3.3 Refugiados ambientais Refugiados ambientais: “Pessoas obrigadas a abandonar, temporária ou definitivamente, a região onde vivem, devido ao visível declínio do ambiente (por razões naturais ou humanas), perturbando a sua existência e/ou qualidade de vida, de tal maneira que a sua subsistência fica em perigo.”1 Desde que Essam El-Hinnawi, professor do Instituto Ambiental e de Recursos Naturais do Cairo, avançou uma definição de refugiado ambiental, em 1985, e devido às importantes alterações climáticas e ambientais entretanto verificadas, têm aumentado os estudos e debates internacionais, tanto sobre os efeitos ecológicos destas mudanças, como sobre as populações em risco e as migrações a que podem ser forçadas. Segundo o último relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas2, inundações, secas, furacões e ondas de calor afectarão milhões de pessoas em todo o Mundo. Em 2008 as catástrofes naturais relacionadas com o clima provocaram 20 milhões de deslocados 3. Os desastres ambientais podem: ter causas naturais (ciclones, vulcões, terramotos), ser resultantes da acção directa do Ser Humano no meio ambiente (destruição da floresta, catástrofes nucleares, contaminação por guerras químicas, construção de barragens) ou da acção indirecta (emissão de gases com efeito de estufa), ser uma combinação dos dois factores (inundações naturais agravadas por alterações nos fluxos de água, desertificação causada pelo clima e/ou o desgaste dos solos). O número de deslocados ambientais, que, por qualquer uma destas razões, teve que abandonar as suas casas, atingiu, no fim do século passado, 25 milhões de pessoas45. De acordo com a diversidade das causas, os refugiados ambientais dividem-se, frequentemente, em deslocados por desastres naturais, deslocados que resultam da actuação directa do Ser Humano, ou deslocados em permanência, porque a região onde viviam já não consegue satisfazer as suas necessidades básicas.6 Todavia, no debate sobre o conceito e o Curso e-Learning de Sensibilização sobre Asilo e Refugiados (SAR) 3.3 - Rev. 23.ABR.2010 - Pág. 1 3.3 – Refugiados Ambientais reconhecimento legal dos refugiados ambientais, estas categorias não são unanimemente aceites. Com excepção do perigo iminente e da fuga face a um desastre natural, todas as outras migrações têm causas muito mais complexas e nem sempre directa e unicamente ligadas à degradação ambiental. «A maioria das deslocações forçadas – sejam elas causadas por abuso dos direitos humanos, desastres naturais ou projectos de desenvolvimento económico, ou ainda na forma do tráfico ou rapto — tem lugar em países pobres e tem o maior impacto nas pessoas mais pobres e vulneráveis destas sociedades.»7 Este ponto de vista do gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) é partilhado pelo cientista ambiental britânico Norman Myers que, na sua definição de refugiados ambientais, acaba também por relacionar as mudanças do meio ambiente com problemas populacionais e de extrema pobreza. 8 No entanto, ambos podem ter agendas diferentes, como sugere Richard Black do Centro de Investigação de Migrações, em Sussex, que tem criticado as “projecções alarmistas” avançadas por Norman Myers e outros especialistas9. Para este autor, Myers utiliza a ameaça que milhões de refugiados ambientais do Sul poderiam representar para o Norte para pressionar os governos no sentido de tomarem medidas decisivas para atacar as causas da degradação ambiental, sem ter reunido as bases teóricas e empíricas sólidas para uma intervenção no debate sobre o conceito e a realidade dos refugiados ambientais, tal como ela se coloca às organizações humanitárias e ao ACNUR. Independentemente disso, convém salientar que a injustiça das relações Norte-Sul estende-se também às questões ambientais, uma vez que as alterações climáticas, com a subida pevisível do nível do mar10 e o alargamento das zonas desertificadas, afectarão principalmente os países em desenvolvimento, cuja responsabilidade no aquecimento global é bastante menor do que a das nações industrializadas. Ainda no campo da instrumentalização política de problemas ambientais, assiste-se a casos chocantes, com graves consequências para as populações afectadas, tais como a utilização da degradação ambiental como instrumento de guerra ou política repressiva. Um exemplo disso foi a utilização do ‘agente laranja’ na guerra do Vietname (1962-1971). As forças armadas dos Estados Unidos empregaram este pesticida desfolhante, em grande escala, para privar as forças inimigas de alimentos e de cobertura Curso e-Learning de Sensibilização sobre Asilo e Refugiados (SAR) 3.3 - Rev. 