Energy&Character Vol 34, September 2005 Afeto, Vínculo e Sintonia1 Inspirado no diálogo com os três volumes do trabalho de Allan Schore Regulação do Afeto e a origem do self, 1994 New Yersey Lawrence Erlbau Desregulação do afeto e desordens do self, 2003, New York & London: Norton & Co. Regulação do Afeto e cura do self, 2003, New York & London: Norton and Co. Revisado e discutido por David Boadella Introdução: a relevância do metabolismo bioenergético no contexto da psicoterapia corporal: bases da relevância do trabalho de Allan Schore. Na psicoterapia corporal, nos últimos anos, há uma tendência à divergências no desenvolvimento dos enfoques que dão ênfase ao corpo, às energias desse corpo e às dinâmicas emocionais por um lado e os enfoques que enfatizam a psicodinâmica, os relacionamentos e a transferência, por outro lado. No trabalho de Wilhelm Reich essa divergência não existe. Os insights de Reich sobre o metabolismo bioenergético desenvolveram-se paralelamente aos seus insights sobre a psicodinâmica da formação do caráter. Em 1950 John Bowlby publicou seu trabalho sobre cuidado materno para a Organização Mundial de Saúde. No mesmo ano, Wilhelm Reich iniciou uma pesquisa de dois anos sobre a relação bebê-mãe, na qual enfatizou o papel vital do contato energético no desenvolvimento da criança. Reich salienta a „auto-regulação“ do bebê no contexto de um relacionamento caloroso, empático e pleno de contato, primeiro com a mãe e mais tarde, com o pai. Esses mesmos princípios de contato são destacados por Reich também na relação terapêutica, denominando-os de princípio de identificação vegetativa, no qual todo o foco da terapia concentrava-se no aprofundamento das funções naturais de contato do cliente e sua linguagem expressiva de vida. Desde a morte de Reich em 1957, houve um número decisivo desenvolvimentos de seu trabalho que apóiaram, confirmaram e estenderam esses insights fundamentais: esses desenvolvimentos surgiram em várias ciências independentes, cada qual trabalhando diferentemente, com seus próprios métodos e princípios de pesquisa, mas convergindo para uma imagem coerente do ser humano, seu corpo, sua mente e seu mundo. Dentre as mais significativas para a terapia estão as seguintes áreas de pesquisa: a) Bioenergética Celular: os principais pequisadores são os biólogos, vencedores do Prêmio Nobel, Albert Szent Györgi e seu colaborador James Oschmann. Esses estudos enriqueceram muito nossa compreensão sobre o metabolismo energético fundamental no corpo. Eles estenderam ao nível organísmico os estudos de Hess, Gellhorn e outros sobre as ações ergo-trópicas e tropho-trópicas do sistema nervoso autônomo (vegetativo); o trabalho de Robert Ader e colaboradores, em psico-neuro-imunologia; e o trabalho de Candace Pert sobre moléculas da emoção (neuro peptídeos). b) Neurologia funcional: os estudos do cérebro triuno de Alexander Luria estão nos fundamentos da Biossíntese e foram recentemente redescobertos pela moderna neurociência. A complexidade do cérebro com dez milhões de neurônios, cada um com dez mil sinapses, revelam uma simplicidade funcional baseada no desenvolvimento embriológico. Luria salientou que há três sistemas funcionais que são apoiados por 1 Tradução de Luciane Sayuri, revisão de Milton Corrêa 1 Energy&Character Vol 34, September 2005 diferentes regiões do cérebro. Função era primária e estrutura era secundária. Henri Laborit na França, desenvolveu um modelo biossistêmico diferente do cérebro, em três níveis, descrito mais adiante, que influenciou fortemente a Biossíntese. O trabalho de Antonio Damasio, um notável neurocientista, mostra como o cérebro está intimamente ligado ao corpo. A neurociência moderna está, finalmente, nos levando de volta ao corpo. c) Teoria do vínculo: desenvolvida por John Bowlby e seus colaboradores na Inglaterra, a partir de 1960, foi um desdobramento da Psicanálise que está focado nos insights etológicos da biologia comportamental, e com detalhados estudos sobre os padrões de vínculo entre mãe e criança. Esses padrões de vínculo estão relacionados, em Biossíntese, aos diferentes estágios e fases do desenvolvimento da empatia e seus distúrbios. d) Teoria da sintonia: esta pode ser considerada como um desenvolvimento da teoria do vínculo. Seus conceitos chaves foram desenvolvidos por Daniel Stern, na Inglaterra, e por Martin Dornes na Alemanha. A ênfase está na interação ritimada entre mãe e bebê nos períodos iniciais não verbais do desenvolvimento do self, que formam a base somática do self verbal que se desenvolve no terceiro ano de vida. Em Biossíntese nós trabalhamos com um modelo de diálogo, invasão e privação. Este diálogo corresponde a um fluxo de contato através do toque, contato visual, tom de voz e ressonância empática: essas formas de contato são aspectos da boa sintonia. A invasão e privação, que correspondem ao modelo de Stern de hiper-estimulação e hipo-estimulação, podem ser vistas como formas opostas de distúrbios nos relacionamentos. e) Teoria dos Sistemas Dinâmicos: desenvolvida a partir do trabalho de Bertalanffy, essa ciência interdisiciplinar é associada a diversos desenvolvimentos chaves: Teoria do Caos, relacionada ao estudo das mudanças não determinísticas; Teoria da Catástrofe, relacionada ao estudo da repentina exacerbação dos padrões normais de comportamento. A Teoria do Caos foi aplicada para compreensão do comportamento esquizofrênico, e dos distúrbios do ritmo cardíaco, para citarmos dois exemplos. A Teoria da Catástrofe foi relacionada ao choque traumático e aos extremos de hiper e hipo estimulação. A Teoria dos Sistemas Dinãmicos, especialmente no trabalho de Esther Thelen e Linda Smith, foi aplicada na compreensão das conexões entre comportamento, cognição e desenvolvimento motor, um tema central na Biossíntese. Thelen e Smith inspiraram-se em várias fontes. Para a compreensão da motilidade, fundamental ao conceito de campos motores em Biossíntese, Thelen e Smith inspiraram-se especialmente no trabalho de Kurt Lewin, nas forças motivacionais no espaço vital; e no trabalho de Nicholas Bernstein, nos campos de força do movimento intencional. Todas essas fontes salientam a importância da aprendizagem pela experiência ao longo da vida e da plasticidade