reais do devido preparo. Ele,
porém, estudou com afinco para primeiramente aprender a língua árabe, mas também para
entender-lhe a filosofia e a cosmovisão, atesta Costa (2000, p. XVIII).
No período no qual Lúlio se dedicava ao estudo da língua árabe, ele comprou um
escravo sarraceno, que aborrecido com o apego do seu senhor ao cristianismo, blasfemou
de Cristo um dia, muito enfurecendo ao seu senhor, pelo que Lúlio bateu nele e o escravo
reagiu, puxando a espada e vindo quase a matar o seu senhor. O escravo foi preso e em
seguida cometeu suicídio. Tal incidente abalou profundamente a Lúlio, que aparentemente,
se viu mais ardorosamente despertado para a evangelização dos muçulmanos, segundo
Tucker (1996, p. 53,54).
Lúlio empregou nove anos de estudo do árabe com este seu escravo muçulmano, ao
final dos quais ele já estava com quarenta anos de idade, identifica Costa (2000, p. XIX),
encerrando esta fase de um aprendizado que foi fruto da mais profunda consagração do seu
54
ser ao serviço a Deus, afirma Franch (1954, p. 48), em obediência à visão do seu chamado
e vocação missionária.
2.1.5 A vida missionária de Raimundo Lúlio
Por certo, influenciado pela ordem dos franciscanos, Lúlio vendeu os seus bens,
tendo deixado uma boa parte de suas riquezas à sua mulher e filhos – o suficiente para o
provimento deles, segundo Costa (2000, p. XVIII) – e uma outra parte deu aos pobres;
somente após o que ele passou a dedicar-se exclusivamente à obra missionária, afirma
Tucker (1996, p.54). Percebe-se em Lúlio a fidelidade aos votos de castidade e pobreza,
típicas das ordens mendicantes, mas o distanciamento da vida e do convívio familiar
chamam a atenção, tendo em vista que visando cumprir a vocação missionária, ele
desobrigou-se da demanda pessoal na relação familiar.
Na sua corrida missionária, várias vezes Lúlio foi visto em diferentes pontos do
então mundo cristão com o propósito de conseguir apoio ao seu projeto missionário de
alcance dos gentios. Ele apareceu nas Universidades de Paris e Montpellier, na corte dos
reis de Aragão, de França, da Sicília e até de Chipre; e também na presença de todos os
papas que reinaram entre 1265 e 1320; nas repúblicas de Gênova, Pisa e Veneza, que,
como já vimos, tinham relações importantes com o mundo muçulmano; e, finalmente, no
Conselho Geral que se reuniu em Viena em 1311, segundo indica Neill (1997, pp.
137,138), numa busca incansável de apoio ao seu projeto. Tamanha correria visava
estruturar na Igreja Romana condições de alcance dos muçulmanos para Cristo.
Percebe-se que Lúlio foi um ardente defensor da causa missionária entre os
muçulmanos e não mediu esforços para conseguir empreendê-lo, tanto pessoalmente,
quanto influenciando e capacitando outros, mas o seu grande desejo eclesiástico era ver um
empenho maior da igreja institucional em alcançar este propósito missionário.
2.1.6 Raimundo Lúlio, missionário até a morte
Embora Neill afirme que Lúlio “parece haver visitado quatro vezes a África do
Norte para pregar aos muçulmanos e discutir com eles, em pessoa. Na quarta destas visitas,
em Bugia, em 1315, foi de tal modo agredido que morreu em resultado dos ferimentos
recebidos” (Neill, 1997, p. 140), não se sabe exatamente o que aconteceu, visto não se ter
registro documentado, contudo presume-se pela tradição que a sua morte se deu
provavelmente no retorno à Espanha.
55
Sobre Lúlio, Iáñez complementa Neill: “passou indubitavelmente por Tunes, onde
foi martirizado, e pelo menos duas vezes por Bugia, onde também recebeu maus tratos que
– talvez (pois se perde o seu rasto) – o tenham levado à morte em 1315. Beatificado pela
Igreja, é conhecido pelo título de ‘Doutor Iluminado’”. (Iáñez, 1992, pp. 199,200).
Sobre os eventos que marcaram o final da vida Lúlio, cuja tradição associa ao
martírio, importa a leitura da seguinte descrição de Tucker, que comenta a questão, assim
como se percebe além da preocupação com a evangelização, o coração pastoral do ancião
cristão, ao dirigir-se à sua pequena congregação de convertidos do Islã à fé cristã na
Tunísia:
Embora a permanência de Lull na Tunísia fosse compensadora, ela não
permitiu o prêmio final que ele aspirava – a coroa do martírio. Lull foi
influenciado pelo espírito da época em que vivia [...]. Morrer a serviço do
Mestre seria o mais alto privilégio. Assim, em 1314 ele voltou a Bugia
para visitar seu pequeno grupo de convertidos e submeter sua defesa do
cristianismo ao teste final. “Por mais de dez meses o velho missionário
permaneceu escondido, conversando e orando com os convertidos e
tentando influenciar os que haviam sido ainda persuadidos... Finalmente,
cansado da reclusão e ansiando pelo martírio, ele foi até a praça do
mercado e apresentou-se ao povo como o mesmo homem a quem haviam
uma vez expulso de seu meio... Ele suplicou com amor, mas falou
claramente toda a verdade... Enfurecida com sua ousadia, mas incapaz de
responder aos seus argumentos, a população agarrou-o e arrastou-o para
fora da cidade: ali, por ordem, ou pelo menos com a conivência do rei, ele
foi apedrejado a 30 de julho de 1315,” e morreu logo depois (Tucker,
1996, p. 59).
Após a sua morte, Lúlio foi reconhecido como um cristão de destacada contribuição
às missões cristãs e à medida que os seus escritos vão sendo estudados e a sua obra vai
sendo conhecida, maior valor vai-se atribuindo ao missionário cristão natural de Maiorca.
2.1.7 Dialogando com a biografia missionária de Raimundo Lúlio
Contemplar o contexto histórico da missiologia luliana deve servir não apenas para
o devido entendimento da atuação do missionário cristão maiorquino, mas também para
uma necessária e humilde auto-crítica da prática missionária da igreja cristã brasileira
contemporânea.
Na conclusão do livro no qual o luterano Steuernagel explora a História das
Missões Cristãs, com o propósito anunciado de buscar modelos históricos de obediência à
prática missionária, o autor lembra que “no decorrer da história da missão foram vários os
motivos que levaram a Igreja a se engajar na prática missionária” (Steurnagel, 1993, p.
56
172); e os motivos predominantes teriam sido: o expansionista, o civilizatório ou o
fortemente escatológico. O luterano segue afirmando a dificuldade de sermos
absolutamente objetivos nesta busca de modelos puramente bíblicos, por sermos “filhos e
filhas da época em que vivemos”, mas continua com um importante alerta: “O
fundamental, no entanto, é discernir e decodificar as nossas influências e nossos fatores
determinantes. Ademais, é fundamental que estejamos abertos para discernir a orientação
do Espírito Santo e que nos submetamos renovadamente à autoridade da Palavra de Deus”
(Steuernagel, 1993, p. 173), o que é um alerta para a análise não apenas dos exemplos
históricos de missões, mas para uma auto-crítica lúcida da atuação missionária cristã
contemporânea; e esta deve ser feita, acima de tudo na humilde reflexão dependente da
instrução divina através do texto bíblico.
2.2 A visão missionária de Raimundo Lúlio
Com estas três coisas firmemente deliberadas em seu pensamento, isto é,
colocar sua vida para a honra de Jesus Cristo, fazer os livros acima ditos,
e fazer construir e edificar diversos mosteiros, assim como dito acima,
partiu daqui o reverendo e mestre e foi-se embora para a Igreja, que não
era muito longe, e ali prostrou-se em terra, suplicando apaixonadamente,
com lágrimas, que lhe fizesse suportar a um bom fim e conclusão aquelas
três coisas que havia deliberado dentro de sua alma (Lúlio, 2010,
internet).
A visão missionária de Lúlio está essencialmente ligada à sua devoção pessoal. O
seu entendimento sobre a responsabilidade missionária da Igreja e a sua estruturação de um
sistema que bem conduza os missionários cristãos nesta tarefa são frutos do intenso desejo
de sua alma de expressar verdadeiro amor por Deus, o que transparece nos seus escritos,
dos quais se destaca como ilustração o seguinte: “O amigo perguntou a seu Amado se
havia nEle alguma coisa ainda por amar. O Amado respondeu-lhe que sim: ainda restava
por amar aquilo que podia multiplicar o amor do amigo” (Lúlio, 1989, p. 61).
Segundo Jaulent, o Livro do amigo e do Amado, de onde foi retirado essa
explicitação de amor a Deus “é, sem dúvida nenhuma, a obra mais conhecida e divulgada
de Lúlio. ...cujo conteúdo é nada menos o diálogo que a alma apaixonada mantém com o
seu Criador” (Jaulent, 1989, p. 35). Essa explicação revela que a fonte visionária de Lúlio
foi a sua própria devoção cristã pessoal, o dínamo que energizou a sua missão e reflexão,
pois “o filósofo foi absorvido pelo missionário”, como bem resumiu Zwemer (1997, p.
100).
57
Esta parte do trabalho pretende apresentar a visão missionária de Raimundo Lúlio,
o que buscará ser feito a partir da identificação de três aspectos dessa visão: o ideal
luliano, que é a razão da excelência do seu trabalho; o desconforto luliano diante da
preterição missionária aos gentios, especialmente aos muçulmanos; e a missiologia luliana,
conseqüente disto tudo e que engloba as bases norteadoras da atuação missionária
propostas por Lúlio.
2.2.1 O ideal de Raimundo Lúlio
A visão missionária de Lúlio é fruto do seu ideal, que por sua vez está
essencialmente ligado à sua nítida vocação missionária. Bragança Jr., Costa e Pastor
enfatizam “que o objetivo principal luliano é a conversão do infiel e que toda a sua obra
gira em torno dessa premissa. A conversão, segundo Ramon Llull, não se deve realizar
mediante ‘autoridades’, mas mediante ‘razões necessárias’, que ensinem ao infiel entender
a falsidade da sua religião e a verdade de Cristo” (Bragança Jr. et all, 2007, p. 27).
Verifica-se daqui que não apenas os escritos, mas também a própria vida desse
missionário maiorquino está focada no propósito de trazer à fé cristã aqueles que ainda não
a professam, pois Lúlio carregava consigo a missão de apresentar a fé cristã a todas as
pessoas, especialmente àqueles que ainda não eram cristãos. Dessa tarefa, ele via a
urgência de converter os muçulmanos para o cristianismo, segundo Mata (2006, p.12).
O desejo intenso de Lúlio de ver os gentios convertidos a Cristo transparecia como
uma urgência nos seus escritos. Algo marcante em sua vida e que não escondia de
ninguém, chegando inclusive a registrar assim no prólogo do Livro das Maravilhas, que é
um trecho autobiográfico de Lúlio, o qual assim fez referência ao estado da sua alma ao
constatar o desinteresse de tantos por Deus, observado em terras gentílicas:
Em tristeza e em fraqueza estava um homem em estranha terra.
Fortemente se maravilhava das gentes deste mundo como tão pouco
conheciam e amavam a Deus [...] Este homem chorava e se compadecia
como neste mundo existem tão poucos amantes e servidores e louvadores
de Deus. E para que fosse conhecido, amado e servido fez este Livro de
maravilhas... (Lúlio, 2006, p. 22).
O desejo de Lúlio é ver um mundo mais piedoso, habitado por pessoas que
conheçam a Deus, o adorem e o sirvam como fruto deste amor. O seu sonho era ser parte
do processo de conversão de gentios à fé cristã, mas o seu ideal era bem mais abrangente,
não se restringia a converter muitas pessoas; não que isso por si só fosse uma tarefa menor,
58
pelo contrário, pois o arrependimento e a conversão de um pecador são apresentados como
motivo de júbilo no céu no texto neotestamentário de Lucas 15.10 da Bíblia Sagrada (1993,
p. 66). No entanto, a conversão dos nãos cristãos à fé em Cristo era parte de um ideal
visionário de ampla reforma da sociedade, pois para Lúlio, “o mundo só poderia ser
reformado se, por um lado (o da cristandade), os fiéis fossem educados na religião (a
começar pelos príncipes); por outro, os infiéis fossem convertidos, pelo diálogo, pela
razão”, afirma Costa (2006, p. 21).
O ideal visionário de Lúlio se deparava com um gritante contraste diante da real
relação que o cristianismo estava mantendo com os muçulmanos e com os demais povos
não cristãos, pois o que reinava era um grande desinteresse missionário e essa percepção
gerava um grande desconforto em Lúlio, que é sobre o que se passa a tratar agora.
2.2.2 O desconforto de Raimundo Lúlio
Da biografia de Lúlio, sabemos que ele cresceu com a proximidade da sombra do
crescente islâmico, tendo em vista a ocupação moura na península ibérica, da qual fazia
parte a ilha de Maiorca. No entanto, após a sua conversão o sentimento de Lúlio era de que
a Igreja deveria envidar esforços para alcançar estes pela persuasão, pensamento
dominante nas recém-nascidas ordens dos dominicanos e dos franciscanos, que segundo
Cairns, “surgiram como respostas ao problema de trazer os muçulmanos e os hereges à fé,
pela persuasão, através da educação ou do esforço missionário” (Cairns, 1995, p. 181).
Este mesmo autor indica que as causas das cruzadas foram variadas, incluindo
interesses econômicos ou políticos, mas identifica a motivação principal como religiosa
(Cairns, 1995, p. 178), pois dentro da cosmovisão católica dominante havia uma estreita
relação entre o reino de Deus e a chamada “Terra Santa”.
Contudo, é praticamente ponto em comum entre os historiadores considerar as
cruzadas como um desastre que marcou definitivamente a História, como faz também
Armstrong (2001, p. 142), pois além da morte de muitos cruzados cristãos, inclusive
crianças que foram enviadas na absurda “Cruzada das Crianças de 1212”, houve inúmeras
outras conseqüências negativas na Europa, desde a desestabilização política e social de
inúmeros reinos e feudos que perderam importantes cavaleiros no combate, até o
agravamento das relações entre os cristãos orientais ortodoxos com os ocidentais católicos,
pois além dos saques produzidos pelos esfomeados peregrinos ocidentais que vinham às
cruzadas no Oriente, sobrou o clima absolutamente tenso da relação dos cristãos orientais a
quem restou conviver com a maioria muçulmana que não havia sido vitimada pelas
59
cruzadas. Curiosamente, as cruzadas deixaram de positivo o fato de terem introduzido a
Europa ocidental na diversidade cultural, ao lhes incluir no mundo islâmico, afirma Cairns
(1995, pp. 180,181).
Duas percepções se têm da leitura deste relato: 1) a mancha negra histórica que o
cristianismo deixou impresso na sua imagem em decorrência dos vários erros cometidos
nas cruzadas; 2) a nítida leitura revisionista histórica, comum na contemporaneidade.
Apesar do seu espírito progressista e de ter sido vanguarda em muitos aspectos,
Lúlio foi alguém do seu tempo, que escreveu e defendeu estruturas e modelos sociais dos
seus dias medievais, contudo com o seu desejo intenso de ver santificada pelas virtudes
cristãs as ações sociais e o mundo real dos seus dias. O livro da ordem de cavalaria é uma
demonstração disso, pois é uma apologia luliana ao modelo da cavalaria, na defesa de que
os atos e as responsabilidades dos cavaleiros sejam exercidos sob forte qualificação cristã,
como explica Costa através das seguintes palavras:
Para Llull, o cavaleiro adquire todas as virtudes teologales, necessárias e
fundamentais para o seu ofício, mediante a fé. E de todas as qualidades
derivativas da fé, as das obrigações mais importantes para o cavaleiro do
Séc. XIII eram: a peregrinação à Terra Santa e a luta na cruzada. Da fé
derivam também as outras virtudes teologales (caridade e esperança), o
que faz com que o sistema luliano seja entrelaçado por um profundo
sentido unitário. Esse mesmo entrelaçamento se dá com as virtudes
cardinales e os vicios que elas combatem. (Costa, 2001, p. 37).
Embora se possa considerar Lúlio excessivamente tolerante com as cruzadas, como
já foi destacado, havia uma função de polícia religiosa nestes cruzados, aos quais ele
procura educar; contudo, não se deixa de perceber as implicações da tolerância para com o
pensamento do direito de posse sobre a terra de Canaã, motivo de conflito até os dias de
hoje, só que entre os povos das outras duas religiões monoteístas naquela região, os
adeptos do islamismo e os do judaísmo.
Complementando esta discussão, Mata nos lembra que diferente do que em dias
recentes se passa a ouvir, que busca apresentar o islamismo como uma religião de paz e
tolerância em oposição à historicamente criticada prática dos cruzados (como foi visto em
Armstrong), o ensino explícito do Corão caracteriza a religião islâmica como um sistema
que nasce no contexto das guerras tribais árabes, procurando estabelecer um monoteísmo
sufocando as reações dos contrários com muito mais do que o calor e a poeira dos desertos
árabes, pois o Corão sanciona a guerra santa, conhecida como Jihad. Mata indica várias
passagens do Corão islâmico que incitam a morte aos infiéis, leia-se estes como os não
60
muçulmanos; dessas passagens destaca-se aqui apenas duas: “Combatam por Alá: matem
ou [eles] lhes matam”, ainda que se recomende a moderação neste combate, pois Alá não
teria prazer em quem se excede nisto; “Combatei contra eles até que deixem de induzi-los
a apostatar e se rendam ao culto a Alá. Se cessam, [que] não haja mais hostilidades contra
os ímpios” (Mata, 2006, p. 21,22).
