1 – newton demonstrou que órbitas são elípticas

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Por iniciativa do astrônomo Halley (1656-1742), Newton escreveu uma
apresentação detalhada de seus resultados sob o título ‘Philosophiae Naturalis Principia
Mathematica’ e a enviou à ‘Royal Society’ em 28 de Abril de 1686.
Depois do Principia o universo que até então parecia caótico, ganhou a
aparência de um relógio bem regulado. Esta regularidade e simplicidade dos princípios
básicos das quais todos os movimentos complicados observados foram deduzidos foi
percebido por Newton como prova da existência de Deus. A física teórica permaneceu
no paraíso criado por Newton por mais de 200 anos, até que a mecânica quântica e a
teoria da relatividade geral dissiparam essa ilusão.
Entre os mais importantes princípios físicos contidos no Principia poderíamos
mencionar: (1) a idéia de relatividade de espaço e tempo (“na natureza não há corpo em
repouso (...) nem em movimento uniforme”); (2) a conjectura de que sistemas de
coordenadas inerciais existem; (3) o principio de ‘determinância’, segundo o qual as
posições e velocidades de todas as partículas do mundo num instante determinam todo o
seu futuro e todo o seu passado.
É impossível aqui listar todas as conquistas concretas apresentadas no Principia.
Algumas delas seriam, por exemplo, a construção da teoria dos limites (que difere da
teoria moderna apenas em notação), uma demonstração topológica da transcendência
das integrais abelianas (Lema XXVIII), o cálculo da resistência ao movimento num
meio rarefeito com velocidade supersônica, a investigação de problemas variacionais
acerca da resistência mínima de um corpo de comprimento e largura dados.
1 – NEWTON DEMONSTROU QUE ÓRBITAS SÃO ELÍPTICAS?
Hoje em dia, a dedução das leis de Kepler a partir da segunda lei de Newton e da
lei da gravitação universal é abordada em muitos livros de cálculo. Seria apropriado
aqui dizer algumas palavras sobre uma discussão desenvolvida recentemente nos jornais
de Física. No passado, essa discussão seria impossível, mas agora a situação é diferente
graças ao fato de o espírito da matemática moderna ter penetrado num certo número de
físicos. Eles começaram a se preocupar com questões que até então ninguém teria
levado a sério, e muitos físicos tomaram parte nessa discussão, cujo tema foi colocado
da seguinte forma: Newton provou que a primeira lei de Kepler segue da lei da
gravitação universal?
Na verdade, esta é exatamente a questão. Para a trajetória de um corpo se
movendo sob a ação da gravidade, as leis de Newton dão a equação diferencial

r   kr .
r3
Em vez de resolvê-la segundo todas as regras da ciência, Newton, em seu livro,
apresentou muitas soluções e verificou que para qualquer condição inicial existe uma
solução entre elas que a satisfaz. Noutras palavras, para qualquer ponto e vetor do
espaço, existe no conjunto das órbitas descobertas por Newton uma que passa
inicialmente por esse ponto e tem nesse ponto o vetor velocidade dado. Se a velocidade
inicial não é muito grande então a órbita é elíptica. Mas quem disse, alegam os físicos
experientes nas sutilezas matemáticas, que não existem outras órbitas satisfazendo as
mesmas condições iniciais ao longo das quais o corpo pode se mover, observando a lei
da gravitação universal, de maneira completamente diferente? Matemáticos sabem que a
ausência de outras trajetórias é conhecida como o teorema de unicidade. Logo, para
deduzir a partir da lei da gravitação universal que os corpos de movem dessa forma e
não de outra, Newton precisaria não somente produzir muitas soluções da equação
diferencial mas também mostrar o teorema de unicidade para ela. Ele fez isso? Não.
Falando por alto, é impossível usar esta lei para descrever a realidade até que o teorema
de unicidade tenha sido provado. Quem foi o primeiro a fazer isso? Johann Bernoulli.
Portanto foi este, não Newton, que deduziu a lei de Kepler a partir da lei da gravitação
universal, e toda glória pertence a ele. Isto é o que disseram os físicos que tomaram
parte da discussão acima, repetindo o que já fora dito muitos anos atrás pelos
matemáticos.