do cérebro. Existem dois fortes trabalhos de integração desde a morte de Reich que apoiam e confirmam os insights da psicoterapia corporal em geral, e da Biossíntese em particular. Ambos incluem e fundamentam muitas das áreas chave de pesquisa, citadas acima, de fundamental importância para o trabalho terapêutico. Em primeiro lugar, eu me refiro à psicossomática integrativa de Thure von Uexküll, que será analisada separadamente; e em segundo lugar, ao terceiro volume do estudo de Allan Schore sobre afeto, regulação e o self, descrito abaixo. Princípios de regulação Allan Schore é tanto um terapeuta clínico psicodinâmico como um pesquisador do Departamento de Psiquiatria e Ciências do Comportamento na Universidade da Califórnia, na Escola de Medicina de Los Angeles. Um conceito central que fundamenta todos os três volumes de seu trabalho (totalizando 1.465 páginas) é o conceito de regulação. Regulação é 2 Energy&Character Vol 34, September 2005 um conceito conhecido em cibernética, psicologia, teoria da informação, neurologia, psicodinâmica e psicologia do desenvolvimento. É, de fato, um dos aspectos mais fundamentais do universo, considerando que processos de regulação são estudados até mesmo em geologia e cosmologia. A regulação está relacionada aos padrões de organização, e à manutenção das relações de ordem entre as partes e o todo, que permitem que os sistemas mudem e evoluam, sem entrar em colapso. Isto foi focalizado fortemente no trabalho de Wilhelm Reich e do grande neuropsicólogo francês, Henri Laborit. Os estudos de Schore sobre regulação são relacionados a seguir às cinco maiores áreas de relevância de compreensão da saúde humana, neurose e doença, e tratamento ou terapia: o corpo, o cérebro, a mente e a personalidade incluindo a formação do self, os campos biopsico-sociais nos quais esses desenvolvimento acontecem, e os processos terapêuticos que buscam curar os distúrbios do self. Tentarei dar uma visão geral de alguns dos conceitos centrais presentes em Schore, em cada uma dessas cinco áreas. Minha tarefa não é fácil, pois seu trabalho é um resumo das conclusões que ele elaborou baseando-se em pesquisa fundamentada num total de cerca de 6.000 referências numa grande variedade de ciências. Farei a tentativa de apresentar em minhas próprias palavras minha compreensão e reflexões sobre as suas principais conclusões. 1. O corpo e as energias da vida. Schore enfatiza ao longo de seu trabalho que o processo de vida depende da entrada, circulação e saída da energia, um tema que fundamenta a terapia corporal. Os processos energéticos da célula e do tecido metabólico são abastecidos por processos aeróbicos e anaeróbicos. Nos processos aeróbicos a respiração é o processo vital fundamental. As energias do sistema nervoso autônomo, central na regulação de todos os sistemas de órgãos do corpo, estão divididas em dois sistemas funcionais principais. O sistema nervoso simpático é um sistema energético de estimulação, caracterizado como ergo-trópico: tendendo à ativação, excitação e energização. O sistema nervoso parassimpático, por outro lado, é um sistema energético de conservação, caracterizado como tropho-trópico: suportando a redução de excitação, retração, descanso, e baixos níveis de energização. As mudanças normais do ambiente exigem que em algumas vezes um desses sistemas tornese mais ativo, e em outras vezes, o outro sistema. O organismo alterna entre ritmos altos ou baixos de estimulação da energia. Cada sistema dá um descanso ao outro. Em condições ambientais extremas, estresse agudo, trauma ou relações disfuncionais crônicas, o equilíbrio regular normal entre ergo-trópico e tropho-trópico é perdido. Existem três formas principais de desequilíbrio: a) Hiper-excitação extrema. b) Hipo-excitação extrema c) Ativação autônoma dupla: Hiper-excitação extrema e Hipo-excitação extrema coexistindo em uma condição paradoxal. No sistema emocional humano esse terceiro estado foi particularmente estudado por Ernst Gellhorn e Jerome Liss e é uma base dos insights biossistêmicos no trauma. Schore descreve-o poeticamente como equivalente a dirigir um carro totalmente acelerado com os freios puxados. Estas três formas de desequilíbrio representam crises organísmicas. Na linguagem da teoria da catástrofe, são os saltos catastróficos. Na linguagem de Ivan Pavlov, no trabalho de Frank Lake e na Biossíntese, que baseia-se nesse conceito, chamamos de oscilações trans3 Energy&Character Vol 34, September 2005 marginais. Schore dá o exemplo dos estados maníaco-depressivos. Em Biossíntese, seguindo Lake, reconhecemos a oscilação esquizo-histérica como um exemplo de um forte e exagerado desequilíbrio no desenvolvimento do caráter. As três formas de desequilíbrio representam formas de desregulação e podem ocasionar crises organísmicas que podem exigir ajuda médica, psicoterápica, psiquiátrica, ou outras formas de cura energética ou espiritual, para dar suporte à recuperação da regulação natural. O corpo está em constante contato com os centros coordenadores no cérebro. Schore salienta que há uma comunicação de mão-dupla „bidirecional“ entre cérebro e corpo, entre órgãos, tecidos e células; e na área psico-neuroimunológica. Schore ressalta que os estados mentais e espirituais de alienação podem ser transmitidos através do cérebro e corpo diretamente para o sistema imunológico ao nível das moléculas individuais. Estamos tratando de caminhos sistêmicos fundamentais de causalidade ascendente e causalidade descendente. Schore vê favoravelmente os insights energéticos iniciais de Freud: psicanalistas tendem a distanciar-se deles, mas a neurociência moderna está descobrindo a sabedoria desses insights iniciais de Freud sobre libido, afeto e impulso. Schore os valida fortemente e essa validação é apoiada no recente trabalho de Solms e Nersessian. Desnecessário dizer que a revalidação dos insights energéticos de Freud dão fundamento implícito para a teoria energética reichiana, que foi a conseqüência lógica e o desenvolvimento da primeira teoria do instinto de Freud. Mais aspectos da consciência corporal serão descritos na seção 3 sobre percepção, logo a seguir. 