Dá para se perceber a dimensão da dificuldade de se fazer missões cristãs entre os
muçulmanos. A triste constatação das cruzadas é que as práticas de cada respectivo grupo
envolvido foi essencialmente contrária à fé professada por eles, pois na ocasião, a
tolerância gentil pregada no evangelho cristão foi vivida em grande medida pelos islâmicos
e o combate letal contra os infiéis ensinado no Corão foi praticado em grande medida pelos
cristãos. Lúlio não se rendeu à relação “cruzada” entre os cristãos e os muçulmanos tal
como se tornou, abusiva, nem muito menos a apoio como recurso de “conversão” religiosa,
pois ele entendia que os cristãos tinham uma responsabilidade maior, mais precisa e
essencialmente evangélica de se aproximar e em se relacionando com os não cristãos,
tentar apresentar-lhes racionalmente a fé cristã; esta percepção desdobrou-se na sua
proposta missionário, próximo tópico de estudo neste trabalho.
2.2.3 A proposta missionária de Raimundo Lúlio
O ideal luliano visto há pouco produziu nele um certo desconforto, levando-o a
gerar a sua proposta missionária, que apesar da característica fortemente contemplativa
pessoal de Lúlio, era profundamente prática e sofisticadamente racional. Apesar de Lúlio
não ter convencido a igreja institucional para apoiar o seu projeto de reforma social, isto
não comprometeu a sua determinação em perseguir a concretização deste ideal, pois
embora nem Roma nem Paris quisessem abraçar tal alvo, segundo Costa (2006, p. 21), o
missionário catalão prosseguiu firmemente procurando atingi-lo, de onde ele seguiu
produzindo a sua proposta missionária.
Lúlio definitivamente não tinha uma visão relativista dos diversos credos religiosos,
ele não cria que Deus também poderia ser igualmente encontrado em religiões distintas do
cristianismo, contudo Lúlio entendia que não se devia impor pela força aos muçulmanos
que deixassem de seguir a Maomé e passassem a adorar a Cristo, visto que a religião cristã
verdadeira se estabelece através de um princípio de culto pessoal, não cabendo a coação na
busca da conversão ao cristianismo, afirma Mata (2006, p. 22).
61
Embora, segundo Costa, Lúlio visse que uma das duas principais obrigações do
cavaleiro do Séc. XIII fosse lutar na cruzada (Costa, 2001, p. 37), essa luta não poderia ter
propósito de conversão, mas militar, ainda que imbuída de valores religiosos.
Para Lúlio, a devida instrução do missionário cristão era uma ferramenta
fundamental para o seu trabalho missionário, por isso ele mesmo se dedicou de 1262 a
1264 a aprender a língua árabe, passando também a estudar latim, teologia e o pensamento
filosófico distinto de cristãos, muçulmanos e judeus. Costa indica ainda a tendência de
Lúlio de buscar a síntese desse conhecimento adquirido com a prática escolástica que era
dominante na academia cristã do Séc. XIII (Costa, 2000, p. XVIII).
Aquilo que Lúlio buscou, se ampliou dentro de si desembocando na convicção de
que o devido conhecimento de teologia cristã, de literatura, das culturas e filosofias gerais
e das línguas nativas dos povos aos quais se pretendia alcançar era parte necessária da
bagagem cultural que o missionário cristão deveria ter.
Sendo assim, Lúlio tentou persuadir tanto o rei da França quanto os intelectuais da
Universidade de Paris da razoabilidade da sua argumentação apologética, tentando sem
sucesso convencê-los, especialmente ao monarca, da necessidade da construção de escolas
missionárias monásticas, onde se oferecesse treinamento missionário aos monges, o que
incluía o estudo da língua dos povos pagãos a serem alcançados e o da capacidade de
argumentação racional sobre a fé cristã, segundo Costa (2006, p. 20).
Essa missiologia luliana era uma realidade em construção, pois a “ação missionária
sofre necessariamente o influxo de quem a realiza. À medida que a pessoa ganha
experiência e amadurece, muda e aperfeiçoa seus métodos e técnicas de conversão”,
expressa Jaulent (2001b, p. 13). A grandiosidade de Lúlio se manifesta no fato de que o
seu aprendizado missionário não era só dele, nem só para ele ou para o seu ministério
pessoal, mas imediatamente se transformava em um projeto da igreja cristã para alcançar
os não-cristãos; e assim Lúlio ia desenvolvendo a sua rica missiologia, que envolvia
aspectos teóricos e práticos, como se pode ver.
No coração da missiologia luliana havia três condições essenciais que formavam a
tríade missiológica de Raimundo Lúlio, segundo Neill, a qual deveria ser aplicada para o
alcance dos seus contemporâneos sarracenos.
A primeira condição seria a necessária compreensão rigorosa da linguagem do
povo a ser alcançado, por esta preocupação Lúlio planejou a fundação de escolas de
línguas orientais e perseguiu tal objetivo até obter o apoio do Conselho de Viena em 1311,
em parceria com as maiores e melhores universidades do mundo, para a fundação de cinco
62
colégios. O seu propósito com o estudo das línguas era penetrar profundamente na cultura
dos sarracenos e assim, poder entendê-los e fazê-los receber com profundidade o
Evangelho.
A segunda condição era a composição de um livro que comprovasse racionalmente
o cristianismo ao povo a ser alcançado, pois teve contato com muçulmanos cultos e
compreendeu o seu ponto de vista, estes haviam desenvolvido uma escolástica própria,
através da qual, defendiam suas doutrinas com muita razoabilidade, sendo útil e necessário,
portanto, a produção de material didático com conteúdo e qualidade capazes de demonstrar
a fé cristã aos leitores islâmicos.
E a terceira condição era a disposição ao martírio como um testemunho fiel e
corajoso perante o povo a ser alcançado, o que de fato ocorreu, pois testemunhar em países
muçulmanos era uma decisão perigosa, visto que sob a lei islâmica, tal ofensa já devia ser
punida com morte. Neill registra que o próprio Lúlio escreveu: “Os missionários
converterão o mundo por meio da pregação, mas também vertendo lágrimas e sangue, e
através de grandes trabalhos e no meio de uma morte amarga” (Neill, 1997, p. 138-140).
Observa-se que esta teoria missiológica não se restringe aos sarracenos, mas pode
muito bem ser estendida ao trabalho missionário transcultural. Nisto, Lúlio também estava
bem à frente do seu tempo, por isso também, ele foi tão mal compreendido.
Destaca-se das suas três condições, um perfil integral, pois envolve todo o ser do
missionário: a sua inteligência, a sua emoção e a sua vontade, dirigindo-o para uma tarefa
evangelística bem pensada, estruturada e desenvolvida. Em Lúlio, a dependência e a crença
numa obra sobrenatural de Deus na redenção espiritual dos não-cristãos não excluíam o
devido preparo para uma melhor atuação missionária dos cristãos.
A visão missionária de Raimundo Lúlio era decorrente do seu ideal de ver a igreja
cristã alcançando os não cristãos, especialmente os muçulmanos, cuja única aproximação
significativa de cristãos conhecida estava sendo as cruzadas; para Lúlio, esta não era a
visão principal que os muçulmanos deveriam ter dos cristãos, mas sim o evangelho.
A missiologia luliana ensinava que aos não cristãos deveria se anunciar a fé
salvadora, através de missionários devidamente educados e engajados nessa tarefa, o que
indicava a necessidade da Igreja de se empenhar em edificar escolas missionárias,
financiadas também pelos magistrados cristãos, com o propósito de bem preparar monges
missionários, os quais deveriam ser educados na teologia cristã, na vasta literatura, nas
filosofias universais, nas línguas dos povos a serem evangelizados e também na devida
63
maneira de apresentar e argumentar sobre a fé cristã com o propósito de persuadir pelo
entendimento iluminado pelo Espírito Santo os não cristãos à sua conversão espiritual.
2.2.4 Dialogando com a visão missionária de Raimundo Lúlio
A visão missionária luliana é essencialmente bíblica, pois é fruto do seu desejo de
alcançar para a fé cristã aqueles que ainda não a possuem e pretendia fazê-lo através do
devido preparo dos seus missionários para a fiel e eficiente comunicação da mensagem do
evangelho àqueles que viviam sem a fé em Cristo.
O desconforto sentido por Lúlio ao reconhecer a relação equivocada e omissa da
igreja cristã dos seus dias com os povos não cristãos, revela-se escasso também nos
cristãos contemporâneos, embora exista algum, pois a necessidade do mundo atual de
receber missionários cristãos, especialmente entre os povos não cristãos, cuja carência
atual não é menor do que a os dias de Lúlio, conforme nos informa Lidório:
há no mundo hoje cerca de 24.000 grupos étnicos distintos, levando em
consideração os dialetos e sub-culturas, espalhados por todos os
continentes. (...) Dentre estas 24.000 etnias existentes, cerca de 8.000
ainda não foram alcançadas, ou seja, não possuem nenhum testemunho
do evangelho ou uma igreja autóctone forte o suficiente para dar
continuidade à expansão da fé naquela determinada região. (Lidório,
1996, pp. 74,75)
Ainda segundo Lidório, metade da população mundial deve ser considerada como
povo não alcançado, no entanto eles contam com apenas cerca de 3% do quadro total de
obreiros protestantes mundiais (Lidório, 1996, p. 97).
Os muçulmanos merecem ainda hoje uma atenção específica, pois além de serem o
segmento religioso de maior velocidade de crescimento atualmente, são o seu segundo
maior grupo religioso do mundo, com mais de um bilhão de seguidores no planeta.
Esta parte do trabalho se encerra com um apelo de um palestrante, descrito apenas
como VNN, um convertido a Cristo oriundo do mundo muçulmano. Ele exclama:
Os muçulmanos são alcançáveis! Vocês acreditam nisso? A Bíblia diz
que se teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer, se ele tem sede, dá-lhe de
beber. Os muçulmanos hoje em dias têm fome e sede de Deus. O islã não
é a resposta, Maomé não é a resposta. A resposta é Jesus Cristo, o Filho
de Deus, e nós temos as boas notícias para compartilhar. Não falamos de
alguma filosofia, mas sim de Jesus Cristo, que é o único Salvador do
mundo. (...) Queremos ver novas formas da atuação de Deus usando as
pessoas. Vocês têm visto isto em seus países. Venham compartilhar
conosco nas igrejas e nos países islâmicos! (VNN, 1993, pp. 45,51).
64
As visão de urgência de Raimundo Lúlio diante da ignorância que o mundo
muçulmano tem do evangelho, revela-se, portanto, ainda uma realidade bastante atual.
2.3 As letras na missão de Raimundo Lúlio
Raimundo Lúlio, beato e mártir, o Doctor illuminatus, foi lapidado por
ódio à fé cristã pela população fanática de Bugia, na Berberia (África
Ocidental) [...]. Foi escritor feracíssimo e um homem de ação que pôs o
pensamento a serviço de sua atividade de apóstolo cristão. [...] As suas
andanças pelo mundo, as suas cansativas e múltiplas viagens, as estadas e
o magistério em Paris e a copiosa obras regada a suor e lágrimas, as
iniciativas e os planos, só tinham por objetivo a sua idéia dominante de
missionário: a conversão dos muçulmanos (Nunes, 1989, pp. 8,9)
Como foi visto, Lúlio foi extremamente ousado no seu sonho missionário, pois
embora seja razoável se imaginar que ele não tivesse a real pretensão de conseguir alcançar
toda a humanidade para Cristo, em muitos dos seus escritos é isto que ele parece transmitir.
Se por um lado, transparece que ele anuncia um alvo por demais elevado para ser
alcançado, por outro lado fica absolutamente claro o seu desejo de ver convertido o maior
número possível de pessoas para a fé cristã.
Em O livro dos gentios e dos três sábios, Lúlio descreve o anseio de um dos sábios
como sendo o da bem-aventurança de ver todos os homens professando uma única e a
mesma fé, formando um só povo no caminho da salvação, pelo que o sábio pede que se
considere os benefícios de tal realidade (Lúlio, 2001b, pp. 47,48). Certamente o desejo
daquele sábio era uma ilustração do incansável anseio de Lúlio de ver mais e mais pessoas
convertidas a Cristo.
O legado literário de Raimundo Lúlio é impressionante. Costa identificou 244 obras
que sobrevivem até os dias de hoje (Costa, 2001, p. 23), o que faz de Lúlio um escritor de
altíssima capacidade de produção literária, especialmente ao se considerar o fato de que ele
viveu no Séc. XIII. No entanto, a relação de Lúlio com a literatura é singular, parecendo
conviver bem, embora aparentemente em contradição com a sua inclinação à contemplação
e à prática missionária, um verdadeiro paradoxo pessoal.
Sobre a importância dos escritos lulianos, Jaulent não poupa louvores na sua
reivindicação por um lugar mais honroso para Lúlio e os seus escritos na lista dos
destacados autores da literatura cristã e até mesmo da universal. Assim ele comenta sobre o
Livro do amigo e do amado de Raimundo Lúlio:
65
Lúlio pretende, pois, que o homem se eleve até Deus a partir da realidade
criada e, depois, bem firmado em Deus, contemple nEle essa realidade.
Parece-nos, assim, que Lúlio foi um precursor, por isso não estranha
Menédez y Pelayo ter dito, referindo-se ao conjunto dos místicos
espanhóis, que ‘Lúlio abre a série dos grandes’. Seu mérito, contudo, não
se reduziu a adiantar-se aos tempos, mas consistiu em fazê-lo com um
lirismo não igualado em toda a literatura da Idade Média (Jaulent, 1989,
pp. 38, 39).
Lúlio já ocupa um reconhecido lugar como escritor de destaque na época medieval,
contudo, nesta parte do trabalho, busca-se apresentar a importância da literatura e dos
estudos para Raimundo Lúlio, qual era a sua intenção de uso com o conhecimento das
letras e com a sua produção literária. Como se verá, tais usos estavam relacionados à sua
missiologia, à sua ambiciosa tarefa de argumentação apologética.
2.3.1 As letras a serviço da evangelização
Jaulent nos recorda da “forte convicção que Lúlio alimentava de utilizar apenas
argumentos racionais na defesa das verdades cristãs” (Jaulent, 2001b, p. 15). O seu
compromisso com a verdade, relacionando-a essencialmente ao cristianismo, se conforma
com o adágio reformado de que “toda verdade é verdade de Deus”. O próprio Lúlio indica
a sua visão da estreita relação entre Deus e a verdade, na fábula do Livro das Bestas,
através das palavras da Serpente em resposta ao Galo: “a batalha foi travada para que a
Verdade confundisse e destruísse a Falsidade. Deus é Verdade, toda pessoa que sustenta a
Falsidade combate contra Deus e Sua Verdade.” (Lúlio, 2006, p. 76).
Esta percepção levou Lúlio a produzir literatura com o explícito propósito de
converter não cristãos através de argumentos verdadeiros, racionais, como novamente o
próprio Lúlio demonstra ao iniciar assim o prólogo do seu Livro do gentio e dos três
sábios:
Tendo convivido longo tempo com os infiéis, entendi suas erradas
opiniões. Eu, homem culpado, mesquinho, pobre, desprezado por todos,
indigno de escrever meu nome neste livro ou em qualquer outro, esforçarme-ei plenamente, conforme o método do livro árabe Do Gentio e
confiando na ajuda do Altíssimo, em procurar novos caminhos e
argumentos pelos quais os que erram possam ser encaminhados à glória
sem fim, escapando dos infinitos trabalhos, e deste modo louvem a Deus
nosso Senhor e chaguem ao caminho da salvação eterna. (Lúlio, 2001b, p.
41).
66
Percebe-se dessas palavras lulianas a sua firme esperança de que Deus se utilize dos
seus escritos literários, ainda que parcos, para trazer à salvação mediante a demonstração
racional da fé cristã, aqueles que estavam antes ignorantes quanto ao teor da sua
mensagem. Esta literatura, entende Lúlio, não está acabada, mas deve ser buscada de
diversas e novas maneiras, o que significa a escrita de diversas e novas obras literárias, as
quais certamente deveriam responder melhor e mais adequadamente à demanda racional de
cada contexto missionário.
Isso é um sério alerta contra a acomodação à simples repetição das mesmas
doutrinas, nos mesmos moldes; e a simples reedição dos mesmos livros. A tarefa
missionária da literatura requer tanto a firmeza teológica bíblica, quanto à capacidade de
discernimento e criatividade para se apresentar racionalmente as respostas cristãs às
indagações feitas pelos não cristãos dos nossos dias também.
Lúlio continua, demonstrando que na tarefa missionária ocorre um verdadeiro
embate racional de confrontação de idéias e argumentos, e não deveríamos fugir desta
conclusão, presumindo que em nossos dias podemos evangelizar sem comparação ou
mesmo confrontação de idéias, como se pode verificar a seguir:
Este livro é dividido em quatro. O primeiro prova que Deus existe, que
existem nele as flores da primeira árvore, e que existe a ressurreição. O
segundo livro é do judeu pretendendo provar ser sua crença melhor que a
do cristão e do sarraceno. O terceiro é do cristão, pretendendo provar que
sua crença vale mais do que a do judeu e do sarraceno. O quarto livro é do
sarraceno pretendendo provar sua crença valer mais do que a do judeu e a
do cristão. (Lúlio, 2001b, p. 42)
A intenção de Lúlio com a sua vasta produção literária não deve ser entendida
como simplesmente levar as pessoas a “aceitar Jesus como seu salvador pessoal”; ele não
usava algo semelhante a reducionistas “quatro leis espirituais”; a sua intenção evangelística
literária era mais profunda, o conteúdo apresentado e a demonstração do mesmo eram mais
amplos, pois o propósito de Lúlio era levar os seus ouvintes e leitores a uma conversão
espiritual consciente, fruto de uma confrontação densa de valores e sistemas de crença,
para então colocar no coração e mente do seu leitor um quadro de referências e de valores
cristãos, que serviriam de norte também para vida deles, como princípios a conduzi-los na
fé que racionalmente lhes fora demonstrada no processo de evangelização calcado na
demonstração da sublimidade da fé cristã.
67
2.3.2 As letras para a glória de Deus
Apesar de toda a sua precisão racional, Lúlio entendia que a fé pessoal, salvadora,
não estava condicionada à capacidade primeira das pessoas entenderem plena e
racionalmente o conteúdo da mensagem cristã. Tal visão da fé pode ser percebida através
das seguintes palavras lulianas:
1. Com a fé crê nas verdades que não entendes. 2. Com a crença
conseguirás ciência. (...) 4. Não descreiais todas as coisas que não podes
entender. 5. Primeiro crê, depois entende. 6. Subitamente crê e entende
com deliberação. 7. Com fé tem vontade ativa e entendimento passivo. 8.
