Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 EXAMINANDO DIFICULDADES DE ALUNOS DE UM CURSO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS SOBRE A TEORIA DA EVOLUÇÃO Meriane Ribeiro de Lima (Mestranda do Programa de Pós-Graduação Educação Científica e Formação de Professores, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) Paulo Marcelo M. Teixeira (Departamento de Ciências Biológicas, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) RESUMO Nesta comunicação, analisamos dados sobre a compreensão dos estudantes de um curso de Ciências Biológicas em relação a determinados aspectos referentes à Teoria da Evolução. No protocolo de coleta de dados, reproduzimos cinco afirmativas retiradas do livro “Evolução: o sentido da Biologia” (MEYER; EL-HANI, 2005), que foram analisadas de forma quantitativa e qualitativa. Comparamos o grau de conhecimento dos estudantes iniciantes e concluintes do curso e avaliamos se houve ou não desenvolvimento conceitual sobre o assunto. A pesquisa mostrou que muitos estudantes, participantes da pesquisa, apresentaram dificuldades conceituais em relação a diferentes aspectos da Biologia Evolutiva. Palavras-chave: Teoria da Evolução, Ensino-Aprendizagem, Alunos, Licenciatura. Introdução O processo evolutivo é dado como fato consumado pela comunidade científica e a “evolução” é proposta como um conceito central para a unificação da própria Biologia enquanto ciência (FUTUYMA, 2002; RIDLEY, 2006). Daí a importância de ensiná-la nas aulas referentes às disciplinas escolares ligadas às Ciências Biológicas. Porém, pesquisas que focalizam aspectos relacionados ao ensino-aprendizagem da “Biologia Evolutiva” detectaram que alguns conceitos relacionados à Evolução Biológica como adaptação, seleção natural, mutação, população e o próprio conceito de Evolução são mal compreendidos pelos estudantes. Há também distorções no âmbito do entendimento mais amplo sobre aspectos epistemológicos ligados à Teoria da Evolução. Esses problemas, vinculados em parte a questões conceituais e, em outra parte, a aspectos relativos à natureza da ciência, também foram objeto de nossas preocupações no âmbito deste trabalho. Tais dificuldades parecem associadas à complexidade inerente a alguns desses conceitos e a sentidos diversos que eles recebem no contexto da linguagem quotidiana (VALENÇA; FALCÃO, 2012). De fato, parece consenso na literatura que ensinar conceitos e a própria teoria evolutiva é uma tarefa desafiadora para os educadores em Biologia na atualidade. Analisamos nesta comunicação dados sobre a compreensão dos estudantes de um curso de Ciências Biológicas sobre determinados aspectos referentes à Teoria da Evolução. De modo mais específico a pesquisa que subsidiou este trabalho pretendia: i) identificar dificuldades conceituais manifestadas pelos estudantes em relação ao assunto; ii) comparar o 5813 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 grau de conhecimento dos estudantes que estão cursando os primeiros semestres do curso, com aqueles que eram concluintes; iii) avaliar se houve ou não, desenvolvimento conceitual nos estudantes do referido curso com relação a elementos teóricos da Biologia Evolutiva. Metodologia de Pesquisa A pesquisa foi realizada com alunos do curso de Ciências Biológicas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – Jequié/BA, englobando estudantes do 1º ano e os que estavam concluindo o curso. A coleta de dados foi realizada junto a duas turmas do 2º semestre (53 alunos), duas turmas do 8º (26 alunos) e uma turma do 9º semestre (14 alunos). No total participaram do estudo 88 sujeitos. O protocolo para coleta de dados foi aplicado nos meses de outubro e novembro de 2012, em horários cedidos por professores do curso em suas aulas. Os alunos tiveram aproximadamente 50 minutos para responder os 13 itens do protocolo. Ele foi divido em duas partes: na primeira, foram reproduzidas 5 afirmativas retiradas do livro “Evolução: o sentido da Biologia” (MEYER; EL-HANI, 2005, p. 119-123). Aplicamos a essas afirmativas uma escala tipo Likert na qual os estudantes julgavam as afirmativas conforme o seu grau de aceitação, tendo a possibilidade de escolher entre 5 posições distintas: discordo fortemente; discordo; indiferente; concordo; concordo fortemente. Também solicitamos aos estudantes a justificativa para a sua posição para cada uma das frases