A filosofia de Shinichi Suzuki aplicada ao canto coral para

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ARTIGO
A filosofia de Shinichi
Suzuki aplicada ao canto
coral para adolescentes em
cumprimento de medida
socioeducativa
The Shinichi Suzuki’s filosophy aplied to young offender’s choir
JOSÉ FORTUNATO FERNANDES
É doutorando em Música pelo Departamento de Música do Instituto de Artes da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com área de concentração em Fundamentos
Teóricos e linha de pesquisa em Educação Musical. É Mestre em Artes pelo Departamento
de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), com área
de concentração em Musicologia e linha de pesquisa em Musicologia Histórica, e Bacharel
em Música pelo Instituto Villa-Lobos do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), com habilitação em Piano. É Professor Assistente no
Curso de Licenciatura em Música do Departamento de Artes do Instituto de Linguagens da
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). e-mail: [email protected]
RESUMO
Este artigo surgiu a partir da reflexão sobre a eficácia do canto coral oferecido aos
adolescentes da extinta Febem, atual Fundação Casa, como meio de resgatar sua autoestima
e, consequentemente, tirá-los de uma situação de risco. Após utilizar, por cinco anos, as
metodologias próprias para aulas de canto coral dentro da extinta Febem, resolvi estudar a
filosofia de Shinichi Suzuki, idealizador de um dos chamados “métodos ativos”, com o objetivo
de ser aplicada ao canto coral para adolescentes em medida socioeducativa, por conter em si
a idéia de transformação do caráter. A metodologia utilizada para a preparação desse texto
foi a pesquisa bibliográfica. Almejamos que as idéias nele contidas sejam aplicadas em sala
de aula para posteriores conclusões.
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REVISTA ESPAÇO INTERMEDIÁRIO, São Paulo, v.II, n.I, p. 38-53, junho, 2011.
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ABSTRACT
This theme appear since the reflection about the choir’s efficiency offered to young offender
of extint Febem, current Fundação Casa, as way to rescue their self-worth and consequently
to take them of marginality. After to use the methodologies to choir for five years with young
offender’s choir in the extint Febem, I resolve to study the Shinichi Suzuki’s filosophy, realizer
of one called “actives methods”, with the aim to be applied to young offender’s choir because
this filosophy contain the idea of the character transformation. The methodology used to
prepare this text was the bibliography research and we want that that ideas be applied in the
classroom to posterior conclusion.
PALAVRAS-CHAVE
KEYWORDS
Shinichi Suzuki. Canto Coral. Adolescentes
Shinichi Suzuki. Choir. Young offender.
em Cumprimento de Medida
Socioeducativa.
1 INTRODUÇÃO
A filosofia de Shinichi Suzuki, idealizador de um dos chamados “métodos ativos”, contém
em si a idéia de transformação do caráter. A metodologia utilizada para a preparação desse
texto foi a pesquisa bibliográfica sobre escritos, na sua maioria, do próprio Suzuki. Almejamos
que as idéias nele contidas possam ser aplicadas em sala de aula, incluindo o canto coral, a
exemplo do que acontece com os adolescentes na Fundação Casa, instituição correcional que
atende adolescentes em conflito com a lei.
Shinichi Suzuki nasceu em 18 de outubro de 1898 em Nagoya, Japão. Durante sua infância
trabalhou na fábrica de violinos de seu pai, mas somente aos dezessete anos iniciou o estudo
desse instrumento. Ao terminar seus estudos em Tóquio, foi para Berlim, onde por oito anos
foi aluno de Karl Klinger.
Em 1928, voltou ao Japão e fundou o Suzuki-Quarteto, com três de seus irmãos e a
Orquestra de Cordas de Tóquio. Dando concertos e lecionando em universidades em Tóquio,
assim descobriu a grande capacidade de aprendizagem das crianças.
Em 1945, ao término da Segunda Guerra Mundial, Suzuki foi convidado a ensinar em uma
escola em Matsumoto. Somente aceitou a oferta com a condição de que lhe permitissem
aplicar seu novo processo de educação musical para crianças. Após um ano percebeu o grande
sucesso no resultado da aplicação de suas idéias, o que o levou a fundar, em 1950, o Instituto
de Educação do Talento, que se tornou conhecido mundialmente. Ao formular sua proposta
JOSÉ FORTUNATO FERNANDES, A filosofia de Shinichi Suzuki aplicada ao canto coral para adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa
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pedagógica, Suzuki vivia num ambiente de sofrimento humano marcado pelo pós-guerra,
onde crianças e jovens, testemunhas e vítimas da Segunda Guerra Mundial, encontraram
meios para superar a destruição à sua volta.