Onde mais crês, mais poder entender. 9. Onde mais entendes, mais podes
crer. (...) 17. Combate a falsa crença com argumentos. (Lúlio, 2007, p.
67,68)
Ou seja, para Lúlio, a fé é uma graça que capacita o entendimento do conteúdo da
fé que foi abraçado voluntariamente como seu. Há um paradoxo entre as afirmações de
Lúlio e a sua apologética, pois apesar dele crer que não é a capacidade de entendimento do
homem que o leva a crer na fé cristã, ele se empenha por comunicar ao pecador esta fé
através da mais perfeita racionalidade possível.
Percebe-se que para Lúlio, o problema do homem não é epistemológico, mas moral,
não reside no fato dele não ter capacidade intelectual para crer, mas dele não ter a
inclinação para fazê-lo; contudo, a solução divina consiste em usar a devida explicação
racional da fé para alcançar, transformar e conquistar para a fé em Cristo o ser humano,
que através desta confiança no evangelho, passa a contar com as disposições internas do
seu coração voltadas para a devida compreensão da singela fé que o salvou.
Analisando a relação entre entendimento e vontade nos escritos lulianos, Jaulent
explica a natureza moral da fé e relaciona o devido entendimento da mesma através da
virtude do amor a Deus, pois somente se o homem amar “a Deus com todas as suas forças,
contemplará o mundo sob uma perspectiva divina. (...) Seu entendimento será bom e
produzirá um saber igualmente bom, que multiplicará as boas obras” Mas, continua, se o
homem se mantiver “esquecido de Deus, que é o seu fim, o homem se habitua a considerar
apenas os bens sensíveis, aos poucos, entretido no que é passageiro e material, verá
intoxicar-se sua capacidade intelectual (...)’” (Jaulent, 1989, p. 142).
Essa explicação de Jaulent revela a compreensão de Lúlio quanto à natureza da
mensagem do evangelho relacionada ao propósito da existência humana. Não ter em Deus
o propósito da sua existência, deixará o ser humano, segundo Lúlio, disfuncional e incapaz
68
de perceber as realidades e os significados essenciais de todas as coisas, visto que que
existem em relação a Deus. Esta cegueira espiritual é um profundo problema de natureza
moral, pois o potencial racional do ser humano fora da comunhão com Deus ficaria
alterado, semelhante a uma orquestra cujos instrumentos estão em desarmonia, produzem
os sons, mas numa falta de sincronia tal, que o sentido que se deveria emitir é perdido no
meio dos solos instrumentais que perderam o seu lugar no todo.
Esta relação entre fé, vontade e entendimento no pensamento luliano não é
racionalista e cartesiano como se parece num primeiro momento, mas com determinantes e
essenciais elementos morais e espirituais, sem contudo, eliminar o papel da persuasão no
ato da transmissão da fé cristã, como se pode verificar nos seguintes provérbios sobre a fé,
da autoria de Lúlio: “19. A força da fé está pela vontade e a força do argumento está pelo
entendimento. 20. O entendimento sabe que a fé ilumina vários caminhos com amor. 21. A
fé é propícia à vontade e distante do entendimento” (Lúlio, 2007, p. 68)
O ser humano aqui nos é apresentado como um conjunto, uma unidade de partes
distintas que se interferem e interagem. Entendimento, fé e vontade estão relacionados,
afetando-se mutuamente, de tal maneira que não se alcança o entendimento devido da fé
aquele que não crê, assim como não se crê corretamente quem não quer seguir, nem se
consegue ser cristão, quem não queira compreender esta fé.
Do prólogo do Livro dos mil provérbios, lemos as seguintes palavras lulianas:
“Como o homem foi criado para conhecer, amar, lembrar, honrar e servir a Deus, fizemos
estes mil provérbios, com os quais damos doutrina para que o homem saiba se manter na
finalidade para a qual foi criado” (Lúlio, 2007, 35), as quais encerram com precisão a
apresentação do propósito não simplesmente evangelístico dos seus escritos, como se
fossem meramente proselitistas, mas elevadamente doxológico.
2.3.3 Dialogando com as letras de Raimundo Lúlio
Quando se toma conhecimento da dimensão do preparo intelectual necessário ao
missionário cristão para que o mesmo desempenhe minimamente a contento a sua tarefa
missionária, o estudante do assunto se surpreende com a seriedade com a qual a
missiologia luliana tratava da questão. Este é um alerta necessário à atual igreja protestante
brasileira, pois se por um lado, deve-se se alegrar pelo crescente interesse por missões, por
outro lado, é necessário dosar a euforia com o alerta sobre a real necessidade do devido
preparo dos mensageiros cristãos, os quais deverão ser capazes de dar razão da sua fé,
conforme afirma 1Pe 3.15 no Novo Testamento da Bíblia Sagrada (1993, p. 192).
69
Sobre a humildade necessária antes da “aventura missionária”, Steuernagel diz: “o
movimento missionário que começa a surgir na América Latina precisa ter humildade para
aprender da história. Uma euforia adolescente só prejudica este necessário processo de
aprendizado” (Steuernagel, 1993, p. 183). Em seguida, ele destaca quatro áreas de maior
necessidade de aprendizado, a saber, as quais seguem com comentários do autor deste
trabalho: 1) a questão da cultura, sempre problemática em termos de missões
transculturais; 2) o treinamento missionário, já bem apresentado nesta parte do trabalho, na
perspectiva luliana; 3) a questão da resistência no campo, apontando para a necessidade da
perseverança e da persistência no campo missionário transcultural, pois muitos latinos
desistem e voltam rapidamente do campo missionário frustrados com a escassez dos
resultados esperados; e 4) a questão da fidelidade no sustento, visto que há grande prejuízo
às missões a inconstância dos mantenedores, a Igreja, na tarefa do financiamento da obra
missionária, conforme identifica Steuernagel (1993, p. 183).
Lúlio alerta tanto para a necessidade de preparo acadêmico de qualidade por parte
dos missionários cristãos, quanto demonstra a necessidade de uma incansável produção
argumentativa. As capacidades de estudo e de expressão são essenciais também à formação
dos atuais comunicadores do evangelho. Letras a serviço da missão, resume bem tanto a
vasta obra literária de Lúlio, como também a sua ciência, conhecida como arte, a sua
metafísica e a sua lógica, pois tudo tinha para ele um só propósito e objetivo último: a
missão”, conforme atestam Fidora e Higuera (2001, p. 8).
2.4 O zelo missionário de Raimundo Lúlio
Lúlio propôs aos seus interlocutores demonstra-lhes [a doutrina da
Trindade] “com razões claras, por meio de uma arte até pouco tempo
revelada por Deus, segundo creio, a um ermitão cristão [...] De fato, lhes
demonstraria que a segunda Pessoas (da Santíssima Trindade)
“racionalmente leva a si unida a natureza humana” e nela “muito
razoavelmente” sofreu paixão para redimir aos homens do pecado. Pôs-se,
pois, Raimundo [Lúlio] a pregar, até que um homem, temeroso, segundo
o autor da Vita, de que aquele levaria a ruína a religião deste, o denunciou
ao califa Abu-Hafs Omar I, hafsida que governou Tunis de 1284 a 1295.
O conselho do califa decidiu por maioria condenar o pregador à morte
(Mata, 2006, p. 178).
A disposição de Lúlio para levar o evangelho aos muçulmanos já em idade bastante
avançada, correndo risco de morte, mas esmerando-se por demonstrar como e por que a
obra de Cristo é necessária à salvação revela muito bem o seu zelo missionário.
70
Para se entender a obra de Raimundo Lúlio, precisa-se reconhecer que para o
missionário catalão, assim como para muitos filósofos medievais, as virtus (virtudes) do
trabalho deveriam ser expressões da potência da volição que foi convencida pela razão do
que deve ser feito conseqüentemente ao que se sabe ser verdadeiro, tendo o próprio Deus
como referência, por considerá-lo um ser volitivo, segundo registra Costa (2001, p. 33).
A filosofia cristã de Lúlio produziu mais este belo aspecto da sua missiologia: ela
via que a teologia cristã tinha a necessidade de se expressar através de uma praxis que bem
a refletisse através de atos piedosos, de virtudes que deveriam manifestar valores cristãos,
até como expressão da imagem e semelhança divinas presentes no cristão, pois se Deus faz
todas as coisas santas e justas, segundo o conselho da sua boa vontade, os cristãos
deveriam, necessariamente, expressar através de um sério engajamento prático, a natureza
da sua fé. Essa foi a força motriz poderosa da imensidão do labor missionário de Lúlio, o
qual se passa a estudar agora.
2.4.1 Os valores morais de Raimundo Lúlio
Apesar de facilmente se constatar que Lúlio havia sido um cristão contemplativo
com mui requintada capacidade de abstração filosófica, isso ao invés de inibir a sua
potência prática, parece ter sido precisamente o seu combustível motivacional, pois todo
seu vasto conhecimento e refinado raciocínio não o distanciaram do front de batalha, antes
serviram de reguladores e motivadores internos para o serviço missionário.
Que a ação deve refletir os valores cristãos, Lúlio não tinha dúvida. Através de O
livro da ordem da cavalaria ele não apenas regulava a atuação dos cavaleiros, em cujo
sistema ele cria, mas aplicou esse raciocínio aos demais que compõem a cristandade,
revelando uma cosmovisão essencialmente moral do cristianismo, como se pode perceber
claramente das seguintes palavras de Rubió, analisando o livro da cavalaria citado e o
pensamento subjacente nesta obra e presente na vida de Lúlio:
Llull segue a tradição cavaleiresca quando disse que a honra do cavaleiro
está primeiro com seu Senhor, com o domínio que defende e com os que
nele habitam. Mas também diz, anos depois, que os estudantes e
professores da Universidade de Paris desonram a Deus.
O tema da honra e da ação virtuosa mostrará a relação entre as formas de
atribuir a honra e a desonra tanto a cavaleiros como a clérigos; estudantes
e professores membros de uma faculdade.
(...) [A Arte era] um instrumento geral de conhecimento integrado da
ciência sagrada, uma [argumentação] universal ao tratar de Deus, com a
ciência adquirida pelo intelecto humano. (Rubió, 2001, pp. 82,83).
71
Avaliando a influência da teologia cristã sobre o pensamento luliano e o seu
desdobramento na sua missiologia, que como se viu, tem uma natureza dupla, sendo
conceitual e prática simultaneamente, Jaulent assim se expressa:
Quais são esses dados que a moral luliana recebe da teologia cristã? Em
primeiro lugar, a noção do verdadeiro fim do homem, que é um fim
sobrenatural. Isto porque nas ciências práticas – e a moral é uma delas –
os fins fazem o papel de princípios ordenadores do agir humano.
Em segundo lugar, a noção das condições existenciais em que se encontra
a criatura humana: possuir uma natureza ferida pelo pecado original.
Por último, todas as conclusões teológicas que interessam à ordem
prática: a graça, o organismo sobrenatural das virtudes e dos dons etc.,
serão também utilizados por Lúlio na construção da ciência moral.
(Jaulent, 1989, p. 162)
Destaca-se, ainda destas percepções de Jaulent, duas implicações que, às vezes,
parece fugir à academia cristã, especialmente no campo da Teologia Pastoral, visto que se
encontra no âmbito da ciência moral, que são: a influência do pecado original no exercício
racional de todo homem e a incoerência de se refletir sobre algo prático sem a
predisposição de tornar em ação aquilo que essencialmente está ligado à praxis.
Lúlio novamente surpreende, pois a diversidade das suas atividades, a abrangência
das pessoas abordadas por ele em busca de apoio à causa missionária, a vastidão suas obras
e a extensão geográfica, lingüística e cultural percorrida por ele para a execução pessoal da
obra missionária e a coordenação geral de um vasto projeto neste mesmo sentido, revelam
claramente que Lúlio foi um cristão de ação, não apenas um teórico de missões, mas um
missionário de larga, bem executada e rica experiência prática no campo missionário; o seu
gênio se completa pelo fato de ele ter não apenas unido as qualidades da erudição ao
trabalho prático, mas que a sua atuação não era pragmática, mas sim uma demonstração
concreta daquilo que popularmente é chamado de “colocar a mão na massa”, em resposta
ao que ele acreditava ser o dever missionário da Igreja Cristã.
2.4.2 Missões como expressões da fé cristã
Como se percebe, em Lúlio, filosofia é mãe da ação, ou delimitando mais
precisamente a sua natureza conceitual: a sua teologia produziu a sua missiologia. Se era
grande a percepção luliana quanto ao conteúdo da fé cristã, não foram menores a proposta
e a ação missionárias dela decorrentes.
72
Como já deve ter ficado evidente, para Lúlio seria uma tremenda aberração alguém
se limitar a ser um teórico das missões; o devido entendimento da dimensão da tarefa
reclama uma necessária e urgente resposta. Para o catalão em foco, a sua resposta não se
limitou a traçar esboços de planos, currículos, construções, etc.; enfim, à elaboração teórica
de um projeto missionário, a qual foi feita com qualidade, o que por si só já seria uma
expressão prática do devido entendimento da questão missionária. Contudo, Lúlio
envolveu-se e comprometeu-se pessoalmente Lúlio na atividade missionária, tendo se
preparado para a demanda. Mata comenta que toda a vida de Lúlio fora marcada pela
perseguição de uma jornada missionária de pregações, escritos e viagens que tinham o
propósito de levar à fé cristã os adeptos de outras religiões, estando ciente e até disposto a
morrer nesta tarefa, caso fosse necessário (Mata, 2006, p. 16).
Essas palavras parecem contrastar com a maneira festiva, turística e glamorosa de
algumas atividades chamadas viagens missionárias que ocorrem no meio cristão nacional.
A intenção de Lúlio, o meio utilizado, o risco envolvido, o tipo de oposição encontrada e a
dedicada argumentação evangelística que dominava a pauta das suas viagens revelam o
perfil de uma incursão missionária, que é algo bastante distinto de uma excursão turística
feita por cristãos.
Ainda que um certo turismo religioso tenha o seu lugar no mundo mercantilizado
contemporâneo, fica o questionamento se seria justo elevar tais passeios à condição de
incursões missionárias, pois estas são de natureza e propósito distintos, embora
semelhantes fisicamente e às vezes também próximos na forma como são apresentados. A
propriedade destas qualificações deveria observar o conjunto da obra de cada uma dessas
atividades, posto que revela a coerência com a devida dignidade do discurso missionário.
O preço e o risco envolvidos nas incursões missionárias lulianas revelam a
dignidade da sua natureza, pois como indica Costa, em virtude do desejo de ver crescer a fé
cristã através da conversão dos povos não cristãos, bárbaros, muçulmanos sarracenos e
outros gentios, Lúlio estava absolutamente consciente do risco envolvido e entendia ser
necessário estar preparado para o martírio, pois este, inclusive e juntamente com a
grandeza da demonstração pessoal de caridade, poderia ser o instrumento usado por Deus
para atrair a Cristo e à composição da cristandade, todo o mundo (Costa, 2006, p. 20).
Um solene alerta é dado aqui no foco essencial destas incursões missionárias, pois o
alvo é efetivamente a conversão do outro, estando o missionário disposto a pagar com a
própria vida nesta tarefa, o que de fato, deve ter ocorrido com Lúlio, pois ele enxergava no
martírio cristão – o que não é nunca a retirada deliberada da própria vida, mas a disposição
73
para permanecer fiel no cumprimento do anúncio do Evangelho, mesmo que isto lhe custe
a própria vida – um recurso da graça divina para impactar os gentios com a dimensão do
valor que o evangelho tem para os que nele crêem, na expectativa de que tal testemunho
reflita a glória do seu conteúdo e atraia a séria atenção da pretendida audiência.
No início do Livro das Bestas, de Raimundo Lúlio, já apresenta um quadro de
monges andarilhos missionários que refletem o entendimento luliano do relacionamento
estreito entre a fé cristã e a sua essencial vocação proclamadora, em simplicidade e árdua
dedicação neste exercício, como se percebe a partir deste breve diálogo entre Felix e o
grupo peregrino, personagens da fábula literária citada:
– Belos senhores, disse Félix, de onde vindes? De qual ordem sois?
Porque, segundo vossas vestimentas, parece-me que sois de alguma
ordem.
– Senhor, disseram os homens, nós viemos de terras distantes e passamos
por uma planície próxima daqui. Naquela planície há um grande encontro
de bestas selvagens que desejam eleger um rei. Nós somos chamados de a
Ordem dos Apóstolos, e nossas vestimentas e pobreza significam a
conduta que os apóstolos tinham enquanto viveram neste mundo (Lúlio,
2006, p. 31).
Além da natural identificação de Lúlio com a filosofia das ordens mendicantes,
destaca-se aqui outra característica destas ordens, pois eram também predicantes,
essencialmente missionárias, apegadas ao anúncio do evangelho. Esse desapego à vida
frívola se elevava a níveis de incômodo com a vida terrenal, tal anseio pela glória celestial
está presente nos diversos escritos de Lúlio, que apesar disto não assumia nem defendia a
postura de um eremita. O mundo era visto como uma prisão e a percepção de estar no
cárcere era decorrente do anseio pela parousia (Reino de Deus) por vir. Estes sentimentos
e percepções estão ricamente ilustrados na conclusão do Livro do amigo e do amado, de
Lúlio, que assim afirma:
365. – Dize, louco de amor: Que coisa é este mundo?
– Cárcere dos que amam, dos que servem meu Amado.
– E quem os põe na prisão?
– Sua consciência, seu amor, seu temor, sua renúncia, sua contrição e a
companhia de gente má. E este mundo é trabalho sem galardão, lugar de
reparação (Lúlio, 1989, p. 129)
Absolutamente distinto da Teologia da Prosperidade, Lúlio não esperava nenhuma
recompensa terrena, no tempo nem na essência.