apresentadas. Na segunda parte do protocolo, foram reproduzidas 7 questões retiradas de livros didáticos utilizados no 3º ano ensino médio, entre as quais fixamos questões de múltipla escolha. Aqui também solicitamos que os estudantes justificassem suas respostas. Na parte final do protocolo, solicitamos aos estudantes que apresentassem críticas a uma situação-problema relacionada ao conceito de adaptação. A análise foi realizada considerando a dimensão quantitativa (análise de percentuais, índices de acertos/erros, gráficos e tabelas) das respostas obtidas em ambas as partes do protocolo e uma análise qualitativa, centrada no conteúdo das justificativas que os alunos construíram para cada item do protocolo. Para preservar a identidade dos participantes da pesquisa, os alunos iniciantes foram numerados de I1 a I53 e os concluintes de C1 a C35. Devido à restrição de espaço, aqui nos limitaremos a apresentar apenas os resultados obtidos na análise das cinco afirmativas retiradas da primeira parte do protocolo de coleta de dados. 5814 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Resultados e Discussão Para que o leitor tenha ideia mais precisa das afirmações a que os estudantes foram submetidos ao tomar contato com a primeira parte do protocolo de coleta de dados, nas linhas abaixo reproduziremos todas elas. Frase 1: “A evolução não é algo que enxergamos, portanto ela não é cientificamente aceitável”. Frase 2: “A evolução é somente uma teoria. Ela não é algo provado e, por isso, carrega muitas incertezas”. Frase 3: “É difícil crer que estruturas complexas, como os olhos, tenham surgido por um processo que depende do acaso”. Frase 4: “A complexidade das estruturas biológicas não pode ser explicada pela seleção natural”. frase 5: “A teoria evolutiva e o darwinismo estão em crise e, se ainda não o foram, serão superados”. Fonte: Meyer e El-Hani (2005, p. 119-123). Como foi dito, em todos os casos, os estudantes faziam a opção por uma entre as cinco alternativas propostas numa escala likert. Além disso, foi solicitado que eles justificassem suas respectivas posições. Segundo Meyer e El Hani (2002) as afirmações propostas são comumente construídas para sustentar formas de objeção dos criacionistas à evolução. Ao propormos a primeira frase aos alunos, esperávamos a tendência maior para discordância, pois, “assim como não enxergamos a evolução, também não enxergamos átomos, genes, gravitação etc.”, ou seja, uma determinada teoria é aceita quando está apoiada em evidências, “mesmo que as entidades e os processos aos quais se refira não sejam diretamente vistos, sentidos, tocados ou escutados”. Para os autores supracitados, a 1ª frase denota uma compreensão inadequada “da natureza do conhecimento científico e da relação entre conhecimento e evidência” (MEYER; EL-HANI, 2005, p.119). Ao analisar as respostas, verificamos que a maioria dos alunos (88,6%) optou por discordar da referida assertiva. Apenas três estudantes expressaram concordância. Entretanto, os dados mais interessantes surgiram quando analisamos as justificativas dos sujeitos participantes para as suas respostas. Examinando os argumentos dos alunos que apresentaram posição discordante em relação à frase, encontramos argumentos como os listados abaixo: “Não é preciso ver as mudanças evolucionistas para compreender que ela ocorreu. Mas, registros históricos mostram que ocorreu” (I48). “Não enxergamos a evolução, porém temos dados científicos e vestígios concretos de que ela ocorreu” (I16). “Milhões de anos influenciaram para o que conhecemos hoje sobre evolução, e existe uma base científica por traz dela para tentar explicá-la” (I27). Em suas respostas esses estudantes demonstram entender que para uma teoria ser cientificamente aceita é preciso que ela esteja fortemente apoiada em evidências, dados e registros. Tal posição parece ser corroborada pelo argumento proposto por Ward et al. (2010), ao afirmarem que a postura dos cientistas e alunos em relação à ciência deveria envolver, 5815 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 entre outros aspectos, o respeito pelas evidências, reflexão crítica e disposição para tolerar a incerteza (p. 20). Analisando outras justificativas dos alunos encontramos também argumentos de natureza criacionista, sobretudo nos casos de alunos que concordaram com a assertiva. Um exemplo pode ser encontrado na