O SENHOR DA AÇÃO RITUAL: UM ESTUDO DA RELAÇÃO FARAÓOFERENDA DIVINA DURANTE A REFORMA DE AMARNA (1353-1335 A.C) Gisela Chapot* Resumo: O presente trabalho pretende fazer uma análise da função cósmico-social desempenhada pelo faraó Akhenaton (1353 - 1335 a.C.), durante a Reforma de Amarna no que concerne à realização do culto aos deuses, no qual ele era o responsável pela provisão das oferendas, elementos essenciais para a manutenção da ordem, bem como para perpetuação da vida no universo. Com base na passagem do ―faraó como um sacerdote solar‖ – texto proveniente do Reino Médio que explicitava as funções que o governante deveria exercer para que a ordem supracitada não fosse acossada por elementos caóticos – legitimou-se, por milênios, a posição privilegiada do rei cujas ações rituais visavam repelir a transgressão isefet. Todavia, nossa análise centrou-se em um momento bastante particular da história faraônica – a Reforma de Amarna – inserida no contexto do Reino Novo (1550 – 1069 a.C.) fase em que o Egito atingiu o ―status‖ de um grande Império no Oriente Próximo. Deste modo, com base nos referidos texto e período, pretendemos analisar como Akhenaton desempenhou sua incumbência divina enquanto propiciava modificações político-religiosas (ênfases ou omissões) as quais ocasionaram certas alterações em elementos que estiveram tradicionalmente muito bem estruturados dentro da sociedade egípcia antiga. Palavras-chave: Reforma de Amarna; Culto templário; Oferendas divinas. Abstract: This text aims to analyze the cosmic and social functions of the pharaoh Akhenaten (1353-1335 BC) during the Amarna Period concerning the achievement of the cult to the gods, in which he was the responsible for the provision of offerings, essential elements for the maintenance of the universe. Based on a Middle Kingdom text that explains the functions the king should exercise so the social and cosmic order was not harassed by the chaos and which calls the pharaoh "a solar priest", was legitimated for a long time the privileged position of the king acting against the transgression isefet. However our work is focused in a peculiar moment of the New Kingdom (1550-1069 BC) – the so called Amarna Period –, when Egypt became an empire in the ancient Near East. In this way, we seek to analyze how Akhenaten played the solar priest function, while put into practice political and religious modifications (emphases or omissions), which caused some alterations in the traditional elements of the ancient Egyptian society. Keywords: Amarna Period; Templar Cult; Divine offerings. *** * Doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense. Membro do Grupo de Estudos Egiptológicos Maat (GEEMaat). 21 Plêthos, Vol. 1, 2011 O reinado do faraó Akhenaton foi marcado por uma série de mudanças significativas que afetaram os âmbitos político, artístico e religioso do antigo Egito e que constituíram um dos eventos mais polêmicos da história faraônica: a Reforma de Amarna. Este trabalho é fruto da dissertação de mestrado defendida pela autora em 2007, cujo título: ―O Senhor da Ordenação: um estudo da relação entre o faraó Akhenaton e as oferendas divinas e funerárias durante a Reforma de Amarna (13531335 a.C.)‖ contempla, além do culto divino – relacionado à veneração diária das divindades –, também o culto aos mortos, este último realizado para que cada defunto, individualmente, pudesse desfrutar de uma boa vida além-túmulo. Todavia, na ocasião presente, nos restringiremos a uma apreciação da função desempenhada pelo faraó Akhenaton, durante a Reforma de Amarna, apenas no que diz respeito à sua relação com as oferendas divinas. Assim sendo, antes de entrarmos propriamente no tema supracitado, convém fazermos uma breve exposição acerca do referido período para que tenhamos uma idéia melhor da atmosfera em que a Reforma de Amarna esteve inserida na fase histórica denominada Reino Novo (1550 – 1069 a.C.), segundo a cronologia baixa preferida. O Reino Novo teve início quando o faraó Ahmés I (1550 – 1525 a.C.) reunificou o Egito após uma fase de dominação estrangeira, dando