HOMEM, CULTURA E SOCIEDADE LINGUAGEM E ESCRITA HARRY HOIJER A linguagem é de tal forma parte integrante de nossas atividades diárias que muitos podem considerá-la um fato mais ou menos natural e automático, como respirar ou piscar. Evidentemente, se nos detivermos a pensar no assunto, verificaremos que nada há de automático em relação a linguagem. É necessário ensinar as crianças sua língua nativa, e a aprendizagem leva muito tempo. A linguagem não é herdada; é uma arte que somente pode ser transmitida de uma geração a outra por meio de educação intensiva. É dificil apreender completamente a importância do papel desempenhado pela fala em nosso comportamento social. Como seria uma sociedade sem linguagem? Evidentemente não haveria escrita nem outras formas de comunicação pela palavra, pois todas dependem em última instância da linguagem falada. Nossos recursos para aprender seriam em conseqüência muito mais restritos. Seriamos obrigados, como os animais, a aprender fazendo e observando as ações dos outros. Toda a história desapareceria, pois, sem a linguagem, não haveira meio de recriar experiências passadas e comunicá-las a outros. Não teriamos meios de expressar nossos pensamentos e idéias a outros, ou de participar dos processos mentais dos nossos semelhantes. Na verdade, é bem possível que nem sequer pudéssemos pensar. Muitos psicólogos sustentam que o pensamento em si requer o uso da linguagem, que o processo do pensamento é na realidade uma discussão das coisas com a gente mesmo. Uma sociedade sem linguagem não poderia empreender a não ser as mais simples atividades cooperativas. Um indivíduo, ou grupo de indivíduos, não teria meios de planejar atividades desse tipo, de explicá-las aos outros ou de orientar os trabalhos dos participantes em empreendimentos cooperativos com vistas ao objetivo comum. Cada indivíduo dependeria em grande parte de sua própria força e habilidade, pois lhe faltariam os meios para recorrer ao auxílio de outros. Acima disso, uma sociedade carente de linguagem não teria meios de assegurar a continuidade do comportamento e da aprendizagem necessária à criação da cultura. À sociedade humana, sem cultura, estaria reduzida ao nível das atuais sociedades de macacos. Os símios têm uma estrutura física bastante LI N G U A G E M E E S C R I T A semelhante à nossa. Como os humanos, aprendem rapidamente pela experiência e pela observação e imitação das ações dos outros. Numerosos estudos revelaram que os macacos não só aprendem a utilizar ferramentas como também inventamnas. O despeito porém, do fato de que os macacos individualmente aprendem com facilidade e que, como indivíduos, apresentam notáveis resultados na aquisição de conhecimento, os macacos como espécie jamais desenvolveram uma cultura. Existem duas razões para isso. Não possuindo linguagem os macacos não têm meios para continuar em palavras e pensamentos suas experiências isoladas com o emprego dos instrumentos e técnicas. Quando um macaco resolve um problema, o conhecimento adquirido nessa experiência permanece estático. Pode lembrar-se dele se e quando aparecer problema do mesmo tipo, mas no meio tempo não medita sobre esse conhecimento arquitetando meios de aplicá-lo a outros problemas. O homem, sim. Suas experiências diretas com problemas práticos são como as do macaco, separadas e distintas. Mas como possui linguagem, pode prosseguir na busca da solução de problemas, além da experiência física direta, desenvolvendo desta maneira, em pensamento e discussão, novas aplicações de resolver problemas. Em resumo, devido à linguagem, as experiências do homem são contínuas, e não descontínuas como as dos macacos, revelando assim um desenvolvimento muitíssimo mais rápido. Segundo, possuíndo linguagem, o homem se acha habilitado a compartilhar das experiências e pensamentos de seus semelhantes e a recriar suas próprias experiências em benefício dos demais. O conhecimento que um macaco tem, adquirido por experiência e observação, é exclusivamente seu, exceto na medida em que puder demonstrá-lo por ação física de modo a ser adquirido por outro macaco. Por mais hábil que um macaco chegue a ser no emprego de instrumentos e técnicas, seus filhos serão obrigados a iniciar sua aprendizagem da mesma maneira que ele, por experiência e observação. O macaco ensinado não pode comunicar seus conhecimentos de modo a possibilitar seus sucessores a desenvolver daí em diante. A cultura entre os homens revela progresso. Cada geração herda, pela palavra falada e por tradição, o conhecimento acumulado de seus antecessores, acrescenta suas próprias contribuições oriundas de experiências e observações, passando o conhecimento global às gerações HOMEM, CULTURA E SOCIEDADE seguintes. Este