seguinte justificativa apresentada por um dos participantes: “Não sou evolucionista, sou criacionista, embora na faculdade tenha que seguir as ideias evolucionistas” (I12). No caso da 2ª frase, a maior parte dos estudantes também apresenta posição discordante (63%). Para Meyer e El-Hani (2005) essa frase corresponde também a uma compreensão inapropriada em relação à natureza do conhecimento científico. Segundo os autores “o conhecimento científico é conjectural: ele não pode nem deve ser concebido como verdade absoluta ou considerado correspondente à realidade” (MEYER; EL-HANI, 2005, p.119). Isto quer dizer que, “muitas vezes [o que] chamamos de “fatos” são também teorias ou hipóteses em que temos imensa confiança, graças ao acúmulo de observações ao seu favor e à sua coerência com outras ideias que constituem o conhecimento científico” (Idem, p.119). Nesta questão houve mais dispersão nas respostas. Percebemos que elas foram distribuídas entre as 5 opções possíveis, num contínuo que vai da aceitação para a não aceitação da afirmativa. Entre alunos iniciantes e concluintes, 5 concordaram fortemente com essa afirmação e um estudante justificou sua posição com o seguinte argumento: “Por não ser provada a teoria da evolução traz muitas dúvidas ao explicar algo complexo” (I2); outro mencionou a seguinte ideia: “Concordo fortemente porque não tem dados que comprovam se a evolução de fato existe” (I11). É notório que estes estudantes não estão levando em conta anos e anos de estudos sobre a teoria evolutiva; e que existe um grande volume de informações originárias de diversas áreas que sustentam amplamente os princípios explicativos que regem a Teoria da Evolução (MEYER; EL-HANI, 2005). Devido ao acúmulo dessas informações a evolução alcançou, dentro das Ciências Biológicas, o status de teoria, já que é uma ideia que acumulou conhecimentos de várias áreas como forma de explicar o desenvolvimento da vida no planeta (TIDON; LEWONTIN, 2004; ZIMMERMANN, 2012). Por isso ela é altamente aceita dentro do campo científico e, portanto, não é sensato dizer que “nada é comprovado”, como mencionaram alguns dos alunos. Um aspecto observado, tanto nos alunos que concordaram, quanto naqueles que discordaram da frase 2, é a ideia imprecisa e vaga que eles sustentam sobre o que é uma teoria no campo científico. Para muitos estudantes teoria significa algo frouxo e sem sustentação em evidências de pesquisa. Eles parecem compreender “teoria” como uma mera hipótese. As 5816 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 frases abaixo, extraídas de suas respostas, ilustram o que queremos dizer: i) “Na ciência há muitas falhas no que se diz evolução. Nada é comprovado e tudo não passa de teorias” (I15); ii) “Apesar de ser teoria, hoje sabe-se comprovadamente e existência dela [...]” (C22). Outro aspecto interessante presente em algumas respostas e, considerado como algo extremamente positivo, é que alguns alunos reconhecem que o conhecimento científico não pode e nem deve ser concebido como “verdade absoluta”. Apesar deste conhecimento ser conjectural, existem muitas evidências convincentes em relação à teoria evolutiva. Exemplos desses casos são apresentados abaixo: “Embora não existam verdades absolutas na ciência, atualmente a teoria da evolução é algo cientificamente respaldado pelas evidências [...]”. Porém como a ciência é mutável, não há como defender a evolução como algo absoluto e imutável” (C26). “Existem diversas evidências que provam a teoria da evolução, apesar de também haver algumas incertezas em torno desta, isso não invalida a teoria” (C18). Na análise das justificativas fornecidas pelo grupo de alunos que expuseram posição discordante em relação à frase, também encontramos argumentos como os listados abaixo: “Para a ciência a evolução não é apenas uma teoria, pois existem vários aspectos que a comprovam. Apesar disso ainda existem incertezas sobre detalhes de como ela ocorreu” (C19). “Hoje, após muitos estudos, a evolução é cientificamente comprovada, as incertezas que podem vir a surgir são consequências das mudanças que ocorrem constantemente, como tudo na ciência, nada é estático” (C29). Os estudantes demonstram entender que apesar do conhecimento científico não ser tratado como verdade absoluta, isto não significa que, no caso da Teoria da Evolução, este conhecimento não tenha valor, pois, “é tamanho o