o primeiro passo para formação da XVIIIª dinastia, uma época de grande centralização monárquica e considerável estabilidade interna no país. O período apresentou-se como a fase áurea do Egito, que chegou a atingir, pela primeira vez na sua história, o status de um grande Império. Regiões de norte a sul do país foram conquistadas, o que provocou um aumento considerável da extensão do território egípcio, incluindo a Ásia Menor, Núbia e parte da Mesopotâmia. Sob o reinado de Amenhotep III (1391 – 1353 a.C.) este Império Egípcio estava devidamente consolidado e o faraó pôde governar no momento considerado pelos 22 Plêthos, Vol. 1, 2011 egiptólogos como o ―apogeu‖ da XVIII dinastia. Foi neste ambiente relativamente ―confortável‖ e favorável que Amenhotep IV assumiu o trono do Egito em 1353 a.C. 4 Amenhotep IV foi coroado oficialmente na cidade de Tebas, sob a égide da antiga tradição como ―Rei do Alto e Baixo Egito, Neferkheperu-Ra (Perfeitas são as transformações de Ra), Uaenra (único filho de Ra), Amenhotep (Amon está contente ou satisfeito), divino governante de Heliópolis [do Sul] (Tebas)‖. Em pouco tempo, (menos de duas décadas), tradicionais elementos da antiga religião egípcia foram omitidos em nome de uma ―nova ordem‖ estabelecida pelo Disco Solar. A religião amarniana oferecia aos seus súditos a adoração ao Aton, fonte única da vida, gerador de toda a humanidade, o qual se recriava todos os dias e negava o caos, a escuridão, a morte, assim como todo o rico panteão politeísta egípcio. Devemos ressaltar que Amarna apresenta alguns elementos que estão situados em linha de continuidade com tendências notáveis ao longo da XVIII dinastia. No âmbito político-religioso, observamos a síntese de dois processos altamente favoráveis ao poder régio. Na primeira delas, Ciro Cardoso (2001) assinala que os monarcas tentavam super exaltar sua natureza não-humana a partir da divinização e culto ainda em vida. No caso de Akhenaton, a ênfase na figura real foi tanta que ele próprio tornouse um deus, ao menos a versão terrena da divindade, um co-regente passível de receber veneração de seus súditos em uma nova religião repleta de lacunas e exageros, quando comparada com a tradicional. A segunda tendência é o crescimento da importância do deus dinástico, Amon-Ra, substituído em Amarna por Aton. Neste caso, a resposta de Akhenaton foi inédita, pois o próprio Aton passou a parecer-se com um rei, com paramentos e rituais antes restritos ao faraó. Como será observado, durante a reforma, a figura do faraó alcançou um status divino sem precedentes naquela dinastia, deixando claro que o papel do rei em prol da ordenação do mundo era mais crucial do que qualquer outra divindade individualmente. 4 A mudança de nome de Amenhotep IV ―Amon está satisfeito‖ para Akhenaton ―aquele que é útil ao disco solar‖ ocorreu ao longo da reforma, indicando a negação ao deus Amon, divindade solenemente perseguida em Amarna. 23 Plêthos, Vol. 1, 2011 Ao colocar o faraó na Terra, o deus solar Ra, demiurgo criador, o encarregou de realizar algumas tarefas que o tornaram o intermediário entre os mundos divino e terreno. Em um pequeno trecho, proveniente dos Escritos da Câmara Sagrada, que estão no Mundo Inferior ou Livro do Amduat, eis as funções que o faraó deveria desempenhar após sua entronização: Ra estabeleceu o rei na terra dos vivos, eternamente e para sempre, para julgar a humanidade e para satisfazer os deuses, para fazer com que aconteça Maat e aniquilar a Transgressão Isefet. Ele dá oferendas divinas aos deuses e oferendas aos mortos bem aventurados (QUIRKE, 2001: 19). Notamos na passagem acima que, simbolicamente, o faraó estava incumbido de garantir a subsistência de deuses e mortos, feita por meio das oferendas. Tal garantia estava ligada diretamente à manutenção da vida e da ordem em todas as dimensões do universo. A referida ordem, por sua vez, estava atrelada ao conceito deificado de maat. Esta personificava as noções de Verdade, Justiça, Harmonia, Ordem e Equilíbrio. Segundo Jan Assmann (2001), maat pode ser definida como o próprio princípio de coesão