De fato, toda essa discussão é baseada numa profunda desilusão. Matemáticos
modernos na verdade distinguem teoremas de existência de teoremas de unicidade para
equações diferencias. Daí podem surgir alguns problemas, e se as equações de Newton
fossem problemáticas seria impossível fazer quaisquer deduções. Um ponto de vista
errôneo surge por causa da extensão da classe de funções em consideração. O fato é que
na matemática moderna os conceitos de função, campo vetorial, equação diferencial
adquiriram um significado diferente comparado com os da matemática clássica. Por
exemplo, falando de função, podemos ter em mente objetos um tanto patológicos – uma
função diferenciável em nenhum ponto – e devemos pensar na classe de funções que a
contém, e assim por diante. Mas no tempo de Newton, a palavra função significava
apenas coisas muito boas, às vezes polinômios, às vezes funções racionais, mas em todo
caso eram sempre analíticas em seu domínio de definição e podiam ser expandidas em
séries de Taylor. Nesse caso o teorema de unicidade não é problema, e nessa época
ninguém se importou com isso.
Mas na realidade Newton provou tudo, num alto nível. O seguinte teorema é
verdadeiro: suponha que tenhamos uma equação diferencial
x  vt , x 
e que para qualquer condição inicial a , tenhamos produzido uma solução xt , a  com
x0, a   a , com esta solução dependendo suavemente de a ; então o teorema de
unicidade é verdadeiro para esta equação.
Portanto, em geral, unicidade não decorre da existência de uma solução, mas
tudo vai bem se a solução produzida depende suavemente das condições iniciais.
Vejamos o que Newton fez. Para cada dado inicial ele produziu uma solução,
descreveu-a e desta descrição era óbvio que a solução dependia suavemente dos dados
iniciais. Logo, não há duvida sobre a unicidade e Newton corretamente provou a
primeira lei de Kepler.
Com certeza, poderíamos questionar que Newton não sabia deste teorema. De
fato, ele não o enunciou na forma como fizemos, mas ele certamente o sabia em
essência, assim como muitas outras aplicações da teoria das perturbações – a análise
matemática de Newton é até certo ponto uma teoria bem desenvolvida das perturbações.
2 – A TEORIA DAS PROPORÇÕES
A teoria das proporções era a principal ferramenta matemática empregada na
‘matematização’ dos fenômenos naturais durante a primeira metade do século XVII. Ela
foi desenvolvida por Euclides no quinto livro dos Elementos. Era a única teoria
matemática da antiguidade que lidava com ‘magnitudes’ em geral, e em particular era
poderosa para manipular magnitudes contínuas. Aqui, magnitude é um conceito geral
que cobre todas as instâncias em que as operações de adição e comparação têm um
significado. Por exemplo, uma magnitude pode ser um comprimento, um volume, ou
um peso. Podemos formar ‘razões’ entre magnitudes do ‘mesmo tipo’, e uma proporção
é uma semelhança entre duas razões.
Duas quantidades são ‘homogêneas’, ou do mesmo tipo, quando “são capazes,
quando multiplicadas, de exceder uma à outra”1. A teoria das proporções não permite a
formação de uma razão entre duas magnitudes heterogêneas. Isso é, em particular,
importante na cinemática uma vez que não é possível, por exemplo, definir velocidade
como a razão entre espaço e tempo.
Razões não são magnitudes. Tendemos a ler razões como números e proporções
como equações, mas na tradição antiga de Euclides não era esse o caso. A descoberta
das razões incomensuráveis (como a razão entre o lado e a diagonal de um quadrado)
era interpretada como implicando a incapacidade do conceito de número em descrever a
extensão do conceito de razão. Entretanto, operações entre razões são possíveis, e uma
delas particularmente importante é a ‘composição’ (ou combinação). Quando A, B e C
são quantidades homogêneas, A / C é chamada a razão combinada de A / B e B / C.