volume de informações oriundas de todas as áreas da Biologia, que a endossam, que temos uma teoria altamente convincente, na qual podemos depositar grande confiança” (MEYER; EL-HANI, 2005, p.120). Um último aspecto a salientar é que, comparando os resultados da análise da frase 2, entre estudantes iniciantes e concluintes, não notamos diferenças significativas daqueles que tomaram posição discordante em relação à frase. Entretanto, considerando a parcela de alunos que concordaram com a referida frase, prevaleceu discretamente o grupo de alunos iniciantes. Esse resultado era esperado, já que os alunos iniciantes mal começaram a estudar conteúdos evolutivos dentro do curso. Quanto à 3ª frase, analisando a literatura relativa à Biologia Evolutiva, encontramos argumentos a defender que a dimensão do “acaso” tem papel significativo no processo evolutivo. Por exemplo, há autores que sugerem que o estoque de variantes genéticas constantemente criadas pelo processo de mutação persiste ou não em uma população por acaso, e não por um efeito da seleção natural ou contrária a tais variantes (KIMURA, 1983; MEYER; EL-HANI, 2005). “A mudança na constituição genética de uma população, 5817 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 resultante do acaso, é chamada de deriva genética” (MEYER; EL-HANI, 2005, p. 68). Sobre o papel do acaso na Biologia ver também Mayr (1998; 2005). Considerando a totalidade dos alunos participantes, podemos verificar que parte significativa dos alunos (41%) expressa concordância com a frase; 34% demonstra posição indiferente; 24% discorda da afirmação; apenas um estudante não respondeu. Considerando tanto os alunos iniciantes quanto os concluintes, o que se vê é certa dispersão do grupo total de alunos em torno das três possíveis posições, isto é, há um número significativo de alunos posicionando-se em cada uma das modalidades de resposta: posição discordante (21 alunos); posição indiferente (30); posição concordante (36). Um detalhe a salientar é que os alunos, em geral, tiveram forte dificuldade para analisar a frase, emitir seu posicionamento e justificá-lo em sequência. As evidências que mostram tal fato são encontradas quando quantificamos o número de alunos a tomar posição “indiferente” em relação à frase, adicionados ao número de alunos que não conseguiram apresentar justificativas para seu posicionamento e mais àqueles que expressaram afirmações do tipo: “não sei explicar” (I31) ou “não tenho conhecimento sobre o assunto” (I37). Examinando as justificativas fornecidas pelo grupo de alunos concluintes que apresentou posição concordante em relação à frase, encontramos o seguinte argumento: “A evolução é um processo contínuo e gradual de mudanças intermediado pela seleção natural. Esse processo leva à seleção de características vantajosas à sobrevivência no meio; (...) o surgimento dos olhos foi um advento dependente das mudanças no meio e da necessidade de adaptação e como todas as outras estruturas complexas, não foi obra do acaso” (C26). Nota-se na “fala” desse aluno, o entendimento da evolução por seleção natural resultando em características vantajosas presentes em indivíduos de determinada população que poderiam ser transmitidas para diferentes gerações, podendo chegar a sua fixação, uma vez que não ocorram mudanças drásticas no ambiente. Entretanto, sabemos que para que a seleção natural atue, faz-se necessário a existência de variações na população (MAYR, 2005). Segundo Futuyma (2002), a variação nas características dos organismos de uma população surge por meio de mutações aleatórias de sequências de DNA, ou seja, ao acaso, afetando aquelas características. Portanto, não podemos deixar de lado o papel do acaso na existência da complexidade dos olhos. Um estudante apresentou, em sua justificativa, argumentos baseados na “lei do uso e desuso”: “Nada surge simplesmente por acaso, tudo tem seu devido papel, como, por exemplo, os olhos, que evoluiu de uma estrutura não muito especializada e foi sendo especializada ao longo dos tempos em alguns 5818 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 grupos de animais pela necessidade de seu uso, por causa de seu modo de vida (ser predador ativo, por exemplo)” (C33). Outro aspecto interessante detectado nas justificativas dos alunos para essa 3ª frase foi a presença de expressões teleológicas, isto é, expressões que denotam