social: agia segundo maat aquele que praticava justiça, dizia a verdade, atuava pelo bem da coletividade e desempenhava seu papel na cadeia social. Os homens também deveriam respeitá-la ou estariam sujeitos a diversos castigos divinos, como o não nascimento do sol, a morte das colheitas, e o mundo, então, retornaria às águas primordiais iniciais. Isefet, a transgressão, era exatamente a inversão da ordem, a antítese de maat, causava desgraça, confusão e morte no mundo dos vivos. Uma vez criado o mundo organizado (onde o Egito era o núcleo), sua continuidade precisava ser garantida, pois o cosmos não era uma criação estática, mas um conjunto de acontecimentos cíclicos que estavam inseridos em um processo em contínua repetição, cuja manifestação mais notável era o percurso do sol. O mundo deveria ser mantido para que o caos – empurrado para fímbria do universo no instante da criação – não voltasse a imperar. 24 Plêthos, Vol. 1, 2011 Para que tal ciclo, constantemente ameaçado, não fosse perturbado, era necessário que todas as forças caóticas fossem derrotadas diariamente pelo faraó. Por isso era realizado o culto divino para satisfazer as divindades, sustentar maat e manter o equilíbrio universal intacto. O culto diário era constituído por uma série de ritos cotidianos que envolviam a estátua do deus nos templos egípcios: despertar, lavar, paramentar, alimentar, adorar etc.. As etapas que cercavam o ritual matutino eram praticamente as mesmas em todos os templos egípcios. As diferenças poderiam ser notadas apenas no grau de ostentação da cerimônia (número de oficiantes, oferendas etc.). Antes de raiar o dia, alguns sacerdotes enchiam vasos e recipientes para as libações, enquanto outros se ocupavam nas cozinhas dos templos com o preparo das oferendas divinas. Quando o sol despontava no horizonte, o sacerdote responsável pelo deus seguia em direção ao santuário. As oferendas já estavam dispostas sobre os altares e devidamente purificadas quando a porta do santo dos santos era aberta. Este era o local que guardava o tabernáculo da estátua, o abrigo onde esta ficava encerrada até o momento do culto. Como apenas o faraó poderia confrontar o deus, o sacerdote deveria declarar em voz alta que fora enviado pelo monarca para adorá-lo. Além de fórmulas para acalmar a divindade, o sacerdote ―beijava o chão‖ num ato de devoção total. Todo o local era purificado com água e incenso antes do oficiante retirar a estátua divina de seu tabernáculo. No momento da abertura do santo dos santos, o recinto estava em total escuridão e era necessário que o sacerdote iluminasse o local com uma vela para enxergar a estátua do deus e finalmente retirá-la de seu abrigo terreno. O sacerdote, então, a tocava, um gesto que passava parte da sua vitalidade para a estátua. Assim como o ba, (um dos elementos que compunham a personalidade divina) os demais componentes eram reconstituídos na estátua, permitindo que o deus se alimentasse das oferendas. Tal fato é importante, pois, caso os deuses não fossem alimentados, não poderiam exercer a atividade criadora constante para renovar o universo. Por isso mesmo, a ração divina era bastante rica e variada, incluindo carnes, frutas e vários tipos de pão. As refeições eram 25 Plêthos, Vol. 1, 2011 dispostas em um altar em frente ao tabernáculo ou na sala das oferendas. Também eram acompanhadas de longas listas que incluíam a relação de todas as coisas ―boas‖ e ―puras‖ que satisfaziam as divindades e que deveriam ser recitadas em voz alta para funcionar como um substituto em caso de omissão das oferendas verdadeiras. A imagem divina retirada do tabernáculo era colocada sob um montículo de areia que aludia à colina primordial. A partir de então, a estátua era tratada como se fosse um ser vivo. Era ofertado incenso para purificação e maat: uma pequena figura da deusa era oferecida como símbolo de apoio real à ordem estabelecida pelos deuses. Uma vez que maat era o princípio regulador da ordem, da justiça, da verdade e do equilíbrio, esperava-se que as divindades a proporcionassem ao mundo em quantidades imensuráveis. Para