CONTRADIÇÃO LÓGICA À CONTRADIÇÃO PERFORMATIVA: SOBRE A PERFORMATIVIDADE TRANSCENDENTAL: Hugo Mari PUC Minas Introdução Em Apel (1986)1,discutem-se as implicações da fundamentação filosófica de uma Ética do Discurso. As duas categorias básicas da discussão do autor, a saber, Ética e Discurso, implicam percursos distintos quer pela Filosofia Política, quer pela Filosofia Analítica, quer pela Lingüística. Ao longo de todo esse percurso, Apel demonstra, por exemplo, limites e aporias do sistema kantiano para a formulação de uma ética pós-convencional, da mesma forma que aponta dificuldades e restrições sobre o alcance das questões de linguagem desenvolvidas, até então, numa dimensão de cálculo lógico-formal do significado. Essas duas orientações críticas, primordiais ao seu projeto, destaca, em cada uma dessas dimensões, princípios, pressupostos, pretensões necessários à construção de um tal sistema. Assim, em particular, da crítica ao formalismo no trato da linguagem, desenvolvido pela lingüística moderna, e da necessidade de uma retomada de princípios e fundamentos constitutivos do pragmatismo propagados pela Teoria dos Atos de Fala, emerge um novo paradigma de linguagem como instância necessária à fundamentação ético-argumentativa de todo saber racional. Ao longo desse texto, estaremos ressaltando um dos aspectos da sua questão central de análise, voltado para problemas específicos desse paradigma, no que diz respeito a sua relação com a Teoria dos Atos de Fala. 0 programa de linguagem que dará sustentação a todos os princípios a serem discutidos como argumentos em favor de uma dimensão ética dos discursos práticos e teóricos, baseia-se em aspectos da Teoria dos Atos de Fala, a partir da versão desenvolvida por Austin2 (ênfase no valor performativo de atos de linguagem particulares) e ampliada por Searle3 (ênfase na força 1 APEL, Y.C. Necessidad, dificuldad y posibilidad de una fundamentación filosófica de la Ética en la época de la Ciencia. Estudios Éticos. Barcelona: Alfa, 1986. p.105-173. El concepto hermenéutico transcendental del lenguaje. 2 AUSTIN, J.R. Quando dizer é fazer. Palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. 3 SEARLE, J. Os Actos de Fala. Um ensaio de filosofia da linguagem. Coimbra: Almedina, 1981. ilocucional de qualquer proferimento). A partir desses dois enfoques, portanto, podemos caracterizar as condições necessárias mínimas para a existência formal de um Ato de Fala, com base na associação de uma força ilocucional a uma proposição, isto é, atribuindo a qualquer formato proposicional um grau de performatividade. 0 primeiro elemento dessa correlação materializa o conjunto possível de todas as forças ilocucionais (assertivas, declarativas, comissivas, diretivas e expressivas) partilhadas nos proferimentos lingüísticos. Nessa nova concepção, os performativos apenas objetivam a realização de uma força num dos pontos mencionados, particularizando modos possíveis de sua realização. Por exemplo, a força comissiva pode realizar-se através de modos distintos, quando determinada, entre outras coisas, por performativos exclusivos: prometer, pretender, planejar etc. Essa conjunção de força ilocucional a uma proposição (F(P)), todavia, não assegura, plenamente, o funcionamento de ato de fala que requer parâmetros intencionais (a sinceridade de quem faz uma promessa em cumpri-la) e parâmetros convencionais (uma distribuição de papéis hierárquicos dos sujeitos envolvidos com uma ordem, por exemplo). Além desses parâmetros exteriores, um ato de fala, para ser bem sucedido, numa dada circunstância, requer ainda, internamente, certas condições sobre o conteúdo proposicional que precisam ser determinadas. Esse quadro de estratégias e de conceitos que compõem a teoria dos atos de fala, do ponto de vista empírico, regula ações intersubjetivas, prescreve compromissos interativos e normatiza comportamentos de sujeitos historicamente determinados. Mas não é apenas esse estatuto de regulação interlocutiva e social dos atos que interessa a Apel: interessa-lhe, sobretudo, os seus fundamentos, seus princípios como condição fundadora de qualquer prática intersubjetiva racionalmente válida. Vistos nessa dupla extensão, os atos figuram como condições de possibilidade para fundamentação de uma prática racional, justificada a partir