aspecto cumulativo, que distingue as culturas humanas do tipo de conhecimento existente nas sociedades animais, é possível devido à linguagem. A ANTIGUIDADE DA LINGUAGEM Estudos de remanescentes esqueletais e culturais do homem antigo mostram que os primeiros seres humanos apareceram há cerca de um milhão de anos. As culturas humanas primitivas eram muito simples e toscas e conhecemos apenas uma parcela de seus restos materiais, instrumentos e artigos feitos de materiais suficientemente resistentes à ação do tempo. É muito significantivo, porém, que esses primeiros traços das culuturas humanas evidenciem continuidade cultural através dos tempos. Quando se estudam as várias fases cronológicas da cultura em qualquer ponto do mundo, verifica-se um avanço lento, mas seguro, tanto no número de instrumentos feitos quanto na complexidade de sua manufatura. Os homens em sucessivas gerações não recomeçavam, em cada geração, a modelar suas culturas, mas prosseguiam a partir das técnicas descobertas anteriormente e eles trasnmitidas por seus antecessores. O fato de ser revelado pela história das culturas humanas um desenvolvimento contínuo e cumulativo, que se estende desde os primórdios até o presente, significa evidentimente que o homem é possuidor de linguagem desde quando possui cultura. A linguagem deve ser tão antiga quanto o mais antigo artefato cultural humano; começou quando a cultura teve início e vem-se desenvolvendo continuamente desde então. Esta inferência sobre a antiguidade da linguagem é amplamente corrovorada por outras observações que podem ser feitas em relação às linguas modernas. Em primeiro lugar, é perfeitamente claro que todas as sociedades humanas sempre possuíram linguagem, desde quando as conhecemos como tal; não há grupo humano em parte alguma, tanto hoje quanto no passado, que careça deste importante aspecto da cultura. Em segundo lugar, observamos também que as línguas modernas são muito numerosas e extremamente diversificadas. O número exato de idiomas diferentes falado hoje em dia não pode nem ao menos ser estimado, mas sabemos que existem vários milhares. Alguns acham-se historicamente relacionados uns aos outros, ou seja, derivam de um mesmo idioma comum. Diz-se que essas línguas pertencem à mesma família, ou tronco, LI N G U A G E M E E S C R I T A e existem centenas desses troncos no mundo de hoje. A maioria deles não tem a menor semelhança entre si, porquanto, como podemos supor com certeza, quase absoluta, todos os traços indicativos de origem comum já de lá muito desapareceram. Sua universalidade e a surpreendente diversificação dos idiomas modernos podem apenas significar que a linguaguem é muito antiga. Os estudos de línguas conhecidas há séculos através de registros escritos revelam que as línguas modificam com relativa lentidão. Assim, embora o inglês e o alemão sejam duas línguas distintas seguramente há mais de 2.000 anos, ainda conservam evidentes similitudes, tanto de vocabulário quanto de gramática, indicando claramente a sua origem comum. Assim, deve ter levado muito tempo para concretizar-se a enorme diversidade das línguas modernas. A terceira e última evidência sobre a antigüidade da linguagem encontrase no fato de que as línguas conhecidaas, antigas ou modernas, não podem ser classificadas em termos de seu nível de desenvolvimento. Não existem línguas desenvolvidas ou primitivas quando se levam em conta apenas seus aspectos estruturais. Assim, todas as línguas que conhecemos possuem um sistema bem definido de sons orais. Estes são em número infinito, cuidadosamente diferenciados entre si e se juntam para formar palavras, frases e sentenças segundo regras perfeitamente definidas. Neste particular, não existe diferença real entre a língua de culturas muito simples e toscas e os povos altamente civilizados da Europa e da América. Da mesma forma, todos os grupos humanos, independentemente do primitivismo de sua cultura, têm um vocabulário suficientemente pormenorizado e completo para anteder a qualquer necessidade que possa aparecer. Ás línguas variam, é claro, segundo a extensão de seu vocabulário, mas esta diferença é cultural e não lingüística. À língua de um povo de cultura relativamente simples ou pouco desenvolvida pode ter um vocabulário menor do que a de um grupo de cultura relativamente complexa e altamente desenvolvida. É notável, porém, que o vocabulário de qualquer grupo, por mais simples que seja sua cultura, parece ser indefinidamente expansível. À medida que novos elementos culturais são inventados ou emprestados, o vocabulário aumenta ou se modifica de modo a atender as novas exigências. HOMEM, CULTURA E SOCIEDADE Finalmente, todas as línguas possuem um sitema claro e definido