a ideia de que o processo evolutivo é guiado ou orientado para atingir certas finalidades. Neste caso, há a confiança “numa tendência intrínseca da natureza para o progresso ou para uma meta final” (MAYR, 2005, p. 57). Outros trabalhos encontrados na literatura também mostram resultados similares, tanto nas concepções de alunos, como também nas sustentadas por professores (OLEQUES et al. 2011; VALENÇA; FALCÃO, 2012). Os excertos apresentados a seguir ilustram esse tipo de situação: i) “Do acaso não! Da necessidade do indivíduo para tal estrutura em relação a seu meio” (I27);. ii) “Nada surge ao acaso às coisas se desenvolvem devido à necessidade” (I36). Também encontramos argumentos de natureza criacionista para justificar posições concordantes com a frase, a exemplo dos citados a seguir: “Nada foi por acaso. Fomos criados de acordo com a mais perfeita engenharia de Deus” (I15); “apesar de todas as informações, eu acredito na teoria criacionista e não que o surgimento foi por acaso” (C3). De qualquer forma, os dados encontrados para essa questão parecem mostrar que os alunos têm uma noção pouco clara sobre o papel do acaso no processo evolutivo. No tocante à 4ª frase, para os darwinistas, a seleção natural, juntamente com outros fatores que interferem no processo evolutivo, pode sim explicar a complexidade de estruturas biológicas. Meyer e El-Hani (2005) mostram a existência de uma extensa “lista de exemplos de características que evoluíram por etapas intermediárias, incluindo os olhos de vertebrados” (p.121). Segundo os autores, por exemplo, um indivíduo que possui “um olho com estruturas faltando pode parecer, à primeira vista, de pouca utilidade” (p.121), mas, presume-se que ter um olho menos eficaz na formação de imagens é muito melhor que não ter olho algum. A maioria dos participantes da pesquisa (57,9%) discordou do conteúdo da frase. Dentre os demais estudantes, 20,4% demonstrou indiferença em relação à mesma e 20,4% concordância. Será que isso significa que a maior parte desses alunos concorda com a ideia de que a complexidade das estruturas biológicas pode ser explicada pelo processo evolutivo? Ao comparar os dois grupos de estudantes, notamos que, em geral, eles sustentam linhas de raciocínio semelhantes em relação à origem da complexidade das estruturas biológicas, isto é, a maior parcela dos alunos tende a aceitar que a seleção natural pode explicar essa complexidade. Assim, no grupo de estudantes que discordou da frase encontramos os seguintes tipos argumentos: 5819 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 “Seleção natural é o processo evolutivo, ligado às adaptações, onde são privilegiados os indivíduos mais aptos às condições de ambiente. Estruturas biológicas mais complexas podem ter sido selecionadas por (representarem) uma vantagem, como mais apta”. (C25) “A complexidade das estruturas biológicas pode sim ser explicada pela seleção natural. E como o exemplo dos olhos citado acima, esse mecanismo (seleção natural) é o responsável por selecionar características vantajosas e esse processo ao longo do tempo leva a complexidade das estruturas biológicas” (C26). “A seleção natural é um importante fator, pois muitas espécies sofreram seleção natural no decorrer do tempo, e ela pode ser utilizada para explicar a complexidade das estruturas” (I17). Já no grupo dos estudantes que se manifestaram em posição de concordância com a 4ª frase, ou seja, tomando posição contrária à Biologia Evolutiva, encontramos alunos argumentando que a seleção natural é um dos mecanismos responsáveis pela manutenção da complexidade das estruturas biológicas na população, mas que não explica o surgimento dessas estruturas, que ocorreria devido a mutações, como veremos no exemplo a seguir: “As diversas estruturas biológicas surgem por mutações sendo a seleção natural responsável por “selecionar” as que forem mais aptas às modificações ambientais. Sendo assim, as complexas estruturas atuais são resultado da seleção natural, porém não surgiram devido a ela” (C19). Dentre os alunos que se mostram indiferentes a esta afirmativa, muitos afirmaram não ter conhecimento suficiente para estabelecer argumentações sobre o assunto. Um dos alunos afirmou que a complexidade das estruturas biológicas não pode ser explicada pela seleção natural, justificando a sua resposta da seguinte forma: “Não pode ser explicada por