2. Dinâmica do cérebro Allan Schore tem uma compreensão extraordinariamente profunda e complexa sobre a miríade de conexões entre os milhares de neurônios no cérebro, eletro-fisiológica, bioquímica e molecularmente conectados. Essa riqueza de informação leva um não-neurologista como eu a voltar a recorrer a princípios funcionais para tentar entender a dinâmica subjacente sem ficar perdido na „floresta amazônica“ do cérebro. A neurologia imensamente detalhada de Schore pode ser melhor entendida, em minha opinião, baseando-se em dois conceitos centrais da neurociência: o cérebro triuno e o cérebro tripartite. Há mais de um século atrás, Pierre Janet na França, e Hughlings Jackson, o pai da neurologia britânica, introduziram uma visão hierárquica do cérebro, destacando três níveis de organização e controle, em detrimento da localização, como chaves para a compreensão do cérebro. Ambos influenciaram Henri Ey, na França, cuja visão organo-dinâmica foi uma das precursoras da neurologia funcional de Henri Laborit, influência chave na Biossíntese. Fundamentando-se no trabalho de seus predecessores, Laborit destaca os seguintes três níveis no cérebro, com os aspectos específicos da função: O cérebro inferior (tronco cerebral) vinculado ao comportamento mais automático, instintivo e aos ajustes autonômicos no presente. O cérebro intermediário (archeo- cortex) vinculado à memória emocional e procedimental e ao condicionamento do passado O cérebro superior (neo-córtex) vinculado à reflexão, planejamento, imaginação, à memória episódica e narrativa (verbal). 4 Energy&Character Vol 34, September 2005 O conceito do cérebro triuno foi relacionado tanto ao desenvolvimento individual da criança (especialmente por Janet) e no desenvolvimento evolutivo dos animais, particularmente por Hughlings Jackson. Este último aspecto foi popularizado por Paul Mclean, que distinguiu o cérebro neo-mamífero (o neo córtex), abaixo do qual está o cérebro paleo-mamífero (o archeo córtex), e o cérebro reptiliano (o tronco cerebral, consistindo no cérebro central e cérebro posterior). Essa estrutura hierárquica do cérebro desenvolve-se muito cedo no desenvolvimento embriológico. Schore usa essa compreensão hierárquica para destacar constantemente o fluxo bi-direcional de informação passando do novo córtex para o antigo córtex, através do tronco cerebral e da parte posterior. Ele ressalta que quanto mais recentes os processos para o córtex, mais conscientes são, e quanto mais profundos no tronco cerebral, mais inconscientes são. A diferença entre mais ou menos consciente é reconhecida como uma diferença entre dois tipos de aprendizagem, e dois tipos de memória: implícita e explícita, cada qual processada em diferentes níveis ou regiões do cérebro hierarquicamente. Existem conexões diretas entre o conceito de cérebro triuno e a „psico-embriologia“ de Freud, como Schore também sugere. Esse foi o termo usado por Freud, que foi fortemente influenciado por Hughlings Jackson, em sua tríade superego, ego e id. Um refinamento especial no neo-córtex é a divisão entre lado direito e esquerdo. O cérebro esquerdo é mais especializado no que se chama „cognição fria“ e processos linguísticos, desenvolvendo-se depois do cérebro direito, que é mais especializado no que se chama „cognição quente“, relacionado ao processamento emocional das energias instintivas, e à regulação social destas. Schore escreve longamente sobre o córtex órbito-frontal, situado na testa, logo acima das órbitas dos olhos, sendo mais fortemente dominante no hemisfério direito (ainda que seja encontrado nos dois hemisférios). Considerando que os centros do cérebro inferior são mais instintivos e podem tornar-se caóticos se perderem o equilíbrio por um trauma ou um estresse ambiental muito forte, as funções reguladoras do córtex órbito-frontal precisam ser acionadas para ajudar a recuperar o equilíbrio perdido. Na psicoterapia corporal da geração passada, esse princípio não foi compreendido: a liberação emocional e o descontrole eram encorajados, a partir do ponto de vista de que isso ajudaria as pessoas a se libertarem da repressão e do que Wilhelm Reich chamou de „encouraçamento“. Em 1971 Stanley Keleman e eu independentemente introduzimos uma grande mudança paradigmática na psicoterapia corporal, destacando que levar a extremos e traumatizar as pessoas pode fragmentar pela ênfase unilateral na catarse, e salientando para a necessidade de uma consciência complementar na „contenção“. Pela luz das pesquisas abrangentes de Allan Schore, essa mudança paradigmática é plenamente fundamentada: catarse, em outras palavras, a forte expressão emocional, para algumas pessoas pode induzir a uma inundação fragmentadora, podendo refletir um processo ergo-trópico forte demais (hiper-estimulação), onde a contenção pode representar uma auto-regulação no contexto de uma relação compreensiva (criança com os pais, ou cliente com terapeuta). Laborit afirma que quando os centros de regulação superiores são suspensos, existe uma regressão para níveis mais precoces e primitivos de funcionamento. Freud falou de uma mudança do processo secundário para o primário. No trabalho terapêutico procuramos suspender o hiper-controle que é responsável pela grande „inibição da ação“ (Laborit), e criar espaço para o retorno de padrões mais espontâneos de pulsação, regulados pelos centros inferiores do cérebro e da mente. Em outro nível, procuramos ajudar nossos clientes a reorganizar níveis superiores de regulação e simbolização, que estão congruentes, e sem conflitos, com expressões mais primitivas. O terapeuta psicodinâmico da Inglaterra, Michael Balint, fez uma distinção bastante útil entre regressão benigna e maligna. A Regressão maligna é uma catastrófica e retraumatizante queda no buraco negro de sentimentos, sensações e sintomas precoces dolorosos. Tende à ruptura do contato consigo mesmo, e o contato com os outros, e é também anti-terapêutico. A Regressão benigna, por outro lado, é uma regressão a serviço do progresso. É uma forma que Arthus Koestler denominou „reculer 5 Energy&Character Vol 34, September 2005 pour mieux sauter“2. Aqui há perda do hiper-controle disfuncional, uma desorganização criativa que é um prelúdio para uma criativa re-organização. O segundo modelo cerebral que me auxiliou a navegar através da complexidade dos processos