finalizar o ritual matutino, o sacerdote ungia a estátua com óleos e lhe apresentava sal e resina. Após a purificação completa do santo dos santos, o deus retornava ao tabernáculo, então o sacerdote se retirava apagando as pegadas na areia que cobriam o chão. Durante o culto era estabelecido entre o rei e as divindades um processo de trocas recíprocas, baseadas no princípio do ut dês “dou para que você possa me dar‖. Há uma barganha constante, na qual alimentos, bebidas, roupas e paramentos são trocados por estabilidade, prosperidade, ordenação, vitória na guerra e assim por diante. Quando o faraó, em nome do Egito, fazia oferendas aos deuses, esperava receber em retorno dádivas que somente as divindades poderiam retribuir. Na língua egípcia, a palavra mais utilizada para designar oferenda era hetep e este termo transmitia os sentidos de ―pacificar‖, ―acalmar‖, ―satisfazer‖. Ou seja, exatamente aquilo que o governante desejava quando apresentava as oferendas às divindades. O que pôde ser verificado no sistema de oferendas egípcio era uma obrigatoriedade do receptor em devolver a dádiva ofertada, pois, caso não houvesse reciprocidade, o mundo entraria em colapso e se esgotaria. Antes de efetuar a doação aos deuses, o soberano pronunciava a expressão ―para dar X ao deus Y‖, para que ele possa trazer a dádiva da vida. 26 Plêthos, Vol. 1, 2011 Como era esperada, a concessão do faraó causava imediatamente uma resposta divina. Os deuses, então, tocavam as narinas do soberano com o signo da vida (ankh), que o dotava de tudo o que era necessário para o Egito sobreviver e assim toda humanidade era agraciada com a benevolência divina. Em suma: as divindades e os homens dependiam uns dos outros para seu sustento. Essa visão de mundo dramática, agônica, na qual o sol deveria vencer diariamente seus opositores, foi corrente na história faraônica desde o Reino Antigo, e, imprescindível para legitimar o status do faraó como um ser divino e humano, simultaneamente. Com respaldo na cosmogonia heliopolitana, o monarca confirmava sua origem divina, solar e ainda garantia um lugar de destaque no topo da pirâmide social egípcia. 5 Contudo, nossa análise, centrou-se em um momento bastante particular da história faraônica, a chamada Reforma de Amarna (1353 – 1335 a C.), na qual o faraó Akhenaton proporcionou uma reforma que, de certa maneira, abalou as bases nas quais a antiga religião egípcia esteve estruturada milenarmente. Pouco se sabe a respeito da liturgia envolvendo Aton. Há uma grande escassez de textos e iconografia referentes aos reinados em Tebas e Amarna, sobretudo, inexiste uma seqüência completa de atos ritualísticos referentes à adoração diária do deus. Ao que tudo indica, o culto sofreu algumas modificações em relação às cerimônias divinas dos reinados que precederam o de Akhenaton. A prática tradicional ficou limitada à apresentação de oferendas, gesto este que se configurou como a cena mais recorrente nos relevos religiosos templários amarnianos. Contudo, as fontes para o estudo do ritual diário, antes da reforma de Amarna, são poucas, dificultando uma possível comparação mais conclusiva. Os templos de Aton possuíam um amplo pátio a céu aberto para que o deus pudesse enviar, ao longo do dia, seus raios vivificantes à humanidade. A necessidade de 5 Segundo a cosmogonia heliopolitana, o deus criador Atum-Ra surgiu do Nun, águas primordiais, emergindo por si próprio dando início à criação diversificada. Após realizar a autofecundação, o demiurgo solar cuspiu o deus Shu e expectorou Tefnut. O casal dá origem a outros casais e assim segue a criação do universo. A enéada helipolitana deve ser encarada como a família divina do faraó. 