manual FINAL 12/27/05 3:41 PM Page 113 (Black plate) Infecção Viral ou Bacteriana? Diferença Entre Teoria e Prática Otávio Piltcher Joana, 3 anos, tinha o diagnóstico de IVAS há dois dias e hoje ela chega ao consultório com secreção nasal purulenta, obstrução nasal, dor de garganta e dor de ouvido. A pergunta é: quais as chances dessa patologia ainda ser viral? O papel do médico, quer seja em ambiente de emergência ou ambulatorial de rotina, ao atender crianças como Joana, é procurar evidências significativas que lhe convençam não estar diante de mais um quadro viral. Todavia, a abordagem desse tipo de situação não é simples. Do ponto de vista teórico, as evidências são muito esclarecedoras e tranquilizadoras com relação à prevalência e história natural de cada um desses processos. Já na prática, verifica-se uma grande insegurança de médicos e familiares, traduzida no uso indiscriminado de antibióticos com ou sem diagnóstico de certeza para tal conduta. É possível que questões básicas sobre a prevalência e história natural dos processos de infecções das vias aéreas superiores (IVAS) necessitem ser mais orientadas e discutidas com a população leiga. Por exemplo, quantas vezes seria admissível que uma criança apresentasse sintomas de um processo infecioso das vias aéreas superiores? Esse tipo de informação é essencial para o começo de uma relação esclarecedora e tranquilizadora entre família e médico. Assim como Joana, muitas crianças, nessa faixa etária, poderiam apresentar esses quadros seis a 12 vezes por ano. Essa elevada prevalência de infecções virais também indica que a criança equivocadamente diagnosticada e a família inadequadamente orientada, em um primeiro episódio, poderão passar a vivenciar um circulo vicioso de busca de atendimentos emergenciais e utilização de antibióticos. A quem cabe orientar os pais sobre esse tipo de informação? Sem dúvida a nós médicos. Do ponto de vista teórico, existem vários tipos de vírus (RSV – Vírus Sincicial Respiratório, Influenza Vírus, Adenovírus, Rhinovírus, virus do “Resfriado Comum”, etc) que atuam sobre o epitélio respiratório, quer seja por meio da inoculação de partículas ou do contato com as mãos. Esses microorganismos têm um efeito, muitas vezes devastador sobre o epitélio, gerando os sinais e sintomas citados anteriormente. É fato que a resposta imune alterada, destruição dos mecanismos locais de defesa (cílios), diminuição da atividade mucociliar e do “clearance” com acúmulo de efusões, facilitam a ocorrência de infecções bacterianas. Porém, essa associação não ocorre sempre. Outro aspecto que facilita a ocorrência de processos baterianos no seguimento de infeções virais é o aumento da expressão manual FINAL 114 12/27/05 3:41 PM Page 114 (Black plate) IV MANUAL DE OTORRINOLARINGOLOGIA PEDIÁTRICA DA IAPO dos receptores de determinadas bactérias no epitélio respiratório e no muco secretado. Contudo, o aumento da aderência de bactérias como o Streptococcus pneumoniae e como o Haemophilus influenzae não deve ser interpretado longitudinalmente como a presença de uma infecção bacteriana. Com exceção de crianças <2 meses, crianças com alguma deficiência da imunidade ou diante de sinais ou sintomas óbvios de uma complicação bacteriana (“double-sickening”recaídas, secreção purulenta por mais de 10-14 dias, exames de sangue indicativos), casos como o citado inicialmente ou, ainda não tão elucidativos, devem ser sempre considerados inicialmente virais. O conhecido conceito popular “quando tem cara, cor e cheiro de algo, antes da prova em contrário, deve ser o algo esperado”. Infelizmente esse ditado não é aplicado de rotina nessas situações. Infecções virais duram no mínimo sete dias, sendo que, entre o quarto e sétimo já começam a apresentar uma melhora acentuada. Todavia, pode haver grande variabilidade na virulência desses microorganismos e na susceptibilidade do hospedeiro, com comprometimento bem maior do epitélio