neurais é o modelo do cérebro triuno, introduzido por Alexander Luria, um neuro-fisiólogo russo, que foi também influenciado por Jackson, e correspondia-se com Freud. Este modelo foi adotado e tornou-se intrínseco no modelo teórico da Biossíntese desde 1975. Luria distingue três sistemas funcionais no cérebro que corresponde à divisão tripartite do corpo em ectoderma, mesoderma e endoderma. A distinção tripartite de Luria não era hierárquica, pois passa por todos os níveis da hierarquia descrita acima. Luria descreveu três sistemas funcionais paralelos, todos os três mutuamente interconectados: em primeiro lugar, um sistema sensorial, trazendo informação do mundo externo; em segundo, um sistema energético (estímulo-repouso), que foi relacionado à emocionalidade e ao metabolismo básico; e em terceiro, um sistema motor relacionado à intencionalidade e ação em direção ao mundo externo. Allan Schore também está bem familiarizado com o trabalho de Luria. Luria não foi apenas um neurologista mas um psico-analista, e seu trabalho foi redescoberto como neuropsicanálise, especialmente num trabalho de Mark e Karen Solms há poucos anos atrás. Schore está preocupado especialmente com o sistema cerebral sensorial e o sistema emocional-energético (que inclue o sistema límbico, responsável pelas interações afetivas). O terceiro sistema, o motor, é menos destacado nos diversos locais em que Schore menciona os efeitos do equilíbrio e desequilíbrio em nossa consciência cinestésica e respostas próprioceptivas. Este aspecto foi especialmente desenvolvido em Biossíntese, em nosso conceito de campos motores, e é um grande foco na metodologia dinâmica do movimento desenvolvida por Esther Thelen e Linda Smith, mencionada acima. As pesquisas de Schore lembram-nos que o sistema límbico tem o que ele chama „circuito dual“: em outras palavras, existem dois caminhos de canais de comunicação ascendente e descendente no sistema límbico: um destes é ergo-trópico (energético-estimulante), e um é tropho-trópico (energético-conservante). Cada um envolve diferentes canais neurais e diferentes neurotransmissores. 3. Fluxo de informação sensorial e percepção. A percepção é um processo mental estudado por psicólogos: é parte do imenso, e em rápido crescimento, campo dos estudos da consciência. A percepção, normalmente, depende de sensações que chegam à pessoa do ambiente, ou do próprio corpo. Há muitas décadas atrás o neurologista britânico, Charles Sherrington, classificou as percepções sensoriais em três classes: em primeiro lugar, interocepção, que surge do interior do corpo (por exemplo, batimentos do coração, ritmos respiratórios, peristalse); em segundo lugar, propriocepção, que surge do tônus muscular no movimento e postura; e em terceiro lugar, exterocepção, que surge do outro mundo, através dos cinco sentidos normais. O pai da neurologia alemã, Wernick, introduziu há mais de um século atrás a concepção dos três sistemas funcionais na psique que correspondem intimamente à visão de Sherrington. Wernicke chamou de „auto-psique“ o sistema que processa informações internas do organismo; „somato-psique“, que processa a informação motora e é base do esquema motor; e „allo-psique“3 que processa a informação vinda do mundo externo. 2 3 “Regredir para progredir” N.R. Do grego, allos = outro N.R. 6 Energy&Character Vol 34, September 2005 O fisiologista russo-americano Paul Yakovlev, cujas teorias foram fundamentais no desenvolvimento inicial da Biossíntese, descreveu três tipos de movimento energético, os quais denominou: endo-kinesis, meso-kinesis e tele-kinesis. Existe uma estreita relação entre as concepções de Sherrington e Wernicke as quais são correspondentes às três modalidades terapêuticas em Biossíntese, „centering“, „grounding“ e „facing“. Allan Schore destaca que o corpo comunica-se com o cérebro e molda a mente através dessas três diferentes trilhas primárias. Na primeira os sinais interoceptivos de prazer ou dor, energia-estimulante ou retirada de energia, os padrões de respiração tensa ou relaxada, a aceleração ou diminuição dos batimentos do coração, e muitos outros sinais orgânicos internos são transmitidos ao cérebro e podem criar padrões de bem estar ou de distúrbio, associados às „emoções primárias“ correpondentes como excitação, raiva, dor, medo ou resignação e depressão. Na segunda, o tônus muscular do corpo é transmitido por caminhos próprioceptivos. Forma a base do esquema corporal, e foi particularmente estudada por Head, Schilder e Tiemersma. Schore dá exemplos do total desenraizamento (ungroundedness) no corpo de clientes disssociados que se sentem como que caídos em um buraco negro. Suas sensações de desequilíbrio cinestésico foram enviadas ao cérebro e foram capazes de provocar um estado de ansiedade inespecífica. Na terceira, os sinais exteroceptivos passam através dos cinco sentidos. Em Biossíntese nós os consideramos como os canais de contato fundamentais do desenvolvimento e de nosso trabalho terapêutico. Allan Schore sugere que esses sentidos desenvolvem-se em uma ordem sequencial, nos primeiros meses de vida. A ordem exposta abaixo, sugerida por mim, é uma seqüência na qual um sentido em particular é mais dominante. Não significa que os demais sentidos não são importantes ou estão ativos somente em determinado período. Schore começa sua seqüência depois do nascimento, ainda que existam ricas evidências de experiências sensoriais antes do nascimento, e em algumas seções de seu trabalho, é completamente aberto à existência de condicionamentos positivos e negativos no período prénatal. a) Olfato e paladar. Estes são dominantes logo depois do nascimento, nas primeiras atividades de sucção. Schore destaca especialmente a forte conexão entre olfato e o cérebro límbico (sistema límbico). Ele também mostra que quando o bebê suga o seio com mais força, isso pode intensificar a receptividade dos outros sentidos. b) Toque. A Psicoterapia Corporal tem sempre enfatizado a importância do toque no desenvolvimento precoce, assim como, terapeuticamente, na „cura do self“, como Schore a denomina, quando o cliente é capaz de aceitar o toque e as normas éticas de toque são respeitadas. Um trabalho clássico no desenvolvimento da importância do toque é o de Ashley