O CONTO DO CAVALEIRO Geoffrey Chaucer (Tradução de Bruno Fernandes de Lima) 2010 Proibido todo e qualquer uso comercial. Produto destinado à distribuição gratuita. 2 O CONTO DO CAVALEIRO1 Palamon e Arcite O Duque Teseu governava Atenas em certa época. Ele era um grande soldado. Ele havia conquistado a Cítia em uma guerra, e se casara com sua rainha, Hipólita. Quando ele foi viver com ela em Atenas, ela levou consigo sua irmã mais nova, Emília. Enquanto cavalgavam de volta a Atenas, um soldado trouxe-lhes más notícias. “Creonte iniciou uma guerra contra vós, ó Duque Teseu. Ele conquistou Tebas.” Teseu enviou alguns de seus cavaleiros para escoltar Hipólita e Emília até Atenas. Ele, então, foi para Tebas com seus outros cavaleiros. Lutou contra Creonte e o derrotou. Havia dois guerreiros entre os muitos homens que lutaram ao lado de Creonte, cujos nomes eram Palamon e Arcite. Eles foram feridos, mas não morreram. Estavam 1 O Conto do Cavaleiro pertence à obra Os Contos da Cantuária, de Geoffrey Chaucer. 3 caídos lado a lado. Eles usavam ricas vestimentas; foram, então, levados à presença do Duque Teseu. O duque disse: “Vossas famílias pagarão muito ouro se eu vos libertar. Porém eu não o farei. Lutastes por Creonte, logo jamais devereis ser livres novamente.” Ele os enviou a Atenas como prisioneiros em uma alta torre. Então, o Duque Teseu voltou para Atenas e viveu feliz com sua bela esposa Hipólita e com sua jovem cunhada Emília. Palamon e Arcite viveram infelizes na alta torre. Certa manhã, Palamon acordou muito cedo e olhou através da janela para o jardim do duque. Ele viu uma donzela. Ela era muito bela. Ela estava caminhando no jardim e pondo flores no cabelo. Aquela bela donzela era Emília. Quando Palamon a viu, ele clamou em alta voz. Arcite o ouviu e disse: “Meu caro Palamon, o que tens? Tua face está pálida. Por que clamaste? Pense, somos prisioneiros e sempre o seremos. Devemos nos acostumar com esta vida infeliz.” 4 Palamon disse: “Não clamei porque somos prisioneiros. Eu clamei porque acabo de ver a mais bela donzela que existe em todo o mundo. Oro aos deuses para que eu seja livre, para que eu possa estar com ela. Mas se eu não puder ser livre, eu prefiro morrer.” Arcite olhou pela janela e viu Emília. Ele clamou: “Se ela não me amar, eu não quero mais viver!” Isto foi doloroso para Palamon. Ele disse: “Temos sido irmãos em nossa triste vida aqui, apartados do mundo. Agora queres roubar minha donzela. Não o farás! Eu a amei primeiro e a amarei para sempre. Deves me ajudar a conquistá-la.” Arcite disse: “Tu a viste primeiro, mas eu a amo tanto quanto tu a amas. Como um de nós a conquistará, se estamos presos nesta torre?” Palamon disse: “Algum dia seremos livres e, quando formos livres, que o melhor dentre nós vença!” Durante muitos dias, a velha amizade que havia entre eles foi-se perdendo completamente. O Duque Teseu tinha um amigo chamado Duque Peroteu. Peroteu conheceu Arcite havia muitos anos, e o 5 estimava muito. Ele soube que Arcite se encontrava preso na torre. Ele disse: “Toca-me saber que Arcite é teu prisioneiro. Ele não é como Creonte. É um bom rapaz. Eu te rogo que o libertes. Rogo que permitas que Arcite seja livre novamente.” O Duque Teseu pensou: “Peroteu está em minha casa. Eu o estimo, e ele me pediu que fizesse isto. Se eu o fizer, eu o agradarei.” Então, ele respondeu: “Sim, Arcite sairá da torre. Ele será livre. Mas ele deverá partir de Atenas e jamais voltar. Se algum dia ele tentar voltar a esta cidade, eu o decapitarei.” Antes de Arcite sair da prisão, ele teve uma última conversa com Palamon. Ele disse: “Eu deverei partir de Atenas, logo eu desejo não ser livre. Poderás permanecer aqui e ver minha bela donzela no jardim. Será melhor para ti que para mim.” Palamon estava igualmente triste: “Serás livre”, disse ele. “Tu talvez retornarás com um exército e farás guerra contra Atenas. Se venceres, minha bela donzela será tua.” 6 A vida era difícil para ambos os mancebos. Arcite estava em Tebas, longe de Atenas, mas ele ainda amava Emília. Ele pensava nela todos os dias. Assim, ele ficou muito