nada, só temos teorias” (I38). Aqui volta a redução de teoria ao status de mera hipótese. I38 demonstra entender o processo de seleção natural como uma hipótese não comprovada, o que denota falta de conhecimento sobre o que é uma teoria no campo da ciência. Observamos também nas respostas para a 4ª frase que alguns dos estudantes demonstram acreditar que a seleção natural, por si só, não explica a complexidade das estruturas biológicas. É o caso deste aluno que justificou a sua posição da seguinte forma: “As estruturas biológicas são muito complexas para serem explicadas apenas pela seleção natural” (I53). O poder da seleção natural como explicação para as adaptações e sua utilidade como base para a investigação sobre transformações evolutivas já indica sua importância central para a Biologia (MEYER; EL-HANI, 2005, p. 50). Ao longo de muitos anos, estudos foram desenvolvidos para mostrar como a seleção natural de fato ocorre na natureza. Um exemplo citado pelos autores é o do uso indiscriminado de antibióticos pelo homem. O uso desnecessário do antibiótico pode trazer malefícios para a saúde pública, pois uma vez que utilizamos antibióticos, estamos selecionando bactérias que possuem características genéticas que lhes permitem resistência. Essas novas populações mais resistentes acabam substituindo a população de bactérias não resistentes. Com o passar do tempo à população bacteriana como um todo se torna resistente. Com isso, se o indivíduo vier a contrair uma infecção grave, terá maiores chances de estar carregando bactérias resistentes. Como podemos observar, o 5820 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 surgimento de populações bacterianas resistentes é um exemplo bastante convincente de que esse processo é movido pela seleção natural, em que os agentes seletivos são os antibióticos e onde as bactérias que possuem características vantajosas na presença do antibiótico são favorecidas por este processo (MEYER; EL-HANI, 2005, p. 53). Podemos observar ainda que alguns estudantes não compreendem o conceito de seleção natural, o que os leva a fazer ponderações errôneas em relação a essa ideia, como podemos observar nos exemplos a seguir: “Muitas estruturas biológicas podem ser explicadas pela seleção natural, pois é na seleção natural que os melhores são conservados e os piores são deixados para traz e junto com eles são abandonadas características não mais necessárias” (I42). “Pois conforme a seleção natural o mais forte sobrevive e, no entanto, não determina as estruturas adquiridas e sim a adaptação” (I6). “Tudo que acontece em se tratando de melhorar tem com certeza fundamentos na seleção natural” (C2). Do ponto de vista da teoria evolutiva não faz muito sentido dizer que a evolução gera seres vivos melhores, piores, mais fortes etc. Tudo isso é relativo. Quando um indivíduo apresenta adaptações a certas condições ambientais, não significa que este é o mais forte ou que seja o melhor, em relação aos demais indivíduos da população ou da comunidade. Meyer e El-Hani (2005) apontam que a seleção natural deriva das diferenças nas taxas de sobrevivência e reprodução entre organismos de uma mesma população, e que as características adaptativas, somente permitem que os indivíduos que as apresentam tenham mais sucesso, em relação aos outros indivíduos da população, na sobrevivência e reprodução em um determinado momento. Outro aspecto observado foi um modesto número de estudantes (18%) que não justificam sua posição ou utilizam ideias sem sentido, vagas ou lacônicas, como nos exemplos a seguir: “Nem tudo pode ser explicado cientificamente” (I48); “É muito relativo” (I29); “Depende das estruturas” (C31); “Não sei explicar” (I31). Frases com argumentos de natureza criacionista também foram encontradas nas respostas dos estudantes para a 4ª frase, o que pode ser observado no exemplo a seguir: “Existe um ser maior que está coordenando tudo” (C6). Por fim, na análise da 5ª frase esperávamos que a maioria dos estudantes apresentasse posição de discordância. Conforme apontam Meyer e El-Hani (2005) o argumento apresentado na frase é equivocado do ponto de vista científico, pois, se não houver discordância entre adeptos de teorias rivais não haveria avanço no conhecimento. Isto quer dizer que nenhum dos cientistas envolvidos em debates coloca em dúvida “a ideia central do pensamento evolutivo: a de que os seres vivos são todos aparentados, resultando de um processo de descendência com modificações” (MEYER; EL-HANI, 2005, p.123). 