SAHLINS, M. História e cultura: apologias a Tucídides. Rio de

Propaganda
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om base na interpretação de fontes históricas, o livro História e Cultura de Marshall Sahlins toca em questões centrais
sobre a análise da relação entre cultura e história, liberdade
individual e ordem social, estrutura e evento. O título do
livro no original é Apologies to Thucydides: Understanding
History as Culture and Vice Versa. Título que, ao contrário
da tradução brasileira, revela que a intenção primeira de Sahlins
teria sido a defesa do historiador grego. Mas, como defender aquele que eliminou a “cultura” de sua “história” e praticamente inventou o determinismo econômico? A resposta
está no título mesmo: entendendo história como cultura e
vice-versa. Confortável na sua intenção, sempre renovada
de ampliação semântica da palavra cultura, Sahlins começa
seu livro defendendo que o passado é ele mesmo uma
alteridade cultural. A uma “história-tradição”, em que a cultura determina a história, prescrevendo seus resultados, Sahlins
opõe uma “história dialética”, em que a cultura (estrutura)
organiza a história, promovendo uma continuidade e coerência em meio às contigências da ação humana. É assim
que Sahlins inicia seu primeiro capítulo e justifica seu desejo
por uma espécie de culturalização da ciência histórica a começar por Tucídides e sua história política.
, Goiânia, v. 5, n. 2, p. 491-501, jul./dez. 2007.
SAHLINS, M. História e cultura: apologias a Tucídides.
Rio de Janeiro: J. Zahar, 2006. 331p.
, Goiânia, v. 5, n. 2, p. 491-501, jul./dez. 2007.
Antes da apologia prometida a Tucídides (e depois do louvor a Heródoto e seu charme etnográfico), Sahlins
critica o pressuposto da racionalidade prática com origem
no auto-interesse inato. Ou seja, o pecado de Tucídides
foi ter feito do auto-interesse uma espécie de “razão impessoal” a invadir o mundo social e que por si só seria capaz de conferir significado à história. Este seria o elemento
de plausibilidade que teria intoxicado a historiografia de
Tucídides, segundo Sahlins, tornando inquestionável a
determinação da mudança histórica pela natureza humana. Para Tucídides, o real era natural, assim como para
Hegel foi o racional e para Sahlins é o cultural.
Sahlins destaca como essas idéias “tucidideanas”
tiveram futuro próspero no pensamento ocidental: a noção de mundo dominado por uma força animal – natural –
chamada auto-interesse possibilitou a Hobbes dar vida ao
seu Leviatã e a verdadeira “leviatanologia” que sucedeu esta
criatura nos tempos modernos. Identificando o auto-interesse como propulsor da ação histórica, Tucídides teria tornado a história anticultural, já que o recurso à natureza
humana ignora a construção cultural. A desvalorização do
cultural em favor da natureza humana (em benefício do
universal) não poderia desagradar mais ao antropólogo,
que entende que a cultura talvez não seja suscetível de interferências claramente calculadas, guiadas por uma seleção de meios em termos de custo-eficácia, como acreditam
muitos. A história, para Sahlins, só pode ser regida por
agentes imersos nas específicas tradições e que reajam às
intimações que o encontro evento-estrutura engendra. Na
verdade, interesses e ação histórica sempre dependeriam
de esquemas culturais (p. 117).
Tucídides concebeu seu relato da Guerra do
Peloponeso como um instrumento de inteligibilidade do
presente ateniense que ele oferecia ao historiador do futuro. Não se tratava mais de preservar do esquecimento as
ações valorosas como quis Heródoto – aquele que (re)contava
o que via e ouvia –, mas de descrever o que foi visto de
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forma que o resultado fosse uma história que servisse à
decifração de eventos vindouros, já que, considerando-se
o que são os homens por sua natureza, outras guerras análogas àquela entre Atenas e Esparta não deixariam de
irromper. Essa permanência da natureza é que fundava para
Tucídides a exemplaridade da guerra que ele decidiu “registrar”.
No livro, Sahlins compara a Guerra do Poloponeso
com o que ele chamou a Guerra da Polinésia. A comparação constitui um processo densamente elaborado de
relativização cultural da razão prática que governa o relato
de Tucídides. E contrariando o desejo do pesquisador grego, o antropólogo americano acaba por nos convencer da
ingenuidade que acomete o historiador que, numa espécie
de rebelião contra a tradição e suas histórias repletas de
genealogias, divindades e maravilhas, buscou novos princípios de explanação, se esforçou conscientemente por separar fato de fantasia e voltou-se para as evidências do
presente e para a idéia da validade universal das leis da
natureza humana. Sahlins, por sua vez, vem para alertar
que universal é a razão cultural: “a idéia de uma natureza
humana auto-interessada e competitiva como mola mestra da história é ela mesma uma autoconsciência cultural”
(p.11), ou seja, uma ideologia que varreu o Ocidente deste
Tucídides e que deve, portanto, submeter-se a uma análise
antropológica em termos culturais.
O império ateniense com suas muralhas, sua
esquadra e sua riqueza serviu de modelo a Tucídides para
retraçar a história do passado: antes, jamais se dispusera
de tantas cidades fortificadas, tantos barcos e tanto dinheiro
– era seu raciocínio. Sua meditação sobre o poder (sua ‘arqueologia’) é inteiramente sustentada por uma teoria do
progresso que ecoa nas reflexões contemporâneas sobre o
mesmo tema. Tucídides restringiu o campo da história ao
presente ateniense e seu objeto à história política da Grécia.
Nesse sentido, o passado era para ele algo contínuo, onde
Minos representava a primeiríssima realização do impé-
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rio. O interesse de Minos pelo mar era suficiente para
Tucídides demarcar-lhe o lugar e o sentido na evolução da
história grega (pouco importando se Minos existiu de fato
ou não).
Não é assim que pensa Sahlins. Para ele, os fatos da história são tanto fatos sobre indivíduos quanto ações
de indivíduos desempenhadas em separado (e nesse sentido interessam, sim, os motivos segundo os quais os indivíduos supõem ter agido). Os fatos da história são fatos sobre
as relações de indivíduos entre si em sociedade e sobre as
forças sociais que, a partir das ações individuais, produzem
resultados que nem sempre concordam com os resultados
que pretendiam e às vezes se opõem. Não há círculos regulares de acontecimentos humanos, nem tampouco constitui um mecanismo inerente à história a execução de um
plano imanente. Para Sahlins, a história é uma acumulação acidental de acontecimentos, não um grande plano que
confere significado e justificação a ações e leva a uma determinada situação final.
Mas voltemos a Tucídides. Para o historiador, o
mal que se abateu sobre Atenas era endógeno (stásis): uma
doença da cidade mesma, já que ela fez do “economicismo”
o princípio central da ação histórica. A guerra transformou tudo. A única coisa que persistira fora a natureza entregue a si mesma. No fim, Tucídides é obrigado a
reconhecer que a pólis era mortal. Uma cidade ousada e
segura de si, mas que fora substituída por outra, vencida,
nostálgica, zelosa do seu passado. Um passado que deveria
ser reencontrado e restaurado, a fim de orientar o presente e o futuro dos atenienses.
Não é o que pensa Sahlins, para quem a cupidez
material, como valor moral, é uma invenção e não uma
inevitabilidade. O materialismo é antes uma formação culturalmente específica, como ele mesmo demonstra. Não
se trata de uma determinação econômica da história, mas
da determinação histórica do “economicismo”. A estrutura do império (tanto o ateniense quanto o bauense) deter-
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minou sua história. E é a estrutura que justifica a comparação entre Bau e Atenas: ambas buscaram soluções e viveram histórias semelhantes em virtude da estrutura
semelhante que conferia forma a seus impérios. O que não
nos autoriza a dizer que o passado determinou o presente
de Atenas e Bau. Quem deteve, e sempre detém, os
cordelinhos da história é a cultura, esse novo velho conhecido, orientador da história, uma “cultura-espírito de orientação” altamente impessoal, como diria Ernst Gellner.
Para Sahlins, a cultura gera a si mesma e confere à vida
humana e à história seu significado. Permanece a despeito
da aparência superficial de contingência e de caos. É ela
quem garante a convergência entre razão e fatos. Por essa,
Tucídides, o anti-modelo de Heródoto, não poderia esperar.