74
2.4.3 Dialogando com o zelo missionário de Raimundo Lúlio
A juventude protestante brasileira deveria considerar seriamente a possibilidade de
usar recursos e facilidades disponíveis em prol da atuação missionária entre povos não
alcançados, especialmente entre os muçulmanos. As famílias cristãs, as agências
missionárias e as denominações protestantes nacionais estabelecidas – e também os seus
pastores – deveriam ouvir o seguinte alerta de Gasca, relativo aos motivos de serem poucos
e majoritariamente mal sucedidos os missionários latino-americanos enviados à
evangelização de muçulmanos:
Muitas instituições não elaboram nenhuma pesquisa para fazer um
treinamento adequado, com o objetivo de fazer missões em grupos de
diferentes culturas e idiomas. A maioria dos países da América Latina é
multi-cultural e pluri-ligüísta. A capacitação atual não dá alternativas
para que o pastor trabalhe num campo mais amplo, ainda que dentro do
seu país. Não inclui um treinamento prático que possa ser útil ao trabalho
e à vida em outras nações. (Gasca, 1993, p. 113).
Além de Gasca, outro palestrante, identificado como M. M. M., destacou cinco
responsabilidades dos obreiros cristãos que quisessem ser bem sucedidos como
missionários entre os muçulmanos atualmente em países islâmicos: 1) estudar
intensamente a Bíblia e a sua doutrina, mais do que o Corão; 2) estudar apologética,
focando-se nos pontos comuns de dúvida entre os muçulmanos; 3) estudar sobre
aconselhamento, pois o trabalho missionário traz uma relação pessoal com o cristão e
revela uma série de problemas pessoais para os quais o missionário deve apresentar
respostas bíblicas; 4) exercer legítima e verdadeiramente uma ocupação profissional, pois
além de desviar a desconfiança, atrai credibilidade ao estrangeiro; e 5) o mais importante,
“começar o seu ministério entre os muçulmanos que vivem no seu próprio país”, pois não
existe outra forma, aprende-se a evangelizar muçulmanos, evangelizando-se muçulmanos
(MMM., 1993, p. 80,81).
Embora relacionado à questão do preparo, estas orientações reclamam ação urgente
e zelosa por parte dos interessados em realizar a obra missionária entre os muçulmanos. A
História da Igreja tem inúmeros exemplos de dedicação que podem servir de inspiração
para os atuais desejosos de realizar a obra missionária, não apenas entre os muçulmanos,
mas entre todos os povos ainda não-alcançados.
Steuernagel faz uma apropriada advertência sobre a maneira mais adequada para os
cristãos atuais se aproximarem dos exemplos históricos de atuação missionária concreta já
75
realizada; o que ele afirma em sua obra acerca dos exemplos considerados, também são
válidos à avaliação e à aproximação da atuação missionária de Lúlio. Destaca-se da
referida advertência a seguinte observação:
toda prática missionária na qual viermos a nos envolver será sempre
instrumental. Todo objetivo missionário que viermos a elaborar, bem
como toda retaguarda, institucional ou não, que viermos a estabelecer,
será secundário e deverá estar a serviço da Missio Dei e submeter-se aos
critérios desta. Como diz Paul Hiebert, ‘Missão é, antes de tudo, não o
que nós fazemos, mas o que Deus faz’. (Steuernagel, 1993, p. 173).
A tarefa que se tem a realizar é grandiosa. Parece que olhando ao redor não se
encontra modelos de inspiração pessoal aos interessados em realizar atualmente a obra
missionária, embora existam alguns. Lúlio, apesar de estar há quase mil anos de distância
da cristandade atual, pode ser um modelo de zelo e entendimento combinados no serviço
missionário.
Ao se considerar os contextos histórico, cultural, religioso e social nos quais o
referido missionário atuou buscando alcançar os islâmicos para a fé cristã, percebe-se que
o seu trabalho ultrapassou os limites circunstanciais da sua época e pode ser visto como um
verdadeiro paradigma histórico compatível com a prática missionária cristã em geral.
Esta pesquisa procura apresentar a missiologia luliana a partir da sua visão
essencialmente evangélica, pois segundo Tucker, quando Lúlio teve oportunidade de
defender o cristianismo, ele estabeleceu uma posição doutrinária “ortodoxa e evangélica
por completo” com “pouca teologia medieval e ... um mínimo de idéias romanas”, de tal
maneira que os princípios básicos de seu argumento continuam plenamente válidos hoje
num debate com muçulmanos, afirma Tucker (1996, p. 55).
A relevância da missiologia de Raimundo Lúlio para a missiologia cristã
contemporânea é percebida através da proposta de envolvimento pessoal intenso de Lúlio
nesta causa, fruto da sua visão de que é imperativa à Igreja a ordem de Cristo de que se
faça discípulos seus de entre todas as nações; e para isto, Lúlio compreendeu que a Igreja
deveria se empenhar devidamente no preciso e vasto preparo dos seus missionários,
capacitando-os para bem compreender a sua própria fé cristã, o pensamento humano
universal, a cultura do povo a quem se pretende alcançar, assim como a capacidade de se
expressar devidamente na língua nativa dos não cristãos, visando alcançá-los para a fé
cristã através da persuasão argumentativa capaz, adornada pela própria vida piedosa e
engajada nesta tarefa.
76
Três elementos são centrais e essenciais na missiologia luliana: 1) a necessidade de
uma compreensão rigorosa da linguagem do povo a ser alcançado, por entender que
somente com tal compreensão da linguagem e da cultura do povo a quem se pretende
alcançar, é que se consegue transmitir devidamente a mensagem cristã; 2) o esforço por
produzir literatura capaz de demonstrar racionalmente a fé cristã ao povo que se pretende
alcançar, por entender que a conversão espiritual se dá através da persuasão racional da
alma, o que expressa a sua convicção da superioridade racional do cristianismo, em virtude
de ser tido por ele como a verdade; e 3) o oferecimento de um testemunho fiel e corajoso
perante o povo a ser alcançado, pois Lúlio compreendia que a verdade do cristianismo e a
seriedade da sua mensagem reclamavam uma atuação missionária engajada, o que serviria
de eloqüente testemunho do seu próprio conteúdo.
A relevância dos escritos e do conhecimento sobre Lúlio é grandiosa, enfatiza
Jaulent, assim elevando-os a um nível muito superior ao que lhes tem sido indicado:
“Lúlio, na verdade, tem sido muito pouco estudado ainda. No dia em que for mais bem
conhecido, não resta dúvida que a crítica lírica e a teologia mística e colocarão ao lado de
São Boaventura, o príncipe da teologia contemplativa” (Jaulent, 1989, p. 39). A vastidão
da obra de Lúlio é um universo ainda a ser desvendado na academia de língua portuguesa,
pois os seus escritos revelam uma grandiosidade potencial não devidamente pesquisado,
portanto, ainda desconhecido.
Mesmo discordando da ideologia política implícita de Armstrong em sua obra Islã, a
sua seguinte observação é digna da última citação deste trabalho: “Para os ocidentais,
nunca foi mais importante fazer uma apreciação justa e compreensiva do Islã. O mundo
mudou em 11 de setembro. Agora nos damos conta de que nós, habitantes dos
privilegiados países ocidentais, não podemos mais pretender que os acontecimentos que se
passam no resto do mundo não são da nossa conta.”, comenta Armstrong (2001, p. 249).
De fato, o referido atentado terrorista trouxe o mundo árabe e a fé islâmica para a pauta de
discussão no Ocidente; e neste sentido, o estudo sobre a missiologia de Raimundo Lúlio se
mostra mais uma vez relevante e necessário.
77
DEBATENDO CRUZADA E MISSÃO EM RAIMUNDO LÚLIO
O que se diz das interpretações forçosas acerca das medidas políticoprudenciais do papado medieval e dos Concílios no tocante às Cruzadas
serve, igualmente, para Lúlio, incensado por boa parte da historiografia
como precursor disto que hoje está consagrado pela Hierarquia
eclesiástica como “diálogo inter-religioso”. [Em três das suas obras,]
Lúlio mostra um ímpeto cruzadístico impressionante [...] ao falar ao Papa
da necessidade de empreender uma luta permanente contra os sarracenos;
ao afirmar que “os anjos do Paraíso e os santos desejam que a Terra
Santa e outras terras que os infiéis tomaram dos latinos sejam
recuperadas [...] (Silveira, 2009, p. VI).
De toda a visão panoramicamente passada sobre a missiologia luliana, o presente
capítulo se debruça sobre duas questões pinçadas como essenciais para a compreensão da
contribuição de Raimundo Lúlio para as missões cristãs entre os muçulmanos, as suas
propostas para a realização das cruzadas e para a realização de um diálogo inter-religioso.
Aparentemente contraditórias; e trazendo consigo opiniões também contraditórias sobre a
intrincada relação de Lúlio com as cruzadas, este terceiro e último capítulo da presente
pesquisa concentra-se na exposição um pouco mais esmiuçada destas duas questões,
essenciais à compreensão do próprio Raimundo Lúlio, da sua proposta missionária, e
conseqüentemente, da sua real contribuição às missões cristãs aos muçulmanos.
3.1 As cruzadas cristãs e os muçulmanos
Na véspera do segundo milênio cristão, os cruzados massacraram cerca
de trinta mil judeus e muçulmanos em Jerusalém, transformando a
florescente cidade santa islâmica numa fétida câmara mortuária. Durante
pelo menos cinco meses, os vales e fossos ao redor da cidade ficaram
cheios de corpos em putrefação, numerosos demais para o pequeno
número de cruzados que permaneceu para trás depois da expedição para
eliminar a sujeira, e um fedor pairou sobre Jerusalém, onde as três
religiões de Abraão tinham sido capazes de coexistir em relativa
harmonia sob o domínio islâmico por quase quinhentos anos. Essa foi a
primeira experiência dos muçulmanos com o Ocidente cristão, enquanto
este se erguia da era escura que o envolvera depois do colapso do
império romano no século V, e lutava para voltar à cena internacional.
(Armstrong, 2001, p. 236).
De fato, é preciso se reconhecer não apenas as atrocidades cometidas pelos
cruzados durante a execução da sua jihad, mas também todos os demais malefícios que a
empreitada deles trouxe. No entanto, Silveira faz um alerta importante sobre os riscos de se
cair em uma crítica histórica sem o devido conhecimento da natureza e dos elementos que
78
compõem a complexidade das cruzadas, cuja tendência na história revisionista é apresentar
outras caricaturas, agora associadas aos cristãos cruzados, e não mais aos muçulmanos,
como se fazia naqueles dias. Vale a pena ler a seguinte crítica à história revisionista
contemporânea:
O mesmo Saladino, incensado no filme Cruzada (Kingdom os Heaven,
2005) como um homem tolerante e respeitoso para com o Cristianismo,
na cena final pega um crucifixo caído no chão. A imagem sugere
claramente que ele terá em seu futuro governo na cidade de Jerusalém
uma atitude de respeito – coisa que os cristãos não teriam tido
anteriormente. Mentira histórica: Saladino destruiu todas as Igrejas da
cidade, erguendo mesquitas em seu lugar (Silveira, 2009, p. XIII).
Esta citação já posiciona o leitor diante da dimensão do conflito que está por trás
das cruzadas, particularmente quanto à relação entre os cristãos e os muçulmanos e como
isto afetou, assim como foi interpretado por Lúlio em seus dias. O envolvimento que este
teve no projeto cruzadista da realeza dos seus dias e a relação entre o seu apoio às cruzadas
e a sua proposta missionária e/ou de diálogo inter-religioso são temas dos mais profundos
debates e polêmicas relacionadas ao personagem aqui em estudo, por isso esta pesquisa
dedica-se agora a explorar um pouco melhor o tema das cruzadas, encerrando este capítulo
final discutindo a percepção de Lúlio a respeito da mesma.
Antes de ser elemento essencial para a compreensão da proposta missionária de
Raimundo Lúlio, as cruzadas foram acima de tudo algo determinante para a formatação
não apenas das relações entre cristãos e muçulmanos, mas além disso para a construção do
mundo como se conhece hoje, conforme atesta Runciman nas seguintes palavras sobre a
relevância das cruzadas para a civilização: “as Cruzadas constituem um fato histórico
crucial da história da Idade Média. Antes de terem início, o centro da nossa civilização
situava-se em Bizâncio e nas terras do califado árabe. Antes de chegarem ao fim, a
hegemonia da civilização passara às mãos da Europa Ocidental. Foi dessa transferência
que nasceu a história moderna” (Runciman, 2003a, p. 11).
Percebe-se, portanto, que independente dos erros cometidos pelos cruzados, entre as
quais não se pode esquecer das atrocidades destes já citadas na referência que abre este
capítulo da pesquisa, as cruzadas foram um evento histórico de alcance muito maior do que
as questões religiosas envolvidas. No entanto, no que tange as relações entre cristãos e
muçulmanos, qual a importância e impacto que se deve considerar delas conseqüentes?
79
3.1.1 A origem das cruzadas
Como começaram as cruzadas? Se ao se buscar responder a esta pergunta está-se
procurando saber não qual foi a primeira cruzada como tal, mas sim qual teria sido o
gérmen de um grande deslocamento geográfico com propósito religioso, então as cruzadas
remontam às antigas peregrinações religiosas a lugares tidos como sacros pela cristandade.
As peregrinações que desde o século IV foram se tornando cada vez mais populares
entre os cristãos tinham como um dos destinos prediletos à chamada Terra Santa, ou seja,
os lugares onde se deram os fatos descritos nos evangelhos relativos a Cristo. O trânsito de
peregrinos, muitos deles europeus, que viam nesta longa jornada até a região da Palestina
uma maneira de expurgar os próprios pecados foi tolerado até mesmo quando os árabes
tomaram os lugares sagrados cristãos. No entanto quando o controle da região foi sendo
dividido entre turcos e árabes, o seu cenário foi ficando tenso e as peregrinações perigosas,
o que provocou em alguns peregrinos o anseio pelo martírio durante a peregrinação, mas
em outros provocou o desejo de proteção frente aos perigos. Desta forma, “houve
peregrinações que pareciam ser pequenos exércitos. E nelas encontramos algumas raízes
das cruzadas”, afirma Gonzalez (1986, pp. 48-50).
Não foram poucas as peregrinações, nem poucos os peregrinos, o aumento deste
tipo de interesse já ocorrera no século VIII, com peregrinos vindo até mesmo da Inglaterra,
segundo afirma Runciman (2003a, p. 50). No entanto, não eram cruzadas.
O nascimento das cruzadas como tal não foi assim percebido por aqueles que dela
tomaram parte, mas é assim identificada nas seguintes palavras de Fletcher:
Dede tempos imemoriais havia sido política romano-bizantina contratar
tropas mercenárias estrangeiras. Podiam ser bandos sob o comando de
um líder próprio com contrato temporário ou contingentes permanentes
sob estreito controle imperial, como a famosa Guarda Varegue recrutada
da Escandinávia e da Inglaterra. De modo que, quando o imperador
Alexius I despachou enviados para o papa Urbano II, em 1095, em busca
de divulgação para um pedido de ajuda militar, ele não estava fazendo
nada de novo ou fora do comum. Temos uma idéia razoavelmente boa do
tipo de resposta que ele esperava: forças militares organizadas, formadas
por guerreiros bem armados e disciplinados, que podiam ser empregadas
para tarefa militares específicas sob o comando de seus generais. Nesse
caso, o que ele conseguiu foi uma multidão de guerreiros entusiasmados,
mas na maior parte sem instrução, resistentes ao controle imperial, que
atravessaram desordenadamente seus territórios e seguiram aos trancos e
barrancos até a Síria e a Palestina, onde tomaram Jerusalém, em julho de
1099. Nós chamamos isso de Primeira Cruzada, mas os participantes, é
claro, não. Eles não podiam ter idéia de que tomavam parte em uma
operação que seria a primeira de uma série (Fletcher, 2004, pp. 86,87).
80
O grupo entusiasta, ao invés de um exército disciplinado, que chegou à Terra Santa,
por onde passou deixou um rastro de saques, acentuando o abismo entre os cristãos
orientais e ocidentais, mas acabaram sendo seguidos por outros grupos de nobres que
melhor elaboraram as próximas frentes. O grupo pioneiro saiu insuflado pelo sermão
proferido pelo papa Urbano no concílio de Clermont, na França; sob a promessa de
indulgência plena de pecados a quem morresse na jornada, a orbe fanática saiu
ensandecida, despreparada militarmente e sem provisões rumo à Terra Santa, sob os gritos
de “Deus o quer!” e tendo alimentada a fantasia por pregadores populares como Pedro, o
Ermitão, segundo Gonzalez (1986, pp. 50-53).
Referindo-se àquele sermão do papa Urbano que teria estimulado a participação dos
seus ouvintes na primeira cruzada, afirma Fletcher:
está razoavelmente claro que ele proclamou que os participantes de uma
peregrinação armada a Jerusalém não só levariam auxílio aos seus irmãos
cristãos do Oriente, mas também adquiririam mérito espiritual e
conquistariam para si um lugar no paraíso. Não era novidade falar-se em
peregrinações, guerras santas, ameaças à cristandade e na santidade
sagrada de Jerusalém: o que o papa fez foi amarrá-la todas juntas de tal
maneira que se tornassem irresistíveis à pouco sofisticada devoção da
nobreza européia do Ocidente (Fletcher, 2004, p. 87).
Embora muitos queiram isentar Lúlio de quaisquer visões cruzadistas, não há como
negar que havia nele sim muito desta visão tipicamente medieval sobre as cruzadas, mas
com consideráveis distinções do pensamento predominante nos seus dias, como se verá
adiante nesta pesquisa.
3.1.2 A natureza das cruzadas
Uma justa compreensão das cruzadas passa necessariamente por uma correta
compreensão da sua natureza; logo, a pergunta que se levanta é: definitivamente, o que
foram as cruzadas? Como entender um exército armado marchando em nome de Cristo em
direção a grupos de pessoas que professassem um credo distinto do seu, carregando
consigo tanto espadas, como imagens da cruz de Cristo, as quais deveriam ser fundidas
uma na outra, para lembrar ao cavaleiro da sua tarefa como o desempenho de um ofício
sagrado, segundo Lúlio? (2000, p. 77).
