Dyson, Esther. “Como a rede mundial deve ser governada”. São Paulo: Folha de São Paulo, 19 de fevereiro de 1998. Como a rede mundial deve ser governada ESTHER DYSON --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------Enquanto os governos são monopólios naturais no mundo físico, os do ciberespaço competem --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------Como deve ser governado o ciberespaço? Que tipo de regulamentação é necessária para a Internet? Como ela será dividida em jurisdições, uma vez que evidentemente não é governável como um todo? A proposta de solução mais difundida é de um governo central mundial que administre as questões de maneira justa, em comum acordo com todos os países do mundo, chegando a um consenso em relação aos princípios básicos e, ao mesmo tempo, criando leis que se apliquem a todos os cidadãos. Mas a regulamentação em escala mundial deveria surgir sob a forma de uma série de acordos multilaterais entre governos e setor privado, não como algo da alçada de uma autoridade central. Enquanto os governos são monopólios naturais no mundo físico, os do ciberespaço competem entre si. Quando as coisas vão mal, os governos perdem cidadãos e consumidores. Um governo baseado na Internet opera apenas com o consentimento dos governados e deve oferecer benefícios reais a seus cidadãos: bens e serviços pessoais, um mercado regulamentado e transparente com regras definidas e uma comunidade supervisionada que garanta a proteção da privacidade de cada um. Quais são as camadas de jurisdição da Internet? Na base há o espaço terrestre, onde as pessoas vivem, governado por um Estado-nação único. Nesse espaço, todo mundo pertence a um lugar e deve obedecer às leis do lugar físico que habita. A segunda camada é composta pelos provedores, que dão acesso à Internet e ao correio eletrônico e abrigam os sites. Eles são a conexão entre os mundos físico e virtual. Os provedores são propriedade privada e competem dentro de diversos países. Também podem ser empreendimentos que pertencem ao Estado ou são licenciados por ele. A terceira camada atravessa os provedores e as fronteiras nacionais. É composta por domínios (entidades virtuais básicas) e comunidades. Um "nome" de domínio se refere a um site, caixa de correio, computador ou à infra-estrutura virtual inteira de uma empresa. Ao mesmo tempo, uma única empresa pode possuir vários nomes de domínio. Uma comunidade pode basear-se em um único site ou num servidor físico. Algumas delas possuem fronteiras fortes e seus membros pagam taxas; outras são informais e o acesso a elas é aberto. Algumas possuem status jurídico, como a intranet de uma empresa, e outras são restritas por lei, como acontece nos países que controlam o acesso on line. A última camada, que atravessa domínios e comunidades, é feita de órgãos reguladores que acompanham no ciberespaço os organismos e os indivíduos que fiscalizam. Essa jurisdição pode ser representada por uma autenticação técnica. Os provedores podem ser a primeira camada de governo do ciberespaço, uma vez que a maioria das questões referentes à Internet pode ser tratada nesse nível. Hoje em dia eles funcionam bem como "autoridades", quando se trata de registrar nomes de domínio para clientes. Os provedores têm contratos com os usuários, decidem que tipos de comportamento são aceitáveis e podem excluir assinantes do sistema. Os governos controlam o ciberespaço por meio dos provedores e eles cooperam com a polícia nas jurisdições físicas em que operam. Se o provedor não dá o tratamento adequado a uma queixa, a comunidade e indivíduos que se sentirem prejudicados poderão pedir que todos os provedores tomem uma atitude. À medida que for aumentando a ocupação do ciberespaço, é provável que isso vire regra. Mas será que vai funcionar? Ou será que todo mundo vai acabar delegando a tomada de decisões a um órgão que se tornará uma burocracia central enrijecida? Organismos reguladores semivoluntários poderiam, com o tempo, seguir os passos dos governamentais e se tornarem vulneráveis à burocracia, à corrupção e à inflexibilidade. Mas a ausência de qualquer esforço regulador significaria o caos na rede. A melhor alternativa seria uma profusão de organizações rivais e uma forte cultura de transparência. Essas organizações, como o Conselho de Marketing por E-Mail, vão criar uma teia de confiança sem centro. Empresas, indivíduos e outras entidades vão voluntariamente rotular-se como "certificadas por esse ou aquele órgão", carregando sua jurisdição para onde forem na rede. Seus parceiros ou vítimas potenciais poderão verificar a validade dessa certificação em sites seguros. Governos tentarão restringir a jurisdição da Internet ao comércio internacional e conservar sua autoridade sobre assuntos locais. Mas, dada a rapidez com que a rede cresce, isso funcionará por pouco tempo. É necessário definir qual tribunal ou processo de arbitragem se aplica ao comércio eletrônico. Quanto mais contratos e negociações de mercado houver, menos governo será necessário. Como fica a proteção dos consumidores? Os governos consideram que é seu dever proteger os cidadãos da fraude. A maioria dos países especifica, com variações, o que constitui prática comercial injusta. Vou querer saber, por exemplo, se uma cervejaria australiana obedece às leis australianas de proteção ao consumidor, se ela se sujeita à jurisdição da Comissão Australiana de Concorrência e do Consumidor e se a Comissão Federal do Comércio dos EUA vê a comissão australiana como um órgão fiscalizador válido. Muitas indústrias vão achar que é de seu interesse lançar organismos reguladores próprios. Mas precisamos assegurar que esses organismos representem o interesse público, por meio de um sistema aberto que possibilite que qualquer pessoa conheça as regras vigentes e saiba com quem está tratando. Empresas, governos, comunidades e pessoas físicas precisam divulgar como operam e quais são seus interesses. Mas, acima de tudo, é preciso chegar a um acordo mundial no sentido de que a falsidade ideológica na rede é passível de castigo. Os governos também devem promulgar leis antitruste severas para combater qualquer grupo que cresça a ponto de usurpar poder. Conscientizar o público da existência desses organismos é tarefa dos governos, das comunidades Internet e do ensino público. O melhor veículo de implementação desse fluxo livre de poder é a existência de consumidores e cidadãos informados. Para isso é preciso uma imprensa dinâmica e livre e cidadãos instruídos e participantes. ------------------------------Esther Dyson é presidenta da Electronic Frontier Foundation, organização que luta contra a censura na rede, e da EDventure, empresa voltada à tecnologia da informação emergente no mundo. É autora do livro "Release 2.0: A Nova Sociedade Digital" (ed. Campus, 340 págs. R$ 35).