23.ABR.2010 - Pág. 2 3.3 – Refugiados Ambientais contra a guerra aérea. Quarenta anos depois os efeitos desta contaminação ainda se fazem sentir. Um outro aspecto é a ligação que pode existir entre a degradação ambiental e a eclosão de um conflito. No caso de Darfur, esta relação foi estabelecida pelo próprio Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon. Ao referir-se às origens do conflito, apontou para as duas décadas de seca na região, as quais poderão ter originado os primeiros combates entre camponeses ali enraizados e pastores árabes nómadas, combates esses que, a partir de 2003, se transformaram numa das maiores tragédias actuais, de cariz étnico, religioso e político11, com os subsequentes 200.000 mortos e quase 2 milhões de deslocados. Apesar do aumento dos desalojamentos ambientais e da insistência de cientistas e activistas de direitos humanos, o estatuto de refugiado ambiental não é reconhecido pelo sistema das Nações Unidas, nem existe unanimidade em relação ao próprio conceito. No entanto, existem mecanismos pontuais, através dos quais o ACNUR pode intervir na protecção de populações desamparadas, como mostrou a sua forte intervenção na assistência pós-Tsunami em 2004/2005. Face à gravidade da situação, o ACNUR correspondeu ao pedido das Nações Unidas e teve um papel importante na assistência às vítimas, fornecendo materiais para abrigo e outros equipamentos de emergência. Há medidas de protecção destinadas aos deslocados internos que poderão igualmente ser aplicadas aos refugiados ambientais12. Neste contexto é importante notar que recentemente surgiram diversos defensores de que a designação mais adequada será a de "deslocados internos por razões ambientais" (uma vez que normalmente não atravessam fronteiras entre Estados, tratando-se de migrações de curta distância). Resta saber com que medidas irá a comunidade internacional enfrentar as consequências decorrentes da degradação ambiental no futuro, em relação às pessoas que são forçadas a deslocarem-se, atravessando fronteiras entre Estados. Um caso concreto pode servir para demonstrar a complexidade do problema: As nações mais ameaçadas pela previsível subida da água do mar são os pequenos arquipélagos no Sul do Pacífico, cuja elevação máxima é pouco mais de 2m acima do nível do mar. O arquipélago de Tuvalu, com os seus 12 400 habitantes, é uma destas nações, a meio caminho entre o Curso e-Learning de Sensibilização sobre Asilo e Refugiados (SAR) 3.3 - Rev. 23.ABR.2010 - Pág. 3 3.3 – Refugiados Ambientais Hawaii e a Austrália. Esta população combate, há anos, os efeitos da subida das águas do mar, como a erosão costeira ou a salinização dos solos, que ameaçam as plantações. Entretanto, cerca de 3000 tuvaleses já abandonaram as ilhas para viver na Nova Zelândia, Fiji e outras nações vizinhas. Neste processo de recolocação, o governo da República de Tuvalu tem tido um papel activo, pois negociou, em 2001, um acordo com a Nova Zelândia, em que foram estabelecidas as regras segundo as quais este país irá receber uma grande parte da população de Tuvalu. Embora a ameaça do desaparecimento das ilhas de Tuvalu ilustre bem o que poderiam ser refugiados ambientais, a resolução do problema foi assumida por um governo atento. O facto de a recolocação da população estar a ser um processo planeado não invalida, contudo, que a migração forçada a que estarão sujeitos seja um acontecimento não traumático. E se um governo é ultrapassado pelos problemas ou não tem meios para os solucionar? O que acontecerá, se o número de pessoas deslocadas for muito superior aos casos referidos? Basta recordar que a passagem do furacão Katrina por Nova Orleães deixou, em poucas horas, desalojou cerca de 1 milhão de pessoas. No Bangladesh há vários milhares de pessoas deslocadas internamente dos seus locais de residência, em consequência de ciclones recentes. Estas pessoas enfrentam as condições de vida mais adversas e concentraram-se sobretudo em Daca, onde vivem num limiar de pobreza dramático, e sem que o governo possa mobilizar a assistência necessária. Os fenómenos climáticos e os desastres naturais não respeitam fronteiras, como mostrou o terramoto que, em 2005, abalou a zona fronteiriça entre o Paquistão e a Índia. Esta tragédia gerou, inclusivamente, acordos diplomáticos entre estas duas nações, de relações difíceis, para que a abertura da fronteira entre os dois países permitisse o fluxo de sobreviventes, os quais se tornaram, dessa forma, deslocados dentro das fronteiras de um outro país. No caso de um grande número de deslocados, a sua permanência mais ou menos prolongada numa zona de refúgio