das vias aéreas e dessa forma com período de convalescência maior para resolução dos problemas (14-21 dias). Essas informações também devem ser compartilhadas com o paciente e familiares, associadas à orientação para que a criança seja observada quanto à evolução do seu estado geral, se necessário pelo médico, e pela família, continuamente. Deve ficar claro que mais importante que a presença de secreção verde-amarelada por alguns dias, são achados de recaídas nos sinais e sintomas. A verdade é que febre alta e a coloração da secreção nasal são interpretadas pelos pais, invariavelmente como sinal de infecção que necessita de antibiótico. A secreção verde-amarelada é fruto da deterioração dos polimorfonucleares e de suas enzimas. Além da informação de quanto tempo a secreção está colorida, ou se ela voltou a tornar-se verde-amarela depois de clarear, um aspecto importante é esclarecer se a secreção é assim durante todo o dia ou mais pela manhã. Os quadros bacterianos costumam apresentar secreção purulenta constantemente, enquanto que nos virais, essas características aumentam pela manhã em decorrência da estase de secreções nas vias aéreas durante a noite. Quanto à febre, deve ser esclarecido que não é sinônimo de gravidade e sim da intensidade da resposta imune do indivíduo, pela presença de um processo inflamatório de origem infecciosa, quer seja viral ou bacteriana. Lembrar que, especialmente em crianças pequenas, a febre costuma ser elevada, tanto para processos virais como para bacterianos. A febre deve ser controlada em casos de elevação excessiva, pelo desconforto que causa, além de riscos como as convulsões febris. Esse tipo de informação, também deveria passar a ser difundida para os pais, o que facilitaria o importante componente de tranquilizar os familiares no tratamento dos pacientes. Pensando por outro lado e ainda assim corroborando para a conduta ideal, quais seriam os possíveis prejuízos se o diagnóstico de uma infecção bacteriana de vias aéreas superiores (VAS) fosse retardado e quais os possíveis prejuízos de iniciarmos um tratamento com antimicrobianos na vigência de um quadro viral? É evidente que está sendo discutido nesse capítulo quadros como o exemplificado, nos quais, febre, secreção nasal colorida, dores de garganta, tosse, dores de ouvido são os sinais e sintomas encontrados. Lembrando que, qualquer manual FINAL 12/27/05 3:41 PM Page 115 (Black plate) IV MANUAL DE OTORRINOLARINGOLOGIA PEDIÁTRICA DA IAPO 115 criança com sinais e sintomas atípicos, como neurológico ou ventilatórios, merecerão uma investigação mais detalhada na busca de outros diagnósticos diferenciais. Nas VAS, as complicações mais comuns e motivo de diagnósticos equivocados diariamente são as rinossinusites agudas, otites médias agudas (OMAs) e faringotonsilites. Nesse sentido, as evidências atuais indicam que mesmo quadros de rinossinusites agudas e otites agudas bacterianas possuem elevado percentual de resolução espontânea (70-80%). Enquanto nas faringotonsilites por estreptococo do Grupo A (beta-hemolítico), há tempo para prevenir as complicações não supurativas no caso de retardo do diagnóstico em pelo menos três dias. Esse tipo de informação também poderia tranquilizar os profissionais de saúde e familiares diante da dúvida diagnóstica entre quadros virais e bacterianos. Nos países nos quais a conduta é expectante, mesmo diante do diagnóstico de certeza de processos bacterianos, não ocorreram alterações significativas na prevalência dessas complicações, quando comparado aos benefícios comprovados para toda comunidade. Outro aspecto interessante na tranquilização do profissional de saúde e da família é que não há benefício no uso profilático de antimicrobianos durante processos virais. Por último, é observação pessoal que geralmente uma criança que chega à emergência, com complicações de processos nasossinusais ou otológicos, já vem utilizando antimicrobianos. Essas