Em 1958, suas idéias foram introduzidas nos Estados Unidos por meio de um filme que
mostrava a atuação dos alunos de Suzuki. Em 1964, Suzuki foi convidado pela Associação
Americana dos Pedagogos de Instrumentos de Corda para dar alguns concertos com seus
alunos nos Estados Unidos.
A idéia de ensinar paz e compreensão por meio da música foi levada por Suzuki até sua
morte, em 26 de janeiro de 1998 em Matsumoto (WOOD, [s.d.], meio eletrônico). É essa idéia
que almejamos para as classes de canto coral nas instituições correcionais para adolescentes
em cumprimento de medida socioeducativa, ou seja, adolescentes que estejam cumprindo
pena devido a atos infracionais. Acreditamos que a prática do canto coral, unida às idéias de
Suzuki, pode transformar o caráter desses adolescentes, trazendo resultados surpreendentes e
tornando nossa sociedade melhor.
2 SHINICHI SUZUKI
A concepção de educação musical de Suzuki está apoiada sobre algumas bases:
1. o talento não é inato;
2. para desenvolvê-lo, é necessário ambiente favorável;
3. também são necessários bons modelos musicais.
4. o sistema de educação idealizado por Susuki tem como base o método de ensino da
língua materna;
5. prevê também a participação dos pais;
6. é estruturado em aulas coletivas;
7. possui repertório com níveis de dificuldade graduada;
8. é baseado na repetição;
9. é baseado na autodisciplina (SUZUKI, 1998, p. 37-43).
Na opinião de Suzuki, cada criança nasce com uma série de potencialidades em
todos os campos da aprendizagem, que podem ser desenvolvidas. Para que haja êxito no
desenvolvimento musical são necessários um ambiente favorável, proporcionado pelos
pais por meio da audição de bons modelos musicais desde o seu nascimento, e um sistema
de educação com base no método de ensino da língua materna (como no pensamento de
Dalcroze, Kodály, Willems e Orff ), que permite que crianças muito pequenas aprendam música
- ou seja, assim como a criança aprende a falar antes de ler e escrever, ela deve aprender a se
expressar musicalmente antes da leitura e escrita musical.
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É fundamental que os pais estejam presentes nas aulas para que orientem os estudos em
casa. A participação em aulas coletivas – também conforme o pensamento de Dalcroze, Kodály,
Willems e Orff – além das individuais, é muito importante para que não percam a motivação.
O repertório desenvolvido é o mesmo para todos os estudantes, pois é resultado de uma
pesquisa realizada por Suzuki para que seja introduzido por graus de dificuldade técnica –
que serão dominados por meio da repetição até que, com autodisciplina, se chegue ao
automatismo.
Porém, diferentemente dos processos de educação musical desenvolvidos por Dalcroze,
Kodály, Willems e Orff, Suzuki não trabalha com especificidade o ritmo, o solfejo, a improvisação,
o movimento corporal, a voz falada e muito menos a cantada. O processo de educação musical
de Suzuki traz conceitos muito simples de serem entendidos e desenvolvidos: fé, autodisciplina,
repetição, paciência, perseverança e principalmente amor.
A educação musical traz muitos benefícios além dos musicais. Suzuki traçou bem o
objetivo de seu processo de educação musical quando propôs não apenas produzir músicos
profissionais, mas desenvolver habilidades a serem aproveitadas em qualquer profissão.
Os benefícios da música para cada indivíduo que se envolve com ela são vários, tais como
o desenvolvimento da sensibilidade, da disciplina e da perseverança. Suzuki diz que, dessa
forma, se conquista um bom coração e que “[...] se as nações trabalharem juntas na educação
de boas crianças, talvez nunca mais tenhamos guerra” (1983, p. 93).
Se a música tem a capacidade de melhorar a individualidade das pessoas, logo teremos
uma sociedade melhor. Suzuki acreditava que a educação pode mudar uma sociedade, na
medida em que as pessoas se tornem felizes pelas habilidades extraordinárias que possuem,
conseguidas através de muita dedicação:
Desejo, se for possível, uma modificação da maneira de educar, para não mais apenas dar
instrução, mas educação no verdadeiro sentido da palavra, uma educação que, baseada no fato de
a criança estar em crescimento, estimule, desenvolva e cristalize as capacidades humanas. Por esse
motivo, dedico todas as minhas forças à Educação do Talento. O que virá de uma criança depende
de sua educação. Meu mais profundo desejo é que todas as crianças deste mundo possam ser boas
criaturas humanas, pessoas felizes, com habilidades extraordinárias, e é para conseguir isso que
dou toda minha força de ação. Isso porque estou plenamente seguro de que todas as crianças
nascem com esse potencial (SUZUKI, 1983, p. 78-79).