27 Plêthos, Vol. 1, 2011 tornar o Aton visível a todos os fiéis fez com que Amenhotep IV tivesse o cuidado de remover qualquer elemento passível de produzir sombra na área de culto ao deus. Se comparadas aos tradicionais templos axiais da XVIII dinastia, com seus antigos tabernáculos e o sombrio do santo dos santos, Amenhotep IV optou pela claridade e visibilidade de um culto muito mais simplificado do disco solar. Nota-se aqui um elemento novo: ao contrário da religião tradicional, na qual a estátua do deus desempenhava uma função crucial durante o culto divino – servindo de receptáculo para abrigar uma parcela da divindade – em Amarna, as estátuas de culto foram solenemente rejeitadas, não eram fabricadas. O Aton só poderia ser representado em relevos bidimensionais. Diferentemente do que ocorrera na tradição faraônica, o deus de Amenhotep IV não era objeto de especulação teológica que durante centenas de anos, respaldado em um rico universo iconográfico, moldou as formas divinas do panteão egípcio. No caso de Aton, dizia-se que este não poderia ser confeccionado por mãos humanas, não possuía um protótipo, fato que impedia os artesãos de realizar este trabalho desempenhado sempre com muita cautela e sigilo dentro dos templos. Um discurso real inscrito em um pilone (coluna) em Karnak comprova esta afirmação, no qual Amenhotep IV explicita que Aton é ―aquele que criou a si mesmo‖ ―ninguém conhece seus mistérios‖, ―nenhum artesão conhece suas formas‖. Assim sendo, o faraó já antecipava algumas de suas tendências em relação à exclusividade da sua divindade. A presença constante da rainha Nefertíti nos relevos tebanos, segurando um sistro – instrumento musical de percussão antigo formado por uma lâmina curvada, presa a um cabo e atravessada por varetas móveis, as quais emitiam som quando o instrumento era agitado –, é um indício de que havia música na liturgia de Aton. O som agudo emitido pelo sistro era utilizado para marcar o ritmo nas cerimônias templárias. O que sem dúvida impressionava no culto ao Aton era o excesso de oferendas alimentares colocadas diante do deus em seus vários pátios abertos, com múltiplas fileiras, abarrotadas de todas as ―coisas boas e puras‖ que Aton necessitava para realizar, cotidianamente, seu papel de demiurgo: diferentes tipos de carne, vegetais, 28 Plêthos, Vol. 1, 2011 frutas, diversas qualidades de pão, vinho, cerveja, bem como incenso e muitas guirlandas e flores. Uma relação de objetos rituais encontrados no templo de Karnak, composta por cinco altares, possui entre outras inscrições, as de um vaso usado para libações que contém o seguinte texto em sua borda: Fazendo uma libação ao Aton, Hor-Aten, quando este se levanta no horizonte oriental do céu pelo rei que vive em Maat, NEFERKHEPRURA-UAENRA, O Filho de Ra, Akhenaton, de longa existência e grande na vitória; (e) ele faz libações em seu lugar no Horizonte ocidental do céu (MURNANE, 1995: 100) A passagem acima evidencia que era o rei, e somente ele, quem deveria prezar pelo bom funcionamento do sistema de oferendas divinas, visto que o mesmo era o motor da máquina universal: sem as oferendas o deus Aton não poderia exercer sua atividade criadora e contínua, que mantinha viva todos os seres, animados e inanimados, egípcios e estrangeiros, vivos e mortos. O trecho abaixo se refere à primeira proclamação do faraó feito na cidade de Amarna, onde Akhenaton aparece como o responsável por prover oferendas ao novo deus.6 Uma grande oferenda foi apresentada ao pai, Hor-Aten, consistindo em pão, cerveja, gado de chifres curtos e longos, bezerros, vinho, frutas e incenso, todo tipo de novas plantas verdes e tudo de bom em frente à montanha de Akhetaten (Amarna); [e também a] oferenda de uma boa e pura libação em nome da vida, prosperidade e saúde do Senhor das Duas Terras, NEFERKHEPRURA-UAENRA. Após isso, ele realiza o ritual de Aton, que fica satisfeito com o que é feito por ele. Ele se rejubila e seu coração alegra-se, Akhetaten exulta como se ele pairasse sobre [seu] lugar, então ele se satisfaz e eleva sua beleza [no seu curso diário]. Sua Pessoa [levanta-se] na presença de seu pai, Hor-Aten, como os raios para todo o sempre (MURNANE, 1995: 74). 6 Akhetaton, nome egípcio da atual cidade de Tell el-Amarna, significa ―Horizonte do Disco Solar‖. 