de normas éticas válidas para toda argumentação intersubjetiva. Esse propósito do autor baseia-se na possibilidade e, em conseqüência, na necessidade de que uma fundamentação da ética do discurso pelo acionamento, no plano da argumentação discursiva, de duas estratégias complementares: de um lado, a autoreflexividade da linguagem que possibilita reconhecer aquilo que já se encontra posto pela própria linguagem e que só mesmo através dela tenho acesso. Aqui é preciso ressaltar o fato de que qualquer ato discursivo exige, como condição primeira, pretensões ao sentido, sem o que seria impossível imputar validade aos nossos atos que tomassem a linguagem como medium. De outro, e de forma complementar, a contradição performativa que torna impossível a refutação, por meio da performatividade inerente aos atos de fala, de conteúdos proposicionais. Essas duas condições, pretensões ao sentido e performatividade, implicam o fato de que todo pensar racional deva satisfazer condições de expressabilidade, fundamentadas a partir da possibilidade de uma discursividade intersubjetiva. Esses fatos, por sua vez, fazem da linguagem "medium intranscendível" para todo pensar, conhecer e agir racionalmente aceitos numa comunidade ideal de comunicação, os quais, instrumentalizados por meio de atos de fala, devem satisfazer pretensões à validade (isto é, pretensões à verdade, à correção e à veracidade). Assim, se a discursividade se torna condição não só para todo pensar, mas também para todo conhecer e agir, quaisquer atos, decorrentes dessas funções, só podem ser validados por meio de normas éticas apropriadas a todo argumentar intersubjetivo. De toda forma, algumas questões podem ser levantadas a partir desse propósito do autor. Por exemplo, por que as formas de validação precisam ser filtradas pela intersubjetivadade? Por que esse apelo polifônico, que se abre para a alteridade, elege um território ético-semântico-pragmático como arena arbitral ? Respostas a questões como essas acabariam por exigir um conhecimento muito extenso daquilo que representa todo o projeto do autor e isso está fora dos objetivos desse texto. Entretanto, algumas observações já são destacáveis nessa reflexão. Podemos contrastar uma argumentatividade intersubjetiva com uma argumentatividade formal; uma fíltragem intersubjetiva com uma filtragem monológica; resoluções discursivo-agumentativas com resoluções lingüístico-formais. Da seleção desse "novo" território para a reflexão filosófica, decorre a opção pela primeira categoria de cada uma das oposições acima, as quais representam aspectos importantes na fundamentação do novo paradigna da linguagem. Por outro lado, essa convergência de fatores encontra na teoria dos atos de fala um instrumento para validar a discursividade dos fatos, dos atos humanos mediante a imposição de exigências de um princípio de racionalidade das ações, mediadas por proferimentos linguísticos, o que se torna possível em razão da articulação de duas categorias, isto é, a força ilocucional e a proposição. Assim, pretensões à verdade precisam ser alcançadas em relação ao nível proposicional, enquanto pretensões à correção e à veracidade, em relação à força ilocucional. Essa reorientação reflexiva elege, portanto, a discursividade, como instância de decisão para todo saber intersubjetivamente válido. 2. Proposta Na discussão abaixo, a partir do alcance atribuído à teoria dos atos de fala, pretendo avaliar aspectos da questão básica que evolve a contradição performativa, seja no seu plano empírico, como decorrência direta da teoria dos atos, seja na sua dimensão transcendental, na atribuição que lhe imputa Apel. Pretende-se discutir, portanto, questões como: (a) existe uma performatividade a que se possa aplicar a predicação ser transcendental? (b) essa performatividade é "postulada" a partir de alguma propriedade dos performativos empíricos? (c) essa performatividade é um mero "construto", destinado a filtrar alguma forma de contrradição? 