Montagu. Schore reproduz uma pesquisa que mostra que o crescimento cerebral é estimulado pelo toque apropriado desde o início do desenvolvimento e o sistema imunológico é fortalecido pelo bom toque. Na pesquisa com ratos bebês, o toque da mãe-rata é conhecido como „gentling“4 e se há privação, em um período crítico, pode levar ao não desenvolvimento dos sistemas metabólicos, resultando em morte do rato bebê. Schore menciona o bem conhecido trabalho de Harlow com macacos bebês, que foram privados do contato de pele com as suas mães, e no lugar, foram oferecidas bonecas, resultando em retardamento de seu desenvolvimento. O feto desenvolve dentro do corpo da mãe. Schore destaca que depois do 4 Toque amável, delicado N.R. 7 Energy&Character Vol 34, September 2005 nascimento, ele procura maximizar o contato de pele, corpo com corpo, como um grande recurso para aprender a confiar no mundo e ser nutrido por ele. c) Visão. Allan Schore é extremamente eloqüente quanto à função da visão, contato visual, admiração, e toda forma de contato face a face. Ele ressalta que existe um processo específico de energização visuo-límbica, e que a neuro-química cerebral é profundamente afetada pelas qualidades canalizadas pelos olhos. Olhos quentes trazem excitação, e expressam amor. O medo na face da mãe pode ocasionar uma dissociação na criança. Sabemos que a raiva fria pode congelar o organismo. A face vazia, inexpressiva, pode levar à depressão e ao esvaziamento. Nos capítulos sobre o olhar, Schore coloca com muito clareza que os processos energéticos não são apenas intra-pessoais, são também inter-pessoais. Ele compreende perfeitamente bem que nas interações face a face temos um exemplo do que ele chama „transmissões bioenergéticas sincronizadas“, ou ressonâncias. Essas ressonâncias são a base para a boa sintonia na infância, e distúrbios nessas sintonias são a base da personalidade neurótica. d) Som . A criança pode ouvir sons durante a vida intra-uterina e a importância disso para o desenvolvimento foi particularmente pesquisado por Tomatis. Schore focaliza o domínio do som num período tardio do desenvolvimento pós-natal. O som da voz dos pais pode ser bem vindo ou repelido, ressonante ou duro, e atua como um transportador de quailquer emoção que uma pessoa está sentindo. O tom de voz é um dos recursos para-linguísticos que acompanha a linguagem, e seu efeito em nós é paralelo, ou algumas vezes, o oposto da mensagem trazida por meio das palavras. Todos os sentidos descritos acima são entradas não-verbais impressas no corpo e no cérebro. Essas entradas não verbais são refletidas especialmente no córtex órbito-frontal. As mensagens por meio das palavras, durante o período de formação no qual Daniel Stern denomina „self verbal“, são processadas, em primeiro lugar, por seu conteúdo (distintas de seu contexto emocional) no cérebro esquerdo. Schore destaca que se uma criança sofre um choque ou um trauma, e o cérebro direito é incapaz de regular a experiência, então, pode desenvolver uma „alextimia“: a perda do uso das palavras com sentimentos e emoções. Embora o cérebro esquerdo possa falar, o direito torna-se mudo. 4 União, vínculo e sintonia O psicoterapeuta inglês, Donald Winnicott, publicou um importante livro nos anos 60, chamado „O Processo Maturacional e o Ambiente Facilitador“. Destaca que o processo maturacional acontece melhor ou pior de acordo com o ambiente biossocial, podendo ser de suporte ou restritivo. Em Biossíntese, falamos de „processo formativo e campo organizante“ e desenvolvemos isso em um contexto mais compreensível. A mensagem fundamental de Allan Schore, através de todos os seus escritos, é que o corpo, o cérebro, a pessoa e o self, desenvolvem-se na interação entre os processos organísmicos (genético, somático, neurológico) e a qualidade do cuidado que o bebê recebe. Um dos principais focos de Allan Schore está na relação entre genética ou processos cerebrais inatos, onde os neurônios estão pré-programados para funções particulares, e na educação social do cérebro através da „aprendizagem pela experiência“ no ambiente. Cientistas pessimistas do cérebro argumentam que o trauma cria mudanças irreversíveis no cérebro. Schore fundamenta o insight de que ambientes disfuncionais podem ser refletidos em cérebros disfuncionais, mas ele vê também a verdade contrária, que é vital para a compreensão dos terapeutas: Novas aprendizagens podem levar a novo desenvolvimento cerebral. 8 Energy&Character Vol 34, September 2005 Mais especificamente, Schore fornece evidências que o contato face a face e o contato visual que embasa o crescimento, afeta diretamente os caminhos visuo-límbicos, que resultam em novas mensagens para os genes nos neurônios. Os olhos parecem que enviam sinais aos genes. Pode existir morte sináptica resultante da privação ou super-stress durante „períodos críticos“ do desenvolvimento. Mas pode existir sinaptogênese e biossínteses químicas nos neurônios, levando ao que é coloquialmente conhecido como um novo „germinar“ de conexões nervosas no cérebro. Não apenas bons cuidados dos pais embasam o crescimento do corpo, cérebro e self do bebê, mas Schore fornece evidências de que o fluxo do contato do bebê para a mãe pode também estimular novo crescimento neurológico na mãe. Os canais de contato descritos acima, através de diferentes caminhos sensório-perceptuais, são o primeiro ambiente que a criança descobre. Schore traça o desenvolvimento da criança através dos clássicos estágios estudados por Mahler, autismo, simbiose, separaçãoindividuação. Ele também vincula suas observações à descrição de Daniel Stern de self emergente, self nuclear, e os self intersubjetivo e verbal. Parecem existir paralelos entre a descrição psicodinâmica de Stern e a descrição independente neurológica de Antonio Damasio de proto-self, self nuclear e self estendido ou autobiográfico. Eu sugrio que os três níveis de Damasio, estão relacionados aos três níveis do cérebro triuno descrito anteriormente por Laborit. Schore explica em detalhes como o centro de regulação emocional, o córtex órbito-frontal, começa a se desenvolver somente por volta de um ano de idade, e amadurece por volta dos 18 meses. A regulação da vida emocional da criança antes desta idade