29 Plêthos, Vol. 1, 2011 As estelas de fronteira indicam que o faraó retornou à Amarna no ano seguinte (ano seis) provavelmente com o intuito de observar de perto a evolução das construções templárias em honra ao Aton, bem como de todo o traçado urbano da cidade. Um longo decreto real contém um parágrafo onde é clara a ênfase na figura do rei como único oficiante por direito no culto divino. No trecho abaixo, é o próprio Akhenaton quem o faz. 7 Eu mesmo sou aquele que deve fazer as oferendas ao Aton, meu pai, na Casa de Aton em Akhetaten. Oferendas não são feitas para ele lá... quando eu estou em qualquer (outra) cidade... seu horizonte, a montanha de Aton, meu pai, na Casa de Aton em Akhetaten, sendo [feliz] diariamente (?) continuamente... festivo para sempre. (...) eu [forneci] para o Aton, meu pai, em Akhetaten (MURNANE, 1995: 79). Ressalta-se, novamente, a exclusividade do rei para com seu pai divino, o Aton. O texto insiste na ação individual do monarca: ―eu mesmo sou aquele que deve fazer oferendas ao meu pai‖. Assim sendo, ao menos no contexto templário, Akhenaton manteve a postura do sacerdote solar, a qual determinava que o faraó fora instalado na terra para, entre outras coisas, satisfazer os deuses, ou seja, no caso de Amarna, satisfazer o deus Aton e ele próprio, Akhenaton seu co-regente terreno. A posição de mantenedor das oferendas divinas foi ratificada no ano seguinte como indica outra estela de fronteira, esta referente a uma proclamação tardia. Nesta inscrição datada do sexto ano de reinado, o faraó Akhenaton aparece junto de sua esposa real Nefertiti e de suas duas filhas mais novas, adorando o Aton. Abaixo temos a transcrição da estela de fronteira, começando pela titulatura real: Ano 6, quarto mês do inverno, dia 13, O Bom Deus, que está satisfeito com Maat, Senhor celestial, Senhor da terra, o grande Aton vivo que ilumina as Duas Terras, vivo, meu pai: Ra-Harakhty que se rejubila em seu nome de Shu que está no Aton, que dá vida para 7 Estelas de fronteiras é o nome dado aos monumentos que delimitavam as cercanias da cidade de Amarna, capital do Egito durante a reforma do faraó Akhenaton. 30 Plêthos, Vol. 1, 2011 sempre. O grande Aton vivo que está em seu jubileu, que habita a Casa do Aton em Akhetaten. O Hórus Vivo: Touro Forte amado de Aton; Duas Senhoras: Grande da realeza em Akhetaten; Hórus de Ouro: Aquele que exalta o nome do Aton; Rei do Alto e Baixo Egito que vive por Maat, Senhor das Duas Terras: Neferkheprura, único de Ra, Filho de Ra, que vive em Maat, o Senhor das coroas: Akhenaton, de grande existência, dotado de vida eternamente, para sempre. (...) Fazendo uma grande oferenda de pão e cerveja, gado pequeno e grande, aves, vinho, frutas, incenso e todas as boas ervas, no dia fundação de Akhetaten para o Aton vivo, que aceita as preces e ama para o bem da vida-estabilidade-saúde do Rei do Alto e Baixo Egito que vive em Maat, Senhor das Duas Terras, Neferkheprura, único de Ra; Filho de Ra, que vive em Maat, Senhor das Coroas Akhenaton de longa existência, dotado de vida eternamente, para sempre (MURNANE, 1995: 82-83). Novamente, selecionamos uma das estelas de fronteira que contém, em determinada passagem, uma relação de oferendas as quais deveriam ser apresentadas ao Aton em Akhetaten. Segue uma resposta dos cortesãos, ou seja, dos súditos de Akhenaton enaltecendo a singularidade não apenas do faraó como provedor de oferendas divinas, mas também como aquele para quem o Aton brilha diariamente no céu: Que seu pai, Hor-Aten, aja como seu pai, cujos nomes são (constantemente) invocados, como decretados, e você será rei continuamente, permanecendo para sempre nos limites de Aton. Não há nenhum rei em [seu tempo que tenha feito algo assim para seu pai consistindo em todas [...], todas [...], (e) [...] com todos [...], monumento [sob] monumento para o Aton. [Ele tem provido] orientação [para] amar você, para que você aja de acordo com tudo que ele decretou. Você é o governante que conduz coisas efetivas, aquele que conhece os limites da eternidade, enquanto ele é aquele que estabelece (coisas) em seu coração em qualquer lugar que ele deseje. Ele não se levanta para nenhum outro rei exceto para sua 31 Plêthos, Vol. 1, 2011 Pessoa: ele não ordenou tudo que ele deu para outro, mas [ele agiu para