3. Entre a contradição lógica e a performativa 0 fato de Apel reivindicar argumentos visando a pretensões à verdade, à veracidade etc., para justificar a contradição performativa, não assegura qualquer teor de validade sobre a natureza de objetos e de princípios para os quais se possa reivindicar uma performatividade transcendental: para qualquer nível de análise não estaríamos numa situação a poder abdicarse dessas pretensões. Importa o fato de se exigir que uma tal performatividade deva ser minimamente justificada a partir de performativos empíricos que sirvam de argumentos contrastivos em favor da evidência de uma contradição performativa? Certamente, condições que devam prevalecer para a realização de performativos empíricos (ou das possibilidades de uma contradição performativa nesse nível) não podem simplesmente serem transpostas a um outro patamar de formulação. Mas essa incongruência, todavia, já pode pressupor o fato de que alguma condição precisa ser apontada, como garantia de funcionamento de uma performatividade transcendental, para o qual se reivindica a fundamentação última. Enfim, se essa performatividade tem o nome de performativo, se tem feição estrutural de um performativo, não deveria, portanto, guardar algum vínculo indicativo das condições de possibilidade que definem performativos empíricos ? Entretanto, a afirmação de Apel de que o transcendental não pode vir a ser objetivado, requer, nessas condições, o entendimento de que não se pode desse fato extrair qualquer ilação sobre a impossibilidade de que ele também não possa ser racionalmente compreendido. Toda racionalidade que derivamos logicamente do termo contradição (ainda que seja uma contradição em nível transcendental, recursos de metalinguagem ulteriores podem ser acionados para demonstrá-la, como categoria lógico-formal que é) não pode aqui ser eliminada da reflexão; e ainda, se essa compreensão, isto é, o reconhecimento de tal contradição não se tornasse partilhável em contextos de fala intersubjetivo, o seu teor transcendental, como condição de possibilidade do saber, seria também obliterado. Enfim, afirmar a impossibilidade de objetivação do transcendental não implica excluí-lo da esfera de uma compreensão racional, fundamentada através de proferimentos discursivamente válidos. Em que termos, portanto, pode repousar alguma argumentação que possa validar intersubjetivamente a compreensão da contradição performativo-transcendental? Na seção seguinte, discutirei os aspectos que considero relevantes para um balizamento do problema colocado, ressaltando uma oposição inicial entre contradição lógica e contradição performativa. 3.1 - CONTRADIÇÃO LÓGICA: Na avaliação dessa questão, estou partindo de alguns exemplos, cujo formato lembra também o formato de estruturas performativas, permitindo, assim, um contraste mais direto entre estes dois tipos de contradição: (a) É verdadeiro [que P [a neve é branca] é verdadeiro]. (b) É verdadeiro [que P [a neve é azul] é falso]. (c) É falso [que P [a neve é branca] é verdadeiro]. (d) É falso que P [[a neve é azul] é falso]. (sendo P proposição assertiva, como exemplificado acima, para a qual estamos afirmando sua verdade ou sua falsidade) Na análise de primeiro subconjunto, (a) e (b), podemos inferir que a proposição mais geral "E verdadeiro..." numa hipótese de aceitação da sua verdade, não impõe condições especiais sobre o valor-verdade de "que-P...". Isto é, não há uma exigência explícita de que VERDADEIRO OU FALSO (em "que-P" pudesse bloquear a verdade de toda a proposição). Em outras palavras, a VERDADE de (a) e de (b) podem ser asseguradas, seja pela VERDADE de "que-P" seja pela sua FALSIDADE. Mas, em que circunstâncias isso se torna possível, isto é, de que tipo de verdade estamos tratando, quando saltamos de um nível proposicional para outro? De fato, o teor de atribuição de valor-verdade nos conjuntos acima é distinto, ao menos numa forma de pensá-la: o valorverdade da extensão maior de cada uma das proposições VERDADEIRO OU FALSO... - se dá por uma possibilidade formal, trata-se de uma verdade metalingüística. Nestes casos, estamos valorando a verdade ou a falsidade material contida em cada uma das proposições. A verdade destas proposições - ... QUE P – é alcançada por alguma forma inferencial que permite ajustar o seu valor semântico com algum fato do mundo. Nos casos (c) e (d), porém, deduz-se uma incompatibilidade entre o valor-verdade exterior da proposição – a sua dimensão metalingüística – e o valor-verdade atribuído a “que-P”. Assim, tanto (c) quanto (d) são falsas, porque do contrário estaríamos admitindo contraditoriamente a sua verdade em relação a (a) e (b). Assim, estruturas desse tipo precisam ser filtradas com a finalidade de bloquear a contradição lógica que acabam por produzir. 3.2 – CONTRADIÇÃO PERFORMATIVA Considerando, nesta primeira abordagem, a contradição performativa ainda numa extensão empírica, podemos reescrever os exemplos acima, substituindo o operador lógico, por um operador performativo qualquer (assevero/nego) para preservar o contraste entre os subconjuntos originais. Podemos, então, obter: (a') Eu assevero [que P [a neve é branca] é verdadeiro]. (b') Eu assevero [que P [a neve é azul] é falso]. (c') Eu nego [que P [a neve é branca] é verdadeiro]. (d') Eu nego [que P [a neve é azul] é falso]. (A natureza de P, nesse caso, cobre proposições de natureza assertiva.) Em (a') e (b') não existe qualquer tipo de contradição: a forma performativa assevero permite "confirmar" não só a VERDADE de uma proposição P com um mundo possível, como a FALSIDADE de P com um mesmo mundo possível, supondo uma incompatibilidade entre as duas predicações aplicadas a neve. Nesse nível empírico, pode, portanto, ser assegurada a equivalência, em termos das condições de verdade, entre este subconjunto, onde ressaltamos um operador performativo, e as proposições (a) e (b) do subconjunto anterior, onde são destacados operadores lógico-formais. Entretanto, em (c') e (d') os fatos não são da mesma ordem: o operador performativo nego "corrige" o valor-verdade das proposições encaixadas, gerando uma contradição entre a natureza já assegurada da proposição que-P e o mundo possível que reportam. Assim, que-P em (c') é VERDADEIRO, enquanto queP em (d’) é FALSO, mas estes valores, quando submetidos a nego, são alterados, produzindo, portanto, uma contradição entre os novos valores e aqueles já assegurados por uma possível correspondência com mundos possíveis. Nos dois casos, estamos, pois, diante de uma contradição performativa que se assemelha, em termos das condições de verdade, ao mesmo tipo de contradição avaliada anteriormente nas proposições (c) e (d), em termos de operadores lógico-formais. Que fatos podemos extrair dessa análise do contraste dos exemplos, na tentativa de mostrar o que aproxima e o que distancia uma discursividade orientada argumentativamente por operadores lógico-formais de uma discursividade orientada por operadores performativos? Num segundo momento, que relevância tem os fatos aqui inferidos para a compreensão do estatuto da contradição performativo-transcendental? Pode-se supor que P possa ter outros formatos como proposição diretiva, comissiva, declarativa e expressiva. Entretanto, tais proposições não seriam avaliadas em função de valor-verdade, mas de outros parâmetros que avaliassem compromissos dos falantes com o seu sucesso, com a sua satisfação, etc. 0 ponto de contraste entre as duas estruturas, no meu entendimento, tem menos relevância para o nosso objetivo principal, porque mostra apenas uma diferença exterior entre uma estrutura impessoal (uma expressão lógica do tipo SER VERDADEIRO/FALSO... e uma estrutura pessoal (a expressão de uma força ilocucional na forma performativa ASSEVERO/NEGO...). Quanto aos pontos de contato, parecem eles nos fornecer elementos mais substantivos de análise. Assim, as mesmas condições de verdade verificadas para o funcionamento do operador lógico "Ser verdadeiro..." foram também verificadas para o funcionamento de "Eu assevero...". 0 mesmo podemos afirmar comparando-se "Ser falso..." com "Eu nego..." em termos das condições de verdade. Todavia, o fato mais importante a ser ressaltado aqui não é, necessariamente, a diferença estrutural mostrada, nem a proximidade das condições de verdade, mas antes dois outros aspectos que apresento na forma de questões: (a) por que a natureza semântica do operador lógico (FALSO/VERDADERIO) é que determina a existência ou não de contradição lógica? e (b) por que essas condições são determinantes para o engendramento de auto-contradição performativa? Os termos da primeira questão já qualificam, em parte, o teor da resposta que pode ser buscada, isto é, trata-se de um problema semântico situado na representação conceitual que pode ser feita do operador FALSO em contraste com VERDADEIRO. Por exemplo. estruturas metalingüísticas que correlacionam: (i) (ii) FALSOJ FALSOJ [que-P... VERDADEIROi] ou [que-P... FALSOi] precisam ser filtradas, pelo fato de engendrarem contradições; ou seja, qualquer que seja o valor-verdade interno (índice i), sob o domínio de FALSO, ele estará sempre sujeito à "retificações", pois o operador de valor-verdade de domínio externo (índice j) prevalece na leitura global. Desse fato, resulta a situação paradoxal que estamos analisando: já que a proposição encaixada tem o seu valor-verdade determinado "antes", então este valor atribuído não poderá ser alterado por uma outra operação lógica posterior, se considerarmos que a "primeira" atribuição de valor-verdade se deve a uma contingência material, enquanto a segunda teria apenas um teor formal. O mesmo não se verifica, pela análise já desenvolvida, em estruturas como: (iii) (iv) VERDADEIROJ VERDADEIROJ [que-P...VERDADEIROI] e [que-P...FALSOI] onde o valor-verdade exterior “aceita” quaisquer formatos de valor material que estejam sob o seu domínio4. Quanto aos operadores performativos, também podemos assegurar que a contradição gerada se deve a propriedades semânticas que podem ser associadas a certos verbos performativos; sua presença na representação conceitual de um performativo assegura a possibilidade da contradição. Por exemplo, a contradição performativa, gerada em (c') e (d’), deveuse a estruturas como: (v) (vi) NEGOJ [que-P...VERDADEIROI] NEGOJ [que-P...FALSOI], e onde o operador performativo "altera" o valor-verdade "antes" conferido a proposições encaixadas, de tal forma que (v) e (vi) se tornam falsas. Tal como no caso do operador lógico VERDADEIRO, o mesmo pode ser assegurado para estruturas como: (vii) (viii) ASSEVEROJ [que-P...VERDADEIROI] ASSEVEROJ [que-P...FALSOI], e onde nenhuma contradição é produzida. O que podemos concluir dessas relações aqui estabelecidas ? Quanto aos operadores lógicos, a contradição resulta da sua natureza semântica, isto é, FALSO contém, na sua representação conceitual, um traço de negatividade que se transfere para outros operadores lógicos sob seu domínio, invertendo o seu valorverdade original e, com isso gerando a contradição lógica. Essa mesma observação pode ser estendida para o operador performativo nego que também possui, na sua representação 4 Aqui estamos considerando que uma atribuição de valor metalinguístico (aquele marcado por um índice j) não pode ser usado para alterar um valor material (marcado pelo índice i). conceitual, o traço de negatividade5 que contamina operadores sob o seu domínio, resultando a contradição performativa. Formulação contrária pode ser apresentada para VERDADEIRO e para ASSEVERO, os quais, pelo fato de não possuírem um traço de negatividade, não engendram qualquer contradição. Assim, o conjunto dos fatos acima apresentados é, no meu entender, suficiente para responder às duas questões anteriormente formuladas. Em que extensão, portanto, os aspectos da questão aqui analisados fornecem evidências para uma compreensão de aspectos da contradição performativo transcendental? Da análise até aqui desenvolvida, as inferências extraídas nos conduzem a pensar em condições de possibilidade da performatividade transcendental, não como forma lingüística de realização de qualquer ato de linguagem, mas como princípios gerais que fundamentam a existência de qualquer forma de discursividade. Então, através dessa formulação, entende-se a razão pela qual não só se deve recusar qualquer forma de objetivação para as condições de possibilidade acima mencionadas, como também recusar a projeção do teor transcendental dessas condições sobre formas concretas de realização da performatividade, isto é, sobre "verbos performativos" específicos. Em que circunstâncias, portanto, a performatividade transcendental se faz valer como um fundamento reflexivo essencial? Sua fundamentação coincide com princípios que são extensivos à própria natureza da linguagem: refiro-me ao caráter biunívoco do princípio da expressabilidade em relação ao princípio da pretensão ao sentido: isto é, para qualquer forma de linguagem pública, a razão pela qual um fato torna-se expressável já implica uma condição primeira de sentido de que este fato se reveste. Contrariamente, se para tal fato não pudéssemos reivindicar sentido, dificilmente também o tornaríamos expressável pela quebra da biunivocidade. Entendo, todavia, que essa formulação, em termos de princípios, mantém uma correlação estreita com aquilo que foi discutido até agora em razão da contradição lógica e da contradição performativa. 5 Trata-se de uma propriedade semântica de certos verbos que exercem tal função. Por exemplo: recusar, refutar, repudiar, objetar possuem, em sua representação conceitual, o traço [+negatividade], enquanto verbos como afirmar, assegurar, confirmar, declarar, o de [-negatividade]. Em outras palavras, tais princípios, no meu entendimento, apenas representam condições implícitas que se materializam em julgamentos metalingüísticos não-contraditórios, da mesma forma que em realizações peformativas não-contraditórias. É, portanto, dessa condição de expressabilidade associada à prentensão ao sentido que decorrem as condições de possibilidade de uma performatividade não-contraditória: a saber, a necessidade de filtrar formulações ulteriores de linguagem que atentam contra ‘conteúdos’ já postos pela própria linguagem. Na extensão desses fatos, fica evidenciada a forma pela qual o alcance dessa transcendentalidade se torna possível: não se trata de qualquer tipo de justificativa exterior, objetivada, mas da condição de autoreflexividade inerente à linguagem. Sob que formato de representação podemos, então, contornar a intuição expressa nessa reflexão? Se de um lado, somos bloqueados na tentativa de uma objetivação desejável dos fatos acima, nem por isso devemos escapar ao compromisso de uma configuração minimamente válida para eles. Assim, da possibilidade racional de sua compreensão resulta o compromisso com "certas condições" a serem determinadas. Na discussão presente, retomo a dupla estrutura dos proferimentos lingüísticos e nela acrescento, a um dos seus elementos, a condição que define a (im)possibilidade de uma (não-)contradição performativa: (ix) [PERFORMATIVO[-negatividade] [PROPOSICIONAL]] (para uma performatividade não-contraditória) (x) [PERFORMATIVO[+negatividade] [PROPOSICIONAL]] (para uma performatividade contraditória) Observando as questões que foram até aqui estudadas, sobressai a convicção de que para compreender um princípio geral, a partir do qual podemos justificar racionalmente a idéia de contradição performativa, nas condições em que foi formulada nesse texto, parece essencial, até mesmo como princípio de fundamentação, que, embora formulada em nível transcendental, tal contradição seja justificada com base em raízes lógicas determinantes. E avançando esta observação um pouco mais, o princípio utilizado na sua fundamentação pode até mesmo servir de parâmetro para amparar a distinção, nem sempre evidente, entre as duas formas de contradição avaliadas nesse texto. Por exemplo, em: (g) Afirmo que eu não existo. (h) Nego que eu existo/a. Em que condições podemos aplicar (ix) ou (x) anteriores para reconhecer a forma de contradição que se faz presente em (g), em (h) e em estruturas semelhantes a elas? Embora tenhamos uma intuição da equivalência semântica entre (g) e (h), já que atribuímos a ambas um valor paradoxal entre a natureza semântica do performativo e a predicação existencial. Esquematicamente, temos: (xi) [AFIRMAR(AFIRMAÇÃO), X [NÃO EXISTIR(NÃO-EXISTÊNCIA), X]]; (xii) [NEGAR(NEGAÇÃO), X [EXISTIR(EXISTÊNCIA), X]], A dificuldade com estes esquemas proposicionais reside no fato de eles serem contraditórios: um afirma a existência de algo que não existe e o outro nega a existência de algo que existe. Assim, se X não existe, X não pode afirmar a sua auto-existência; por outro lado, se X existe, X não pode negar essa auto-existência. Existem, entretanto, outros aspectos a serem considerados na análise destas estruturas: afirmo enquadra-se dentro do parâmetro estabelecido em (ix) onde a restrição é marcada por [-negatividade] e nego ajusta-se a (x), onde a restrição é [+negatividade], o que confirma o primeiro caso como uma contradição lógica, já que o que a produz não é o nível performativo da proposição global, mas o fato de que a existência material de um objeto, que se assevera auto-existente, esteja sendo negada. No segundo caso, temos contradição performativa, já que a incongruência semântica deriva do uso de um performativo, que tem, como representação conceitual, a propriedade de 'recusa’ de conteúdos proposicionais já postos em outros níveis de formulação discursiva. 4. Conclusão Nos comentários acima, procurei discutir aquilo que seria um esforço de compreensão mais preciso para configurar condições mínimas de distinção entre a contradição performativa e a contradição lógica. Desse esforço permanece a constatação de dois fatos fundamentais: (a) a proximidade entre as condições formais que regem o modo de operar dos dois fenômenos para certas estruturas proposicionais, isto é, valor-verdade operando, não sobre proposições, mas sobre valor-verdade, conforme o esquema seguinte: Esquema 1: [É VERDADEIRO [VERDADEIRO / FALSO]] que-P = V não-contraditória que-P = F não-contraditória Esquema 2: [É FALSO [VERDADEIRO / FALSO]] que-P = F que-P = V contraditória contraditória Estes esquemas operam com as mesmas dificuldades já apontadas para um performativo operando sobre valor-verdade, como se pode verificar, substituindo verdadeiro por assevero e falso por nego. As duas observações acima sâo importantes no sentido de destacar que formas proposicionais são, de fato, relevantes para uma análise da contradição performativa. Nem todo formato de estrutura sentencial, ainda que contenha feição performativa, estará sujeita à contradiçâo. For exemplo: (i) Nego que ele seja alto. (j) Nego que ele não seja alto. são frases absolutamente normais para os falantes do português, sem qualquer incongruência semântica gerada pela presença de um performativo. Nenhuma restrição é imposta inviabilizando a “normalidade” semântica de (i) ou de (j), o que me permite negar uma e outra proposição, em tempos diferentes6 , ainda que sejam entre si opostas. Entretanto, mesmo a partir de fatos meramente eventuais, quando atribuídos aleatoriamente a sujeitos eventuais, posso demonstrar a contradição performativa, desde que assuma das proposições encaixadas - ele (não) seja alto - o valorverdade, como critério para operação do performativo. Se fizermos (i) e (j) como: (i') Nego [que P seja FALSO]. (j’) Nego [que P seja VERDADEIRO]. supomos criar condições para fazer emergir a contradição performativa, por negar um valor-verdade que foi a priori atribuído às proposições encaixadas, em razão de alguma correspondência material. Essa questão não é, todavia, tão tranqüila, porque nada nos impede, sem qualquer contradição, negar o conjunto entre parênteses, quando atribuímos a que-P uma outra voz que é diferente daquela de nego. Assim, nada impede que um dado sujeitoi negue o fato de um sujeitoj, haver atribuído o valor FALSO ou VERDADEIRO a um deteminado conteúdo proposicional. Essa parece ser a grande justificativa que permite desfazer qualquer dimensão do teor de contradição performativa que parece existir para algumas formas de proposição. Em outras palavras, uma contradição performativa (e talvez até a contradição lógica em certas circunstâncias) está estreitamente vinculada à identidade das vozes que proferem a verdade de queP e que proferem o performativo. Quando os sujeitos das proposições são idênticos, existe contradição performativa, mas quando são diferentes esta contradição se dissipa. O que, em nome da contradição, pode nos impedir de negar a verdade ou a falsidade de uma proposição, certamente, pode comportar muitos 6 Ou, pretendendo abandonar uma diferença temporal, podemos introduzir índices específicos para o pronome ELE nas duas proposições. outros meandros que fogem a uma abordagem nesse trabalho. Aqui fica apenas esse registro, por onde, julgo, a questão precisaria ser aprofundada. Por fim, a natureza dos objetos que foram propostos para análise neste trabalho requer um grau de detalhamento da forma específica de operar de um grande número de questões voltadas para uma configuração da Teoria dos Atos de Fala, em qualquer uma de suas versões. Implica também a necessidade de uma avaliação mais precisa da forma de interação de certos aspectos dessa Teoria no interior da Lingüística voltada para questões enunciativas. E, principalmente, impõe uma reflexão sobre aspectos cruciais dessa Teoria que não foram ainda resolvidos (intencionalidade, convencionalidade, por exemplo). Esse conjunto de fatores, com certeza, poderá dirimir grande parte das dificuldades remanescentes na utilização da Teoria dos Atos, quando se pretende com ela uma avaliação dos fatores aqui considerados.