Para o historiador, a diferença entre Atenas e
Esparta era questão de caráter nacional, para o antropólogo, seja na Grécia, seja em Fiji, a questão é de estrutura. A
estrutura determina a diferença entre atenienses e bauenses,
espartanos e rewanos respectivamente. As diferenças de
práxis históricas vão além do caráter nacional. Não se pode
falar em subjetividades coletivas valendo-se do essencialismo
como descrição histórica e da indeterminação como explicação cultural. Diferenças estruturais possuem valor histórico, são significativas no tempo e para os povos aos quais
as mesmas se referem. Assim, diferenças de temperamento são motivadas, sim, por diferenças entre ordens culturais, enquanto diferenças entre ordens culturais são
motivadas umas pelas outras (p.54). Atenas não seria o
que foi sem Esparta e vice-versa, porque, mais que oposição, as duas ordens culturais transmitiam-se semelhanças.
Além do que, diferenças constituem estruturas alternadas
de ação histórica que podem ser acionadas conforme seja
conveniente. São por isso mesmo diferenças aparentadas,
afins, complementares, sistêmica e historicamente relacionadas. Constituem-se de forma recíproca e formam a base
de sentido da história. O esquema cultural é precondição
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para suas especificidades funcionais (p.87). O que Tucídides
analisa como disposição funcional, Sahlins vê como oposição complementar, a maneira como práticas específicas
tornam-se ordens culturais.
Termina-se de ler o primeiro capítulo do livro, com
a sensação de que Sahlins se vê como um cosmopolita bemhumorado, exatamente como o foi Heródoto, mas sem abrir
mão do comprometimento com a vida política, a exemplo
do que fez Tucídides. Sahlins reconhece – sempre reconheceu – a dimensão cosmogônica da política que Tucídides
explora de maneira tão eficaz. E o faz de maneira “natural”, já que para o antropólogo americano cultural é sinônimo de social, contrariando os tempos de Burckhardt e
Weber, quando cultural era pensado como tudo o que estivesse além do político.
Na sua tentativa de conjugar cultura e história,
Sahlins ainda chama a atenção para a centralidade do passado na pesquisa antropológica, num movimento opostosimétrico ao de Tucídides, que valorizou a centralidade do
presente na pesquisa histórica. Por isso, objeto de elogio
de Sahlins é apenas o que Tucídides fez no prefácio de A
Guerra do Poleponeso: combinou dados etnográficos,
etnografia comparativa e interpretação histórica de documentos. É a dificuldade de se combinar história política e
descrição da cultura que justifica a apologia a Tucídides.
Interessante, já que geralmente onde a história se misturou à etnografia, a referência é sempre Heródoto.
Sahlins recorre a Tucídides para explicar de outra
maneira o que vem afirmamdo ao longo de sua vida acadêmica: são os homens reais, não abstrações, que fazem a
história. O motor da história não são as necessidades e
interesses dos homens. E não foi só isso que Sahlins aprendeu
com o marxismo. Questionando a idéia de que os fatores
econômicos seriam dominantes na história, Sahlins viu a
necessidade de questionar também a noção do agente impessoal, coletivo, por detrás da história. É esse o exercício
que ele propõe no segundo capítulo de História e Cultura.
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Seguindo o pressuposto de que a sociedade é ontologicamente
uma formação cultural (p.278), Sahlins começa o capítulo
demonstrando como a oposição indivíduo/sociedade implica um conflito essencial entre coerção social e liberdade
individual. Denuncia tanto a crença nas “vastas forças impessoais” (Eliot) que governam a história, quanto na história como “biografia dos grandes homens” (Carlyle), em
que o gênio individual é a força criadora da história.
O que parecia ser uma questão de decisão entre
sujeitos coletivos e indivíduos proeminentes aparece no livro de Sahlins como uma falsa questão. Na verdade, a seguir a pista de Sahlins, a história pode ser narrada tanto
individual quanto coletivamente. A cada tipo de sujeito histórico – coletivo ou individual – correponderia um tipo de
mudança histórica – revolucionária ou evolucionária. Sigamos de perto o argumento engenhoso de Sahlins. A princípio ele analisa criticamente como caráteres nacionais tomam
forma, se materializam nas relações sociais entre indivíduos determinando a maneira como a sociedade deve ser constituída no que ele chama de “antropomorfização dos
coletivos”. Ele parte da apologia a Tucídides e destaca que
o agente de sua história é o “povo”, “os atenienses”,
“espartanos”. I fato é que Tucídides não fala em Atenas
ou Esparta como sujeitos, não antropomorfiza a pólis.