Somente razões ‘contínuas’ podiam ser combinadas, ou seja, aquelas em que o último
termo da primeira é igual ao primeiro da segunda. De modo a combinar duas razões não
contínuas, A / B e C / D, deve-se determinar a ‘quarta proporcional’ a C, D e B, a saber,
uma magnitude F tal que C / D = B / F. Logo a razão combinada de A / B e C / D seria
igual a razão combinada de A / B e B / F, ou seja, A / F.
A teoria das perturbações foi aplicada na matematização dos fenômenos naturais
desde os tempos antigos. Na escola Galileana era empregada na estatística, cinemática e
hidrostática. O exemplo simples de movimento uniforme nos permite entender algumas
características da matematização da filosofia natural na escola Galileana. A relação
entre tempo, espaço e velocidade em movimento uniforme pode ser expresso como
s = v ∙ t.
Isto não era possível dentro da concepção da teoria das proporções, pois
teríamos uma magnitude, velocidade, igual a razão entre duas magnitudes heterogêneas,
espaço e tempo. Temos de, ao invés, afirmar uma série de proporções permitindo que
somente duas das três magnitudes envolvidas variem. Assim, podemos dizer ‘quando a
velocidade é a mesma e comparamos dois movimentos uniformes as distâncias são
como os tempos’:
s1 s2  t1 t 2 .
Ou, ‘quando as distâncias percorridas são as mesmas, as velocidades são como os
tempos inversamente’:
v1 v2  t 2 t1 .
Pode-se alcançar uma formulação matemática mais elaborada do movimento
uniforme através da operação de combinação. O objetivo é afirmar que as distâncias
estão na razão combinada das velocidades e dos tempos. Suponhamos que a distância
s1 é percorrida com velocidade v1 no tempo t1 e que a distancia s2 é percorrida com
velocidade v2 no tempo t 2 . Como podemos ‘comparar’ os dois movimentos? O truque
consiste em considerar um terceiro movimento uniforme com velocidade v3  v 2
durante um tempo t 3  t1 . Podemos escrever:
s1 s3  v1 v3 ,
e
s3 s 2  t 3 t 2 .
1
Euclides, Os Elementos, 5, definição 4. Em termos modernos, uma razão A / B (quando A < B) pode ser
formada se e somente se existe um inteiro positivo n tal que nA > B.
A operação de combinação nos permite afirmar que s1 s 2 é a razão combinada de
v1 v2  v3  e t1  t 3  t 2 . Este fato era expresso por afirmações do tipo ‘a distancia é
proporcional à velocidade e ao tempo conjuntamente’.
A teoria das proporções não era suficientemente flexível para lidar com os
problemas da filosofia natural do século XVII. Após algumas tentativas no sentido de
flexibilizar o esquema euclidiano, finalmente a geometria de Descartes se sobressaiu à
teoria das proporções. Deste novo ponto de vista razões são consideradas como
quocientes e proporções como equações, e consequentemente, multiplicação direta de
razões, mesmo razões descontínuas, são permitidas. Essa abordagem de Descartes
obteve grande sucesso. Na Géométrie, multiplicação de dois segmentos não é uma área,
como seria na tradição euclideana, senão outro segmento: multiplicação é, portanto,
uma operação fechada para segmentos. Homogeneidade de dimensões geométricas não
é mais um empecilho à formação de razões. Enquanto Huygens em seus manuscritos
matemáticos não publicados tenha mostrado habilidade na prática da nova arte analítica
iniciada por Descartes, ele escolhe a linguagem das proporções em seus escritos sobre
filosofia natural, mais notavelmente no Horologium oscillatorium.
3- COMO NEWTON DE FATO ESCREVEU O PRINCIPIA?
No Horologium, as proporções são empregadas com tanto rigor que, exceto por
uma exceção, nenhuma multiplicação de magnitudes heterogêneas ocorre em todo o
trabalho, de modo que seja desnecessário introduzir quaisquer constantes de
proporcionalidade.