Se a educação musical se espalhasse pelos quatro cantos da terra, se ela crescesse assim
como cresce uma bola de neve, a felicidade conseguida através de uma boa autoestima estaria
presente em todos aqueles que tivessem contato com a música através de uma educação
pautada no amor ao ser humano. Suzuki demonstra claramente que quis utilizar a música
como meio de melhorar a humanidade:
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Está em meu poder educar todas as crianças do mundo, de maneira a fazê-las
um pouco mais felizes e melhores. Nessa direção devo agir. Não busco mais
do que amor e felicidade para a humanidade. Creio que é aquilo que todos
buscamos afinal. Amor é gerado por amor. Nossa vida só vale a pena se nos
amamos e consolamos. Procurei na música o significado da arte e a música me
deu trabalho e foi meu alvo de vida (SUZUKI, 1983, p. 75-76).
Assim, percebemos que o significado da música vai muito mais além do que símbolos e
sons - que o envolvimento com ela leva a uma transformação do ser humano que chega à
modificação do caráter: “Dão às crianças uma educação musical que lhes ensina que a música
não é só uma arte sonante própria para dançar e dar prazer, mas que significa algo maior na
vida, algo que, talvez, possa trazer a salvação para a humanidade” (SUZUKI, 1983, p. 91).
A música deve tornar-se um meio para que, além das transformações do caráter,
ocorram as transformações fisiológicas através da influência de bons exemplos para o
desenvolvimento de boas habilidades, pois “se [o aluno] tem um bom professor vai, através
de transformações fisiológicas, aprender a produzir sons tão belos como os de seu professor”
(SUZUKI, 1983, p. 16).
O desenvolvimento musical através da imitação de bons exemplos requer um treinamento do
ouvido, independente do talento musical - pois, segundo Suzuki, o talento não é hereditário, mas
pode ser desenvolvido: “O homem nasce sem talento... As pessoas são o que são como resultado
do seu ambiente próprio e específico. [...] a força da vida se adapta de acordo com o ambiente
[...]” (1983, p. 17). Cabe ao educador meditar em como proporcionar um ambiente propício ao
desenvolvimento da mente, sensibilidade, sabedoria e conduta dos alunos através da música,
pois eles vivem, veem e sentem para desenvolver suas habilidades e sobreviver ao meio.
Suzuki diz que a criança aprende imitando um adulto com o qual tenha uma relação afetiva
e que “o destino das crianças está nas mãos de seus pais” (1983, p. 18). Porém, na falta destes, o
educador tem um papel fundamental, pois com o conhecimento das suas necessidades básicas
proporcionará um ambiente que influencie na formação de habilidades: a aptidão cultural e
musical surgirá da rápida adaptação ao ambiente com condições favoráveis. Dessa forma, o
desenvolvimento do potencial está diretamente vinculado ao ambiente, pois sabemos que
“boas condições ambientais e uma fina educação certamente darão às crianças um bemestar genuíno e felicidade e, ainda, encerram promessas de luz e esperança para o futuro da
humanidade” (SUZUKI, 1983, p. 20).
O desenvolvimento da personalidade dos alunos será enriquecido através da convivência
com pessoas extraordinárias, pois poderão observar e absorver suas qualidades:
[...] é melhor e maior bênção na terra poder entrar em contato com pessoas dotadas de alta
humanidade que, através de sua grandeza e beleza, determinarão seu valor como pessoa.
Entretanto, para perceber e assimilar essas qualidades, precisa-se a [sic; da] humildade e o [sic; do]
poder de julgar que só vêm através da sinceridade, do amor e do conhecimento. [...] à parte de
quão especial a outra pessoa possa ser, depende de nós apenas ter a capacidade de absorver sua
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grandeza. Temos de nos educar a partir de dentro, para poder aproveitar a grandeza dos outros.
Somente se pudermos fazer isso, poderemos sentir, por inteiro, o prazer de estar perto de alguém
realmente grande. Nunca perca a sua humildade, porque o orgulho obscurece o poder de perceber
a verdade e a grandeza (SUZUKI, 1983, p. 36).
Um processo de educação musical adequado permite que os alunos alcancem altas
capacidades – e Suzuki propõe o processo de aprendizagem da língua materna para ser
utilizado no desenvolvimento de talentos, primeiro da música e, consequentemente, de outras
habilidades (INTRODUCCIÓN, 1999, p. 7). A utilização desse processo seria o primeiro princípio
e o segundo seria a presença de educadores com perícia e compreensão. Suzuki afirma que
“todas as crianças que são educadas com perícia e compreensão atingem um alto grau de
conhecimento [...]. [...] todas as crianças podem ser educadas e [...] aquelas mais atrasadas na
aprendizagem não devem ser abandonadas” (1983, p. 12, grifo do autor).