Embora , segundo Sahlins, o historiador só não o fez simplesmente porque suas reflexões quanto à ordem cultural
e social eram limitadas (p.122), diferentemente do caso do
o antropólogo.
O pressuposto que guia a reflexão de Sahlins no
segundo capítulo é o de que as questões situacionais e estruturais determinam ora totalidades, ora indivíduos específicos como “fazedores de história”. As coletividades
estariam para as tendências gerais, ou seja, para as “mudanças históricas de tipo evolucionário”, que se dão de forma progressiva e cumulativa. Enquanto os indíviduos dignos
de identificação apareceriam quando das “mudanças revolucionárias”, com suas rupturas e transformações, mudan-
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ças relativamente súbitas que ocorrem graças a feitos individuais. Sendo assim, o tipo de mudança histórica determina o tipo de agente histórico. Para os eventos, pessoas
que fizeram a diferença. Para as tendências gerais, uma
história de dominação progressiva sob a forma de relato
coletivo. A inversão estrutural na história implicaria uma
inversão no modo de narrar essa mesma história.
Sahlins discute também como aquele antigo
dualismo antropológico indivíduo/cultura persistiu ao longo
do tempo e analisa as tentativas de superá-lo por meio de
determinismos ora individual, ora cultural; ora incluindo
o social no indivíduo (individualismo radical), ora dissolvendo o indivíduo no cultural (leviatanologia). Ele critica,
por isso, as correlações de disposições pessoais com formas estruturais e a idéia de cultura como prescrição autoritária da conduta. A crítica a Foucault é, a essa altura,
inevitável: apenas subjetividades teriam forma, e estruturas não podem ser concebidas em função de seus efeitos
de subjugação e subjetivação. Na verdade, o sujeito sempre
expressa universais culturais sob uma forma individual
quando vive a cultura de maneira específica. Ele é nela ao
mesmo tempo que pode ir além dela (p.145).
Sahlins também critica o que ele chama de sujeitos-padrões: aqueles que nada são e nada fazem para além
de sua própria cultura, como o sujeito-burguês, o sujeitofeudal etc. Seriam eles “subjetividades essencializadas”
(Sartre), que personificariam estruturas maiores
internalizando universais relevantes. Contudo, cada indivíduo o faz, sim, mas de maneira distinta. E é nessa distinção que o indivíduo que “faz história” produz efeito histórico.
Um efeito que somente pode ser avaliado a partir de sua
posição. Como diz Sahlins, “a história faz os que fazem
história” (p.148) e este fazer pode se dar por meio de uma
“ação sistêmica” ou de uma “ação conjuntural”. Na primeira, o que se dá é um processo de infusão de poder
institucional no “grande homem”, numa ação constituída
pela ordem cultural, quando uma singularidade é histori-
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camente investida do poder de fazer história. Na segunda,
o agente histórico é circunstancialmente selecionado dentro de uma conjuntura histórica particular. Naquele momento específico, alguém é autorizado a determinar a história.
A racionalidade é da contingência e a autoridade de comando da história é momentânea.
Por fim, Sahlins analisa, no caso Elián Gonzales,
o processo de ampliação estrutural das relações interpessoais
quando o macrocosmo político se infiltra estruturalmente
no registro pessoal, no microcosmo familiar, numa espécie de síntese do nacional com o pessoal, do drama humano com o drama político. No caso do menino cubano náufrago,
“categorias sociais e universais assumem a carga emocional das relações humanas nas quais foram incorporadas”
num processo de transferência simbólica extremamente
interessante. Sem dúvida, é a análise mais instigante de
Sahlins no livro. A observação quanto às “virtudes estruturais” das histórias escolhidas para a realização desse intercâmbio entre coletivo e pessoal e a análise das amplificações
simbólicas que tal intercâmbio implica são bastante originais.
A tonalidade política que Sahlins sempre confere
a suas análises é mais evidente também neste capítulo do
livro. Contudo, persiste a sensação de determinismo cultural. Afinal, dizer que Elián fora usado como instrumento
de interesses políticos, mas que estes são culturais, leva ao
entendimento de que os acontecimentos históricos são invariavelmente determinados pela cultura, aquele força estranha que está em todo lugar e por isso mesmo parece
não estar em lugar algum (tal como o “poder” em Foucault).