Não apenas o papa Urbano esteve associado ao estímulo às Cruzadas, mas também
o papa Gregório XIII, o qual louvou a participação dos cristãos armênios na “Grande
Cruzada da Cristandade”, identificada pelo pontífice como as “santas guerras” dos cristãos,
81
segundo Alem (1961, pp. 37,38). Desta forma, delineiam-se as Cruzadas como um
empreendimento que, embora exercido como uma atividade de conotação e vocação
religiosa, era essencialmente bélica e política, um poderio militar para inicialmente a
resolução de conflitos de posses de terra e reconquista de territórios outrora sob o domínio
cristão, embora posteriormente as Cruzadas tivessem sido usadas também para pressionar,
perseguir, sufocar e até mesmo executar grupos tidos como heréticos, como ocorreu com a
Cruzada contra os albingenses, ordenada pelo não inocente papa Inocêncio III, a qual em
1209 executou cristãos tanto albingenses, quanto ortodoxos no sul da França, segundo
narra Gonzalez (1986, p. 83).
Ainda que muitos cristãos comuns tenham visto e outros continuem vendo as
Cruzadas como “guerras missionárias”, elas deveriam mesmo ser vistas simplesmente
como uma ação militar, pois o papa Urbano II não pretendia a conversão dos muçulmanos,
pois “o islamismo constituía, antes, uma ameaça que precisava ser aniquilada antes que
suplantasse a igreja”, explica Bosch (2002, p. 277).
As Cruzadas foram uma campanha de pessoas de vindas de várias nações européias
em direção ao estrangeiro numa trágica loucura em nome de Deus; e delas, deve-se ficar
com a grande lição de que boa vontade e disposição sacrificial não podem “substituir uma
clara compreensão da” vontade de Deus, segundo Winter e Howthorne (1987a, p. 179).
O que as Cruzadas foram é um empreendimento cívico-religioso-militar violento
essencialmente de retomada de terras por parte dos cristãos, sob a convicção de se estar no
direito sagrado e com a bênção divina neste empreendimento de reconquista. Esta visão
revela uma nítida imagem predominante na Idade Média de uma sociedade modelar
teocrática, a Cristandade, a qual dominava o ideário de Lúlio para o mundo, como se
verificará mais adiante nesta pesquisa.
3.1.3 As conseqüências das cruzadas
Empreendimentos da envergadura das Cruzadas deixam marcas profundas, o que de
fato aconteceu. As Cruzadas trouxeram variadas conseqüências, como se pôde verificar já
na abertura deste capítulo. Se positivamente Gonzalez destaca o aquecimento econômico –
com o intercâmbio mais amplo dos países europeus com os do Oriente e o crescimento das
cidades – e também o enriquecimento cultural europeu, oriundo do contato com os
diversos saberes desenvolvidos pelos muçulmanos, como a filosofia, a arquitetura, a
literatura e a matemática, especialmente na Espanha, devido à longa ocupação moura
(Gonzalez, 1986, p. 83), negativamente ele apresenta assim as Cruzadas:
82
De todos os ideais elevados que cativaram o espírito da época, nenhum
foi tão avassalador, tão dramático, nem tão contraditório como o das
cruzadas. Durante vários séculos a Europa ocidental derramou seu fervor
e seu sangue em uma série de expedições cujos resultados foram, nos
melhores casos, de pouca duração; e nos piores casos trágicos (Gonzalez,
1986, p. 47).
A última tentativa de se empreender uma Cruzada ilustra em si mesma o declínio
absoluto que este empreendimento experimentara. Tendo sido conclamada por um papa
moribundo, Pio II, contra os turcos, esta Cruzada foi perdendo todo o apoio que
inicialmente parecia ter conseguido, embora tivesse o próprio papa assumido a cruz na
Basílica de São Pedro, apesar de moribundo; ele anunciara com valentia em 18 de julho de
1464 d.C. que lideraria uma esquadra de galeras a partir de Ancona, apesar da sua saúde
precária, mas ele acabou vendo-se sendo abandonado por todos os que lhe prometeram
companhia e financiamento ao longo dos dias que se seguiram e na própria jornada ao
porto, vindo por fim ele mesmo a expirar em 14 de agosto, tendo ainda sido poupado da
notícia do fracasso da sua empreitada, conforme comenta assim Runciman:
Quase quatro séculos antes, a pregação do Papa Urbano II induzira
milhares de homens a arriscarem suas vidas na Guerra Santa. Agora, tudo
que um papa que assumiu a Cruz conseguiu obter foi um punhado de
mercenários que abandonaram a causa antes mesmo que a campanha
tivesse início. O espírito cruzado chegara ao fim (Runciman, 2003b, p.
405).
Focando a visão nas razões histórico-geográficas das Cruzadas e da Reconquista,
Silveira as identifica e concentra a sua avaliação das mesmas como uma reação de
retomada e resposta militar às cruéis ações iniciais dos muçulmanos quando em choque
com os cristãos, como ocorreu na invasão da península Ibérica. Assim expressa Silveira:
“[...] sobre as Cruzadas, assim como acerca da reconquista da península Ibérica pelos
cristãos. Nos dois casos, tratou-se de uma luta de retomada das terras violentamente
açambarcadas pelos muçulmanos, muitas vezes à custa de verdadeiras carnificinas”
(Silveira, 2009, pp. XII).
Esta não deixa de ser uma maneira corajosa de historiografar tais episódios nestes
dias já denunciados de revisionismo. O autor denuncia ainda a crueldade do atualmente
ovacionado Saladino quando este tomou novamente Jerusalém dos cristãos depois do curto
83
sucesso da ocupação cruzada. Tal denúncia do suposto tão somente nobre sultão, que teria
sido registrada pelo seu próprio secretário, assim se inicia, segundo Silveira:
Na segunda-feira, dia 27 do mês de rabi 2 [6 de julho], dois dias após a
vitória, [o sultão] mandou trazer os templários e hospitalários cativos e
declarou: ‘Purificarei a terra dessas duas ordens imundas’. Dava
cinqüenta dinares a quem quer que apresentasse um templário ou um
hospitalário cativo. Logo os soldados apresentaram centenas (...)
Ordenou que fossem decapitados, preferindo matá-los a reduzi-los à
escravidão. Havia junto a ele um grupo de doutores e místicos, certo
número de pessoas devotadas à castidade e à renúncia. Cada uma delas
pediu o favor de executar um prisioneiro, desembainhou seu sabre e
descobriu o antebraço. O sultão estava sentado; seu rosto estava radiante,
enquanto aqueles dos fiéis estavam sombrios [...] (Silveira, 2009, pp.
XII,XIII).
De certo, é necessário um juízo cuidadoso sobre as Cruzadas, e não apenas sobre as
suas conseqüências, que realmente acentuaram a já tensa relação entre cristãos e islâmicos,
mas também é necessário um olhar mais crítico ao revisionismo histórico que tende a cair
na tentação oposta de tão somente vilanizar os cristãos e inocentar os islâmicos. Por hora
conclui-se que mesmo tendo sido um empreendimento sócio-militar as Cruzadas deixaram
conseqüências de alcance universais, estendendo-se para muito além da relação interreligiosa, mas afetando os rumos da economia, da cultura e contato entre as civilizações
ocidental e oriental. As cruzadas deram um novo rumo especialmente à história da Europa.
3.1.4 As cruzadas para os muçulmanos
É mais comum a idéia e que as Cruzadas foram ofensivas aos muçulmanos. No
entanto, o estudo deste episódio e do seu significado para os seguidores do Islã requer mais
luz, pois há muitas diferenças de percepções entre o Ocidente e o Oriente.
Neill defende a idéia de que as cruzadas afetaram especialmente a relação entre os
cristãos e os muçulmanos devido à ampla memória histórica típica dos povos do Oriente,
daí haver ainda hoje resistência à mensagem do Príncipe da Paz, pois para “cada
muçulmano das terras mediterrâneas, os cruzados são um acontecimento de ontem e as
feridas estão prontas a abrirem-se de um momento para outro” (Neill, 1997, pp. 116,117).
Alguns historiadores caminham no sentido oposto, defendendo a idéia de que houve
“indiferença do mundo islâmico medieval às Cruzadas” e esta reação apenas expressava-se
como uma parte integrante da indiferença comum do Islã para com a Cristandade,
conforme propõe Fletcher (2004, p. 93).
84
Além de se verificar a opinião dos historiadores sobre a percepção das Cruzadas por
parte dos muçulmanos, é importante ir em busca do registro de compreensões que os
próprios islâmicos fazem sobre este assunto. Sendo assim, dá-se para perceber a partir da
leitura do registro de um muçulmano que eles se vêem tanto como vítimas da Cruzada da
Reconquista, como interpretam tal episódio como uma tentativa violenta de convertê-los ao
Cristianismo, numa empreitada que também demonstrava a insensibilidade cultural
daqueles cristãos, conforme assim se pode verificar do seguinte registro de Hammidulah:
As ruínas da arquitetura muçulmana, ainda encontradas na Península
Ibérica, mostram o progresso espantoso que foi alcançado nesse campo.
Após a queda política, os muçulmanos foram vítimas de sangrentas
perseguições, visando convertê-los ao cristianismo, com uma destruição
em massa de suas bibliotecas com as quais se perderam centenas de
milhares de manuscritos, queimados quando a imprensa ainda não tinha
se projetado. A perda foi irreparável (1990, p. 287).
De fato, tais palavras indicam precisamente que a leitura feita pelos muçulmanos do
episódio das Cruzadas é a pior possível, na contramão daquilo que aqui se está tentando
demonstrar como verdadeiro. Mas, não esconderia esta narrativa outros fatores além dos
histórico-culturais que temos considerado?
Apresentando uma avaliação peculiar sobre um aparente interesse mais recente dos
muçulmanos sobre as Cruzadas, destaca-se as seguintes palavras de Armstrong:
As Cruzadas foram acontecimentos desastrosos, mas formativos na
história ocidental; elas foram desastrosas para os muçulmanos do Oriente
Próximo, mas para a grande maioria de muçulmanos do Iraque, Irã, Ásia
Central, Malásia, Afeganistão e Índia, elas representaram apenas remotos
incidentes de fronteiras. Somente no século XX, é que os historiadores
muçulmanos iriam se preocupar com as Cruzadas medievais, recordando
com nostalgia o vitorioso Saladino e ansiando por um líder que fosse
capaz de conter a nova Cruzada do imperialismo ocidental (2001, pp.
142,143).
Com estas palavras, Armstrong ressalta não apenas o poder aqui já comentado da
memória coletiva dos povos do Oriente, mas acima de tudo, a tensão que se vive entre a
hegemonia do Ocidente nos âmbitos da produção de riquezas, de tecnologia e do poder de
fogo mundial, o que alimenta uma tensão atual entre as duas civilizações.
As Cruzadas afetaram especialmente as relações entre os cristãos e os muçulmanos,
pois embora estes tivessem no passado ocupado as terras que nas Cruzadas os cristãos
estavam reclamando de volta, houve muita resistência da parte dos islâmicos e também
85
crueldade da parte dos cristãos. Os muçulmanos viram-se, de fato, como vítimas desta
empreitada e tendem a cultivar esta memória especialmente nestes dias, diante da
hegemonia de uma nação ocidental, tida como cristã, e historicamente associada a um
sacro destino manifesto cristão. Independente dos méritos ou deméritos de cristãos ou
muçulmanos nas Cruzadas, é necessária a sensibilidade para com a percepção islâmica
deste importante episódio histórico e sua valorização da parte dos adeptos do Islã.
3.2 As cruzadas para Raimundo Lúlio
As obras dedicadas à cruzada são um espelho fiel da ambigüidade e dos
mal-entendidos a que ela deu lugar. É evidente que essa sobrecarga
ideológica já pertencente à história cruzada, embora nada tenha a ver
com as cruzadas nem com os que, como Lúlio, no século XIII falavam
dela. [...]
[...] O que Lúlio entende por cruzada pode estar (e está amiúde) em clara
oposição ao que seu intérprete entende. O resultado de tal análise
interpretativa é evidentemente absurdo, pois não tenta compreender o
autor, mas ajustá-lo à interpretação preconcebida pelo intérprete
(Reboiras, 2009, p. XXVII).
De fato, é muito difícil ao cidadão moderno ter uma interpretação das cruzadas
distinta daquela que apresenta os cruzados como um grupo de ignorantes, muitos dos quais
nobres, que em nome de uma fé cega em Deus e no poder da espada, se lançaram contra
muçulmanos numa busca desenfreada de retomar à força da espada as chamadas Terras
Santas; depois estendidas para a reconquista das demais terras ocupadas pelos muçulmanos
e até mesmo contra grupos julgados como heréticos, o movimento das cruzadas acabou por
ter a sua imagem associada à imposição da fé pela força, mas como, então se deve entender
o apoio, estímulo e até dicas de guerra cruzada que o personagem em estudo, conhecido
pela sua proposta de diálogo inter-religioso, fez? Esta parte da pesquisa, depois de ter
ambientado o leitor no universo das cruzadas, procura mostrar qual a visão que Raimundo
Lúlio tinha das cruzadas, e assim, elucidar a razão do seu apoio às mesmas.
3.2.1 A natureza militar das cruzadas para Lúlio
Considerando o fato de que os primeiros livros editados em português sobre
Raimundo Lúlio, assim como a maioria das referências a ele em manuais de história da
Igreja tendem a fazer referências às quase que incontestáveis contribuições positivas e
vanguardistas de Raimundo Lúlio, os primeiros contatos com as suas propostas cruzadistas
pode causar além de estranheza, um certo desconforto, para não dizer decepção. No
86
entanto, ao se estudar as suas propostas dentro dos seu contexto histórico, conforme foi
apresentado objetivamente no primeiro tópico deste capítulo, fica-se mais fácil perceber
como ao mesmo tempo Lúlio pode ser apresentado como um missionário de vanguarda,
um verdadeiro modelo a ser seguido, mas também um defensor das cruzadas. Inicie-se
pelas suas próprias proposições.
Lúlio defendia a idéia da unificação de todas as ordens cruzadas em uma única
ordem e sob um único chefe, um rei cruzado; tais propostas deveriam promover um maior
controle dos abusos dos cruzados, promovendo também nestes um maior senso de
responsabilidade, ao apelar-se à vocação cavaleiresca. Assim propõe Lúlio:
O senhor papa e os senhores cardeais instituirão e ordenarão uma ordem
nobre, que será denominada Ordem da Milícia. O cabeça, mestre e
senhor desta ordem será chamado rei guerreiro. Será chamado
“guerreiro” como o requer a matéria desta distinção; “rei”, porque será o
cabeça da milícia e porque lhe será dado um reino. Se for possível, que
lhe seja dado o reino de Jerusalém.
É justo que seja assim, porque este rei terá um cargo mais nobre que o de
qualquer outro rei deste mundo, e porque a intenção principal deste rei
guerreiro será conquistar Jerusalém. Se inicialmente não lhe for possível
dar este reino, por ora lhe será dado outro reino, que seja possível
conquistar. Por isso, este rei guerreiro há de ser filho de um rei, tanto
pela honra do cargo que assumirá quanto para que as outras ordens
militares sejam colocadas às suas ordens de bom grado. Assim, quando
morrer este rei guerreiro, filho de rei, será eleito outro em seu lugar, filho
de rei igualmente. Assim se estabelecerá a sucessão.
Mais ainda: o senhor papa, com os senhores cardeais, ordenarão e criarão
uma só Ordem da Milícia, que mencionamos acima, formada da união
das Ordens do Templo, do Hospital, dos Alemães, de Uclés, de Calatrava
e de todas as outras ordens militares (Lúlio, 2009, pp. 63,65).
Tal proposta de Raimundo Lúlio revela a visão tipicamente medieval de teocracia,
reveste-se da crença de que a Terra Santa é um direito legítimo à Cristandade, de que a
cavalaria é uma realidade militar de natureza vocacional religiosa, visto que comandada
por um rei constituído pela Igreja, com sucessão também pela via eclesiástica. Tal ordem,
que não veio a ser criada, teria poderes incomparáveis, posto que estariam as cavalarias
unidas em um só exército religioso, o que deveria concentrar as forças, coibir as tensões
entre as mesmas, posto que unidas e demovê-las de atuações mais arbitrárias, visto que não
estariam a disposição de quaisquer reinos, nem reis.
Se inicialmente estranha-se a proposta luliana, ao se avaliá-la pode-se concluir que
ela é educativa e visando maior eficiência e melhor padrão da conduta dos cruzados, posto
que resgata a vocação religiosa das ordens cruzadas, mantendo-as.
87
Na defesa do seu modelo de cavalaria, Lúlio indica assim o papel dos cavaleiros
cruzados, elevando à condição de martírio a morte nos campos de batalha cruzadas:
Pela fé que existe nos cavaleiros bem acostumados, vão os cavaleiros a
Terra Santa de Ultramar em peregrinação e fazem armas contra os
inimigos da cruz, e são mártires quando morrem para exaltar a santa fé
católica. E pela fé defendem os clérigos dos malvados homens que por
fraqueza de fé os menosprezam, e os roubam, e limpam tanto quanto
podem de seus bens (Lúlio, 2000, p. 89).
Não apenas sobre os cavaleiros, mas todas as ações de todos os que são citados
acima estão avaliadas à luz da fé, o que demonstra que para Lúlio, embora a cruzada fosse
uma prática militar, deveria ser exercida como expressão de convicção religiosa, e as
batalhas que ela envolvia, deveriam ser vistas como verdadeiras batalhas pela fé cristã
católica hegemônica. Percebe-se nesta postura, ainda, entre os fiéis do católico-romano a
pretensão à exclusividade ou no máximo a primazia dentre os demais grupos cristãos, pois
tendem a sobrepor a realidade do cristianismo à da instituição católico-romana,
demonstrando assim um espírito de intolerância estranho ao evangelho de Cristo, mas
comum às manifestações religiosas fundamentalistas.