doente. Certa noite, o deus Mercúrio veio até ele em sonhos e disse: “Tu deverás regressar a Atenas. Quando voltares a Atenas, serás feliz novamente.” Arcite despertou e clamou: “De uma vez por todas, eu voltarei a Atenas! Se o duque me capturar, ele me decapitará. Mas eu não temo a morte se eu puder ver novamente minha linda donzela.” Ele olhou para o seu reflexo no espelho. Sua enfermidade o havia desfigurado muito. “Ninguém me reconhecerá agora.” disse ele. “Eu poderei ir a Atenas em segurança.” Ele então regressou a Atenas e se tornou um dos servos da casa da Srtª. Emília. Ele tirava água do poço, cortava madeira; enfim, ele estava satisfeito em fazer qualquer coisa por ela! Ele teve um bom desempenho em seus trabalhos, pelo que se tornou o servo-mor de Emília. 7 Todos apreciavam sua voz mansa, seu trabalho árduo e sua benevolência. Eles o chamavam Filostrato. O próprio Duque Teseu começou a atentar para ele. Durante sete anos, ele foi-se tornando cada vez mais querido para Teseu. Durante todo aquele tempo, Palamon viveu sua triste vida na prisão. Ele não tinha esperanças de sair de lá. Seu grande amor por Emília o estava consumindo. Porém, finalmente, em uma noite de maio, um amigo de Palamon pôs algo na bebida do homem que o vigiava, e este adormeceu. Palamon conseguiu pegar a chave, abriu a imensa porta e por fim conseguiu se libertar. Ele correu bastante, mas a noite foi curta. Quando veio o sol, Palamon se escondeu em um pequeno bosque. Ele planejava caminhar durante a noite e se esconder durante o dia. Ele pensou: “Eu voltarei a Tebas, depois retornarei à frente de minhas hostes. Matarei Teseu e conquistarei Emília.” Na manhã seguinte, Arcite cavalgava pelas redondezas, cantando à doce luz do sol. Ele então desceu de seu cavalo e começou a caminhar em direção ao 8 bosque. Lá estava Palamon escondido. Arcite sentou-se ao chão. Ele disse: “Emília está ainda longe de mim. Tenho em mim o sangue dos reis, mas sou apenas um servo de Teseu. Não sou chamado sequer por meu próprio nome. Meu amor impossível por Emília me faz infeliz. Toda a minha tristeza vem de meu amor por Emília.” Quando Palamon ouviu isto, foi como se um punhal penetrasse seu coração. Seu rosto empalideceu como a um defunto. Ele então surgiu dentre as árvores. “Arcite!” ele clamou. “Eu ora sei tudo sobre ti! Foste para mim um irmão, mas amas minha donzela. Um de nós deverá morrer. Não tenho nada com que possa lutar contra ti, mas não temo. Sou Palamon: eu te matarei!” Arcite respondeu calmamente: “Não sabes que o amor é livre? Eu te falarei claramente, eu sempre amarei aquela donzela. Mas teremos uma peleja justa. Amanhã eu te encontrarei aqui neste lugar. Trarei para ti uma espada, com a qual poderás lutar contra mim. E à noite eu te trarei comida e bebida. Assim estarás forte para a batalha. Se venceres, a donzela será tua.” 9 Palamon respondeu: “Terei prazer em pelejar contra ti.” Na manhã seguinte, Arcite foi até o local da batalha. Então, teve início a grande peleja. Na mesma manhã de maio, o Duque Teseu cavalgava pelo bosque com sua esposa Hipólita e com Emília. Eles ouviram o som da batalha e logo puderam ver os dois cavaleiros. Teseu se pôs no meio deles e clamou: “Cessai! Por que lutais desta maneira, sem que haja um homem para se certificar de que lutais de modo justo?” Arcite estava cansado. Ele havia perdido a esperança. “Senhor,” ele respondeu, “somos dois infelizes. És nosso senhor. Mata-me primeiro, eu te rogo. Em seguida, mata meu amigo.” Palamon disse: “Este é Arcite. Por tua ordem, ele deverá morrer se for encontrado em Atenas. Mas ele diz se chamar Filostrato, e é o teu servo-mor. Ele fez tudo isto por amor à Princesa Emília. E eu sou Palamon. Eu escapei de tua prisão. Também amo Emília, e ficarei feliz 10 em morrer agora, a seus pés. Mata-me, eu te rogo. Mas mata Arcite também.” O duque respondeu: “Sim! Ambos morrereis.” Mas a rainha, Emília e todas as outras damas no grupo começaram a prantear. Elas disseram: “Dois moços tão valorosos não devem morrer!” As damas então caíram de joelhos, rogando ao Duque Teseu que deixasse Palamon e Arcite