você porque você fez] para ele a Casa do Aton [em] Akhetaten(...) o palácio do Aton, repleto [com] todo [tipo de] provisões (MURNANE, 1995: 75-76). Jan Assmann (2001) observou uma alteração importante no que concerne à relação deus-rei-humanidade em Amarna: ao contrário do que fora verificado na tradição anterior, não era para a humanidade que o Aton diariamente despontava no horizonte, mas para o próprio faraó: o deus realizava seu curso para dar vida ao seu filho, único que conhecia plenamente seus desígnios. Assim sendo, a humanidade dependia do seu governante para lhes conceder o alento necessário para subsistir: Akhenaton era o senhor da vida e da morte. Com base no que foi apresentado, observamos que, no que concerne às oferendas divinas, o faraó manteve sua qualidade de um ―sacerdote solar‖, satisfazendo o deus Aton para que o mundo ordenado fosse então preservado. Todavia, durante a reforma amarniana, notamos uma sensível, porém significativa alteração no que tange à recepção da benevolência divina. Apenas Akhenaton tinha contato direto com o deus Aton, seu pai celestial, fato que necessariamente levava a veneração obrigatória do monarca para que este, diante de toda sua bondade, pudesse interceder pela humanidade junto ao âmbito divino. Deste modo, a piedade individual, tendência crescente ao longo do Reino Novo, sofreu um intenso baque durante a reforma de Amarna, pois as pessoas comuns foram impedidas de interagir com suas divindades diretamente. A exclusividade excessiva fazia de Aton praticamente objeto de adoração unicamente da família real. Esta passou a ser retratada em cenas bastante informais as quais procuravam exaltar a relação entre Akhenaton, Nefertiti, e as seis filhas do casal. Nos relevos, as incumbências reais são substituídas pela função paternal de Akhenaton. O objetivo dessas imagens era antropomorfizar o poder supremo, concebido como uma forma geométrica e abstrata, desprovido de qualquer identificação com o panteão tradicional. O Aton era representado de forma ―fria‖, isto é, como uma esfera luminosa dotada de raios cujas mãos estendiam o símbolo da vida às narinas do faraó e da rainha Nefertiti. Este tipo de arte decorativa 32 Plêthos, Vol. 1, 2011 não se restringiu aos túmulos privados, mas também adornou o ambiente templário amarniano, edifícios públicos e até mesmo altares domésticos, os quais enalteciam a família real como um conjunto sagrado passível de culto como uma divindade tradicional. Os atos da vida cotidiana da família real, especialmente os que envolviam Akhenaton e Nefertiti, se tornaram o próprio ritual diário. Junto com Aton, o casal real formou uma nova tríade divina, tal como a tríade heliopolitana composta por Atum, Shu e Tefnut. A existência de Akhenaton e Nefertiti tornou-se a prova tangível da existência divina. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALDRED, Cyril. 1988. Akhenaten: King of Egypt. London: Thames & Hudson. ASSMANN, Jan. 1989. State and Religion. In: SIMPSON, William Kelly (ed.). Religion and Philosophy in Ancient Egypt. Yale University: Egyptological Studies. ASSMANN, Jan. 2001. The Search for God in Ancient Egypt. Ithaca: Cornell University Press. BAINES, John. 1998. The dawn of Amarna age. In: O‘OCONNOR, David e CLINE, Eric H. (eds.). Amenhotep III: Perspectives on his reign. Ann Harbor (Michigan): University of Michigan Press, p. 271-312. BAINES, John. 2002. Sociedade, moralidade e práticas religiosas. In: SHAFER, Byron E. (ed.). 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Seguem palavras ou frases as quais a tradução é duvidosa. 5. Letras maiúsculas são usadas para indicar que a palavra ou nome está incluso no texto original por um cartouche, geralmente o nome do rei. 6. Palavras sublinhadas são também duplicadas em outras seleções ou foram adicionadas como substituição para o material que foi suprimido no texto original: a conotação em cada caso é indicada na introdução do item em questão. 7. Itálicos foram usados apenas para indicar restaurações ou leituras as quais são especulativas, porém prováveis. 35 Plêthos, Vol. 1, 2011