Se Marx disse que “a história nada faz”, Sahlins concorda,
mas apenas para completar que é a cultura que faz tudo. O
agente histórico é sempre representativo tanto das forças
existentes quanto das forças que ele ajuda a criar, ou seja,
a cultura. Uns ajudam a modelar a estrutura que os autoriza a um momento de grandeza. Outros, como Napoleão,
marcharam para a grandeza apoiados numa estrutura já
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existente. Mas ambos são tanto produto quanto agentes
da cultura. No fim, não é o homem de Marx, mas a cultura
de Sahlins que luta, tudo faz e tudo possui.
Sahlins não concordaria conosco, claro. Tanto que,
no fim, ele volta à história, o lugar onde se encontram a
ordem cultural e a liberdade individual. Em vez de incompatíveis, separadas, paralelas e incomensuráveis, Sahlins
entende as duas dimensões em ‘interacção’ na história. O
sentido da história é precisamente essa troca entre indivíduo e coletivo, estrutura e evento. Deste modo, em vez de
separados e distintos, condenados a um eterno apartheid,
estrutura e evento passam a ser vistos como o lugar do
sentido da história. Sendo assim, ver na Guerra da Polinésia
mais o resultado da animosidade entre os dois irmãos chefes do que a reprodução/atualização de uma estrutura diante dos eventos que se lhe apresentam é uma simplificação
absurda no entendimento de Sahlins. Tão ingênua quanto
e idéia de que o império ateniense consistiu na sua avidez
ou ambição por poder. Em ambos os casos, o que se faz é
falar em termos de qualidades individuais, estas mais facilmente compreensíveis, mas que nem sempre são
determinantes do movimento histórico. Este é o tema em
discussão no último capítulo do livro de Sahlins: a crítica à
desvinculação entre evento e estrutura, ação intencional e
ordem cultural.
Se a ação se dá segundo formações culturais, não
se pode falar em qualidades universais da ação humana no
sentido de que sujeitos históricos são movidos por inclinações humanas genéricas como queria Tucídides. A investidura
de autoridade de comando sobre a história é estrutural,
como Sahlins afirma ao longo do livro. É o esquema cultural que investe de poder os agentes históricos e confere
eficácia a seus feitos, já que é a posição desse mesmo agente no sistema ou na situação social específica que permite
que seus atos venham a ter conseqüências para o todo.
Sahlins analisa esse processo de investidura de
poder de comando da história por meio do que ele deno-
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Giulle Vieira da Mata
Mestranda em Antropologia Social na UFMG
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mina “instituições mediadoras” responsáveis por sintetizar o universal e o particular por meio de replicações estruturais que implicam em adição de forças coletivas a
rivalidades individuais (p.202-205). Por meio de instituições assim, interesses particulares infiltram-se na coletividade, disputas interpessoais projetam-se amplificadamente
nos conflitos coletivos numa carga adicional de intensidade e efeito histórico das ações individuais. Por outro lado,
as mesmas instituições mediadoras permitem que o conflito coletivo seja apresentado como “causa última” do conflito entre personagens no plano individual. O processo é,
mais uma vez, de integração entre coletivo e individual
quando impulsos reciprocramente estruturais são trocados
entre os dois pólos, graças a instituições mediadoras. O
exemplo dado por Sahlins é o caso do fatricídio entre dois
jovens chefes do reino de Bau, onde questões políticas
maiores, com envolvimento dos reinos de Bau e Rewa, foram
inseridas na relação entre os irmãos e as casas aparentadas (p. 216). Em sua análise, Sahlins deixa claro que não
há como compreender a guerra entre aqueles reinos sem
compreender a guerra entre os dois irmãos, e vice-versa,
já que os personagens – coletiva ou individualmente – são
protegidos ou traídos justamente por suas relações estruturais na ordem cultural em questão. Por fim, Sahlins demonstra como a interação entre eventos, tanto no nível
interpessoal quanto no nível coletivo, é constante e faz com
que os resultados desses eventos sejam culturalmente coerentes ao mesmo tempo que estruturalmente motivados.
Nas palavras do próprio Sahlins, “o evento é contingente,
mas desdobra-se no campo cultural particular”. E mais uma
vez, é da cultura que se derivam todas as razões.
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