O Principia de Newton foi escrito provavelmente com o Horologium como
modelo. Assim como o estilo matemático de Huygens, os métodos sintéticos de Newton
podem também ser definidos como ‘física geométrica’. A primeira vista, um paralelo
pode ser traçado entre Newton e Huygens. Da mesma forma que Huygens empregou a
álgebra cartesiana em seus processos de descoberta, contudo evitando-a em seus
trabalhos publicados, também Newton sabia os métodos analíticos dos fluxions e não os
publicou no Principia. Tanto Newton quanto Huygens se valeram de métodos
geométricos e ambos demonstraram certa insatisfação com o caráter algorítmicomecânico do Cálculo. A linguagem das proporções permeia todo o Principia, mas uma
leitura mais profunda revela que os métodos geométricos da filosofia natural de Newton
diferem daqueles de Huygens. As críticas de Huygens à Proposição 6, Livro 1, do
Principia, deixa clara a distância que separa os dois ‘filósofos’. Uma exposição
comentada desse episódio pode ser encontrada em [1].
A moral da história é que Huygens adere à teoria das proporções, e estuda a
variação de quantidades físicas no tempo comparando mudanças ocorridas em duas
quantidades correlatas depois de intervalos infinitesimais de tempo. Newton, por outro
lado, no Principia, escreve relações entre um número maior de quantidades físicas
(deixando-as todas variarem) e calcula taxas de variação usando argumentos
envolvendo limites. Apesar de sua fachada clássica, o Principia é escrito num estilo
profundamente inovador comparado com o de Huygens. A técnica de Newton
para determinar forças centrais num ponto é geométrica e é expressa na linguagem da
teoria das proporções, entretanto é modelada em novos conceitos característicos do
método sintético dos fluxions.
4 – PRINCIPIANDO O PRINCIPIA – Parte I
Newton obviamente escreveu o Principia com os Elementos de Euclides em
mente. De fato depois de toda uma ‘cerimônia’ inicial, título, vários prefácios para
varias edições, tanto por Newton como por seu editor, e uma longa ode à Newton escrita
por Halley, as primeiras palavras do Principia propriamente são:
Definição I. Quantidade de matéria é uma medida da matéria que provém de
sua densidade e volume conjuntamente.
É claro que essa definição não é muito boa, uma vez que densidade é definida
como sendo massa por volume, e longas discussões podem ser encontradas em [5] e em
vários outros lugares. Contudo, não devemos nos preocupar pois Newton está apenas
dando a partida e ele coloca melhor as coisas a medida que avança. Essa definição é
seguida por alguma discussão:
“Se a densidade do ar é duplicada em um espaço que também é duplicado,
haverá quatro vezes mais ar e haverá seis vezes mais se o espaço é triplicado. (...), me
refiro a esta quantidade quando uso os termos ‘corpo’ ou ‘massa’ nas páginas seguintes.
(...).”
A próxima definição é mais simples:
Definição II. Quantidade de movimento é uma medida do movimento que
provém da velocidade e da quantidade de matéria conjuntamente.
A terceira definição, ainda que um tanto vaga quanto as outras, nos dá uma idéia
melhor do que se deve entender por massa:
Definição III. Força inerente de matéria é o poder de resistir, através do qual
um corpo permanece em seu estado ou de repouso, ou de movimento retilíneo uniforme.
Como antes, Newton acrescenta alguns comentários:
“Esta força é sempre proporcional ao corpo (i.e., massa) e não difere de qualquer
modo da inércia da massa exceto pela maneira em que é concebida. (...).”
Tudo isso, claro, soa estranho, afinal de contas ninguém hoje em dia fala em
‘força de matéria’. Mas o que Newton está dizendo é que ‘massa’ é basicamente aquilo
a que chamamos inércia, uma medida do quão difícil é fazer algo se mover. Esse
começo do Principia parece realmente meio vago e Newton, no restante desta primeira
seção do livro acrescenta algumas outras definições que não ajudam muito.
5- PRINCIPIANDO O PRINCIPIA – Parte II
A segunda seção se intitula ‘AXIOMATA, SIVE LEGES MOTUS’, ou
‘AXIOMAS, OU LEIS DO MOVIMENTO’, e começa assim:
Lei I. Todo o corpo permanece no seu estado de repouso, ou de movimento
uniforme retilíneo, a não ser que seja compelido a mudar esse estado devido à ação de
forças aplicadas.