já por si vulnerável pode trazer problemas difíceis de solucionar por um só país, como demonstrado, aliás, pelas grandes crises de refugiados, expulsos das suas terras pela violência de conflitos bélicos. A «(...) deslocação de massas populacionais desalojadas pode causar a deflagração de instabilidade ou conflito no país de origem, nos países de acolhimento ou dentro da região. Recursos escassos podem ser Curso e-Learning de Sensibilização sobre Asilo e Refugiados (SAR) 3.3 - Rev. 23.ABR.2010 - Pág. 4 3.3 – Refugiados Ambientais ainda mais degradados ou depauperados e gerar competição pelo acesso aos mesmos; infra-estruturas insuficientes, ou injustiça no seu acesso, podem reforçar divisões sociais e tensões. Condições de superpopulação ou insalubridade, bem como a falta de água potável, podem causar epidemias mortais. Se ocorrerem movimentos populacionais globais, estes e outros impactos poderão ter implicações graves na segurança global.»13 Todas estas questões estão ligadas ao conceito de refugiado ambiental, e mostram que os seus contornos requerem ainda uma melhor definição. Uma das críticas ao conceito é a inexistência de uma monocausalidade identificável, ou seja, as causas por detrás das migrações populacionais são várias e raramente, como no caso dos tuvaleses, redutíveis a um processo de degradação ambiental. Entre as razões económicas, sociais, políticas, demográficas e culturais convém, mais uma vez, realçar a grande vulnerabilidade das populações pobres, que se tornam, facilmente, vítimas de alterações climáticas e rupturas ambientais. Devido à sua condição, vivem em zonas menos protegidas e mais atingidas por desastres naturais (cheias, desabamento de terras, actividade vulcânica, etc.), encontram-se frequentemente entre os já deslocados (em casos de conflitos ou de projectos de desenvolvimento em grande escala), e têm menores recursos para se salvar e para recomeçar a sua vida num outro lugar mais hospitaleiro. Isto também acontece em países com vastos recursos. As vítimas abandonadas em Nova Orleães pertenciam, em grande medida, a minorias étnicas (com especial incidência na população afro-americana) e classes sociais mais baixas, o que levou o Senador pelo Estado do Illinois e, na altura, candidato a Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, a observar o seguinte: «(...) quem quer que tenha sido responsável pelo planeamento do pior cenário, parece ter assumido que todos os americanos têm a capacidade de meter a sua família num monovolume utilitário14, de encher o depósito com gasolina no valor de 100 dólares, meter garrafas de água potável na porta-bagagens, e utilizar o cartão de crédito para fazer o check-in num hotel em terra segura.»15 A capacidade de adaptação humana representa, também, uma incógnita. Em toda a história da humanidade, registaram-se deslocações de populações que deixaram, temporariamente, as suas terras pouco hospitaleiras, para, depois, voltarem quando as condições ambientais se tornavam mais favoráveis. Neste caso, a migração pode ser considerada uma deslocação forçada, mas também é uma estratégia para fazer frente a uma situação Curso e-Learning de Sensibilização sobre Asilo e Refugiados (SAR) 3.3 - Rev. 23.ABR.2010 - Pág. 5 3.3 – Refugiados Ambientais insustentável. As estimativas e projecções referentes a cenários futuros têm também que contar com o factor humano, não só ao nível da adaptação a situações adversas, mas, também, em relação à capacidade de mobilização e pressão na procura de soluções que melhor sirvam as populações afectadas. A nível mundial, já surgiram, entretanto, uma série de organizações, grupos e iniciativas locais em defesa dos migrantes ambientais 16. Estas actividades, ao confluírem com uma crescente mobilização e consciencialização pública relativas aos problemas ambientais do planeta, podem levar à implementação de algumas medidas necessárias17, tais como: promover um desenvolvimento sustentável; reduzir, drasticamente, a emissão de gases produtores de efeito de estufa e outras actividades humanas prejudiciais ao meio ambiente; desenvolver um conjunto de direitos que abranjam todas as pessoas deslocadas; identificar mecanismos de prevenção e de adaptação que possam ajudar populações vulneráveis; continuar a estudar a relação entre processos de degradação ambiental cumulativa e movimentos de migração e deslocação forçada; aumentar os orçamentos do ACNUR e de outras organizações humanitárias para poderem fazer frente a crises presentes e futuras de deslocação maciça. Embora a degradação ambiental e as suas consequências possam perspectivar cenários catastróficos, há