5821 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Os autores mostram que mesmo que haja discussões em relação às ideias evolutivas, isto não significa “que uma teoria está em crise ou que foi superada” (Idem, p.123). Os debates ocorrem quando novas ideias são apresentadas e se defrontam com ideias antigas, afim de que haja avanços no conhecimento científico. A maioria relativa (46,6%) dos alunos apresentou posição de discordância em relação à frase, 29,5% mostraram-se indiferentes, 19,3% concordaram e quatro estudantes não responderam. Na análise das respostas daqueles que discordaram da frase, encontramos os seguintes argumentos: “A teoria evolutiva permanece consistente e o darwinismo sofreu um acréscimo da genética para [que] a teoria tivesse uma consistência maior (neodarwinismo) sendo assim, acredito que não serão superadas” (C24). “A teoria evolutiva contribuiu e continua a contribuir para diversos campos do conhecimento, da saúde, etc. O que está em crise é o não entendimento correto do que realmente diz a teoria, bem como, as diversas correntes de pensamento pseudocientíficos que desconsideram o método científico, mas se espalham como tal” (C15). Como se nota acima, os trechos dos depoimentos dos estudantes mostram que eles se aproximam das ideias propostas pelos autores que estamos utilizando para amparar nossa discussão de dados. Esses alunos entendem que, em alguns momentos, no campo científico se fazem necessárias discussões acerca de determinados conhecimentos para que haja avanços nos mesmos. Aliás, uma das distinções que Mayr (2005; 1998) levanta sobre a Biologia como ciência é justamente sua característica de avançar pelo aprimoramento de conceitos. Analisando as respostas dos estudantes em geral (iniciantes e concluintes), que apresentaram posições tanto de discordância, concordância ou indiferença em relação à frase, observamos que muitos dos alunos não souberam argumentar se a teoria evolutiva e o darwinismo estariam em crise ou não, e se seriam superados. Notamos também que alguns alunos, assim como para a 4ª frase, apresentaram justificativas com argumentos vagos, lacônicos, sem sentido e ponderações equivocadas, como podemos ver nos seguintes exemplos: “Os argumentos utilizados são muito fracos” (C32); “Não sei informar sobre a teoria evolutiva se está em crise ou não, porque tenho um conhecimento superficial desse assunto” (I24); “A teoria evolutiva e o darwinismo em nada contribuíram para a humanidade. Ao contrário, trouxeram grandes prejuízos: A segunda guerra mundial é apenas um exemplo” (I12). Outros estudantes utilizaram o argumento de que na ciência nada é estável, e assim, justificaram a sua posição. Para exemplificar, um estudante fez a seguinte afirmação: “Para a ciência o conhecimento é algo que está em constante movimento. Sendo assim uma teoria vai ser dada como certa até [que] alguém prove o contrário” (I30). Outro estudante justificou a sua posição da seguinte forma: “A ciência acredita em algo hoje, mas se amanhã surgir um novo estudo que 5822 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 derrube, a ciência mudará de opinião. Sempre foi assim e sempre será. Então esta questão é relativa” (C30). De acordo com Meyer e El-Hani (2005) de fato a ciência não é algo que deve ser concebido como verdade absoluta, mas o que existe na comunidade científica são debates sobre a importância dos diferentes fatores e mecanismos na modificação evolutiva, “mas nenhum dos evolucionistas atuais questiona a ocorrência da evolução ou propõe que devamos deixar de lado a seleção natural” (Idem, p.123) e as outras teorias existentes. Assim, como na análise das demais frases, para a justificação da sua posição para a 5ª afirmativa, o estudante I15 também apresentou argumentos de natureza criacionista. Exemplo: “Foram várias as contribuições desses cientistas para a humanidade. Todavia, eles procuram explicações científicas para cada fato que existe no mundo. Nesse impasse acabam por gerar teorias e por falta de justificativa melhor acaba sendo aceitável. Porém a Criação explica tudo” (I15). Considerações Finais Essa pesquisa mostra que muitos estudantes apresentaram dificuldades em relação a diferentes aspectos conceituais da Biologia Evolutiva e também