Obviamente, Newton nunca a chamou ‘Primeira Lei de Newton’, na verdade ele
a atribui a Galileo, que não exatamente a demonstrou, mas explicou como experiências
do dia-a-dia pareciam contradizê-la.
Lei II. A variação de movimento é proporcional à força motriz aplicada; e dáse na direção da reta segundo a qual a força está aplicada.
Claro que hoje em dia escrevemos esta lei como:


F  ma .
Essa lei parece não ter sentido, uma vez que ainda não tenhamos dito como

medir a massa m, nem como medir a força F . Mas na verdade há mais coisas aí do que
parece, como vemos ao pular para o ‘Scholium’:
Escólio. Os princípios que determinei são aceitos por matemáticos e
confirmados por experimentos de vários tipos. Por meio das primeiras duas leis (...)
Galileo descobriu que a queda dos corpos pesados está na razão quadrada do tempo
(...) como os experimentos confirmam, exceto um tanto por serem retardados por
resistência do ar. Quando um corpo cai, a gravidade uniforme, agindo igualmente em
partículas iguais individuais de tempo exerce forças iguais sobre este corpo e gera
velocidades iguais; e no tempo total ela ... gera uma velocidade total proporcional ao
tempo. E os espaços percorridos em tempos proporcionais são como as velocidades e
os tempos conjuntamente, isto é, na razão quadrada dos tempos.
O que Newton está dizendo é o seguinte: Suponha que nosso corpo começa do
repouso. A força da gravidade, que pensamos estar atuando no tempo 0, incrementa a
velocidade em v. Após um pequeno incremento de tempo t o corpo caiu vt. Então sua
velocidade recebe um incremento adicional v, dando-lhe velocidade 2v, logo ele cai,
após um próximo incremento de tempo t, uma quantidade 2vt. No próximo incremento
de tempo t, ele cai 3vt, e depois 4vt, etc. Assim, após um grande número N de
incrementos ele caiu 1  2    N vezes vt, que é quase N 2 vt / 2 , ou vT 2 / 2 , onde T é
o tempo total de queda.
Parece existir um longo caminho entre ‘forças iguais produzem acelerações
iguais’ e ‘força é igual a massa vezes aceleração’, mas isto é meramente devido a
ausência de uma definição operacional de massa, descrevendo como ela é medida. A
descrição de um experimento bastante simples (porém quase impossível de se realizar, o
que é muito comum) que fornece uma definição bastante honesta de massa e que faz a


equação F  ma funcionar pode ser encontrada em [6].
6 – DE MOTU CORPORUM
Depois das seções de ‘Definições’ e ‘Axiomas’ do Principia, chegamos ao Livro
1, ‘O Movimento dos Corpos’. Após toda uma primeira seção de cunho puramente
matemático em que é descrito e analisado seu ‘methodo rationum primarum e
ultimarum’, que é basicamente alguns elementos de cálculo num disfarce geométrico,
Newton começa imediatamente a segunda seção com a ‘segunda lei de Kepler’, embora
ele não tenha mencionado o nome de Kepler.
Proposição I. As áreas que os corpos descrevem por seu raio, traçado a partir
de um centro de força imóvel, moram num plano imóvel e são proporcionais aos
tempos.
Após uma demonstração geométrica, aproximando a curva por um polígono, que
não é apenas simples, mas que também parece mostrar o porque da proposição ser
verdadeira, Newton em seguida estabelece a recíproca:
Proposição II. Todo corpo que se move sobre alguma curva descrita num plano
(...) descrevendo áreas proporcionais aos tempos, é impelido por uma força centrípeta
(...).
A demonstração de Newton da segunda lei de Kepler as vezes é apresentada em
livros elementares de física, mas logo é dito que o restante dos argumentos não são
apresentados pois requerem muitas propriedades exóticas de cônicas, em geral não
familiares hoje em dia. Mas isto é bastante desonesto. Porquanto seja entendível que
uma demonstração geométrica use as propriedades geométricas das cônicas, o
verdadeiro mistério é como as hipóteses de uma força que varie com o inverso dos
quadrados das distancias se relaciona com as propriedades geométricas das cônicas. A
estratégia usada por Newton em sua demonstração é muito inteligente, muito inteligente
para a maioria de seus contemporâneos (e mesmo para muitas pessoas hoje). Uma
discussão comentada dessa demonstração pode ser encontrada em [6; pág.35].