complicações estariam mais vinculadas a virulência das bactérias e a capacidade imune do hospedeiro, do que ao retardo na administração de antibióticos. A leitura, até esse momento, induz ao pensamento que esse capítulo visa a defesa da conduta de observação diante de casos de elevada suspeição e/ou diagnóstico de processos bacterianos. Contudo, o objetivo é somente estimular que casos tipicamente virais sejam diagnosticados e tratados como tal. O uso não judicioso de antibióticos, principlamente diante de um quadro de características virais, é sempre prejudicial ao paciente, por efeitos adversos e pelo desenvolvimento da resistência bacteriana. É interessante observar que nos diálogos com os familiares, após várias explicações sobre a provável etiologia viral, costuma ser repetida a pergunta: “Então a Joana não tem nenhuma infecção importante?” Essa pergunta, bastante freqüente, exemplifica a associação que existe entre infecção-bactéria-antibiótico no entendimento popular. Enquanto os processos virais são muitas vezes associados à falta de diagnóstico pelo profissional da saúde. Nesse sentido, há obrigação de pararmos e discutirmos o que é possível fazer para que esse tipo de conceito consiga ser mudado na sociedade. Talvez por meio de campanhas ou do estímulo ao diálogo mais esclarecedor entre médico e pacientes. Uma das evidências mais constrangedoras da culpa da classe médica é o fato de >60% das crianças que vão a um consultório, ou a um Pronto Socorro, com sinais e sintomas sugestivos de processos virais, recebem uma prescrição de antibiótico. Não existe uma fórmula mágica para definir quando crianças com quadros de caracterísitcas virais passam a ser bacterianos. Assim como nas otites agudas e rinossinusites bacterianas, mesmo que se discuta na atualidade se há ou não indicação de tratamento com antibióticos, essa não parece ser a questão mais importante. Se conseguirmos difundir mundialmente, na prática, o tratamento somente dos casos com elevada manual FINAL 116 12/27/05 3:41 PM Page 116 (Black plate) IV MANUAL DE OTORRINOLARINGOLOGIA PEDIÁTRICA DA IAPO suspeição de OMA e rinossinusite já seria dado um grande passo no sentido do uso judicioso dos antimicrobianos. Os aspectos tempo de evolução e recaída de sinais e sintomas, destacam-se como os principais critérios clínicos para o diagnóstico correto entre processos virais e bacterianos. O que podemos fazer para mudar a grande distância entre teoria e prática? Lembrar que a melhor forma de alcançar as expectativas dos pacientes e familiares é fazer com que reconheçam que estamos fazendo o melhor dentro da luz dos conhecimentos disponíveis. Infelizmente ainda existem pacientes que mudam de médico pelo fato do mesmo não ter-lhe indicado algum antibiótico, diante de um quadro tipicamente viral. Por outro lado, é cada vez mais comum encontrarmos pacientes que também mudam de médico pelo fato do mesmo, por qualquer febre, já lançar mão desta prescrição. Temos literatura farta a disposição para solidificar nossas condutas. Enquanto isso, há necessidade de campanhas que esclareçam a população leiga, sobre a prevalência de quadros respiratórios de origem viral, que não necessitam de antimicrobiano. Leitura recomendada 1. Spurling GK, Del Mar CB, Dooley CB, Dooley L, Foxlee R. Delayed antibiotics for symptoms and complications of respiratory infections. Cochrane Database Syst Rev. 18;(4):CD004417, 2004. 2. Arrol B and Kenealy T. Antibiotics for the common cold. Cochrane Database Syst Rev.;(3):CD000247, 2002. 3. Mohan S. et al. Ann Clin Microbiol Antimicrob. 14;3:11, 2004. 4. Schwartz B. Rinossinusite Viral ou Bacteriana: Secreção nasal aquosa e verde/amarela. Quando tratar? In: Sih T. Infectologia em Otorrinopediatria. Revinter, Rio de Janeiro 2001. 5. Piltcher O. Infecções Virais no trato respiratório superior e a Otite Média: qual a relação? In:Sih T. Infectologia em Otorrinopediatria. Revinter, Rio de Janeiro 2001.