sobre aspectos relativos à natureza da Ciência. Os alunos apresentaram dificuldades referentes a confusões em torno da compreensão dos termos “teoria” e “hipótese”. Quando uma determinada teoria é aceita significa que está apoiada em evidências, diferentemente de uma mera hipótese, que é algo que ainda não foi comprovado. Portanto, no campo científico, para uma hipótese receber o status de teoria, este conhecimento deve estar embasado em evidências oriundas das diferentes áreas da Biologia. Muitos estudantes demonstraram não compreender o que é uma teoria no campo científico. Os conceitos de mutação e seleção natural são mal compreendidos pelos estudantes. A má compreensão desses conceitos ocorre devido ao fato deles sustentarem um pensamento do tipo teleológico, defendendo que tudo acontece em função de uma finalidade. Os alunos entendem mutação e a seleção natural como fenômenos que ocorrem de forma consciente, nos quais os indivíduos “percebem” a necessidade de se adaptar. Mas, sabemos que as mutações geram variação genética ao acaso na população, ou seja, “sem levar em conta suas possíveis consequências na sobrevivência e na reprodução” (FUTUYMA, 2002, p. 9). A seleção natural seleciona uma variação genética na população por apresentar vantagem sobre os demais, aumentando a frequência dessa variante na população. Compreendemos que ao ensinar os conceitos evolutivos os educadores em Biologia precisam deixar claro que a evolução não ocorre no sentido de melhoramento e que é “guiada” ao acaso sem finalidade ou pretensão. 5823 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Os estudantes ainda apresentaram dificuldades para expressar suas justificavas para o papel do acaso no processo evolutivo, demonstrando pouco ou nenhum conhecimento sobre o assunto, pois muitos justificaram as afirmativas com respostas vagas, lacônicas ou sem sentido; crenças religiosas também estiveram presentes em algumas respostas. Apesar das dificuldades encontradas, um ponto positivo é que boa parte dos alunos compreende que o conhecimento científico não pode e nem deve ser concebido como uma verdade absoluta, e que não é “possível se pensar numa ciência da Biologia sem a ideia da evolução” (MEYER; EL-HANI, 2005, p.119). A evolução é tomada como elemento indispensável para a compreensão apropriada da grande maioria dos conceitos e das teorias encontradas na Biologia. Como afirmou Santos (2002), a sala de aula é um cenário onde o professor necessariamente tem de agir como pesquisador. Porque sem a atitude investigativa em relação à atividade docente, nosso entendimento das “dificuldades dos estudantes”, bem como de nossas próprias intervenções, certamente tenderão a ser mera reprodução do que já é “senso-comum” (SANTOS, 2002, p. 125). Por isso, devemos ampliar o conhecimento dos professores de Biologia com o desenvolvimento de práticas pedagógicas voltadas para o tema, afim de que este seja abordado de forma clara para o entendimento dos estudantes. Referências FUTUYMA, D. J. Evolução, Ciência e Sociedade. São Paulo: SBG, 2002. KIMURA, M. The neutral theory of molecular evolution. Cambridge: CUP, 1983. MAYR, E. Biologia, ciência única. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. MAYR, E. O desenvolvimento do pensamento biológico. Brasília: Ed. UnB, 1998. MEYER, D.; EL-HANI, C. Evolução: o sentido da Biologia. São Paulo: Ed. Unesp, 2005. OLEQUES, L. C. et al. Evolução biológica: percepções de professores de Biologia. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, v. 10, n. 2, p. 243-263. RIDLEY, M. Evolução. Porto Alegre: ArtMed, 2006. SANTOS, S. Evolução biológica: ensino e aprendizagem no cotidiano de sala de aula. São Paulo: Annablume: Fapesp: Pró Reitoria de Pesquisa, 2002. TIDON, R.; LEWONTIN, R. C. Teaching Evolutionary Biology. Genetics and Molecular Biology, v. 27, n. 1, p. 124-131, 2004. VALENÇA, C. R.; FALCÃO, B. M. Teoria da evolução: representações de professores-pesquisadores de Biologia e suas relações com o ensino médio. Revista Eletrónica de Enseñanza de las Ciencias, v. 11, n. 2, 471-486, 2012. WARD, H. et al. Ensino de Ciências. Porto Alegre: ArtMed, 2010. ZIMMERMANN, N. Para além da seleção natural: algumas considerações sobre as contribuições de ‘Darwin como Geólogo’ para o ensino de Biologia. Terrae, v.9, n.1-2, p. 2-11, 2012. 5824 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia