2 3ULQFtSLR GR (VWDGR GH 'LUHLWR D SDUWLU GD 7HRULD GR 'LVFXUVR GH -UJHQ+DEHUPDV -RVp(PtOLR0HGDXDU2PPDWL Falar de Jürgen Habermas é tremendamente difícil, em virtude da grandiosidade de sua obra. Sociólogo, filósofo e intelectual público de ponta no cenário mundial, Habermas se notabilizou ao propor um novo paradigma para a compreensão da sociedade moderna: a teoria do discurso. Em seu já clássico 7HRUtD GH OD $FFLyQ &RPXQLFDWLYD, lançada pela Editora Taurus em dois volumes, Habermas pretende rever as principais teorias sociológicas que tentaram explicar a sociedade moderna, mostrando que todas elas são falhas para a explicação de sociedades hipercomplexas como as nossas. Assim, propõe uma nova perspectiva, baseada na teoria social de Talcott Parsons, que está ancorada no conceito de ação comunicativa. Para Habermas, somente é possível entender como uma sociedade plural pode promover integração social se percebermos que as pessoas, mesmo que mais diferentes, conseguem interagir por força da linguagem. E, nessa interação, as pessoas buscam o entendimento, visando ao consenso. A esse tipo de ação Habermas denomina de ação comunicativa. É claro que já naquele momento, 1981, Habermas não desconhecia o fato de que também as pessoas se utilizavam da linguagem para persuadir, controlar outras pessoas, enfim, outras finalidades que não o consenso. A esse tipo de ação, Habermas denominou de ação estratégica. Logo apareceram as mais 1 Este artigo nasceu do pedido feito generosamente a mim pelo Professor Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, da Faculdade Mineira de Direito, da PUCMinas e da Faculdade de Direito da UFMG. O Professor Marcelo Cattoni que, além de amigo, é meu co-orientador no Doutorado em Direito Constitucional da UFMG, telefonou-me pedindo que eu adaptasse a resenha que havia feito do capítulo IV da obra )DFWLFLGDG\9DOLGH] de Jürgen Habermas, para a disciplina 7ySLFRV(VSHFLDLVHP7HRULD*HUDOGR'LUHLWR3~EOLFR, ministrada pelo referido professor no primeiro semestre de 2004, em forma de artigo. Pediu-me, ainda, que introduzisse o leitor na discussão feita por Habermas na referida obra. Aceitei o convite. Pois bem. Antes de fazer uma rápida introdução da obra de Habermas, cujo capítulo aqui iremos tratar, gostaria de dedicar esse artigo e, ao dedicar agradecer, a algumas pessoas importantes. À minha mãe, Fides Angélica de Castro Veloso Mendes Ommati; aos professores e orientadores do meu trabalho de Doutorado em Direito Constitucional, Professores Menelick de Carvalho Netto e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira; aos amigos da FCJ Diamantina, Herman Nébias Barreto, Adalberto Antônio Batista Arcelo, Ewerton Belico de Souza e Rodrigo Prado Mudesto; aos meus alunos da FCJ Diamantina; e, por fim, mas não menos especial, à minha namorada e companheira Sarah. * Professor de Teoria da Constituição, Hermenêutica Jurídica e Direito Constitucional da Faculdade de Ciências Jurídicas de Diamantina; Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela UFMG. diversas críticas à obra de Habermas. E, durante muito tempo, o autor respondeu a elas, sistematizando essas respostas em várias obras. No entanto, o Autor preparava uma obra que se transformaria em marco, não só para a sociologia e filosofia, mas, principalmente, para o Direito. Trata-se de )DFWLFLGDG \ 9DOLGH], obra na qual abordaremos apenas o capítulo IV. Nessa obra, Habermas aproximou-se bastante das perspectivas funcionalistas, tais como a de Niklas Luhmann, sem perder, é verdade, sua preocupação fundamental, a da justificação interna do sistema jurídico e da sociedade como um todo. A partir do giro hermenêutico-pragmático da filosofia que mostra que o homem é fundamentalmente linguagem e, portanto, diálogo(basta lembrarmos de Wittgenstein, quando afirma que não existe linguagem privada), Habermas apresenta o caráter dialógico, lingüístico, da sociedade moderna, visando superar os paradigmas anteriores baseados na idéia de consciência(dentre tantos, citemos, apenas para resumir, Rousseau e Kant). Busca, assim, nessa obra, justificar e fundamentar o direito moderno, baseado na idéia de democracia, mas não mais a idéia clássica de democracia, enquanto periodicidade nas eleições e regra da maioria, mas uma idéia renovada de democracia, democracia radical, em que o público supera o estatal, sendo composto também pela sociedade civil organizada e movimentos de pressão. Mostra o autor em toda sua obra como os princípios da soberania popular, por um lado, e direitos humanos, por outro, vistos até então como antagônicos, podem ser compatibilizados a partir da teoria do discurso. Assim, dá um golpe frontal e certeiro nas perspectivas positivistas, sempre redutoras, que sempre viam paradoxos na relação entre os direitos fundamentais e a soberania do povo. O golpe ao positivismo é mortal quando Habermas mostra que hoje não é mais possível entender como antagônicas as esferas do direito, da moral e da política, para ficarmos apenas nesses três subsistemas sociais. Para o autor, são complementares e co-originárias. Assim, e para o que nos interessa, no capítulo III, mostra como é possível entender a gênese dos direitos fundamentais a partir da teoria do discurso. Esses direitos fundamentais não podem ser vistos como normas que vêm de fora, restringindo o poder da comunidade de se auto-regular, como pensavam os liberais, a partir das idéias de Kant; mas, também eles não podem ficar na dependência dos valores da comunidade, como pensavam os comunitaristas ou republicanos, que se utilizavam das idéias de Rousseau. Ao contrário, os direitos fundamentais possibilitam a autonomia pública e privada dos cidadãos, constituindo-se, ao mesmo tempo, como limites e como condições de possibilidade para a conformação de uma comunidade de homens livres e iguais que se dão normas para reger suas vidas. Após ter reconstruído a idéia do sistema de direitos(direitos fundamentais), Habermas pretende mostrar como, a partir da teoria do discurso, devemos entender o princípio do Estado de direito e da separação de poderes. De acordo com Habermas, a reconstrução do direito teve o valor de uma explicação dos significados básicos. Com o sistema dos direitos, temos a segurança das pressuposições que os membros de uma comunidade jurídica moderna têm que fazer se pretendem ter uma ordem jurídica legítima, sem que seja preciso buscar razões de cunho religioso ou metafísico. Mas, uma coisa é a legitimidade dos direitos e a legitimação dos processos de produção do direito, outra, bastante diferente, é a legitimação do exercício do poder político. Os direitos fundamentais reconstruídos por Habermas, em um experimento mental, são constitutivos de qualquer associação que pode ser entendida como uma comunidade jurídica de membros livres e iguais; nesses direitos, se reflete, em seu nascedouro, por assim dizer, a “socialização” horizontal dos cidadãos. Mas, esse ato autorreferente de institucionalização jurídica da autonomia pública fica incompleto em alguns aspectos essenciais; não pode se autoestabilizar. O instante do mútuo reconhecimento de direitos fica reduzido a um sucesso metafórico; pode, talvez, no máximo, ser recordado e ritualizado, mas não pode nem se consolidar nem se perpetuar, sem se organizar ou sem recorrer funcionalmente a um poder estatal. Se essa interrelação entre autonomia pública e privada, efetuada através do sistema de direitos, deve ter continuidade, o processo de juridicização não deve se limitar às liberdades subjetivas de ação das pessoas privadas e às liberdades comunicativas dos cidadãos. Deve se estender ao poder político pressuposto pelo próprio meio do direito, já que tanto a produção do direito como a imposição do mesmo deve sua capacidade fática de vinculação a essas liberdades citadas acima. Da constituição co-original e do entrelaçamento conceitual de direito e poder político resulta, pois, de uma mais ampla necessidade de legitimação, qual seja, a necessidade de canalizar em termos jurídicos o poder estatal de sanção, organização e execução. Esta é a idéia de Estado de Direito, trabalhada por Habermas na parte I desse capítulo. Esta idéia será esclarecida pelo autor, ao analisar as condições que devem se cumpridas para a geração do poder comunicativo. Isso será discutido por Habermas na parte II. Ao final, na parte III, Habermas discutirá essas idéias e como poderão ser empregadas junto com o poder administrativo. I O direito, se for observado a partir de sua função própria, ou seja, a de estabilizar expectativas, se apresenta como um sistema de direitos. Mas, esses direitos subjetivos somente podem ser postos em vigor e apenas podem ser cumpridos através de organizações que tomem decisões coletivamente vinculantes. Por sua vez, essas decisões devem seu caráter coletivamente vinculantes à forma jurídica que se revestem. Essa conexão interna do direito com o poder político se reflete nas implicações que, enquanto direito objetivo, têm os direitos subjetivos, implicações essas já analisadas por Habermas. O direito a iguais liberdades subjetivas de ação se concretiza através de direitos fundamentais que, enquanto direito positivo, trazem consigo ameaças de sanção e que assim ganham força contra o descumprimento dessas normas de direitos fundamentais. Pressupõem, assim, a capacidade de sanção por parte de uma organização que disponha de meios para o emprego legítimo da violência com o intuito de fazer respeitar as normas jurídicas. Isso diz respeito ao aspecto sob o qual o Estado mantém, na reserva, uma violência aquartelada para, digamos, dar “cobertura” e credibilidade a seu poder de mando. O direito a iguais direitos no que toca à condição de membros da associação voluntária, que é a comunidade jurídica, pressupõe um coletivo delimitado no espaço e no tempo, com o qual seus membros se identifiquem e que possam imputar suas ações como parte de um mesmo contexto de interação. Tal coletivo somente pode se constituir como comunidade jurídica se dispuser de uma instância central que esteja facultada para atuar em nome do todo. Isso concerne ao aspecto de autoafirmação, sob o qual o Estado põe em jogo sua capacidade de organização e autoorganização para manter em relação ao exterior e interior a identidade da convivência juridicamente organizada. O direito à proteção dos direitos individuais se concretiza através de direitos fundamentais que fundam pretensões relativas à possibilidade de uma justiça que julgue de forma independente e imparcial. Esses direitos pressupõem, portanto, o estabelecimento de uma administração da justiça estatalmente organizada que faça uso do poder de sanção do Estado, para decidir autoritativamente os casos litigiosos, e da capacidade de organização do Estado para proteger, desenvolver, aperfeiçoar e dar maior precisão ao direito. O direito a uma produção de normas politicamente autônoma se concretiza, finalmente, em direitos fundamentais que fundam iguais pretensões em relação ao direito de participar dos processos democráticos de legislação. Esses processos devem, por sua vez, ser instituídos com a ajuda do poder organizado estatalmente. Ademais, a formação da vontade política instituída como poder legislativo, se remete e depende de um poder executivo que possa executar e implementar os programas acordados. Isso diz respeito ao aspecto central sob o qual o Estado se diferencia como uma “instituição” para o exercício burocrático da dominação legal. O poder do Estado somente adquire uma forma institucional estável e fixa na e com a organização das administrações públicas em termos de uma hierarquia de cargos. O alcance e o peso do aparato estatal dependem de em que medida a sociedade recorre ao meio que é o direito, com o objetivo de operar e influir com vontade e consciência sobre seus próprios processos de reprodução. Essa dinâmica de atuação, operação e influxo sobre si mesma torna-se acelerada ao se introduzir “direitos sociais” que fundam pretensões relativas ao cumprimento de condições sociais, culturais e ecológicas para o gozo dos direitos de liberdade de caráter privado e dos direitos de participação política em igualdade de oportunidades. Em uma única palavra, é necessário o Estado como poder de sanção, como poder de organização e como poder de execução, porque os direitos devem ser impostos, porque a comunidade jurídica precisa tanto de uma força estabilizadora de sua identidade como de uma administração organizada de justiça e porque da formação da vontade política resultam programas que devem ser implementados. Mas, tudo isso não é apenas um complemento funcionalmente necessário do sistema de direitos, e sim implicações que, em relação ao direito objetivo, já estão contidas LQQXFHnos direitos subjetivos. Isso porque o poder estatalmente organizado não entra, por assim dizer, a partir de fora para se colocar ao lado do direito, mas é pressuposto pelo próprio direito e se autoestabelece em formas jurídicas. O poder político apenas pode se separar de si mesmo através de um código jurídico que tenha sido institucionalizado na forma de direitos fundamentais. Assim é que o constitucionalismo alemão, com a sua idéia de Estado de Direito, começa estabelecendo uma conexão que gera um curto-circuito entre os direitos de liberdade e o poder estatal. O Estado de direito tinha por objetivo garantir a autonomia privada e a igualdade jurídica dos cidadãos. No entanto, a fundamentação do sistema dos direitos a partir da teoria do discurso deixa clara a conexão interna entre autonomia privada e pública. Seu sentido normativo pleno não é dado apenas pelo direito através de sua forma, nem por um conteúdo moral dado D SULRUL, mas por um procedimento de produção legislativa, que gera legitimidade. Neste