A posição de Lúlio quanto às cruzadas, no entanto, não foi a mesma durante toda a
sua vida, antes ele foi se aliando à política expansionista da corte francesa à medida que ia
sendo convencido da utilidade e necessidade das cruzadas como força de combate da
cristandade católica, tanto na reconquista da península Ibérica e da Terra Santa – terras
indevidamente ocupadas pelos islâmicos –, quanto na reunificação da cristandade sob a
égide romana – na conquista de Constantinopla, atraindo os ortodoxos à autoridade do
pontífice romano, conforme indica Jaulent nas seguintes palavras:
[Lúlio] considerava como primeiro objetivo a conquista de
Constantinopla, antes mesmo de Granada. Escreve assim o maiorquino:
“[...] que a cidade de Constantinopla se submeta à Igreja romana, como
uma filha à sua mãe, e o cisma grego seja destruído. Destruído pela
ciência, pela inteligência e pela força da espada [...]. Com a conquista de
Constantinopla, a conquista da Terra Santa será mais fácil e cômoda, mas
sem a conquista da primeira, a da segunda será mais difícil e demorada”
(Jaulent, 2001a, p. 14).
Se a espada do cruzado não serviria de argumento para trazer à fé o muçulmano, ela
é bem-vinda em Lúlio como instrumento de reconquista de terras, e por que não dizer,
também como poder de manutenção de toda a cristandade sob o domínio de Roma?
88
É perceptível o paradoxo em Lúlio quanto às cruzadas, pois ao mesmo tempo que
ele defende e se empenha pessoalmente na conversão dos não-cristãos ao Cristianismo, ele
também defende e promove as cruzadas; ele tanto oferece orientações táticas de guerras
aos cruzados como anuncia-se humildemente como um “indigno, que, com bom zelo pela
conversão dos infiéis, longamente não cessou de trabalhar” (Lúlio, 2009c, p. 37).
Para se entender a visão de Lúlio das cruzadas e a razão do seu apoio às mesmas, é
fundamental que se compreenda que o mesmo via a ocupação islâmica tanto das terras
peninsulares da Ibéria, quanto à Terra Santa como território natural dos cristãos, tomado
pelos islâmicos, que nelas passaram a blasfemar de Deus e da religião cristã, tida como
verdadeira, numa época onde o conceito de Cristandade era predominante, e o Estado
caminhava associado à Igreja, o que dificultava outra possível interpretação para Lúlio
para a realidade da ocupação islâmica; para ele também isto fora um mal a ser extirpado de
tais terras e as cruzadas eram o veículo apropriado, sendo ele um pregoeiro desta
empreitada, conforme se pode perceber das seguintes palavras do próprio Lúlio:
Por muito tempo o mundo permaneceu em mau estado, e ainda podemos
temer o pior, pois como são poucos os cristãos e muitos os infiéis que dia
a dia se esforçam para destruir os cristãos, aqueles, ao multiplicar-se
tomam e ocupam as terras destes, blasfemam e negam vilmente a
Santíssima, Verdadeira e Digníssima Trindade e a Encarnação do Nosso
Senhor Jesus Cristo, para escárnio da corte celestial, possuindo a Terra
Santa. Como parece que os cristãos não desejam remediar esse malvado e
injusto estado de coisas, um homem deixou tudo o que possuía, e por
muito tempo trabalhou, correndo quase todo o mundo, para poder
impetrar do senhor papa, dos senhores cardeais e também dos outros
príncipes deste mundo remédio e ajuda para pôr fim, se possível, a uma
desgraça tão grande e tão indecorosa (Lúlio, 2009c, p. 37).
Esta visão revela uma percepção histórico-cultural própria, mas não se pode fazer
vista grossa à mesma, pois na prática acabava por revelar intolerância e incapacidade de
convívio com o diferente. No mundo em que se vive hoje, tão plural e globalizado, não é
necessária à negação da fé para o convívio harmonioso, nem mesmo a diminuição da sua
importância, pois o problema não está no direito ao culto e à liberdade religiosa, o que
inclui o direito de anúncio assim como o de convívio com os que a rejeitam, os quais
continuam sendo cidadãos com plenos direitos civis e devem ser ainda objetos do amor
pelos cristãos; o problema está na indisposição à tolerância e à convivência com o outro.
Enfim, para Lúlio as cruzadas não eram argumento missionário, quando muito,
poderia impor uma certa submissão de todos os cristãos à Roma, mas quanto aos infiéis o
89
seu papel era militar, ainda que sob um projeto teocrático, de busca de restauração de
posses de terras a quem se julgava de direito. Este tipo de pensamento é bem complicado
de ser defendido nos dias atuais, pois se não se está negando a nenhum povo ou nação o
direito de lutar pelo seu chão, há de se reconhecer que tomar Deus como partidário de
disputas por espaços geográficos só tende e piorar situações de conflito, como o que ocorre
entre judeus e palestinos no Oriente Médio.
Duas importantes críticas devem ser feitas ao modelo cruzadista de Lúlio quanto à
atuação missionária da Igreja cristã contemporânea: a primeira delas diz respeito à comum,
mas ainda relevante denúncia de que historicamente as missões incorreram no erro de levar
juntamente com o evangelho, os valores culturais e os padrões sociais da cultura dos
missionários. Isto é claramente percebido em Lúlio, que sendo incapaz de separar os
conceitos de Cristandade e Cristianismo, propõe uma única ordem militar que luta pela
manutenção e defesa de um Estado cristão, uma verdadeira teocracia, a se estender e
guerrear com outros que se oponham à sua concepção de direito de posse à Terra Santa.
3.2.2 A natureza missionária das cruzadas para Lúlio
Ainda mais polêmicas são as propostas de Raimundo Lúlio para o uso das cruzadas
como meios úteis à evangelização dos povos, especialmente a dos muçulmanos. Teria o
maiorquino defendido o uso da espada como instrumento de persuasão à fé cristã? Sobre
este tipo de interpretação da proposta luliana, Bosh recomendaria cautela, pois afirma:
“Até Raimundo Lulo [sic], que rejeitava toda tentativa de forçar muçulmanos e pagãos a
converter-se à fé católica, apoiou a idéia de uma cruzada, dentro das fronteiras da
cristandade, contra os hereges” (Bosch, 2002, p. 271).
No entanto, esta visão parece ter estado presente mais no início da sua vida e
jornada, pois segundo estudiosos apontam, ele teria ampliado a sua perspectiva das
possibilidades de uso das cruzadas, a ponto de alguns, como Reboiras levantarem o
questionamento da hipótese de ter Lúlio até mesmo desistido do seu projeto original de
levar os muçulmanos à fé cristã somente pela razão, sem o uso da espada, talvez por ter-se
cansado de insistir em um caminho que dava tão pouco resultado.
Fato é que, segundo Reboiras, somente em uma obra posterior, o Liber de passagio,
discute Lúlio pela primeira vez (assim se vem confirmando) e trata
detalhadamente de táticas militares, ou seja, do uso da força em
confronto com o infiel, uma opção que ele claramente havia rejeitado em
obras anteriores. Este será o primeiro de uma série de opúsculos que
90
aparecerão regularmente, [...] nos quais, com maior ou menor extensão e
com mais ou menos diferenças acidentais de conteúdo, se formulam
planos de missão e ações bélicas contra infiéis e cismáticos.
Este opúsculo e os tratados que sobre este tema cronologicamente o
sucederam são a base textual de uma longa e prolífica discussão sobre o
conceito de missão em Raimundo Lúlio e sua atitude ante a cruzada
(Reboiras, 2009, p. XXII).
Apesar de Reboiras identificar esta mudança de tom de Lúlio de contrário para
favorável às cruzadas em um dado momento da sua vida, algo devidamente identificado e
datado a partir dos escritos lulianos, a pergunta essencial a ser respondida é: qual era o
papel das cruzadas no plano missionário de Raimundo Lúlio? É aqui que se deve
concentrar a pesquisa, visto que dependendo da resposta, se afeta consideravelmente toda a
sua perspectiva de missão, de precursor do diálogo inter-religioso, etc.
Sobre a mudança de compreensão e atitude de Raimundo Lúlio diante das cruzadas,
Jaulent assim explica:
Num primeiro momento, Lúlio não alimentava nenhum projeto a respeito
da cruzada. Sua primeira obra sobre o tema, o Tractatus de modo
convertendi infidelis, fora escrito pouco depois de 1291, após a queda de
São João de Acre sob o poder dos egípcios. A conquista de São João de
Acre foi uma hecatombe para o Ocidente. Nos anos seguintes, caíram os
últimos baluartes do reino de Jerusalém [...].
Depois destes acontecimentos de graves conseqüências para a
cristandade, Lúlio dedicou o Tractatus ao papa Nicolau IV, então
empenhado na convocação da cruzada, dando-lhe a conhecer os seus
planos estratégicos. Todavia, [...] nessa obra Lúlio encara as cruzadas
apenas como um meio para atingir o principal objetivo que guiava a sua
frenética atividade: a conversão dos infiéis. Admitia o domínio pela força
apenas como meio de possibilitar o diálogo. Somente o diálogo seria
capaz de levar à conversão Lúlio sempre defendeu a capacidade da razão
humana de destruir erros e de alcançar a verdade da fé cristã (Jaulent,
2001a, pp. 12,13).
Embora se aproxime perigosamente de uma visão conversionista das cruzadas, seria
mais apropriado entender a proposta de Lúlio de aproveitamento das cruzadas em seus
propósitos de reconquista de terras como uma ferramenta útil à evangelização dos nãocristãos, uma vez que se poderia obrigá-los, pela força da espada, a ouvir a mensagem
cristã, uma vez que dela eram ignorantes e não queriam saber, mas estavam sob o domínio
da espada cristã. Esta visão reflete algo bem próprio à época de Lúlio, como já se discutiu
anteriormente; contudo, tal proposta não tem nenhuma validade para um mundo póscristandade, além do que se mostra incompatível com a natureza espiritual do evangelho e
a docilidade do seu convite.
91
Sobre o grande equívoco, a respeito da relação entre o ser cristão e o lutar por uma
terra cristã, em oposição aos outros, enxergando-os como tendo menos direito, mentalidade
própria ao conceito de cristandade, Comblin comenta:
Esse povo de Deus situa-se na mesma terra em que moram os outros
povos, não dispõe de terra própria, mas é feito de pessoas que já
pertencem a outros povos. É um povo entre os povos [...] Não substitui
os outros povos nem os absorve, mas influi neles.
Na América Latina é difícil imaginar a Igreja católica fora da imagem de
cristandade. O imaginário católico ainda é de cristandade (Comblin,
2002, p. 283).
Certamente seria exigir muito de Lúlio a compreensão necessária quanto à natureza
não essencialmente territorial do Reino de Deus, não sobrescrita a um povo, cultura ou
Estado; ocorre que neste missionário as cruzadas ofereciam oportunidade para se anunciar
forçadamente a mensagem cristã àqueles que não a conheciam, conforme atesta Veiga,
afirmando que ao não impor a fé pelas cruzadas, mas sim a pregação da fé, “Lúlio nos
revela o grande respeito que tinha pela liberdade religiosa e pela liberdade das
consciências” (Veiga, 2009, p. 93).
Para concluir-se a percepção de Lúlio acerca do uso missionário das cruzadas, não
há mais elucidativas palavras do que as seguintes, de sua própria autoria, retirada do seu
Tractatus de modo convertendi infideles, datado de cerca de 1292-1293, no qual afirma:
[...] com os sarracenos presos entre os cristãos, ordene-se que alguns dos
próprios idôneos sejam recebidos, aos quais seja mostrada a nossa fé, e
que outras razões nossas destruam a seita deles. Caso não queiram vir
para a fé, que se discuta com eles por algum tempo e, depois disso, que
possam ir livremente para sua terra com nossos empréstimos e presentes
da corte, e eles mesmos contarão aos outros sarracenos nossa fé, as
razões que temos e o modo de crer que mantemos. Assim as coisas
preditas deveriam ser feitas; que todas essas coisas seriam semeadas
entre eles e que eles fiquem em dúvida e preparem o caminho para sua
conversão (Lúlio, 2009c, p. 19).
Esta citação de Lúlio elucida bastante e precisamente a distinção, assim como a
conveniência da missão dentro do propósito cruzadista. Fato é que ele assumia a visão
militar de cruzada, educando-a segundo os critérios da cavalaria, veja-se o Livro de ordem
da cavalaria, que é a sua proposta normativa quanto à formação e atuação das ordens
militares, recheada de orientações morais e religiosas que seriam uma espécie de simples
modelo dos direitos civis em estados de guerra. Contudo, também é fato que para ele a
92
conversão só se dá e só deve ser buscada através de razões necessárias. Ninguém deveria
ser forçado à mudar de religião, pois ainda que ele defenda a idéia de que no contexto
cruzadista, poder-se-ia forçar os muçulmanos a ouvir a mensagem cristã, contudo, ele
sempre respeitou a liberdade da consciência alheia, no que diz respeito ao direito
inalienável à autonomia em questões de fé.
Lúlio era filho da sua época, e como tal, via nas cruzadas um meio legítimo de se
lutar pelo direito de posse de terras; ele procurou regular humanizando o empreendimento;
e se mostrou bastante sensível à consciência alheia quando assegura aos muçulmanos
cativos das cruzadas o seu direito a permanência na fé maometana; no autêntico espírito
cruzado, eles deveriam ser encaminhados em direção a terras sob domínio islâmico,
financiado pelos cristãos, para, tendo a vida preservada e assegurada pelos cristãos, e o seu
retorno às terras dos seus compatriotas financiado, levasse consigo o testemunho pessoal
daquilo que ouvira da mensagem cristã, tornando-se assim, um “pré-missionário”,
preparando os corações dos demais à futura audição da mensagem cristã.
É nítida a primazia da preocupação de Lúlio com a comunicação racional da
mensagem cristã; nele, é inegociável o elemento da conversão pela razão, mesmo no mais
tenso ambiente cruzadista e admitindo algum uso desta força para impor condição de
audição; contudo, ele busca separar definitivamente a natureza das duas tarefas, uma é a da
missão e outra é a da cruzada, ainda que até mesmo andassem juntas.
Quanto à contemporaneidade, contudo, é absolutamente inadequada a idéia do uso
da força e da mentalidade de guerra que estava presente de alguma maneira no espírito
cruzado dos dias de Lúlio, em contraste a isto, deve-se desenvolver um espírito de serviço
e mansidão, como indica Fernando (2001, p. 295), que ressalta ainda através das seguintes
palavras a conveniência de um estilo de vida mais simples, como também propunha Lúlio,
por parte dos missionários cristãos contemporâneos, devido às instabilidades e deficiências
econômicas que marcam a realidade da população residente em muitos dos países de
destino destes, inclusive muitas nações de maioria populacional muçulmana:
Em tempos como este, uma vida de privação voluntária pelos ministros
cristãos poderia ser um grande recurso para ganhar credibilidade. À
medida que o pobre vê o rico ficar mais rico, enquanto eles ficam mais
pobres, e também à medida que cresce a raiva deles contra o rico, seria
refrescante para eles [os pobres] verem algumas pessoas que poderiam
estar em um [sic] melhor situação de vida escolhendo se privar para
servir o pobre (Fernando, 2001, p. 304).
93
3.3 O diálogo inter-religioso em Raimundo Lúlio
“Conhecer e amar a Deus (amar a Deus era um preceito cristão [Mc 12,30 e Lc
10,27]. Porém, amar e conhecer a Deus era uma característica da teologia muçulmana, o
que indica uma influência islâmica no pensamento de Ramon” (Costa, 2000, pp.
XXIV,XXV).
A inter-relação entre as religiões, bastante propalada recentemente no discurso do
diálogo inter-religioso foi algo intensamente vivido por Raimundo Lúlio; discernir como e
até que ponto se deu este convívio e diálogo interno entre as religiões no personagem é o
desafio desta etapa da pesquisa.
O que teria ocorrido com Lúlio? Uma abertura tal ao diálogo inter-religioso a ponto
dele assimilar conceitos islâmicos à sua proposta cristã? Mas, isto não seria uma espécie de
sincretismo religioso? Não necessariamente, pois segundo Fornet-Betancourt, para que
ocorra um verdadeiro diálogo inter-religioso, os “dialogantes”, como ele chama, precisam
não apenas se permitir ouvir realmente um ao outro, mas mais do que isto, precisam estar
comprometidos com esta audição mútua. Assim se expressa este proponente:
A “permissão” é, com efeito, “compromisso” porque a “permissão”, ou
melhor, sua solicitude e/ou aceitação, compromete-nos para dialogar
realmente. O que supõe tudo o que já sabemos que é, de fato e de direito,
necessário para um diálogo verdadeiro, a saber, abrir-se ao outro, escutar
sua palavra sem reservas nem preconceitos, amar sua diferença, mesmo
que não alcancemos poder entendê-la plenamente, e aventurar-se com ele
para um processo de acompanhamento e de aprendizagem recíprocos
(Fornet-Betancourt, 2007, pp. 38,39).
A busca de um diálogo que se mostre real, no qual haja verdadeira abertura um para
a idéia do outro, a disposição a uma audição honesta, que possibilite a reflexão
comparativa das propostas religiosas é a idéia fartamente defendida por Lúlio e a base
sobre a qual muitas das suas obras foram escritas, dente elas o Livro dos gentios e dos três
sábios, que se desenvolve a partir desta proposta e premissa básica aqui discorrida,
conforme identifica o próprio Lúlio no epílogo desta obra com as seguintes palavras:
Quando o gentio ouviu todas as razões dos três sábios, começou a repetir
tudo aquilo que havia dito o judeu, e pôde repetir tudo aquilo que havia
dito o cristão, e isso mesmo fez de tudo aquilo que lhe havia dito o
sarraceno. Deste modo os três sábios tiveram um prazer muito grande,
94
porque o gentio entendeu e reteve suas palavras, e juntos disseram ao
gentio que bem entendiam que não tinham falado com um homem sem
coração nem ouvidos. O gentio, uma vez repetido aquilo que acima foi
dito, endireitou-se um pouco e seu entendimento do caminho da
salvação, seu coração começou a amar, seu olhos a chorar e adorou a
Deus [...] (Lúlio, 2001b, pp. 237,238).
O diálogo inter-religioso, portanto está no cerne da proposta missiológica luliana,
como um meio eficiente para se ter acesso à mente e ao coração daquele a quem se busca
levar a fé cristã. Contudo, diferentemente da compreensão mais aberta de alguns atuais
proponentes do diálogo inter-religioso, Lúlio acreditava que a salvação estava ligada
exclusivamente à fé cristã, como já se foi demonstrado aqui, daí a sua insistência na
comunicação da mesma. Considere-se a idéia defendida por Küng a este respeito, como
segue: “A salvação do homem também é possível fora da igreja católica, ou mesmo fora do
cristianismo: a questão da verdade e a questão da salvação não são a mesma coisa” (Küng,
2004, p. 282). Por outro lado, este mesmo autor apresenta uma idéia com a qual Lúlio não
só concordaria, mas que expressa a sua própria premissa ao debate, que é a seguinte: “Uma
ilimitada abertura e disposição para o diálogo em relação às outras religiões não exclui o
profundo envolvimento com a própria religião, e vice-versa” (Küng, 2004, p. 281).
Veja-se agora, contudo como o próprio Lúlio recebeu influência da religião com a
qual ele foi o maior proponente do diálogo e do debate religioso, o Islamismo.
3.3.1 Em diálogo e resposta à filosofia islâmica
O primeiro ponto de similaridade que se percebe entre Lúlio e o Islamismo está nas
características da fé islâmica conforme manifestada no sufismo, que tinha na sua
simplicidade ascética, o maior vigor e a melhor expressão da sua espiritualidade, segundo
Armstrong (2001, p. 121); e certamente estas eram características acentuadas em Lúlio. No
entanto, isto não indicaria, necessariamente, que Lúlio teria copiado tais características do
sufismo, embora, a influência do sufismo em Lúlio teria sido tão acentuada que alguns
chegaram ao ponto de identificá-lo, como fez Ribera, como “um sufi cristão”, comenta
Bustinza (2007, p. 800).
Lúlio foi um grande debatedor das idéias de Averróis, cuja importância e alcance
destaca Saranyana (2006, p. 236). Ambos teólogos e filósofos, aquele cristão e este
muçulmano; Averróis caminhava num sentido ao qual Lúlio se opôs na relação entre a
filosofia e a teologia, pois se aquele, muçulmano, subordinava a teologia à filosofia, este,
95
cristão, por sua vez, sujeitou toda a sua capacidade filosófica às suas convicções cristãs,
conforme indica novamente Saranyana (2006, pp. 240,379).
O movimento sufi encontrou uma grande expressão dentro do Islã durante o século
XIII, conforme indica Küng (2004, p. 273); e o contato de Lúlio com os mesmos teria se
dado a tal ponto que Ribera chegou a propor “pela primeira vez na história que Ibnc Arabi
fora a fonte concreta e imediata da influência sufi exercida sobre o pensamento de Lúlio”,
comenta Bustinza (2007, p. 795).
Discorrendo mais a respeito desta influência, Bustinza afirma que alguns textos
lulianos são quase cópias de textos árabes, embora conclua reconhecendo que diante de
hipótese de “plágio” de obras sufi em Lúlio, “nos encontramos, com toda certeza, diante de
‘evidências indiscutíveis’ muito frágeis” (Bustinza, 2007, p. 822).
Lúlio esteve profundamente comprometido com a sua missão aos muçulmanos, e
não poupou esforços para conhecê-los melhor; aprendeu a língua deles, estudou a sua
religião, os seus principais escritos e conheceu a sua filosofia, enfim, teve todo um cuidado
em perceber e reconhecer o outro a quem ele pretendia e efetivamente se empenhou por
levar à fé cristã, conseguindo alguns discípulos, conforme registra Tucker, tendo gasto o
tempo que antecedeu o seu apedrejamento no norte da África confirmando na fé cristã
aqueles convertidos pelo seu difícil trabalho missionário na região2 (Tucker, 1996, p. 59).
Sobre a atual resistência de muitos cristãos em se empenharem na evangelização
dos muçulmanos nos dias atuais, Engqvist denuncia que o que falta é amor para se
completar a missão cristão ao Islã (Engqvist, 2001, p. 610). No entanto, é necessário se
lembrar que o atual trabalho continua árduo e estatisticamente desafiador.
Ainda a respeito à natureza deste diálogo, pode-se afirmar que para Lúlio, ele se
revestia de uma verdadeira confrontação de idéias, como já foi demonstrado, podendo para
muitos, portanto, ser melhor qualificado como um debate inter-religioso, ao invés de um
diálogo, no entanto, considerando o compromisso com a audição do outro e a real
disposição à mudança como elementos necessários, conclui-se que Lúlio era proponente de
um diálogo inter-religioso que partisse das convicções seguras dos debatedores, tendo ele
mesmo proposto certa vez aos intelectuais do Islã um franco debate religioso, a ser
acompanhado por uma predisposição sincera à conversão caso alguém fosse convencido da
melhor razoabilidade da fé do outro debatedor, segundo registra Zwemer (1977, p. 66).
2
Para a leitura da citação direta e completa, busque-se a citação presente na página 46 desta dissertação.
96
Quanto à utilidade dos debates, vale lembrar que nem todos se mostram úteis, como
bem observou o antropólogo Malinowski (1997, p. 147), no entanto, no contexto das
missões cristãs aos muçulmanos e aos judeus é preciso que se esteja ciente de que tais
debates religiosos costumam ser intensos e difíceis com judeus e muçulmanos, como bem
lembra Hesselgrave (1995, p. 299).
A cristandade acostumada a pregações unilaterais precisa ser sensível à necessidade
e preferência da presente geração, a qual requer maior debate e troca de idéias,
especialmente no contexto do mundo secularizado europeu, como indica Fornet-Betancourt
(2007, p. 120), mas também nas missões aos muçulmanos, como aqui se demonstra.
3.3.2 Princípios de alteridade em Raimundo Lúlio
Ainda que Lúlio tivesse uma visão demasiadamente acentuada da cristandade –
algo típico nos seus dias – e visse na reforma desta a restauração do modelo social o
caminho para a construção de um mundo que melhor glorificasse a Deus, conforme indica
Costa (2006, p. 22), tal visão trazia consigo sérios riscos da perigosa associação já aqui
denunciada da posse que a Igreja tinha sobre as duas espadas, a temporal e a espiritual,
como indica Silveira, 2009, p. V), mesmo que para evitar isso, Lúlio tivesse se empenhado
por educar os cavaleiros no devido cuidado ao desempenhar o seu ofício, comparável ao
dos clérigos, porém na esfera física (2000, p. 23).
Como já foi dito, Lúlio se via como um missionário a converter muçulmanos e
cismáticos (Lúlio, 2009c, p. 3) e teve na pregação o seu principal instrumento de missão,
posto que a própria pregação estava no centro da espiritualidade luliana, conforme
identifica Mata (2006, p. 126). No entanto, para Lúlio, o conceito e padrão da pregação era
bastante elevado, pois a mensagem que ele levava fora previamente preparada tendo em
vista o devido entendimento do conteúdo da fé professada por aqueles a quem ele se
dirigia, identificado como o logos da religião deles; sendo esta compreensão essencial a um
real e proveitoso diálogo inter-religioso, segundo Veiga (2009, p. 57).
A missão cristã aos muçulmanos, segundo Hiebert, não pode se realizar ainda com
aquela típica mentalidade européia cruzadista da vitória da espada; desta maneira este
missiólogo faz numa franca e necessária denúncia deste equívoco mais facilmente tolerado
nos dias de Lúlio, mas inaceitável nos dias atuais, pois segundo ele, é preciso que se tenha
muito claramente demonstrado na mente e no coração o contraste entre as cosmovisões3
3
Admite-se aqui como satisfatória a seguinte definição simplificada de cosmovisão: “Uma cosmovisão é
exatamente o que a palavra diz. É a visão que uma pessoa tem do seu mundo, seu cosmos. É a maneira como
97
bíblica e européia no atual empreendimento missionário, pois enquanto esta associa-se às
imagens da espada e do sucesso guerreiro, marcado pela imposição e domínio da força,
aquela está marcada pela imagem da cruz e do serviço sacrificial, marcado pelo amor que
se doa para a salvação do outro, segundo Hiebert (2001, pp. 241,243).
Um diálogo que não se esmere por conhecer, identificar e se pautar no real
conteúdo singular de cada crença em questão pode cair num esvaziamento tipicamente pósmoderno de subjetividades e superficialidades, dados os temores quanto ao convívio com o
contraditório, conforme adverte Wright (2001, p. 133), que também alerta sobre a ainda
atual necessidade e desafio de se empenhar em realizar as missões cristãs aos muçulmanos
nos dias atuais (Wright, 2001, pp. 100,101).
Lúlio havia proposto que os diálogos inter-religiosos partissem dos pontos de
convergência doutrinária das crenças em debate (2009c, p. 43), o que no caso de um
diálogo entre cristãos e muçulmanos, significava os atributos divinos comuns a estes dois
monoteísmos, conforme indica Mata (2006, p. 89).
A sinceridade era a palavra de ordem para entender as disputas religiosas propostas
e efetivadas por Lúlio, pois embora alguns possam questionar a sua validade em virtude
das tensões relacionadas, é preciso que se reconheça que dado o contexto de que no Islã
“une-se o espiritual e o temporal em um todo único”, conforme indica Hamidullah (1990,
p. 66) e que “Portanto, a apostasia é naturalmente considerada como traição política”,
novamente segundo Hamidullah (1990, p. 245), seria natural compreender porque era tão
difícil e tensa a proposta de diálogo inter-religioso de Lúlio aos muçulmanos, para quem a
identidade pessoal é fortemente marcada em oposição ao cristianismo, visto que a
construção e a afirmação da identidade étnica é reforçada e afirmada como necessária no
contexto de fricção inter-étnica, conforme demonstra Oliveira (1976, p. 6).
Aliás, a relação entre religião muçulmana e etnia árabe é muito estreita, daí desde
os dias de Lúlio, os muçulmanos tendem a ser muito intolerantes com aqueles que dentre
eles professam uma fé distinta da sua, tendo ocorrido logo no início da expansão islâmica
uma grande intolerância dirigida especialmente aos árabes cristãos, como afirma Runciman
(2003a, p. 37).
Se a identidade islâmica está fortemente associada e integrada às outras identidades:
nacional, étnica e lingüística, como fatores de reforço do senso de pertença, como costuma
ela compreende e interpreta as coisas que acontecem com ela e com outras pessoas. É a maneira de a pessoa
compreende a vida e o mundo em que vive. É a convicção da pessoa quanto ao que é real e ao que não é
(O’Donovan Jr., 1999, p. 13).
98
ocorrer universalmente, segundo Pujals (2008, pp. 46,78), então comprova-se teoricamente
o que já se tem observado na prática, que o caminho trilhado para a conversão de um
muçulmano a outra religião é longo e árduo, como identifica Dennett (1993, p. 9), devendo
o muçulmano convertido a Cristo ser objeto de apoio, compreensão, empatia e acolhida
dos cristãos para consigo, conforme identifica Marsh a seguir:
O que o mundo muçulmano mais necessita hoje é de pessoas que saibam
colocar-se no lugar dos cristãos que antes foram muçulmanos; que
possam apreciar seus problemas, compartilhar de seus sofrimentos e
fazê-los sentir que são compreendidos e aceitos realmente pelos centros
cristãos. Com freqüência, existe um tremendo abismo entre o missionário
com sua casa confortável e seu automóvel moderno e o homem que
enfrenta o ostracismo em cada momento do dia, ou a jovem casada com
um muçulmano. Nos países muçulmanos, o novo cristão enfrenta
literalmente a perda de todas as coisas por amor de Cristo.
Freqüentemente, perde seu lar, trabalho, posição na comunidade, status,
família e às vezes zombaria e em certas ocasiões até sua integridade
física é comprometida. É visto como um traidor de sua pátria. Rejeitado
por sua comunidade, com freqüência é olhado com receio pelos cristãos,
que se mostram relutantes em recebê-lo em sua igreja local. É de suma
importância que ele sinta que os lares cristãos estão abertos. Que tenha
certeza de que será bem recebido a qualquer momento e que encontre
alguém com quem possa fazer compartilhar seus problemas e orar. Aqui
também a principal lição que o missionário pode tirar é aprender a ouvir
toda a história até o final (Marsch, 1993, p. 89).
Este relato revela quão grandes são os obstáculos a serem enfrentados por um
muçulmano que considere a possibilidade da conversão ao Cristianismo, pois a integração
no Islã pesa-lhe contrariamente à conversão, visto que “É com razão que os muçulmanos
não consideram o Islam apenas como um ideal abstrato destinado à adoração imaterial. O
Islam é um código de vida, uma força ativa que se manifesta em todos os campos da vida
humana”, como indica Abdalati (2008, p. 137).
Embora o Corão expresse alguma consideração para com judeus e os cristãos,
revela também uma crítica aguda a ambos, ao afirmar que os mesmos rejeitaram os livros
sagrados anteriores enviados por Deus a eles, a saber, a Bíblia Hebraica e os Evangelhos,
respectivamente, pelo que se tornaram ímpios, segundo o registro da 2ª Surata, nos versos
87-89 (Alcorão Sagrado, 1975, p. 11). Especificamente aos cristãos, o livro sagrado
islâmico afirma na 57ª Surata, no verso 27, que são um grupo de apóstatas, alguns por
sincera e enganosa tradição e outros por verdadeira corrupção (Alcorão Sagrado, 1975, p.
407); e, por fim, destaca-se aqui a afirmação corânica de que a divisão da cristandade é
uma evidência do juízo de Deus sobre a apostasia cristã, conforme a 5ª Surata, verso 14
99
(Alcorão Sagrado, 1975, p. 76). Ainda que estas duas últimas afirmações, mas
especificamente dirigidas aos cristãos, tenha verossimilhança, não deixa de ser uma crítica
aguda, que leva os muçulmanos a considerarem uma conversão à fé cristã como uma
verdadeira queda espiritual, além de apostasia e de todas as sanções sócio-políticas há
pouco apresentadas.
Fato é que assim como hoje, a atuação missionária cristã entre os muçulmanos
também era difícil nos dias de Lúlio, e exige preparação e sensibilidades grandes por parte
dos missionários que abracem tal vocação.
Alguns podem estranhar e questionar a validade e a sinceridade de Raimundo Lúlio
nas suas propostas de diálogo inter-religioso, afirmando que não seria um verdadeiro
diálogo visto que o desejo do maiorquino era convencer os outros dos seus erros e
demonstrar os seus próprios acertos, desta maneira, seria mais apropriado falar-se em
debate inter-religioso, e não em diálogo. Contudo, tais propostas se baseavam num
conhecimento adequado tanto da fé islâmica, quanto da fé cristã, o que o levava a acreditar
na necessidade de uma demonstração clara, precisa, contrastante e confrontadora dos seus
ouvintes com as proposições do evangelho em oposição ao Corão.
3.3.3 Uma proposta de missões com alteridade
A própria idéia de um diálogo inter-religioso já pressupõe alteridade nas missões,
posto que se abre tanto para o anúncio, quanto para a audição da mensagem do outro.
Lúlio, contrariando a tendência dos seus dias, rompeu com o obscurantismo anti-islâmico
predominante, indica Zwemer (1977, pp. 37,38), lançou-se na busca e uso da língua árabe
tanto em suas obras literárias, quanto em suas pregações, como indica Costa (2006, p. 24),
necessidade que continua sendo atestado por aqueles que trabalham com os islâmicos,
como aponta Acosta (1993a, p. 21).
No Islã ocorre uma alta valorização da língua árabe, visto que o próprio Corão se
apresenta como uma revelação divina e a língua árabe como o seu veículo, na 13ª Surata,
verso 37, o seguinte: “Deste modo to temos revelado, para que seja um código em língua
árabe. [...]” (Alcorão Sagrado, 1975, p. 178). Com tal apoio escriturístico, não é de se
estranhar o seguinte depoimento islâmico sobre o árabe, como língua: “Na verdade,
quando a escrita árabe é utilizada com todos os seus símbolos de vocalização, ela é
incomparavelmente superior a qualquer e todas as outras escritas do mundo desde o pontode-vista de precisão e ausência de ambigüidade”, exclama Hamidullah (1990, p. 293).
100
Portanto, a visão que o muçulmano tem do árabe é bem mais elevada do que os
mais dedicados fundamentalistas protestantes nutrem pela versão King James do seu
próprio livro sagrado. Os passos de Lúlio e as suas recomendações ao envio de
missionários letrados e devidamente aculturados no universo do Islã (Lúlio, 2009c, p. 15)
também devem ser seguidos pelos missionários cristãos contemporâneos no mesmo ideal
de eficiente comunicação da mensagem cristã aos islâmicos.
Apesar da ênfase, o trabalho missionário proposto por Lúlio aos muçulmanos, não
se restringia à argumentação, o seu ideário de simplicidade e o seu engajamento pessoal
demonstram que para o missionário maiorquino, mais do que a razão, eram necessários
também o amor, a inteligência, a liberdade e o diálogo, obrigatoriamente, atesta Jaulent
(1989, pp. 27-30).
O diálogo religioso como estratégia de comunicação de fé na contemporaneidade
precisa ser usado não como fruto de uma flacidez nas convicções próprias do relativismo
enganoso da nossa época, mas como a busca consciente de uma aproximação irênica do
outro a quem se comunica a fé, pois o diálogo como meio de comunicação, num consciente
abandono de outras forças coercitivas, pressupõe fé na providência divina e humildade,
afirma Bosch (2002, pp. 577, 580,581); e estas são marcas essenciais da fé cristã.
3.3.4 Uma proposta de escolas missionárias
Mais adiante, ao pensar que, malgrado fizesse isto, não sabia a língua
mourisca ou arábica, e nada aproveitaria. Mais adiante, considerando
estar só neste exercício tão grande, pensou em partir ao santo papa e aos
príncipes dos cristãos para impetrar que fizessem diversos monastérios,
onde homens sábios e literatos estudassem e aprendessem a língua árabe
e de todos os outros infiéis para poderem pregar e manifestar entre eles a
verdade da santa fé católica (Lúlio, 2010, internet).
Destacando da proposta missionária de Lúlio outro princípio de alteridade, este
último ponto da pesquisa indica a criação de escolas preparatórias dos missionários a
serem enviados ao mundo islâmico. Tais missionários deveriam receber um excelente
treinamento na apologética, para melhor demonstrar a fé cristã, atesta Jaulent (2001b, p.
14,50). As escolas haveriam de ser mosteiros a serem construídos em cidades estratégicas
como Roma, Paris e Toledo e neles “homens sábios e devotos estudariam várias línguas e
depois iriam pregar o Evangelho por todo o mundo, como está preceituado”, conforme
indicado em De modo praedicandi, da autoria do próprio Lúlio (2009c, p. 115).
101
Apesar de todo este projeto, que lhe custou muita insistência até a aprovação papal
para a construção dos tais três mosteiros solicitados, “[...] Ramon Llull não teve sucesso
em converter os muçulmanos para o cristianismo. Os diálogo inter-religiosos que
aconteceram na África aparentemente resultaram em fracasso, Não temos notícia
comprovada de nenhuma conversão de um muçulmano para o cristianismo baseada na Arte
luliana ou em suas pregações públicas” (Costa, 2010, internet).
Contudo, não se deve medir o valor e a importância das missões cristãs aos
muçulmanos determinados pela produtividade estatística própria da sociedade ocidental
secularizada, pois assim como foi nos dias de Lúlio, permanece hoje a necessidade de tal
tarefa missionária não pautada pela produtividade, pois a busca por resultados estatísticos
acaba historicamente esbarrando com a urgência da necessidade das missões aos
muçulmanos, conforme indica Chastain (1987c, p. 807).
Antes de números, as missões aos muçulmanos precisam dos mesmos princípios
dialógicos e de alteridade exercidos por Lúlio e atualmente reafirmados por missionários
como Dennett, que baseado em sua experiência e observação diz: “Os muçulmanos vão
falar livremente da sua religião e você deve encorajá-los, ouvindo calma e atentamente.
Eles estão muito mais conscientes do mundo espiritual que os ocidentais comuns e,
normalmente, estão prontos para discutir tais assuntos” (Dennett, 1993, p. 36).
A evangelização dos muçulmanos deve ser exercida com alteridade, segundo
Escobar (1996, p. 49), fugindo dos esteriótipos e reconhecendo valores, como sugere
Dennett (1993, p. 47), da mesma forma como fez Lúlio ao reconhecer e se apropriar de
vários valores dos muçulmanos, como destaca Costa das seguintes palavras:
Ramon Llull aprendeu árabe, viajou e debateu em terras muçulmanas,
tentou ser ele próprio a materialização de seus propósitos de conversão
do mundo para o cristianismo. Tinha um grande respeito pela cultura
islâmica, bem explicitado numa passagem do Livro das Maravilhas, onde
afirma que as roupas e a alimentação sarracenas são mais adequadas ao
homem e proporcionam aos muçulmanos uma vida mais longa e sadia”
(Costa, 2010, internet).
Com estas palavras sobre a alteridade em Lúlio, encerra-se as referências à sua
proposta missionária e conclui-se o presente capítulo e corpo central da pesquisa
ressaltando-se o alerta à necessidade contemporânea de boa convivência com distintos
credos, mantendo-se a própria fé em um vívido aprendizado do exercício do diálogo interreligioso, conforme afirma Bosch (2002, pp. 576,577).
102
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Discorrer sobre a contribuição de Raimundo Lúlio para as missões cristãs aos
muçulmanos numa dissertação de mestrado em Ciências da Religião feita por um teólogo e
pastor cristão protestante não é uma tarefa fácil, pois há várias barreiras a serem vencidas,
muitas vezes, sem sucesso. A necessidade de um distanciamento pessoal de um assunto tão
vital e caro às convicções religiosas é um desafio muito grande, e que por mais empenho e
auto-vigilância que fosse imposto pelo próprio autor, não foi possível alcançá-lo a
contento. Além disto, há a admiração para com o personagem que é objeto da presente
pesquisa, e isto acabou por se tornar explícito em muitos momentos. Possivelmente o
segundo capítulo, dos três, tenha sido aquele no qual mais explicitamente tais falhas
tenham aparecido, em virtude de concentrar-se numa visão mais panorâmica sobre a
missiologia luliana, o que permite uma liberdade mais propícia a tais desvios.
A vastidão da obra de Raimundo Lúlio a ser consultada, assim como as tantas rotas
de considerações e debates a serem travados sobre a sua proposta missionária foram fatores
que também dificultaram à delimitação mais pronta do foco da presente pesquisa. Embora
hoje já se tenha algum material editado no Brasil da autoria de Raimundo Lúlio, bem mais
do que obras que especificamente debatem as suas idéias e propostas, há uma vastidão de
material produzido pelo próprio Lúlio, conforme indicado nesta pesquisa, que oferece
material suficiente para várias pesquisas em variados temas.
A área aqui explorada é uma das menos consideradas nos estudos lulianos, a sua
proposta missão e missiologia, pois dada a variedade temática dos seus escritos originais,
as pesquisas podem se concentrar nos campos da teologia, filosofia, literatura e até mesmo
na mais destacada atualmente área do diálogo inter-religioso, dentro do contexto de
relações entre pessoas e grupos humanos neste mundo globalizado que assiste a grandes e
tensas migrações populacionais, particularmente de grupos oriundos do norte da África à
Europa, restabelecendo a tensão cultural Oriente X Ocidente, com o agravante de que a
Europa hoje vive uma grave crise de identidade pós-cristã relacionada a uma intensa
secularização da sua cultura, como bem identifica Fornet-Betancourt (2007, pp. 83,87).
Avaliando a missão cristã exercida e proposta por Raimundo Lúlio para a
evangelização dos muçulmanos em seus dias, apesar de se verificar a rejeição por parte dos
muçulmanos do trabalho missionário de Lúlio e de se supor que no máximo foram poucos
os convertidos à fé cristã que o missionário catalão conseguiu entre os islâmicos do norte
da África, restando hoje apenas lendas residuais sobre tal atuação na região, como frutos
103
tardios do testemunho de Lúlio na região, segundo VNN (1993, p.48), não se deve concluir
que não houve nenhuma contribuição às missões cristãs aos muçulmanos como
conseqüência da atuação missionária de Lúlio, pois este catalão alertou à Igreja Cristã dos
seus dias sobre a necessidade da percepção dos muçulmanos como um grupo de pessoas a
ser evangelizado, assim como demonstrou a necessidade de fazê-lo com sensibilidade e
conhecimento lingüístico, cultural, filosófico e religioso, demonstrando claramente uma
gênese do que hoje se costuma chamar de princípio de alteridade.
É conhecida a crítica histórica que se faz à exportação dos modelos culturais das
nações que os levaram fundidos ao conteúdo do evangelho na mensagem cristã que
entregaram aos povos colonizados, como indica Hiebert (1999, p. 54); e isso associado a
uma prática histórica muitas vezes condenável pelo próprio evangelho, gerando não apenas
distorções destes, mas potencialmente podendo trazer grandes danos às culturas quando
uma cosmovisão é substituída por outra, que tendo sido mal compreendida, mal
apresentada no processo da evangelização intercultural, ou simplesmente apresentada sem
a devida reflexão sobre as implicações que tal mudança poderia trazer graves e variados
males aos habitantes locais, como foi o caso de Madagascar, onde ocorreu uma grande
crise cultural, conforme relata o antropólogo Linton:
Em Madagascar, porém, a introdução do cristianismo teve efeitos
profundamente desintegrantes. Aí, grande parte da vida nativa era
influenciada pelo culto original dos antepassados. O medo de desagradar
ao antepassado era o principal estímulo para o comportamento
socialmente recomendável. Ao ser removido este estímulo, a
configuração cultural inteira se rompeu e embora esteja agora em
processo de reintegração, certos valores parecem estar definitivamente
perdidos (Linton, 1962, p. 386).
Portanto, quanto ao modelo proposto por Raimundo Lúlio, não se deve ficar com a
sua visão tipicamente medieval de cristandade, deve-se buscar a comunicação e a vivência
de um evangelho que consiga se contextualizar sem mudar a essência da sua mensagem,
ainda que se reconheça a dificuldade da execução objetiva desta proposição. As
manifestações do evangelho devem respeitar cada cultura, pois tendo sensibilidade e
alteridade, o missionário cristão haverá de reconhecer que em alguns aspectos, o povo ao
qual se destina vivência melhor do que o próprio missionário e a sua cultura de origem
algumas das propostas evangélicas.
Quanto ao diálogo inter-religioso, deve-se implementá-lo numa sincera busca de
efetiva comunicação, especialmente neste mundo contemporâneo, onde as informações
104
estão mais democratizadas e as pessoas têm tido mais oportunidades de crescimento na
educação formal, o que lhes desenvolve o raciocínio crítico. Por outro lado, deve-se evitar
o diálogo como uma caminho de relativização da fé, pois não há real tolerância com o
credo distinto, quando as crenças são relativizadas, conforme alerta Ratzinger (2007, pp.
113,114), que prossegue denunciando que nesta tendência relativista, o que se pode
conseguir é no máximo um consenso religioso, o que é muito diferente do conhecimento,
diálogo e tolerância (Ratzinger, 2007, p. 227). O diálogo pressupõe uma audição real,
assim como a capacidade de um debate respeitoso, a busca do entendimento necessário à
proposto do interlocutor e a capacidade de convivência com a diversidade, ainda que se
parta para o diálogo, mantendo-se a priori os princípios de fé e o credo abraçado.
Da missiologia luliana apreende-se também o valoroso e necessário princípio da
alteridade, tão cara aos contatos interculturais, e conseqüentemente aos trabalhos
missionários em outras culturas. Devido ao contato com cultura distintas, o missionário
precisa lembrar-se e apropriar-se do importante alerta da antropologia, que afirma que o
pecado sem perdão para a antropologia é o etnocentrismo, exclama Zaluar (1986, p. 110).
Tal alerta é constantemente repetido por missionários bem treinados, como faz Hiebert
(1999, pp. 97,109). O sincretismo religioso é outro grave equívoco a ser evitado pelo
missionário em contexto cultural distinto; e quanto a isso deve-se manter claramente em
foco uma tensão com uma necessária auto-crítica sobre o que se está fazendo é uma devida
contextualização ou um sincretismo religioso, alerta Comblin (2002, p. 291).
Os modelos propostos por Lúlio ensinam, finalmente, a respeito da necessidade do
bom preparo do missionário cristão a ser enviado aos não cristãos, e não apenas aos
muçulmanos; seu empenho e o seu currículo proposto não apenas denunciam uma ainda
atual indiferença institucional à necessidade do preparo e do envio missionário, posto que
as energias e os currículos tendem a quase exclusivamente, citando o contexto da formação
de ministros religiosos da Igreja Presbiteriana do Brasil, à qual o autor da pesquisa está
filiado, se concentrar na formação de pastores a repor o quadro daqueles que estando na
ativa vão encerrando a sua atuação, numa clara formação, que ainda que prime por uma
certa qualidade acadêmica, concentra praticamente toda a formação para a demanda
doméstica, sem nem mesmo ter uma ênfase no alcance do próprio nacional, mas a
manutenção da grei já arrebanhada; o que não dizer de outros povos?
Se apenas se olhasse para o próprio universo nacional, se haveria de perceber que
há inúmeras oportunidades para trabalhos interculturais dentro do próprio Brasil; se nem
mesmo se considere as grandes diferenças existentes entre as culturas de cada região
105
brasileira, tome-se as múltiplas amostras de significativos números de imigrantes e
descendentes estrangeiros em nosso solo. São afro-descendentes e comunidades
quilombolas; são nipo-brasileiros, muitos dos quais tentando preservar uma certa
identidade cultural; são cidades localizadas especialmente no sul do país onde ainda se
pode perceber pessoas se expressando como língua primária através de um outro idioma
que não o legado lingüístico colonial português; e dentre tantos, há aqueles de etnia árabe e
de fé muçulmana, como muitos libaneses; além dos mais recentes, que se amontoam em
galpões exercendo funções fabris ou manuais com baixíssima renda, como ocorre com
peruanos e bolivianos localizados em bairros como o Brás e o Pari; e até mesmo aqueles
endividados comprometidos em saldar a dívida do seu traslado clandestino da China até
esta pátria verde-amarela. Além destes, há a difícil, polêmica e não pouco contestável
tarefa da evangelização dos indígenas brasileiros, cuja discussão do simples envolvimento
envolve disputas e discussões antropológicas, acadêmicas, sociais e até mesmo políticas
como a recente demarcação da Reserva Indígena em Roraima demonstrou.
Enfim, todas estas necessidades são despertadas na consciência do leitor de
Raimundo Lúlio, que o ler tendo em mente a sua proposta missionária. A presente pesquisa
procurou demonstrar qual foi, então, a contribuição deste cidadão medieval para a tarefa
missionária da Igreja, em seus dias e com implicações aos dias atuais, ficando o desafio da
comunicação intercultural do evangelho entre cristãos e muçulmanos.
Na contemporaneidade, a principal contribuição de Raimundo Lúlio às missões
cristãos aos muçulmanos, por aplicação, se refere ao que se tem afirmado sobre o mesmo
como um vanguardista embrionário do que hoje se refere como diálogo inter-religioso.
Embora seja um anacronismo tentar enxergar tal visão nos moldes atuais em Lúlio, não
seria errado afirmar que ao buscar estar inteirado do conhecimento, da língua, da filosofia,
do livro sagrado e dos ensinos religiosos dos islâmicos; e ao propor uma evangelização
franca, aberta, calcada num debate racional, de mútua audição e conhecimento, Lúlio lega
à contemporaneidade uma visão que se aplica à importância da necessária convivência e
tolerância não apenas com a pluralidade religiosa, mas com a necessária capacidade de
debate inter-religioso, assim como o direito assegurado à mudança religiosa, calcada na
liberdade individual de escolha consciente do cidadão contemporâneo.
Acima de tudo, Lúlio ensina à igreja contemporânea os valores cristãos da
abnegação, da contextualização e dos esforços missionários conscientes de divulgação da
fé cristã ao mundo não evangelizado através de atos e palavras que expressam consciente
dedicação na evangelização que prioriza os povos não-alcançados, através de uma
106
encarnação do modelo apostólico expresso por Paulo em Atos 20.24 e em Romanos
15.20,21, palavras do Novo Testamento da Bíblia Sagrada, que dizem:
Porém em nada considero a vida preciosa para mim mesmo, contanto que
complete a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus para
testemunhar o evangelho da graça de Deus. [...] esforçando-me, deste
modo, por pregar o evangelho, não onde Cristo já fora anunciado, para
não edificar sobre fundamento alheio; antes como está escrito: Hão de
vê-lo aqueles que não tiveram notícia dele, e compreendê-lo os que nada
tinham ouvido a seu respeito. (Bíblia Sagrada, 1993, p. 116).
A presente pesquisa, contudo, apenas abre um leque de possibilidades investigativas
sobre a missiologia luliana. Aprofundar a pesquisa sobre qual a importância dada por Lúlio
à necessidade da devida compreensão da língua e da cultura dos povos a quem se pretende
alcançar e relacionar esta percepção com o atual nível de compromisso de respeito ao
princípio de alteridade nas missões cristãs contemporâneas é uma vertente a ser pesquisada
com ênfase missiológica e potencialmente com grande utilidade missionária.
As pesquisas do autor deste trabalho sobre a obra luliana revelaram uma vastíssima
produção literária do próprio Lúlio, praticamente todas com o propósito de difundir a fé
cristã e valores morais decorrentes da “cristianização” da cultura dos seus dias, sendo
assim, um projeto futuro poderia tentar catalogar estas obras literárias, associando-as à sua
contribuição à evangelização de povos não cristãos.
Sobre esse ilustre catalão medieval, há um vasto universo de estudos sendo
desenvolvidos pelo mundo afora, mas pouquíssimo material em língua portuguesa, sendo
assim, por fim, grande contribuição poderia ser dada sobre as pesquisas lulianas, a simples
divulgação de sua biografia, apontando-se as suas principais contribuições, que
ultrapassam a questão missiológica, sendo até mais conhecidas nas áreas de filosofia,
educação e literatura.
A vida e a obra de Raimundo Lúlio são um vasto universo de conhecimento e
estudos científicos, filosóficos, educacionais, éticos e morais que pode e deve ser mais
explorado no universo da academia de língua portuguesa, e particularmente por nós da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, pois além dele ter sido latino como nós, foi um
cristão professo e engajado, o fato de ter sido católico revelaria da nossa parte, ainda, a
capacidade de ver e reconhecer valores em outros matizes da cristandade e saber usar e
aproveitar os mesmos onde eles se apresentarem.
107
Além do que já foi aqui demonstrado, fica como proposta para futuras pesquisas
também, a demonstração de como a missiologia luliana antecipou muitos princípios
considerados modernos pela missiologia e de que maneira ela pode ser útil e deve ser
avaliada pela Igreja cristã contemporânea. Encerram-se aqui estas considerações finais
com uma consciência de que embora tenha sido almejada a excelência na presente
pesquisa, a sua redação ficou distante do pretendido, ainda que também se tenha buscado
expressar uma outra consciência, reflexo da que havia no próprio Raimundo Lúlio, que era
a da responsabilidade missionária cristã frente aos povos não cristãos, tal visão pode ser
bem expressa nessa última citação, através das seguintes palavras do teólogo reformado
holandês Johannes Blauw: “De acôrdo com esta idéia cristã dos primeiros tempos, a Igreja
deve proclamar o Evangelho ao ‘mundo todo em cada geração’” (Blauw, 1966, p. 107).
108
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4
As referências bibliográficas estão em três partes: a primeira com as obras impressas citadas nesta
pesquisa; a segunda com as obras obtidas em meios eletrônicos: normalmente artigos de sites temáticos da
internet; e a terceira com os outros que não foram autores ou editores das obras citadas na primeira parte,
mas sim colaboradores em prefácios, apresentações, capítulos editados e outras porções usadas nas citações
desta pesquisa.
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