7 – O PROBLEMA INVERSO DAS FORÇAS CENTRAIS NO PRINCIPIA
Na seção 3 do Livro 1, “De motu corporum in conicis sectionibus excentricis”,
Newton discute o que hoje chamamos ‘problemas inversos’.
Proposição XI. Problema VI. Um corpo se move numa elipse: achar a lei da
força centrípeta tendendo ao foco da elipse.
Proposição XII. Problema VII. Suponha que um corpo se mova numa
hipérbole: achar a lei da força centrípeta tendendo ao foco dessa figura.
Proposição XIII. Problema VIII. Um corpo se move no perímetro de uma
parábola: achar a lei da força centrípeta tendendo ao foco dessa figura.
Newton então ‘resolve’ esses problemas, após o que vem o
Corolário I. Das últimas três proposições segue que um corpo com qualquer
velocidade, sob a ação de uma força centrípeta ‘quadrado-inversa’, se moverá numa
das cônicas. Pois, dados o foco, o ponto de contato, e a posição da tangente, uma
cônica pode ser descrita que tenha nesse ponto uma dada curvatura. Mas a curvatura é
dada pela força centrípeta, e a velocidade é dada: e duas órbitas tocando-se
mutuamente não podem ser descritas pela mesma força centrípeta e pela mesma
velocidade.
Nas Proposições 11, 12 e 13 do Livro 1 Newton mostra que se um ‘corpo’ orbita
ao longo de uma cônica e a lei da área vale para o foco S então o corpo é acelerado por
uma força inversamente proporcional ao quadrado da distância a S.
No Corolário 1 das Proposições acima Newton estabelece que o inverso é
verdade, isto é, se a força é ‘quadrado-inversa’ então as trajetórias são cônicas, cujo um
dos focos é o centro de força. Esse Corolário é um exemplo de problema inverso de
forças centrais: a força central F e o centro de força S são dados, e o problema é achar a
trajetória, dadas a posição e velocidade iniciais.
Na Proposição 17 Newton apresenta uma técnica geométrica construtiva para
determinar a cônica que responde as condições iniciais quando o valor absoluto da força
‘quadrado-inversa’ F e o centro de força S são conhecidos. A Proposição 17 se baseia
no fato de que a posição inicial, velocidade, massa do corpo e valor absoluto da força
central num ponto determinam a tangente e o raio de curvatura nesse ponto. Como um
dos focos é dado, as condições do Corolário 1 determinam unicamente a órbita cônica.
Das Proposições 11-13 sabe-se que tal cônica é uma possível órbita para a força F. Para
invocar as Proposições 11-13, Newton assume implicitamente que o movimento
Kepleriano ao longo da cônica existe e é único.
Em 1709, depois dos artigos de Keill (1708) e antes das criticas de Johann
Bernoulli (1710) Newton notou que o Corolário 1 precisava ser ampliado. Esta
ampliação foi publicada na segunda edição (1713) do Principia. Com estas novas
linhas, o Corolário 1 adquire um significado mais claro. Para uma dada força central
‘quadrado-inversa’, qualquer condição inicial determina unicamente a cônica
(identificada construtivamente na Proposição 17). Das Proposições 11 e 13, sabemos
que o movimento Kepleriano ao longo dessa cônica satisfaz a equação do movimento
para a força e condições iniciais dadas. Nas linhas finais um teorema de unicidade é
invocado: duas órbitas diferentes que satisfaçam as mesmas condições iniciais e que
‘tocam uma a outra’ (que têm a mesma tangente e a mesma curvatura nesse ponto
inicial) não podem existir. Portanto cônicas são as únicas órbitas possíveis para uma
força ‘quadrado-inversa’.
9 – LIBER I, SECTIO VI, LEMMA XVIII.
Existem no Principia duas páginas puramente matemáticas contendo a
demonstração de um teorema notável sobre a transcendência de integrais Abelianas.