sinais de que alguma coisa está a mudar, como os concertos do Live Earth (2007), uma iniciativa do ex-VicePresidente e ambientalista norte-americano Al Gore, que terão sido vistos por cerca de dois mil milhões de pessoas em todo o Mundo, através da Internet e televisão. Este “dia histórico”18, segundo palavras do próprio Al Gore, mostra que a crescente pressão mundial está a levar sectores importantes da maior potência global a reconsiderar a política ambiental dos E.U.A.. Depois do não categórico ao Protocolo de Kyōtō, o repto lançado à indústria norteamericana, no sentido de desenvolver uma economia verde, mostra que estão a ser dados alguns passos que, num futuro breve, podem aproximar os Estados Unidos das posições europeias mais avançadas nesta matéria. 19 Curso e-Learning de Sensibilização sobre Asilo e Refugiados (SAR) 3.3 - Rev. 23.ABR.2010 - Pág. 6 3.3 – Refugiados Ambientais 1 El-Hinnawi, E. (1985). Environmental Refugees. Nairobi: United Nations Environment Programme 2 O quarto relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa), um grupo científico criado pelas Nações Unidas, em 1988, foi publicado em Bruxelas no dia 06/04/2007, www.ipcc.ch 3 United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs e Internal Displacement Monitoring Centre. Monitoring disaster displacement in the context of climate change, 2009 http://www.internal-displacement.org/8025708F004BE3B1/%28httpInfoFiles%29/ 12E8C7224C2A6A9EC125763900315AD4/$file/monitoring-disaster-displacement.pdf 4 Relatório de Desastres 2001 do Comité Internacional da Cruz Vermelha www.ifrc.org/publicat/wdr2005/ 5 ACNUR, A Situação dos Refugiados no Mundo, 2000 | www.cidadevirtual.pt/acnur/sowr2000/index.html 6 in: El-Hinnawi, E. (1985). Environmental Refugees. Nairobi: United Nations Environment Programme. 7 ACNUR, A Situação dos Refugiados no Mundo, 2006 www.unhcr.org/static/publ/sowr2006/toceng.htm 8 «Pessoas que já não conseguem garantir uma subsistência segura no local de residência devido a seca, erosão do solo, desertificação, desflorestação e outros problemas ambientais, associados a problemas de população e extrema pobreza.» Norman Myers e J. Kent. Environmental Exodus. An Emergency Crisis in the Global Arena, 2001. 9 Richard Black. Environmental Refugees: Myth or Reality?, Working Paper Nº 34, March 2001 www.unhcr.org/cgi-bin/texis/vtx/research/opendoc.pdf?tbl=RESEARCH&id=3ae6a0d00 10 «A previsão média de um aumento de 40 centímetros do nível dos oceanos implicará que 200 milhões de pessoas sejam obrigados a deixar o seu lar e a sua vida», salientou em Fevereiro de 2007 o climatólogo francês Jean Jouzel do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC). Fonte: Artigo no jornal ‘O Público’ de 05/04/2007 http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1290400&idCanal=undefined 11 Ban Ki-moon, Washington Post, 16 de Junho de 2007 www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2007/06/15/AR2007061501857_pf.html 12 Para mais informações ver http://www.internal-displacement.org/guidingprinciples , disponível no Internal Displacement Monitoring Centre 13 Estado do Mundo 2005: Redefinir a Segurança Global, Worldwatch Institute (WWI), Artigo: Ligação de Segurança – Refugiados Ambientais, Rhoda Margesson, Serviço de Pesquisa do Congresso Norte-Americano | www.wwiuma.org.br/edm2005/Estado%20Mundo_2005_cap2.pdf 14 15 SUV, abreviatura de Sports Utility Vehicle Citação traduzida do texto «The Rising Flood? Environmental Refugees in a Political Ecology Perspective» de Trudy S. Rebert www.macalester.edu/geography/courses/geog488/moseley/f06/rebert.pdf Curso e-Learning de Sensibilização sobre Asilo e Refugiados (SAR) 3.3 - Rev. 23.ABR.2010 - Pág. 7 3.3 – Refugiados Ambientais 16 Por exemplo: Friends of the Earth, www.foei.org | Living Space for Environmental Refugees (LISER), www.liser.org | Greenpeace, http://www.greenpeace.org/international/ 17 Ver algumas sugestões no artigo : «Environmental Degradation and Population displacement» de Steve Lonergan (Canada) e Ashok Swain (Suécia), www.gechs.org/aviso/02/index.html 18 19 Notícia sobre o evento em http://www.rtp.pt/index.php?article=289812&visual=5 Declaração do Parlamento Europeu, de 22 de Maio de 2007, sobre o estabelecimento de uma economia verde baseada no hidrogénio e uma terceira revolução industrial na Europa através de uma parceria com as regiões, cidades, PME e organizações da sociedade civil interessadas. www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+TA+P6-TA-20070197+0+DOC+XML+V0//PT Curso e-Learning de Sensibilização sobre Asilo e Refugiados (SAR) 3.3 - Rev. 23.ABR.2010 - Pág. 8