de gramática. A gramática pode ser sucitamente definida como o arranjo significativo de sons ou combinações de sons para produzir palavras, frases e sentenças. Em todas as línguas encontram-se regras bem definidas que governam esses arranjos, quer sejam faladas pelos pré-letrados pigmeus da floresta do Congo, quer o sejam pelos grupos culturalmente avanãdos da Europa moderna. As semelhanças básicas significam, evidentemente, que a linguagem é uma aquisição humana tão antiga que atingiu mais ou menos o mesmo nível de desenvolvimento entre todos os povos do mundo. Não restam hoje traços de um estádio mais antigo e primitivo de desenvolvimento lingüístico. A ORIGEM DA LINGUAGEM A língua falada evidentemente não deixa vestígios nos antigos depóstios que assinalam a história das culturas humanas. Os registros escritos das línguas humjanas tiveram iníncio há alguns milhares de anos apenas. Antes disso nenhum grupo humano dominava a técnica da escrita. É óbvio, pois, que não temos nenhuma evidência direta relativa à origem da linguagem ou ao longo período que medeia entre os seus primórdios e os primeiros registros escritos. Por conseguinte, o problema da origem da linguagem nunca será resolvido, no sentido de que venhamos a conhecer diretamente as circunstâncias sob as quais surgiu, ou os fatos históricos específicos do seu processo de desenvolvimento. Formularam-se muitas teorias sobre a origem da linguagem. A maioria delas, entretanto, baseia-se em duas hipóteses centrais: a teoria das interjeições e a teoria da imitação de sons, ou onomatopéia. As teorias das interjeições sustentam, de modo geral, que as interjeições ou os gritos involuntários, por serem muito semelhantes em todas as línguas modernas, formam o estrato mais primitivo das palavras empregadas pelo homem. Segue-se que todas as outras formas devem ter derivado daí, de uma ou outra maneira. Pelas teorias da imitação de sons, palavras como au au, miau, cho cho, ou ding dong, e tentativas semelhantes de imitação das vozes de animais e ruídos, assinalam o início da linguagem. Partindo dessa imitação dos sons em seu ambiente, o homem formou os numerosos idiomas falados atualmente. LI N G U A G E M E E S C R I T A Nenhuma das duas hipóteses, contudo, resolve o nosso problema, em grande parte porque não levam em conta verdadeiras formas lingüísticas. Nem os gritos involuntários, nem as palavras imitativas de sons, como tal, constituem formas lingüísticas verdadeiras. Um grito involuntário é na realidade parte da resposta de um indivíduo a um estímulo forte. A expressão oral involuntária de surpresa não é a mesma que a palavra escrita convencional oh! Porque a primeira representa parte da resposta em si, e não simboliza a respota de surpresa, como o Oh! Convencional. Os símbolos lingüísticos verdadeiros, como as palvras, são todos convencionais e arbitrários e seus significados precisam ser aprendidos. Ninguém aprende um grito involuntário: um nenê pode gritar durante muito tempo antes de aprender a falar. Palavras imitativas de sons, da mesma forma, não devem ser confundidas com tentativas de reproduzir sons característicos do meio ambiente. Uma palavra como ding dong, por exemplo, é a representação convencionalizada do som de um gongo, e não é necessariamente auto-evidente para ninguém, a não ser para uma pessoa que fale o idioma em que é empregada e que tenha aprendido a associar o som ding dong ao soar de gongos. Para compreender como apareceram as línguas precisamos saber de que forma o homem veio a estabelecer seus hábitos arbitrários ou convencionais de associação de sons enunciados à experiência. Isto não se explica pela hipótese dos sons imitativos, os quais apenas indicam que o homem, às vezes, designa coisas e ações pelos ruídos que produzem e que esses nomes em certas circunstâncias se tornam realmente parte da língua. Segue-se, pois, que uma teoria útil sobre as origens lingüísticas deve basear-se em análise e estudo mais cuidadoso das línguas modernas. Esses estudos, como já sugerimos, revelam que os elementos da fala, tais como as palavras, frases e sentenças, são símbolos arbitrários. Com isso queremos dizer, símbolos que, em si mesmos, não são parte da realidade ou experiência simbolizada. Assim, por exemplo, a sucessão de sons que constitui a palavra cavalo não tem nenhuma relação necessária com a classe de animais que simboliza. Em resumo, não há nada semelhante a cavalo na palavra cavalo. Acontece simplesmente que as pessoas que falam o idioma aprenderam a associar os sons grafados cavalo com determinada classe de animais, da mesma forma que HOMEM, CULTURA E SOCIEDADE aprenderam a associar as formas cachorro e gato a grupos completamente diferentes de animais. O