viverem. “Oh, deixa-os viver!” O duque disse: “Esse deus do amor é mesmo um grande deus. Estes dois rapazes poderiam viver em segurança como reis em Tebas. No entanto, estão lutando um contra o outro neste lugar. E fazem isto porque amam a mesma moça. Mas ela nada sabe a este respeito! Pois bem, vós vivereis. Mas devereis prometer que jamais vireis guerrear em minha terra. Devereis ser meus amigos para sempre.” “Prometemos,” disseram. “Seremos teus amigos para sempre.” O duque então disse: “Emília não pode casar com os dois. Mas eu tenho um plano. Ide a vossas casas em Tebas. Voltai daqui a um ano. Cada um de vós trará cem 11 cavaleiros, dispostos a lutar por vós. Aquele que vencer a batalha desposará Emília. Que pensais de meu plano?” Ambos os cavaleiros caíram de joelhos e lhe agradeceram imensamente. Então eles se foram para Tebas e começaram a se preparar. Cada um deles escolheu seus cem seguidores. O Duque Teseu tinha também muitos afazeres. Ele construiu uma arena fora de Atenas para a batalha, com muros de pedra e portões brancos a leste e oeste. O duque erigiu três templos – um templo a Vênus, a deusa do amor, um templo a Diana, a deusa da caça, e um templo a Marte, o deus das lutas. Havia belas pinturas no templo de Vênus e um jardim repleto de flores. Nas pinturas, Vênus tinha rosas adornando sua cabeça e uma bela ave voando por sobre ela. O templo de Diana não era como a casa de Vênus. Vênus quer que todos amem e se casem. Diana não quer que as pessoas lutem ou se casem. Ela quer que todos sejam felizes o dia inteiro e que cavalguem pelos campos. Ela ama as madrugadas. Assim, há em sua casa 12 a imagem da lua; esta, prestes a desaparecer, quando chegava a manhã. O templo de Marte não era um lugar alegre. Causava temor em quem o via. Tinha imagens de homens em batalha, e pinturas de pelejas e torres em chamas. Havia uma imagem de Marte com uma chama queimando em sua frente. Ora, o fim do ano chegara. Palamon e Arcite retornaram a Atenas, cada um com seus cem cavaleiros. Os dois exércitos tinham uma aparência imponente. Teseu saiu pessoalmente para encontrá-los. Antes do início da batalha, Palamon e Arcite disseram, cada um: “Teseu construiu templos próximo ao campo de batalha. Eu visitarei um deles.” Palamon pensou: “Se eu orar a Vênus, ela me ajudará. Eu lhe pedirei uma morte breve se eu não vencer.” Assim, ele orou no templo de Vênus e ela pareceu ter movido a cabeça. Ele clamou: “A deusa moveu a cabeça! Estou muito feliz. Ela me ajudará!” Arcite foi ao templo de Marte, o deus da guerra. Ele disse: “Marte me ajudará a vencer a batalha contra 13 Palamon!” Quando ele terminou, as portas se moveram e um som estridente veio do próprio Marte. O fogo em frente do deus acendeu de repente. Arcite ouviu uma voz mansa dizendo “Tu vencerás!” Mas Emília não queria se casar. Ela amava ser livre nos bosques e nos campos. Assim, ela foi ao templo de Diana. Ela disse à deusa: “Eu não quero me casar com Palamon ou com Arcite. Mas se eu DEVO me casar, eu rogo que eu possa me casar com aquele que mais me ama.” Diana não quis ouvir sua oração. O fogo que queimava diante da deusa se extinguiu. Emília começou a chorar. Assim, a própria deusa se pôs diante dela. “Não chores,” disse ela. “Os deuses determinaram que tu deverás te casar com um desses homens. Ambos têm sido muito infelizes por tua causa. Mas eu não posso te revelar com qual deles te casarás.” Os deuses Marte e Vênus discutiram entre si. Cada um deles disse que um dos moços iria vencer; mas não poderiam ambos vencer. 14 Ora, ouvireis como Marte e Vênus mantiveram cada um sua promessa. Palamon e Arcite chegaram a Atenas em um domingo. Todo o povo que lá estava comeu, bebeu, cantou e dançou na segunda-feira. Na terça-feira, bem cedo, todos foram assistir à grande peleja. Era uma visão belíssima. Viam-se belos cavalos e bravos varões por todos os lugares. Havia cavalheiros e cavaleiros em roupas luxuosas e damas em belos vestidos. O Duque Teseu sentou-se e assistiu a tudo. Um soldado chegou e clamou: “Atenção! Escutai as ordens do duque!” Quando todos estavam quietos, o soldado disse: “O Duque Teseu não quer que nenhum homem morra. Ninguém deverá usar a espada, ou qualquer objeto pontiagudo que possa ferir. Quem quer que seja ferido será tomado como prisioneiro, mas não deverá morrer. Se o líder de um dos lados for capturado, a batalha terá fim. Agora, que a batalha se inicie!” O canto de batalha soava. A rainha, todos os cavalheiros e damas e Emília se aproximaram para assistir. 