depende da regulação que vem da mãe, que ajuda a gerenciar as experiências do self emergente, e do self nuclear, antes que a aprendizagem social do self intersubjetivo comece a se estabilizar. Schore demonstra que as funções reguladoras da mãe têm dois aspectos: vitalizante e calmante. O vitalizante relaciona-se à gratificação da excitação, baseada nas energias ergotrópicas, e é especialmente estimulado pela brincadeira, a exploração, e o encorajamento dos afetos de vitalidade. O aspecto calmante apoia os processos tropho-trópicos e está presente, por exemplo, na mãe que pode confortar a criança chorando, que pode conter (dar continente) à raiva de seu bebê ou que pode tranqüilizá-lo em estados de ansiedade. A regulação interpessoal da mãe ou do cuidador(a) pode gradualmente ser internalizada pela criança em crescimento através de um processo de „acalmar a si mesmo“, que está relacionado com a capacidade intra-pessoal de auto-regulação através da função de contenção durante a maturação do cérebro direito. Schore é fortemente influenciado e valoriza profundamente trabalho da psicodinâmica etológica de John Bowlby, da Inglaterra, cuja teoria do vínculo é uma das melhores fundamentações para a compreensão das relações humanas que temos. Bowbly descreve como a criança constrói um „modelo de trabalho interno“ de um pai/mãe suficientemente bom, e esse modelo a guia nos revéses da vida futura. Esse modelo de trabalho interno é descrito independentemente por Daniel Stern no que ele chama de RIG („representação das interações que foram generalizadas“). Na „Psicologia do Self“ de Heinz Kohut, que teve grande influência sobre Winnicott, o „modelo de trabalho interno“ corresponde a uma memória e imagem interna do outro significativo. Ele se refere ao outro significativo como o „self-objeto“. Schore descreve em detalhes como o locus no cérebro para o desenvolvimento do modelo de trabalho interno é o córtex órbito-frontal. Essa maturação torna-se um foco central de e para sentimentos de empatia, consciência e consciência ética do outro. Schore o relaciona particularmente com esperanças, desejos, sonhos e imagens. 9 Energy&Character Vol 34, September 2005 Schore destaca que a dança da harmonização é realizada por um pai suficientemente bom, que precisa reconhecer, espelhar, amplificar e apoiar o entusiasmo da criança. No desenvolvimento exploratório durante o período de exercício, mais tarde, ele destaca a necessidade de uma regulação de contra-balanceamento para influenciar o lado tropho-trópico da criança. Schore vê isso em termos de desenvolvimento saudável da vergonha. Se eu entendi corretamente, Schore usa a palavra vergonha, no bom sentido, para referir-se a todas aquelas formas que um pai/mãe sinaliza para uma criança para dizer „acalme-se agora“, „não me trate dessa maneira“, „não é jeito de se comportar aqui“ e assim por diante. Em outras palavras, sinais sociais do outro para si indicando que o outro não está confortável com o que está sendo expresso. Vergonha é uma espada de dois gumes, mesmo se falarmos no bom sentido, pois pode ser direcionado a impulsos saudáveis da criança, mais tipicamente referentes a expressões da sua sexualidade. Falta de vergonha, como traço de caráter pode nunca ser visto como um traço patológico. Schore é claro quando diz que a vergonha no mau sentido, ou vergonha patológica, é uma das desarmonizações que cria graves distúrbios de caráter. Em meu ponto de vista, encontramos isso tipicamente em padrões masoquistas e em algumas tendências depressivas. Se no desenvolvimento precoce ocorre um distúrbio no que Schore chama de „trauma relacional“ - em outras palavras, relações cronicamente mal adaptadas, vínculos inseguros (Bowbly) e desarmonia severa (Stern) - então, o que se desenvolve são padrões de maior „desregulação“ (Schore). O corpo é perturbado, todo o metabolismo energético é perturbado, o cérebro é perturbado, a mente é perturbada, a personalidade é perturbada, a aprendizagem social é perturbada, a empatia é perturbada, o self é perturbado. Na segunda parte do seu segundo volume, Schore analisa alguns padrões precoces de distúrbios. O vínculo inseguro de evitação5 Schore sugere, pode levar à retirada de energia na forma de uma espécie de autismo narcisista. Podemos reconhecer traços de personalidade esquizóide. Schore faz a distinção entre o vínculo inseguro de resistência6 de alguns pacientes limítrofes (borderlines), que tem alta prontidão, raiva incontida e tendência à fragmentação, com o ódio frio do psicopata anti-social (personalidade sociopata) que ele relaciona à grandes privações e negligência associada a baixos níveis de prontidão. Ele também descreve aspectos da personalidade da terceira forma de vínculo disfuncional, reconhecida na teoria do vínculo como vínculo desorganizado. Ele vê o medo como um fator dominante aqui e sugere que o medo na mãe é uma energia primária básica para a dissociação na criança. O medo traumático, em especial, tem efeitos de forte dissociação e desorganização. Schore discute, finalmente, o narcisismo social, que percebe estar se desenvolvendo neste momento atual. Aqui a educação do self e comportamentos não-empáticos não são regulados. Uma criança se desenvolve muito mais como um príncipe aos olhos dos pais, onde há uma falta de influência do equilíbrio tropho-trópico pelo que ele denomina função reguladora da vergonha não-patológica. Os insights caracteriológicos de Schore, baseados em fundamentos energéticos da psicologia sócio-neural do indivíduo durante estágios chave no desenvolvimento e „períodos críticos“, são fascinantes, provocativos, mas não são a última palavra. Eles podem levar, no futuro, a grandes revisões nos modelos psicodinâmicos de caráter, mas sinto que são necessárias ainda mais pesquisas nessa área para que haja a integração. 5 6 vínculo inseguro de evitação – tradução de „insecure-avoidant attachment“ vínculo inseguro de resistência – tradução de insecure-resistant attachment 10 Energy&Character Vol 34, September 2005 5. A experiência emocional corretiva e a cura do self: união7 e ressonância na terapia. Franz Alexander introduziu o termo „experiência emocional corretiva“ para o fundamental processo de mudança que está na base das formas de terapia relacionais. É central no trabalho da psicodinâmica intersubjetiva e também central no trabalho de muitas formas de psicoterapia humanista. Desde que o paciente em terapia tenha distúrbios por traumas relacionais, (experiências de invasão e privação que causaram distúrbios no seu desenvolvimento emocional) sua necessidade primária é experienciar uma relação nãopatológica de cura. Portanto, mais importante do que o que o terapeuta faz (intervenções), ou o que ele diz (interpretações) é como ele se relaciona com o paciente. Essa é uma questão de formação de um novo vínculo terapêutico (conhecido como „aliança terapêutica“), e de estabelecimento de uma empatia não-verbal. A empatia é descrita em Biossíntese, no trabalho de Stanley Keleman, e também por Allan Schore, como uma forma de ressonância somática, a qual é comunicada através do contato visual do terapeuta, de sua expressão facial e de seu tom de voz. Para o terapeuta que trabalha com o toque, isso é também, claramente, uma forma de comunicação através da qualidade do toque (em Biossíntese, os elementos do toque). Wilhelm Reich usou o termo „identificação vegetativa“ como um termo do processo que Schore denomina „conversas entre os sistemas límbicos“. Jacob Stattman denomina de „transferência orgânica“. A palavra „transferência“ significa o que é transferido, ou o que se passa entre duas pessoas em um campo bi-pessoal terapeuta e paciente. È um processo de duas mãos. A Psicanálise estuda esse fenômeno como padrões de „transferência“ (do paciente para o terapeuta) e „contra-transferência“ (do terapeuta para o paciente). No sentido dado por Schore, é um processo bi-direcional e envolve padrões de mútua influência recíproca. Melanie Klein introduz o termo „identificação projetiva“ para o sutil processo de influência do inconsciente, onde um dos parceiros da relação projeta seus sentimentos e atitudes internos no outro, que então, identifica-se e introjeta-os em si mesmo. Klein focou em primeiro lugar, nos aspectos negativos da identificação projetiva: como o paciente pode despertar raiva, ansiedade, depressão e assim por diante no terapeuta. O terapeuta inglês psicodinâmico, Wildred Bion, falou da importância do terapeuta tornar-se um „recipiente“ dos sentimentos negativos do paciente, e assim, prover um espelhamento de como lidar com esses sentimentos. Se o terapeuta aprende a dar continente, digere e „metaboliza“ os sentimentos negativos produzidos pelo paciente, este tem a opornutidade de uma nova aprendizagem emocional („a experiência emocional corretiva“). Ele aprende a não se sentir mais punido nem ameaçado pelas respostas do outro. Allan Schore dedica um capítulo inteiro de seu terceiro volume para seu modelo psico-neuro-biológico de identificação projetiva e vai muito mais longe que Melaine Klein na ênfase da importância de transferir sentimentos „adaptativos“ positivos de confiança, calorosos, prazeirosos, que tragam alívio e empatia. Schore descreve a identificação projetiva como uma forma de „conexão psico-biológica“, e a relaciona com a concepção de „espaço potencial“ descrito por Donald Winnicott em suas experiências de ludoterapia com crianças. Na relação terapêutica o processo de ressonância empática incluirá momentos de desarmonia, assim como no desenvolvimento saudável de uma criança, em um ambiente participativo, 7 união – tradução de „bonding“ 11 Energy&Character Vol 34, September 2005 com uma mãe ou pai „suficientemente boa(m)“. Os erros do terapeuta são conhecidos como „falhas empáticas“. Tornando-se consicente de suas reações vegetativas e autônomolímbicas e aprendendo a regulá-las, o terapeuta pode ser „co-participante na cura interativa“ dessas desarmonias, e então, ajudar na construção de níveis mais profundos e fortes de confiança. O aspecto mais importante de seu papel terapêutico é a habilidade de monitorar, regular e modular suas próprias respostas inconscientes ao material trazido pelo paciente em terapia. Em Biossíntese trabalhamos com um conceito de „dupla presença“, desenvolvido por Silvia Boadella, onde o terapeuta pode permitir que sua consicência se mova livremente para trás e para frente em contato com todos os canais entre o outro e o self. Esse processo é descrito por Schore como „ visão bi-ocular“, com um olho no paciente, e o outro, no self do terapeuta. Em Biossíntese, entedemos que essa é a razão pela qual os terapeutas tem „supervisões“, para ajudá-los a tornar consciente seus implícitos, latentes e ainda não conscientes padrões de contra-transferência. Esses padrões são projeções de reações emocionais não-metabolizadas do próprio terapeuta, ou introjeções de reações emocionais não-assimiladas do paciente. O paciente desenvolveu seus padrões de vínculo disfuncional em relações não sincronizadas, as quais foram caracterizadas pelo que, em Biossíntese, denominamos espelhamento distorcido ou espelhamento carente. Buscamos em nosso trabalho terapêutico, utilizar o que chamamos de espelhamento convidativo ou espelhamento reflexivo, que são formas de ressonância e sintonia. As pesquisas de Schore mostram como na relação terapêutica, o contato humano entre duas pessoas, no campo inter-subjetivo bipessoal, é preciso lidar com novas formas de sintonia, de mútuo insight, e de re-harmonização. Neurologicamente isso significa que novas condições de biossíntese química e sinaptogênese estão ocorrendo no cérebro. Nós sabemos que em nosso enfoque terapêutico de Biossíntese não é somente o cérebro que muda, mas o corpo também: o tônus muscular muda do hipertônus ao hipotônus em direção ao „Eu-tônus“ (tônus bem equilibrado). Hiper e hipo-carga energética nos tecidos e órgãos são substituidos por uma pulsação auto-regulada, e a restauração de ritmos energéticos saudáveis de mudança somático-emocional, a alteração do ritmo natural dos padrões de carga ergo-trópica e tropho-trópica. 