Lema XVIII. Não há nenhuma figura oval cuja área, fatiada por retas ao
acaso, pode ser universalmente encontrada por meio de equações com qualquer
numero finito de termos e dimensões.
Uma curva plana é ‘algébrica’ se satisfaz uma equação do tipo Px, y   0 ,
sendo P um polinômio não nulo. Uma oval (uma curva algébrica convexa fechada) é
‘algebricamente integrável’ se a área de algum segmento fatiado da mesma pode ser
expressa algebricamente em termos da reta que a corta. O resultado de Newton então
assume a seguinte forma: toda oval integralmente algébrica tem pontos singulares, em
particular todas as ovais suaves são algebricamente não-integráveis. Exemplo: uma
elipse é algebricamente não-integrável, daí segue que a equação de Kepler (primeira lei)
é transcendental e, portanto, não pode ser resolvida em funções algébricas. Foi este o
exemplo que levou Newton ao seu resultado.
Na verdade esse episódio é controverso, começando em 1691 com Jacob
Bernoulli (que aceitava o Lema) e Leibniz e Huygens (que o rejeitavam e ofereceram
contra-exemplos). Uma exposição recente sobre o assunto pode ser encontrada em [8].
Aqui seguimos o ponto de vista de V.I. Arnol'd, exposto em [2], que qualifica o
argumento de Newton como uma “demonstração topológica surpreendentemente
moderna”. Escondida entre pesquisas em mecânica celeste, esse resultado de Newton
quase não chamou a atenção dos matemáticos, possivelmente pelos argumentos
topológicos de Newton terem ultrapassado o nível da ciência da época em uns duzentos
anos. A demonstração de Newton é essencialmente baseada na investigação de certos
equivalentes das superfícies de Riemann de curvas algébricas. Além disso, Newton foi
muito breve e não explicou muitos fatos que lhe eram óbvios, mas que entraram na
prática matemática senão algum tempo depois.
10- DE MUNDI SYSTEMATE
No Livro III dos Principia, intitulado “O Sistema do Mundo”, Newton vai
aplicar as conclusões teóricas ao estudo dos fenômenos naturais. Este livro abre com
quatro Regras de Raciocínio em Filosofia, e o propósito da sua apresentação
corresponde aos seguintes objetivos: o número de causas explicadoras de um dado
fenômeno natural deve sempre ser tomado no seu valor mínimo (Regra I); deve
assumir-se que efeitos similares são provocados por causas idênticas (Regra II); as
qualidades comuns a todos os corpos, determinadas pela experiência, devem ser
entendidas como as propriedades dos corpos estendidas a todo o universo (Regra III); na
natureza devem ser entendidas como verdadeiras as conclusões que se extraem através
da indução geral, até serem refutadas por qualquer fenômeno (Regra IV).
Segue-se uma lista de dados sobre fenômenos astronômicos: características das
órbitas dos satélites de Júpiter e o sua concordância com as Leis de Kepler; o mesmo
para os satélites de Saturno; identicamente para os planetas do sistema solar.
Baseado nos resultados do Livro I (Proposições II e IV), bem como nos dados
astronômicos previamente expostos, Newton, nas Proposições I, II e III, mostra que as
forças que atuam sobre os planetas são centrais, orientadas para o foco da trajetória e
variam na razão inversa do quadrado da distância.