fato de que os símbolos lingüísticos são quase todos de natureza arbitrária dá ênfase ao aspecto social da linguagem. Os idiomas estão sempre associados a grupos de pessoas; não pertencem a um único indivíduo exclusivamente. Este adquiri sua linguagem do grupo com o qual vive. Se desviar muito da língua faladas pelos outros membros do grupo, corre o risco de ser mal compreendido ou de não ser de todo entendido. Cavalo não é uma palavra peculiar a um único indivíduo que fala o respectivo idioma; é uma palavras usada e entendida quase de maneira idêntica por todos os povos que falam o mesmo idioma. A linguagem nas sociedades humanas tem primariamente função comunicativa e de cooperação. Por intermédio da língua um indivíduo pode não apenas recriar suas próprias experiências pessoais e partilhá-las com os outros como também coordenar seu trabalho com o de outros. Um grupo de homens, dessa maneira, consegue realizar tarefa demasiadamente pesada ou complexa para um só indivíduo. Para ilustras este ponto imaginemos um homem que, caçando sozinho, mata um animal grande demais para ele. Deixa o animal morto e retorna a seu acampamento ou povoado. Lá conta aos outros o que fez e obtém auxílio. Vão com ele ao local onde ficou a caça e ajudam-no a tirar a pele do animal, cortar a carne e carrega-la para o acampamento. Durante todo este processo um indivíduo pode ficar encarregado da operação, indicando por meio de palavras de cada um, de modo que os trabalhos isolados contribuam para terminar o serviço, em vez de atrapalhá-lo. Comparemos a ação descrita acima com um incidente semelhante ocorrido entre lobos, por exemplo. Também aqui temos um grupo social, ainda que formado por animais que não possuem linguagem. Quando um dos lobos mata um animal sozinho, procurará comer o máximo, e não se preocupará ou não poderá informar a alcatéia do seu feito. Mas se os outros lobos chegarem no momento em que estiver matando ou comendo a carcaça, com toda a certeza se juntarão a ele, mesmo sem serem convidados. Cada qual procurará tirar o máximo que puder e, se os despojos não forem suficientemente para todos, os mais fracos nada obterão. As ações dos lobos ao dispor da carne serão isoladas e individuais, sem a menor cooperação ou coordenação. LI N G U A G E M E E S C R I T A É provável que os antigos animais dos quais o homem evoluiu vivessem em grupos muito semelhantes ao dos animais de hoje. Seu comportamento era coordenado apenas em pequeno grau. Cada um trabalhava apenas para si com exceção dos muitos jovens que precisavam dos cuidados de um adulto. Em certas ocasiões, porém, a necessidade deve ter forçado um mínimo de cooperação e de esforço coordenado. O primitivo ancestral do homem não era um animal grande em relação a muitos outros que compartilhavam o mesmo ambiente. Deve ter tido, freqüentemente, a necessidade de se defender de animais mais fortes e provavelmente descobriu muito cedo que essa defesa era mais eficiente quando realizada em cooperação com seus semelhantes. Aumentando a freqüência desses empreendimentos cooperativos, o hábito que se criou pode facilmente ter levado à cooperação em outras circunstâncias como, por exemplo, a caça a grandes animais como recurso alimentar. Até os lobos caçam em conjunto e, quando o fazem, correlacionam seus esforços de trabalho até certo ponto pelo menos. Entretanto, o desenvolvimento do trabalho cooperativo não foi o único fator determinante do aparecimento da linguagem. Muitos insetos cooperam entre si, sem que possuam linguagem. Mas a cooperação entre os insetos tem evidentemente um caráter diferente daquela entre os homens. Diversamente dos insetos sociais, os homens não nascem para determinado papel em seu grupo social. O homem precisa aprender a adaptar seu comportamento aos papéis proporcionados pela sociedade e a linguagem é instrumento fundamental para esse tipo de aprendizagem. Jamais saberemos como e por que caminhos os ancestrais do homem chegaram a empregar a linguagem como recurso para o trabalho cooperativo. Entretanto, é licito supor com segurança que o primitivo ancestral do homem podia fazer e fazia ruídos. Talvez os ruídos que acompanhavam os trabalhos empreendidos em conjunto passarem lentamente a simbolizar as várias ações e objetivos envolvidos nas várias tarefas. De qualquer forma, parece quase certo que a linguagem surgiu como resultado do trabalho conjunto do homem tendo em vista um objetivo comum. Sejam quais forem as razões, os primitivos ancestrais do homem foram obrigados a adquirir essa capacidade, de maneira que eles, e somente eles entre todos os animais, descobriram o instrumento linguagem, o qual, mais do que outro qualquer, torna efetiva a atividade cooperativa e coordenada.