15 Arcite entrou no campo de batalha pelo portão do oeste, próximo ao templo do deus Marte. Sua cor era o vermelho. Palamon entrou pelo portão do leste, próximo ao templo da deusa Vênus. Sua cor era o branco. É difícil encontrar palavras para descrever a grande peleja que se iniciou. Cavalos caíram e levantaram, e homens caíram. De tempos em tempos, os servos traziam comida e bebida para os guerreiros. A batalha durou todo o dia. De repente, Palamon foi feito prisioneiro. Este foi o fim da batalha. O Duque Teseu disse: “Arcite deverá ficar com Emília. Ele a conquistou nesta longa batalha!” O povo clamou: “Arcite! Arcite! Arcite é o vencedor!” Antes da batalha, a deusa Vênus dissera a Palamon: “Eu te ajudarei.” Ela agora estava triste. Ela foi até seu pai Saturno, o qual a ouviu. Ele então disse: “Minha querida filha, tudo ficará bem. Espera e verás.” Ouvia-se uma alta música quando Arcite cavalgou através do campo de batalha em direção a Emília. Ele 16 olhou para ela e ela devolveu-lhe o olhar. Ela pensou: “Este é um bravo e belo rapaz! Creio que eu poderia amá-lo e me casar com ele!” De repente, algo fez com que seu cavalo se assustasse. Ele saltou ao ar e caiu, lançando Arcite ao chão. Ele ficou caído imóvel. Seu rosto estava coberto de sangue. Ele foi cuidadosamente carregado até a casa de Teseu e colocado em uma cama. Vieram os médicos. A princípio, eles pensaram: “Arcite não morrerá.” Mas as dores das feridas de Arcite se tornaram cada vez piores. Eles então disseram: “Os ferimentos são profundos demais. Não podemos salvá-lo. Ele morrerá.” Eles disseram a Arcite que ele iria morrer. Ele então pediu que chamassem Palamon e Emília. Ele disse a Emília: “Eu te tenho amado muito. Tenho sofrido muito por tua causa. Agora eu darei a vida por ti.” Ele, então, voltou-se para Palamon e disse: “Tenho sido muito infeliz por tua causa. Mas agora a morte porá um fim em tudo isto. Talvez esta seja a melhor maneira de tudo acabar.” Em seguida, voltou-se novamente para Emília e disse: “Emília, se algum dia 17 desejares ter um consorte, considera que seja Palamon. Emília e Palamon! Isto me fará feliz no outro mundo.” Ele fechou os olhos. A morte estava próxima. Seus olhos se escureceram, mas ao final ele olhou para Emília e disse o nome dela. Todo o povo da cidade pranteou por Arcite por muitos dias. O tempo se responsabiliza por amenizar as coisas. Assim, os meses se passaram. O povo de Atenas haviam tido frequentes lutas contra o povo de Tebas. Mas agora eles desejavam ser amigos. Assim, o Duque Teseu mandou chamar Palamon. Palamon veio. Ele usava roupas pretas em sinal de luto pela morte de seu amigo Arcite. Então, o duque disse: “Põe um fim em teu pesar. Não poderás esquecer Arcite, mas este mundo ainda tem muita felicidade reservada para ti. Não te lembras de que Arcite disse a Emília: ‘Se algum dia desejares em ter um consorte, considera que seja Palamon.’? Isto não te faria feliz, mesmo que fosse um só um pouco?” 18 Ele chamou Emília. O duque tomou sua mão: “Irmã,” disse ele, “dir-te-ei o desejo de todo meu povo. Se amares Palamon e te casares com ele, nós atenienses teremos paz com o povo tebano. Estaremos unidos em sangue e amor. Toma o bom Palamon e casa-te com ele. Ele te tem amado por todo este tempo.” Ele disse a Palamon: “Toma esta donzela pela mão. Ela será tua cara esposa.” Assim, Palamon e Emília se casaram e viveram felizes para sempre. O povo de Atenas e o povo de Tebas foram amistosos uns com os outros novamente. Todos os peregrinos disseram: “Esta foi uma bela história.” “Sim,” disse o Estalajadeiro. “Tivemos um bom começo.” 19 ©2010 – Geoffrey Chaucer Versão para eBook Bruno Fernandes de Lima ____________________ Setembro 2010 20