aspecto, o conceito material de lei da teoria liberal do direito político de Mohl, Rotteck, Welcker e outros, oferece uma resposta melhor para a idéia democrática de Estado de Direito. Por “ lei” entendiam esses autores uma regra geral e abstrata que se produz com a aprovação da representação popular em um procedimento caracterizado pela discussão e pela publicidade. A idéia de Estado de Direito exige que as decisões coletivamente vinculantes do poder estatal organizado ao qual o direito tem que recorrer para o cumprimento de suas próprias funções, não apenas se revistam da forma do direito, como também por sua vez se legitimem atendo-se ao direito legitimamente estabelecido. Não é a forma jurídica como tal o que legitima o exercício da dominação política, mas apenas a vinculação ao direito legitimamente estatuído. E no nível pós-tradicional de justificação, apenas pode ser considerado legítimo o direito que possa ser racionalmente aceito por todos os membros da comunidade jurídica em uma formação discursiva da opinião e da vontade. Mas, inversamente, isso traz como conseqüência para o exercício cidadão da autonomia política uma incorporação ao Estado, já que a atividade legislativa se constitui como um poder no Estado. Com o passo da “ socialização” horizontal de cidadãos que reconhecem direitos de forma recíproca, para a forma organizativa de “ socialização” vertical representada pelo Estado, a práxis da autodeterminação dos cidadãos se institucionaliza, e fica institucionalizada como formação informal da opinião no espaço público político, como participação política dentro e fora dos partidos, como participação nos processos eleitorais, na deliberação e tomada de decisão dos Parlamentos, etc. Uma soberania popular já internamente entrelaçada com as liberdades subjetivas, se entrelaça mais uma vez com o poder organizado estatalmente, e isso de forma que o princípio segundo o qual “ todo poder do Estado emana do povo” se realiza através de pressupostos e condições da comunicação e de procedimentos de uma formação da opinião e da vontade comuns, institucionalmente diferenciada. No Estado de Direito entendido a partir da teoria do discurso, a soberania popular não se encarna mais em uma assembléia intuitivamente identificável de cidadãos autônomos; a soberania popular se retrai e se direciona para os circuitos de comunicação por assim dizer carentes de sujeito, que representam os foros e os organismos deliberativos e decisórios. Apenas nessa forma anônima, pode seu poder(da soberania popular) comunicativamente fluido ligar o poder administrativo do aparato estatal à vontade dos cidadãos. No Estado Democrático de Direito, o poder político se diferencia, como mostrará Habermas, em poder comunicativo e poder administrativo. Para reconstruir essa conexão interna entre direito e poder político, é essencial evitar de antemão um malentendido. Aqui, não se trata do gradiente entre norma e realidade, ou seja, não se trata do poder como uma faticidade social, ante o qual as idéias pudessem se tornar ridículas. Ao invés disso, a análise se dá mostrando a tensão entre faticidade e validade, imanente ao próprio direito. Habermas mostrou essa tensão inicialmente na dimensão da validade jurídica, como tensão entre a positividade e a legitimidade do direito, e dentro do sistema dos direitos, como tensão entre a autonomia pública e privada. Com a idéia de Estado de Direito, a perspectiva se amplia. Dos direitos passamos para uma dominação organizada em forma de direito, cujo exercício tem de estar ligado ao direito legítimo. Com a aplicação reflexiva do direito ao poder político que o direito pressupõe, desloca-se a tensão entre faticidade e validade para uma outra dimensão: essa tensão retorna ao poder político constituído em termos de Estado de Direito. A dominação política se apóia em um potencial de ameaça e sanção, que vem coberto através de meios de violência aquartelados; mas, simultaneamente, vem autorizada pelo direito legítimo. O entrelaçamento entre o direito e o poder político caracteriza a passagem das sociedades organizadas por parentesco para as primeiras sociedades organizadas estatalmente, que originariam os impérios antigos com suas culturas superiores. Esse entrelaçamento só se converte em um problema nas sociedades de transição de princípios da modernidade. É somente com Maquiavel que começa a ser entendido em termos naturalistas um poder estatal que sai dos contextos das tradições de tipo sagrado e que pode agora ser submetido a cálculo, a partir de pontos de vista estratégicos, por aqueles que o possuem e ser utilizado de forma racional com relação a fins. As evidências desse novo poder administrativo, concentrado no Estado monopolizador da violência levam os teóricos do direito natural racional a essas concepções com as quais tratam de explicar a interação entre o direito estatalmente sancionado e o poder organizado em termos jurídicos. Hobbes conta, por um lado, com a estrutura da regra, ou seja, com a estrutura regulada, normativa, das relações definidas por contratos e por leis e, por outro, com o fático poder de mando de um soberano, cuja vontade pode dobrar qualquer outra vontade sob a terra. Por força de um contrato de dominação, se constitui, então, um poder do Estado através do qual essa vontade soberana assume funções legislativas, consciente em dar a suas manifestações imperativas a forma de direito. Mas, o poder da vontade do senhor canalizado mediante leis, segue sendo, no essencial, o poder substancial de uma vontade fundada na pura decisão. Essa vontade se liga a uma razão abstrata e reduzida na forma da lei, com o único objetivo de servir-se dela. Nessa construção, a faticidade de um poder quase natural de mando se associa – sem qualquer mediação – com a estrutura normativa de leis que outorgam aos súditos liberdades subjetivas de ação. Os rastros desse antagonismo não foram eliminados nem por Kant nem por Rousseau, mesmo que nesses autores é a razão plasmada em uma estrutura de regra ou normativa elevada agora a autonomia, a encarregada de reger a tomada de decisão para o povo unido. Os conceitos básicos do direito natural racional, articulados em termos de filosofia do sujeito, impediam e continuam a impedir que se preste atenção em termos sociológicos à capacidade sociointegradora desse substrato quase natural que formam as sociedades pré-estatais, com o qual seria possível conectar e do qual poderia ter partido já há alguns milênios o complexo formado pelo direito e poder político. O complexo estatal de direito e política pode, portanto, levantar-se sobre um fundamento arcaico de integração social, que nas construções jusnaturalistas do estado de natureza não são levados em conta. Para essa gênese de direito e política, Habermas elege a forma de exposição de um modelo abstrato, modelo que, para a reconstrução conceitual, sublinha somente alguns elementos relevantes de uma pletora inabarcável de material antropológico. Para isso, Habermas pretende construir dois tipos de solução de conflitos interpessoais e de formação da vontade coletiva, que não façam uso nem de um direito estatalmente baseado na sanção nem de um poder político articulado em termos jurídicos, mas que constituam o fundamento sobre o qual o direito e o poder político possam reciprocamente se constituir. Para o sucesso dessa empreitada, Habermas parte da teoria de Parsons, entendendo que as interações sociais, concatenadas no espaço e no tempo, ficam submetidas às condições de uma dupla contingência. Os atores supõem entre eles que cada um deles poderia em princípio decidir de forma distinta ao realmente decidido. Assim, e por força disso, é que qualquer ordem social com padrões de comportamento relativamente estáveis tenha que se apoiar em mecanismos de coordenação de ação: geralmente, na influência e no entendimento mútuo. Se a coordenação não se produz, decorre disso seqüências anômicas(no sentido de Durkheim) de ação, que são percebidas pelos próprios implicados como um problema. A resolução dos conflitos sociais se refere, de acordo com Habermas, e seguindo Parsons, à estabilização de expectativas de comportamento para o caso de conflito; a formação coletiva da vontade se refere à eleição e efetiva realização de fins e metas suscetíveis de consenso. É nesse sentido que Parsons fala de SDWWHUQ PDLQWHQDQFHe de JRDODWWDLQPHQW. De acordo com o tipo de ação e com a perspectiva do ator, os problemas de coordenação da ação são percebidos de maneira distinta. No caso da ação orientada a, e por, valores, os atores buscam, ou apelam a, um consenso; no caso de uma ação guiada por interesses, buscarão os atores um compromisso. A prática do entendimento se distingue da prática da negociação tendo em vista o objetivo a ser alcançado: a conciliação que se busca é entendida no primeiro caso como consenso e no segundo, como um arranjo ou negociação. Apela-se, no primeiro caso, a normas e valores, e no segundo, a ponderação de interesses e constelação de interesses. Não é casual que as quatro estratégias de solução de problemas deduzidas por Habermas possam ser ilustradas recorrendo-se a instituição de solução de conflitos e de formação da vontade coletiva nas sociedades organizadas por laços de parentesco. Mas, essas questões relacionadas à antropologia do direito não interessarão ao autor aqui tratado. Para as considerações posteriores, Habermas mostra que é importante apenas o fato de que as técnicas que representam a negociação(arbitragem) e a “ formação de compromissos” descansam em posições sociais de poder que se formam através de graus de prestígio entre associações de famílias hierarquicamente estratificadas e através da diferenciação entre os papéis de anciãos, sacerdotes e caudilhos(em tempos de guerra ou de paz). Este poder social se distribui de acordo com um sistema de VWDWXV que representa um emaranhado de normas baseado em imagens religiosas do mundo e em práticas mágicas. Somente as outras duas técnicas, ou seja, a resolução de disputas mediante o consenso e uma formação da vontade coletiva através da autoridade se apóiam diretamente em um complexo normativo, no qual, contudo, se mesclam costumes, moral e direito. Partindo desses supostos, Habermas pretende representar a constituição cooriginária do direito estatal e do poder político de acordo com um modelo articulado em dois níveis. O primeiro nível vem caracterizado pela posição de um juiz-rei que monopoliza as funções de solução de conflitos; o segundo nível vem caracterizado pela institucionalização jurídica de um VWDII de dominação, que torna possível a formação da vontade coletiva na forma organizada da dominação política. Assim, um caudilho que, em um primeiro momento, apenas dispõe de um poder social decorrente do prestígio e reconhecido em termos fáticos, pode reunir sobre si as funções até então dispersas de solução de conflitos, assumindo a administração dos bens salvíficos e convertendo-se em intérprete exclusivo das normas da comunidade, reconhecidas como sagradas e moralmente obrigatórias. Como o direito sagrado representa uma fonte de validade e justiça, a partir da qual pode se legitimar o poder, o VWDWXV desse juiz-rei cobra autoridade normativa: o direito sacro pré-estatal, entrelaçado com o costume e com a moral, autoriza a posição de quem se erigiu em seu intérprete. Assim, o poder inicialmente fático se transforma em poder legítimo. Essa transformação do poder social em poder político não pode, no entanto, se efetuar sem uma simultânea transformação do direito sacro. Isso porque a prática de resolução de conflitos, ao cair nas mãos de quem possui um poder autorizado em tais termos, passa agora a se assentar em normas que, para além de sua obrigatoriedade puramente “ moral” , cobram a validade afirmativa de um direito faticamente imposto. O poder social quase natural do juiz-rei vem coberto e respaldado por alguns recursos de violência e coerção, dos que agora podem administrar a justiça em decorrência das ameaças de sanção: este poder pré-estatal afirma o direito costumeiro, que até agora apenas vivia da autoridade sagrada, e o transforma em um direito sancionado pelo príncipe e com isso em um direito vinculante. Há uma retroalimentação entre esses processos: a autorização do poder pelo direito sagrado e a sanção do direito pelo poder social se efetuam como um único ato. Assim, surgem o poder político e o direito estatalmente sancionado como dois ingredientes do poder estatal organizado em termos jurídicos. No segundo nível do modelo de Habermas, os ingredientes co-originários que são o direito estatal e o poder político, se juntam na institucionalização de cargos que tornam possível uma forma organizada de exercício da dominação política, em uma palavra, tornam possível a dominação estatalmente organizada. Nesse momento, o direito não apenas legitima o poder político, como também o poder político pode se servir do direito como um meio de organização. Essas reflexões de Habermas se ligam às realizadas pelo autor no capítulo III da referida obra, quando mostra a relação co-originária entre Direito, Política e Moral.2 O direito empresta para o poder forma jurídica, constituindo assim o código binário que representa o poder.3 Quem dispõe de poder pode dar ordens aos demais. Neste aspecto, o direito atua como meio de organização do poder estatal. Inversamente, o poder, ao fazer respeitar as decisões judiciais, serve para a constituição do código binário que representa o direito. Os tribunais decidem acerca do quê é de direito e do quê não é de direito, sobre o “ justo” e o “ injusto” . Nesse sentido, o poder serve para a institucionalização estatal do direito.4 É apenas no mundo moderno que a dominação política pode se desenvolver através das formas do direito positivo e se converter no que Weber denominou de 2 Nesse sentido, vide as reflexões de Habermas a partir da p. 160 da obra que estamos analisando. Aqui, apesar de Habermas citar Parsons, considero mais correto entender essa afirmação a partir de Luhmann, para o qual a diferença entre política e direito se dá no nível da diferença entre os códigos dos dois sistemas sociais diferenciados funcionalmente. No entanto, como diz Luhmann, o fato de direito e política serem distintos, apresentando códigos distintos, funcionando, portanto, de forma diferenciada, não implica em uma rígida separação entre eles. Não é à toa que Luhmann afirma paradoxalmente que a condição de possibilidade do fechamento sistema social é sua condição de abertura. Assim, podemos entender a afirmação de Habermas de que o direito ao emprestar forma jurídica para o poder, acaba por diferencia-lo do direito e de outros sistemas sociais, ao marcar a diferença básica entre o que é direito e o que é poder(ou política). 4 Mais uma vez, Habermas se utiliza, sem mencionar, das reflexões de Niklas Luhmann, ao mostrar o acoplamento estrutural entre direito e política, através da Constituição formal e rígida. Como mostra Luhmann, a Constituição formal e rígida, dentre outros benefícios(enquanto aumento de complexidade) sociais, mascara o paradoxo de que apenas o direito pode dizer o que é e o que não é direito e, através do discurso constitucional que, cada vez mais, se torna o discurso sobre o “ justo” e o “ injusto” , mascara o fato de que a própria Constituição também é direito positivo e, portanto, ato de poder, mutável, contingente e arriscado. Também Habermas aceita essas análises, como se vê. A divergência entre os autores centra-se, dentre outras coisas, basicamente no fato de que para Luhmann a sociedade moderna é uma sociedade de comunicações, em que temos sistemas sociais diferenciados. Enquanto isso, Habermas observa a existência de um espaço social em que se busca fundamentalmente o consenso(mundo da vida) e o mundo dos sistemas(caracterizado pela ação visando a fins). São esferas sistêmicas o direito, o poder administrativo e o mercado. 3 dominação racional-legal. Assim, o direito positivo traz segurança jurídica, ao vir escrito, sem contradições e publicado, para que todos os destinatários possam saber como agir juridicamente; além disso, a proibição de retroatividade da lei é outra garantia de segurança jurídica. Dessa forma, as pessoas podem calcular as conseqüências de seus comportamentos e dos comportamentos dos outros. Tudo isso só é possível em decorrência do poder político organizado, que ajuda na função própria do direito, qual seja, estabilização de expectativas de comportamento. Por outro lado, o direito traz uma contribuição para a função própria do poder estatalmente organizado, principalmente no desenvolvimento das regras secundárias, no sentido dado por H.L.A. Hart. Tais normas secundárias são tanto normas que estabelecem competências, como também normas de organização que estabelecem os procedimentos de acordo com os quais devem ser produzidos os programas jurídicos a serem desenvolvidos pela Administração e pela justiça. O direito não se esgota de modo algum nas normas que regem o comportamento, mas serve também para a organização, regulação e controle do poder estatal. Funciona no sentido de regras constitutivas que não apenas garantem a autonomia privada e pública5, como também geram instituições estatais, procedimentos e competências.6 A análise entre o código do direito e o código da política(poder) poderia levar a uma falsa impressão: de um intercâmbio equilibrado e autosuficiente entre o direito e o poder político. Para Habermas, se visualizarmos essa relação em termos funcionais(aqui a menção implícita é a Luhmann), o direito se esgotaria em sua influência para a constituição do código do poder e no cumprimento de sua própria função, gerando uma relação circular entre poder político e direito positivo, processo esse que se autoestabiliza. Para Habermas aí temos um equívoco: ³3HUR GH KHFKR OD ³SURIDQL]DFLyQ´GH TXH IXH REMHWR HO SRGHU D SULQFLSLRVGHOPXQGRPRGHUQRKL]RYHULPHGLDWDPHQWHTXHODIRUPDMXUtGLFDFRPR WDOQREDVWDEDSDUDODOHJLWLPDFLyQGHOHMHUFLFLRGHODGRPLQDFLyQ&LHUWDPHQWHHO 5 Sobre essa questão, ver capítulo III da obra que estamos analisando. Indo além de Habermas, concordamos com Luhmann quando este afirma que um sistema social só pode se diferenciar funcionalmente se conseguir criar instituições que possibilitem o funcionamento do próprio código do sistema. Esse é o grande problema das modernidades periféricas: instituições frágeis que não conseguem defender o código específico de “ ataques” de outros sistemas, vistos como ambiente, em decorrência da necessária abertura cognitiva do sistema. 6 SRGHUSROtWLFRVyORGHEHVXDXWRULGDGQRUPDWLYDDHVDIXVLyQFRQHOGHUHFKRTXHKH H[SXHVWR HQ HO PRGHOR 3HUR HVWD UHFRQVWUXFFLyQ PXHVWUD WDPELpQ TXH HO GHUHFKR VyORPDQWLHQHIXHU]DOHJLWLPDQWHPLHQWUDVSXHGDDFWXDUFRPRIXHQWHGHMXVWLFLD$O LJXDOTXHHOSRGHUSROtWLFRPDQWLHQHDFXDUWHODGRVPHGLRVGHFRHUFLyQFRPRIXHQWH GHOSRGHUYLROHQFLDDVtWDPELpQHOGHUHFKRKDGHSHUPDQHFHUSUHVHQWHFRPRIXHQWH GHMXVWLFLD3HURHVWDIXHQWHVHVHFDHQTXDQWRHOGHUHFKRTXHGDDGLVSRVLFLyQGHOD UD]yQGH(VWDGR´7 8 A partir desse momento, Habermas vai mostrar que nos séculos XVII e XVIII, quando acontecia o processo de positivação do direito, os teóricos do direito natural racional se viram confrontados com o que Max Weber denominou de dominação legal. Para esses teóricos, a idéia de Estado de direito tinha o sentido crítico de mostrar a contradição inerente às próprias ordens jurídicas estabelecidas: que as formas de dominação legal podem ocultar prerrogativas normativamente injustificadas. Abria-se, dessa forma, um vazio de legitimação que o direito natural pretendia preencher, recorrendo à razão prática. Mas, esse direito natural racional ficou também em boa parte envolvido pela magia dogmática dessa construção tradicional de um poder de dominação autorizado por um direito suprapositivo; não pôde superar a idéia de um antagonismo original entre direito e poder. Outra perspectiva completamente diferente, podemos ver a partir da teoria do discurso, através do conceito de autonomia política. Nessa perspectiva, a produção de leis depende da geração de outro tipo de poder, o poder comunicativo. A leitura feita por Habermas, a partir da teoria do discurso, da autonomia política, necessita de uma diferenciação no conceito de poder político. Na base do poder da Administração, constituída em termos jurídicos, tem que haver um poder comunicativo produtor de direito, a fim de que não se seque a fonte de justiça, da qual se legitima o próprio direito. Mas, esse HABERMAS, Jürgen. )DFWLFLGDG \ 9DOLGH] 6REUH HO 'HUHFKR \ HO (VWDGR 'HPRFUiWLFR GH 'HUHFKR HQ WpUPLQRVGH7HRUtDGHO'LVFXUVRMadrid, Trotta, 1998, p. 212. 8 Aqui, me parece, temos mais um “ equívoco” na leitura de Habermas da obra de Luhmann. Se é verdade que para Luhmann existe uma relação circular entre poder político e direito, também é verdade que o direito moderno hoje só pode estabilizar as expectativas normativas de comportamento, que é a sua função, se estiver aberto para outros sistemas, tais como a Moral, com sua pretensão de justiça. Assim, podemos entender a proximidade entre Luhmann e Dworkin, apesar de Luhmann não o expressar e até mesmo criticar o autor americano, fruto mais uma vez, de uma leitura não muito adequada da idéia de “ levar os direitos a sério” e do “ direito como integridade” . 7 conceito de poder comunicativo dogmaticamente introduzido por Hannah Arendt, necessita de uma análise que o torne mais claro. Até então, Habermas havia considerado o uso público das liberdades comunicativas desencadeadas apenas sob o aspecto cognitivo da possibilidade de uma formação racional da opinião e da vontade: o livre processamento de temas e contribuições, de informações e argumentos pertinentes deve fundamentar os resultados obtidos de acordo com o procedimento tido como racional. Mas, as convicções produzidas discursivamente e compartilhadas intersubjetivamente possuem, por sua vez, uma força motivadora. Mesmo que tenha apenas uma força motivadora fraca de boas razões, sob esse aspecto o uso público das liberdades comunicativas aparece como gerador de potenciais de poder. A partir de Hannah Arendt, Habermas mostra como é possível separar a idéia de poder daquela de violência. Para ele, a concepção de Arendt é mais adequada do que a do direito natural racional, pois se pode perceber que o poder e o direito estão lado a lado.9 De acordo com Habermas, o conceito de poder comunicativo introduz uma necessária diferenciação no conceito de poder político. A política já não pode coincidir no conjunto com a prática daqueles que falam entre si para atuar de forma politicamente autônoma. O exercício da autonomia política significa a formação discursiva de uma vontade comum, mas não significa a implementação das leis que surgem dela. Com toda razão, pois, o conceito do político abarca também o emprego do poder administrativo no, e a competência para o acesso ao sistema político. A constituição do código que é o poder significa que o sistema administrativo fica assim regulado através do estabelecimento de faculdades e competências para tomar decisões coletivamente vinculantes. Por isso, Habermas propõe considerar o direito como o PHGLXP através do qual o poder comunicativo se transforma em poder administrativo. Isso porque a transformação do poder comunicativo em poder administrativo tem o sentido de uma faculdade ou autorização, ou seja, de uma outorga de poder no marco do sistema ou hierarquia de cargos estabelecidos pelas leis. A idéia de Estado de direito pode ser interpretada, então, de forma geral, como a exigência de ligar o poder administrativo, regido pelo código “ poder” , ao poder comunicativo criador de direito, e mantê-lo livre das interferências do poder social, ou seja, da capacidade fática que apresentam os interesses privilegiados de se impor. O poder 9 Para maiores detalhes, vide as obras $&RQGLomR+XPDQD e 6REUHD5HYROXomR, ambas de Hannah Arendt. administrativo não tem que se autoreproduzir, mas apenas se regenerar a partir da metamorfose do poder comunicativo. Em última instância, é essa transferência que o Estado de direito tem que regular, deixando, contudo, intacto o código que o poder representa, ou seja, sem intervir na lógica da autoregulação do poder administrativo. Desde um ponto de vista sociológico, a idéia do Estado de direito apenas ilumina o aspecto político do estabelecimento de um equilíbrio entre os três poderes da integração social: o dinheiro, o poder administrativo e a solidariedade. Antes de entrar nos princípios do Estado de direito, Habermas mostrará as condições nas quais pode se formar o poder comunicativo. Para isso, partirá da lógica das distintas questões pelas quais vem determinada a estrutura da formação da opinião e da vontade de um legislador democrático. II Nesse tópico, Habermas mostrará como se relacionam os direitos de participação política, através da institucionalização jurídica da formação pública da opinião e da vontade, e a decisão sobre políticas e leis. Mais precisamente, Habermas mostrará como os direitos institucionalizados de participação política podem resultar em políticas e leis, através do princípio do discurso. De acordo com o autor, essa questão apresenta um duplo aspecto: cognitivo e prático. O sentido cognitivo aparece pelo fato de que os direitos de participação política, através da institucionalização da opinião e da vontade, filtram contribuições e temas, razões e informações, de forma que os resultados obtidos aparecem com a presunção de aceitabilidade racional. Assim, o procedimento democrático funda e fundamenta a legitimidade do direito. Já o sentido prático aparece porque os direitos de participação política, ao estabelecer relações de entendimento que venham “ isentas de violência” no sentido dado por Hannah Arendt, e desencadeiam a força produtiva que a liberdade comunicativa representa. A relação entre produção discursiva do direito e formação comunicativa do poder aparece porque, através da ação comunicativa, as razões também são vistas como motivos. No entanto, no direito não é possível separar completamente a regulação das expectativas da persecução de fins coletivos. Mais uma vez, Habermas mostra a diferença entre direito, política e moral. A política engloba questões morais, éticas e pragmáticas e consegue regular comunidades específicas através do direito. As questões agora a serem respondidas são as seguintes: qual o conteúdo do direito que o diferencia tanto da política quanto da moral; qual o sentido da validade das normas jurídicas; e, por fim, como são produzidas as normas. A Moral, enquanto sistema normativo, faz a seguinte pergunta: Por que seguir normas? Para Habermas, seguimos normas morais não porque elas nos apetecem, mas sim porque as reconhecemos como corretas ou justas. No direito, além da questão da correção das normas, temos também a persecução de fins e bens coletivos, o que o diferencia da Moral tanto em relação à indeterminação das normas jurídicas(sendo menos indeterminadas do que as normas morais, já que as normas jurídicas são sempre referidas a uma comunidade jurídica concreta) quanto na validade deontológica do direito(o problema da igualdade jurídico-material). Mas, o que significa dizer que uma norma jurídica vale, para a teoria do discurso? Para a teoria do discurso, a validade do direito une o momento da validade ou aceitabilidade racional com a validade social ou aceitação(eficácia). Aparece, nesse momento, a tensão entre facticidade e validade, ou, em outros termos, a tensão entre validade e legitimidade, assumindo o discurso de legitimidade com a questão da “ moralidade” ou correção das próprias normas. Assim, legítima é a norma que reflete a autocompreensão autêntica da comunidade jurídica específica e isso somente pode acontecer quando, através da autolegislação política dos cidadãos, os mesmos se reconhecem na lei que produziram, sendo, assim autores e destinatários das normas. Isso será demonstrado por Habermas no tópico seguinte. Como já mostrado por Habermas, no direito também surge o momento teleológico. E ele surge por força das contingências da produção legislativa. Assim, a autolegislação política dos cidadãos, a partir da institucionalização jurídica, deve ser entendida de forma diferente da autolegislação moral, exatamente por força da forma jurídica e da contingência da forma de vida. Assim, na produção do direito há um peso mais forte do momento volitivo. Nas discussões jurídicas devem ser resolvidas questões pragmáticas, éticas e/ou morais. Contudo, essas questões são resolvidas sempre juridicamente, tendo por base normas jurídicas produzidas pelo legislador democraticamente eleito. Através da formação da opinião e da vontade discursivamente estruturada de um legislador político, há a produção do direito com a formação do poder comunicativo. Essa conexão se dá através de um modelo processual, por força d uma lógica da argumentação jurídica que, necessariamente, deve distinguir entre discursos de fundamentação ou justificação e discursos de aplicação ou adequação(K. Günther). III Todo esse percurso feito por Habermas, possibilitará que o autor possa, nesse último tópico, justificar o princípio do Estado de direito a partir da teoria do discurso. Já que direito e política são subsistemas sociais co-originários, é sempre possível a instrumentalização do poder político por meio do direito. O princípio do Estado de direito impede ou, pelo menos, tenta impedir esse risco da modernidade. Isso porque tal princípio exige uma organização do poder público que obriga o poder político, constituído conforme o direito, a se legitimar através do direito legitimamente constituído. Como o direito tem parentesco com o poder comunicativo e como há uma relação co-originária entre o código do direito e do poder político que dirige o processo de administração, o direito acaba formando o PHGLXP para a transformação do poder comunicativo em administrativo. Assim, é possível desenvolver a idéia do Estado de direito com o auxílio de princípios segundo os quais o direito legítimo é produzido a partir do poder comunicativo e este último é novamente transformado em poder administrativo pelo caminho do direito legitimamente normatizado. Os princípios do Estado de direito serão desenvolvidos por Habermas na perspectiva da institucionalização jurídica da rede de discursos e negociações apresentada pelo autor de maneira simplificada no modelo do processo. No princípio da soberania popular, segundo o qual todo o poder emana do povo, o direito subjetivo à participação, com igualdade de chances, na formação democrática da vontade, vem ao encontro da possibilidade jurídico-objetiva de uma prática institucionalizada de autodeterminação dos cidadãos. Esse princípio forma um elo de ligação entre o sistema dos direitos e a construção de um Estado de direito. Interpretado pela teoria do discurso, o princípio da soberania popular implica o princípio da ampla garantia legal do indivíduo, proporcionada através de uma justiça independente; os princípios da legalidade da administração e do controle judicial e parlamentar da administração; o princípio da separação entre Estado e sociedade, que visa impedir que o poder social se transforme em poder administrativo, sem passar antes pelo filtro da formação comunicativa do poder. Como já mostrado por Habermas no capítulo III da obra em análise, o princípio da soberania do povo significa que todo poder político é deduzido do poder comunicativo dos cidadãos. O exercício do poder político orienta-se e se legitima pelas leis que os cidadãos criam para si mesmos numa formação da opinião e da vontade estruturada discursivamente. Essa prática deve a sua força legitimadora a um processo democrático destinado a garantir um tratamento racional de questões políticas. Como nem todos os cidadãos podem se unir cara a cara para a tomada de decisões, o princípio parlamentar da criação de corporações deliberativas representativas oferece uma saída alternativa. Da lógica dos discursos, resulta também o princípio do pluralismo político e a necessidade de complementar a formação da opinião e da vontade parlamentar, bem como os partidos políticos, através da formação informal da opinião na esfera pública política aberta a todos os cidadãos. É o princípio da publicidade como forma de controle do parlamento. Assim, o princípio da soberania popular só se esgota através do princípio que garante esferas públicas autônomas e do princípio da concorrência entre os partidos. As comunicações políticas dos cidadãos estendem-se a todos os assuntos de interesse público, desaguando, porém, nas decisões dos parlamentos. A competência legislativa, que fundamentalmente é atribuída aos cidadãos em sua totalidade, é assumida por órgãos parlamentares, que fundamentam leis de acordo com um processo democrático. Leis formam a base para pretensões jurídicas individuais; estas resultam da aplicação de leis a casos singulares, seja pelos caminhos da administração, seja pelo caminho auto- executivo. Tais pretensões podem ser reclamadas judicialmente; daí resulta a garantia dos caminhos do direito e o princípio da garantia de uma proteção jurídica individual ampla. Aparece, assim, a divisão das competências da legislação e da aplicação do direito em dois diferentes poderes do Estado, independentes entre si a nível pessoal e institucional. A importância dessa divisão, que não é óbvia, se dá por vários motivos, dentre eles, talvez o mais importante, seja a diferença lógica entre fundamentação e aplicação de normas.Nos discursos de aplicação, é preciso decidir qual das normas tidas como válidas, numa dada situação, e cujas características são descritas da forma mais completa possível, é adequada. Esse tipo de discurso exige, de um lado, uma constelação de papéis, na qual as partes podem apresentar todos os aspectos litigiosos de um caso a um juiz, como representante imparcial da comunidade; de outro lado, uma distribuição de competências segundo a qual o tribunal tem que fundamentar seu julgamento perante uma esfera pública jurídica, em princípio ilimitada. Já nos discursos de fundamentação há apenas participantes. De outro lado, a fim de impor suas decisões – e a execução do direito – a justiça apela para os meios de repressão do aparelho do Estado, passando a dispor, ela mesma, de um poder administrativo. Por esta razão, a justiça precisa ser separada da legislação e impedida de uma autoprogramação. Desta maneira se explica o princípio da ligação da justiça ao direito vigente. Além do mais, do princípio da proteção do direito e dos direitos fundamentais da justiça resultam todos os demais princípios para a especificação de tarefas, do modo de trabalho e a garantia do VWDWXVde uma justiça independente que deve aplicar o direito de tal maneira que estejam garantidas simultaneamente a segurança do direito e a aceitabilidade racional das decisões judiciais. Já o princípio da legalidade da administração esclarece o sentido nuclear da divisão dos poderes. Superando uma diferenciação funcional, que se explica a partir da lógica da argumentação que introduz uma diferença entre fundamentação de normas e aplicação de normas, a diferenciação institucional que se expressa na constituição de poderes separados tem por finalidade amarrar a aplicação do poder administrativo ao direito normatizado democraticamente, de tal modo que o poder administrativo só se regenera a partir do poder comunicativo produzido conjuntamente pelos cidadãos. Na tradição do direito constitucional alemão, o princípio da separação entre Estado e sociedade foi interpretado de forma concreta no sentido de um Estado constitucional liberal. No entanto, organizacionalmente, o princípio segundo o qual deve-se bloquear uma intervenção direta do poder social no poder administrativo encontra sua expressão no princípio da responsabilidade democrática de detentores de cargos políticos em relação aos eleitores e aos parlamentos. Todos esses princípios do Estado de direito se juntam em uma arquitetônica construída sobre a seguinte idéia: a organização do Estado de direito deve servir, em última instância, à auto-organização política de uma comunidade, a qual se constituiu, com o auxílio do sistema de direitos, como associação de membros livres e iguais do direito. Ao se organizar o Estado de direito, o sistema de direitos se diferencia numa ordem constitucional, na qual o meio do direito pode se tornar eficiente como transformador e amplificador dos fracos impulsos sociais e integradores da corrente de um mundo da vida estruturado comunicativamente. Habermas mostrará que o Estado de direito institucionaliza o uso público das liberdades comunicativas e que regula a transformação do poder comunicativo em poder administrativo. O Estado de direito institucionaliza o uso público das liberdades comunicativas ao instituir normas procedimentais para a participação dos cidadãos para a formação da vontade política. Essas normas procedimentais são tanto de caráter judicial(assim, as normas que garantem a simétrica participação de todos os possíveis afetados pelo provimento judicial, as normas de direito a prova, etc.), que Habermas tratará nos capítulos seguintes, e as normas procedimentais que garantem a participação de todos na tomada de decisões coletivas, tais como a regra da maioria e as regras de relação entre parlamento e esfera pública. Por outro lado, o princípio do Estado de direito, entendido a partir da teoria do discurso, também possibilita a transformação do poder comunicativo em poder administrativo. Isso porque, como já visto, a divisão dos poderes é explicada através de uma diferenciação das funções do Estado: enquanto o legislativo fundamenta e vota programas gerais e a justiça soluciona conflitos de ação, apoiando-se nessa base legal, a administração é responsável pela implementação de leis que necessitam de execução. A realização administrativa elabora o conteúdo teleológico do direito vigente, na medida em que este confere forma de lei a políticas e dirige a realização administrativa de fins coletivos. Sob o ponto de vista da lógica da argumentação, os discursos jurídicos servem para a aplicação de normas, ao passo que a racionalidade da atividade administrativa é assegurada através de discursos pragmáticos. Na perspectiva da teoria do poder, a lógica da divisão dos poderes só faz sentido se a separação funcional garantir, ao mesmo tempo, a primazia da legislação democrática e a retroligação do poder administrativo ao comunicativo. Para que os cidadãos politicamente autônomos possam ser considerados autores do direito, ao qual estão submetidos enquanto sujeitos privados, é necessário que o direito legitimamente estatuído por eles determine a direção da circulação do poder político. Assim, o princípio da legalidade da Administração, ou seja, que a Administração deve estar submetida à lei e deve ser controlada pelo Parlamento e pelo Judiciário. Se o direito deve ser normativamente fonte de legitimação e não simples meio fático da organização do poder, então o poder administrativo tem que ser retroligado ao poder produzido comunicativamente. Essa retroligação do poder administrativo teleológico ao poder comunicativo, que produz o direito, pode realizar-se através de uma divisão funcional dos poderes, porque a tarefa do Estado democrático de direito consiste, não apenas em distribuir equilibradamente o poder político, mas também em despi-lo de suas formas de violência através da racionalização. As palavras “ legislador” , “ justiça” e “ administração” sugerem uma compreensão demasiado concreta, determinada pelas formas de institucionalização, que falseia o nível de abstração da teoria do discurso, no qual Habermas esboçou as funções da legislação, da aplicação e da execução. Para avaliar as formas concretas de institucionalização de princípios que resultam da lógica da divisão dos poderes, é preciso adotar os pontos de vista abstratos da disposição sobre diferentes tipos de argumentos e da subordinação de formas de comunicação correspondentes. Na medida em que, por exemplo, a implementação de programas teleológicos sobrecarrega a administração com tarefas relacionadas com o aprimoramento do direito e com a aplicação da lei, a base de legitimação das estruturas administrativas tradicionais não é mais suficiente. Então, a lógica da divisão dos poderes precisa ser realizada em estruturas modificadas – por exemplo, através da introdução de formas de comunicação e de participação correspondentes ou através do estabelecimento de processos judiciais ou parlamentares, de processos de formação de compromissos, etc. Bibliografia: ARNAUD, André-Jean e LOPES JR., Dalmir. 1LNODV /XKPDQQ 'R 6LVWHPD 6RFLDO j 6RFLRORJLD-XUtGLFDRio de Janeiro, Lumen Juris, 2004. HABERMAS, Jürgen. )DFWLFLGDG\9DOLGH]6REUHHO'HUHFKR\HO(VWDGR'HPRFUiWLFRGH 'HUHFKRHQWpUPLQRVGH7HRULDGHO'LVFXUVRMadrid, Trotta, 1998. HABERMAS, Jürgen. 'LUHLWRH'HPRFUDFLD(QWUH)DWLFLGDGHH9DOLGDGHVol. I. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997. LUHMANN, Niklas. 2EVHUYDFLRQHVGHOD0RGHUQLGDG5DFLRQDOLGDG\&RQWLQJHQFLDHQOD 6RFLHGDG0RGHUQD1ª edição, Barcelona, Paidós, 1997. LUHMANN, Niklas. 6RFLRORJLDGR'LUHLWRVols. I e II. 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