Na Proposição IV (Teorema IV), onde enuncia “A Lua gravita em direção à
Terra, e pela força da gravidade é continuamente afastada do seu movimento retilíneo
e mantida na sua órbita”, Newton, recorrendo aos dados astronômicos apresentados por
vários autores (Ptolomeu, Huygens, Copérnico, Street, Tycho), conclui que “(...) a força
pela qual a Lua é mantida na sua órbita torna-se, à superfície da Terra, igual à força
da gravidade que aí observamos nos corpos pesados (...) portanto (pela Regra 1 e 2) a
força pela qual a Lua é mantida na sua órbita é a mesma força que comummente
designamos de gravidade (...)”. De acordo com a demonstração feita pelo seu autor,
onde são exibidos argumentos numéricos, o objetivo desta proposição é sobretudo
mostrar que a força que é responsável pela queda dos corpos para a Terra, bem como a
outra que mantém a Lua na sua órbita são a mesma. No Escólio a esta proposição,
Newton ilustra o uso das suas Regras de Raciocínio em Filosofia: se ambas as forças
referidas (gravidade dos corpos pesados e força central atuando sobre a Lua) possuem a
direção do centro da Terra e têm o mesmo valor então deverão possuir a mesma causa
(regra 1 e 2). A conclusão exposta nesta última proposição é generalizada para os
satélites dos vários planetas nas Proposições V e VI. Na Proposição VII escreve: “Existe
o poder de gravidade pertencendo a todos os corpos, proporcional em várias
quantidades à matéria que eles contêm”. Está definida a constante de proporcionalidade
como uma função da massa gravitacional; é nesta proposição que Newton enuncia a Lei
da Gravitação Universal e, como já se observou, das catorze proposições (teoremas)
desta secção, esta é a única em cujo final da demonstração Newton coloca a marca
“Q.E.D”, Quod erat demonstrandum.
REFERÊNCIAS
1- Reading the Principia, Niccolò Guicciardini, Cambridge University Press, 1999.
Livro sério, consideravelmente denso, para leitores razoavelmente sofisticados.
Descreve os métodos de Newton, a linguagem usada, analisa várias passagens do
Principia, entre muitas outras coisas.
2- Huygens and Barrow, Newton and Hooke, V.I. Arnol’d, Birkhäuser, 1990.
Livro mais leve, que pode ser lido em 2 dias. Destaca-se pelos paralelos que
traça entre os resultados de Newton e as teorias mais elaboradas do século XX.
3- The Mathematical Principles of Natural Philosophy, Isaac Newton. Translated
by Andrew Motte, 1729. Dawsons of Pall Mall, 1968.
4- Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, Isaac Newton. Terceira Edição.
Editado por I.B. Cohen e Alexandre Koyré, com assistência de Anne Whitman.
Harvard University Press, 1972.
5- The Mathematical Principles of Natural Philosophy, Isaac Newton. Translated
by I. B. Cohen and A. Whitman. University of California Press, 1999.
Tradução mais recente dos Principia, por duas grandes autoridades no assunto.
Enormemente elogiada, tem aproximadamente 974 páginas, das quais 370
consistem apenas de um guia de leitura, contendo notas históricas, análise dos
métodos matemáticos, etc. E tudo isso por US$50,00!!!
6- Elementary Mechanics from a Mathematician’s Viewpoint, M. Spivak, 2004.
Resumo de várias lições, ministradas pelo renomado matemático (geômetra
diferencial) Michael Spivak, na Universidade de Keio, Japão. Spivak começa
indagando de que forma a lei do torque segue das três leis de Newton, uma
pergunta que segundo ele nenhum dos físicos aos quais perguntou, na época em
que era aluno em Princeton, foi capaz de responder satisfatoriamente. Ele então
começa uma análise da física clássica desde o Principia, de forma bastante
descontraída. Esse resumo, assim como os vídeos, pode ser encontrado em
http://en.wikipedia.org/wiki/Michael_Spivak
7- R. Weinstock, Dismantling a centuries-old myth: Newton’s Principia and
inverse-square orbits, Amer. J. Phys. 50 (1982), 610-617.
8- The Integrability of Ovals: Newton's Lemma 28 and Its Counterexamples.
Springer Berlin/Heidelberg, Volume 55, Number 5, 2001, pp. 479-499.
9- http://en.wikipedia.org/wiki/Philosophiae_Naturalis_Principia_Mathematica
10- http://en.wikipedia.org/wiki/Philosophiae_Naturalis_Principia_Mathematica
Ambos os sites são muito bons. No primeiro é possível fazer ‘download’ do
Principia, tanto em inglês quanto em latim.
11- http://netomorais2007.googlepages.com/AxiomasdeNewton.pdf
Comentários de várias passagens do Principia por um físico português. Apesar
de uma pequena inconsistência com o prefácio em [3] escrito por Cohen, em que
este mostra evidências de que Motte tenha competido com Pemberton pela
primeira edição do Principia em inglês, vale a pena ler.
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