6. Conclusões Schore conclui seu terceiro volume com uma lista dos „princípios do tratamento psicoterápico“ baseada em sua pesquisa, que formulei abaixo como uma série de escolhas que o terapeuta tem. Esse é o meu próprio entendimento do que eu considero central na diferenciação do enfoque de Allan Schore com muitos dos enfoques clássicos. No lado esquerdo do diagrama estão focadas as intervenções psicanalíticas mais tradicionais. No lado direito, estão focadas intervenções psicodinâmicas e humanistas baseadas na compreensão da psico-biologia do vínculo maduro, da harmonização e da regulação do afeto. Baseado no conflito Cérebro esquerdo dominante Consciência dos conteúdos mentais Cognição fria do insight clínico Transferência do paciente em primeiro plano Imparcialidade clínica do terapeuta Análise da resistência inconsciente Baseado no déficit: facilitando novo desenvolvimento Cérebro direito dominante Consciência do processo emocional Cognição quente da harmonização e empatia Contra-transferência do terapeuta em primeiro plano Vínculo humano e harmonia do terapeuta Receptividade aos afetos primitivos 12 Energy&Character Vol 34, September 2005 Foco na compreensão verbal Consciência do caráter e da história Vergonha do terapeuta bloqueia paciente Interpretação verbal da transferência Defesa vista como parte da resistência Memória explícita do self verbal Compulsão à repetição é analisada Foco nos problemas intrapessoais Foco na tolerância do paciente ao afeto Ênfase na história e na linguagem Insight explícito é buscado desde o início Paciente está pronto para a simbolização Ênfase na patologia e na doença Foco : mudança devido ao insight Compreensão dos padrões de caráter como forma de proteção do self Foco nos processos viscerais somáticos Consciência dos ritmos de carga energética Confiança permite que a revelação do self apesar da vergonha Dar continente ao afeto na transferência Defesa como proteção contra retraumatização Memória implícita do self pré-verbal Cura de situações recorrentes de quebra de confiança Foco na cura interativa do distúrbio Foco na tolerância do terapeuta ao afeto Ênfase no processo e na linguagem corporal Insight implícito leva, com o tempo ao insight explícito Paciente amadurece do pré-simbólico para o simbólico Ênfase no potencial organizativo do self para a saúde Foco: regulação interpressoal & intrapessoal Re-organização dos modelos internos de trabalho como formas de cura do self Escrever esse artigo para dar um panorama geral e resumir as evidências impressionantes dos três volumes de Allan Schore (relacionando as suas principais fontes, as quais fazem parte também, em muitos casos, da fundamentação e desenvolvimento da Biossíntese), não foi fácil. Sua escrita é densa e cheia de informações, e as seis mil referências que a fundamentam cobrem uma ampla variedade de disciplinas científicas. Espero que não tenha sido injusto com sua ampla variedade e sua visão profunda, por super-simplificação. Finalmente, eu ofereço o seguinte diagrama das relações inter-pessoais entre os campos enfatizados pela compreensão de Allan Schore e por nosso própria visão em Biossíntese. Lendo o mapa abaixo da esquerda para direita, observamos os processos de regulação ou desregulação interpressoais. Lendo o mapa do topo para baixo, observamos as formas de regulação e desregulação intrapessoais. TERAPIA Campo bipessoal Novos estados de ressonância e harmonia Energia -----------------Corpo ------------Cérebro---------------Mente----------------Self Biofísico ------------Somático--------Neuronal-------------Psíquico--------------Fenômenológico FAMÍLIA Campos precoces de vínculo Padrões precoces de contenção 13 Energy&Character Vol 34, September 2005 Podemos definir quatro grandes grupos de disciplinas que tem interagido fortemente durante as últimas décadas do século passado, e que continuam buscando integração entre disciplinas relacionadas ao corpo (bio), à mente (psíquico), ao meio ambiente humano (social) e à alma (fenomenológico) 1. Ciências biológicas (fisiologia, embriologia, neurologia, medicina clássica, medicina energética) 2. Ciências psicológicas (psicodinâmica, psicologia comportamental, ciência da cognição) 3. Ciências sócio-educacionais (psicologia do desenvolvimento, psicoterapia, terapia familiar sistêmica) 4. Ciências fenomenológicas (estudos da consciência, psicologia transpessoal) De uma perspectiva sistêmica esses quatro domínios bio-psico-sócio-espirituais estão todos sobrepondo-se, interagindo, conectados mutuamente. Quando esses quatro domínios são levados em conta no trabalho terapêutico com o ser humano, então, temos a possibilidade de uma terapia bio-psico-sócio-espiritual. a) Estudos Biológicos ¨ Fisiologia: Embriologia Neurologia Neuro-biologia Neuro-química Neuropsicologia Neuropsicanálise Stent Györgi, Oschmann, Cannon, Gellhorn, Selye Hartmann, Blechschmidt, Hughlings Jackson, Head Hutherr, Roth Luria,. Solms,Nersessian b) Estudos psicológicos Psicodinâmica Psicologia comportamental Psicologia cognitiva Psicologia do desenvolvimento Winnicott, Kohut Thelen Piaget, Grawe Bowlby, Ainsworth, Mahler, Stern, Dornes Referências bibliográficas Ader, Robert Psychoneuroimmunology Academic Press, London ,1981 Alexander, Franz Psychosomatic Medcine,Norton,New York,1950 Balint,Michael The Basic Fault, Tavistock Press, London ,1968 Bernstein, Nicholas The Coordination and Regulation of Movements, Pergamon Press,Oxford, 1967 Bertalanffy,Ludwig General Systems Theory, Braziller, New York, 1968 Boadella,David Lifestreams,Routledge, London, 1987 Boadella,David „Between coma and convulsion“ in Energy & Character, Vol 6,1975 Bowlby, John Attachment and Loss,Vols I –3, Hogarth Press, London,1969-1981 Dornes, Martin Der kompetente Säugling,Fischer Verlag,Frankfurt,1992 Damasio, Antonio The Feeling of What Happens, Harcourt Brace & Co, New York & London 1999 Ey,Henri Etudes Psychiatriques,Desclèe de Brouwer, Paris,1952 Gellhorn,Ernst Principles of Autonomic-Somatic Integration,University of Minneapolis Press,1967 Head,Henry Studies in Neurology, Oxford University Press, London, 1930 Hess,Wilhelm Diencephalon,autonomic and extra-pyramidal functions, Grune & Stratton,Orlando,1954 Jackson, Hughlings Selected Writings, Hodder and Stoughton, London,1931 14 Energy&Character Vol 34, September 2005 Janet Pierre Les Nevroses ,Flammarion ed., Paris, 1909 Keleman, Stanley Your Body Speaks its Mind ,Centre Press, Berkeley, 1975 Klein,Melanie Envy and Gratitude ,Tavistock Press, London ,1957 Kohut,Heinz The Restoration of the Self, New York Int. 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