Ele acredita que, com a utilização do princípio da língua materna com base no amor, a
Educação do Talento revolucionaria a educação de uma forma geral:
[...] o princípio da Educação do Talento, baseado na maneira por que se aprende a língua materna,
vai, certamente, mudar o curso da educação. Ninguém ficará para trás; baseado em amor, ele
desenvolverá verdade, alegria e beleza como parte do caráter da criança. Se nada mais conseguir,
pelo menos ensinará às crianças [...] a terem calor humano e prazer em fazer as coisas boas para os
outros. Pode-se educar pessoas assim (SUZUKI, 1983, p. 56).
A Educação do Talento baseada no amor exige preparação, tempo e ambiente para, juntos,
formarem a motivação do aluno.
Suzuki baseia a aquisição de habilidades musicais na premissa de que o talento não é inato
e de que qualquer criança pode adquiri-las desde que seja orientada corretamente através de
experiências musicais e da repetição consciente. Se unirmos a devoção à arte – como impulso
– ao esforço correto – como processo de educação –, conseguiremos o desenvolvimento de
talentos: “Toda criança pode ser educada, é apenas uma questão de método de educação.
Qualquer um pode treinar a si mesmo, é só uma questão de usar o tipo certo de esforço”
(SUZUKI, 1983, p. 39).
A repetição correta torna-se o meio para se conseguir que as habilidades se desenvolvam:
“Treinamento fraco origina habilidade fraca. As pessoas deveriam fazer todo o esforço,
mesmo nas dificuldades, para acumular e construir uma habilidade superior. [...] Se alguém
aprende algo, deve conseguir maestria repetindo-o muitas vezes” (SUZUKI, 1983, p. 39). O
sucesso virá através da força de vontade de cada um e da ajuda de pessoas que se tornem
bons exemplos:
O homem é governado pela força da vida. A alma viva, com seu desejo de sobrevivência, demonstra
grande poder de adaptação ao seu ambiente. A força da vida humana, vendo e sentindo o meio
ambiente, forma e desenvolve novas faculdades. Essas faculdades continuam em desenvolvimento,
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sobrepujando dificuldades, e se transformam em relevantes habilidades. Essa é a relação entre o ser
humano e a habilidade. O desenvolvimento de uma habilidade não pode ser conseguido por mero
pensar e teorizar, mas tem de ser acompanhado por ações e práticas [...]. Só na ação, a potência da
força vital pode se desenvolver inteiramente. A habilidade se desdobra com a prática. Uma pessoa
inativa não desenvolve habilidades (SUZUKI, 1983, p. 26).
Além de encontrarmos problemas de ordem musical entre os alunos, temos também
aqueles de ordem emocional, tais como a baixa autoestima, que se manifesta através do
complexo de inferioridade. Esse tipo de sentimento pode ser solucionado com técnicas corretas
de estudo, mostrando que o aluno pode conseguir sucesso na execução: o desenvolvimento
musical virá com o tempo e a prática necessários.
Suzuki descreve em seu livro os primeiros exercícios para aquisição de habilidades no
violino:
1. ouve-se diariamente a gravação da peça em casa;
2. depois se inicia o ensino da peça em sala de aula;
3. aprende-se o dedilhado;
4. após aprender o dedilhado, procura-se tocar com beleza.
“Devagar seu tom melhora, os movimentos tornam-se livres e delicados e elas [sic; ela] própria
torna-se musical. Assim se desenvolve um talento” (SUZUKI, 1983, p. 88).
Segundo Suzuki, o treinamento, esforço e prática por dez anos cultivarão um talento
superior:
Pontos fracos ou dificuldades em crianças são geralmente considerados como “caráter” ou
“natureza” e fica-se nisso apenas. Mas, através do treinamento, em um programa de 10 anos, podese encontrar o contrário, os pontos de excelência. Se realmente fizer esforço honesto, qualquer
pessoa – creio – poderá cultivar um talento em 10 anos. Mesmo em um ano, podemos transformar
falhas em boas qualidades, se nos propusermos objetivos elevados. Após 10 anos, se pode conseguir
resultados extraordinários. Assim, com prática, uma grande criatividade pode encontrar expressão
na vida de uma pessoa (1983, p. 42).
Autodisciplina torna-se a palavra chave para o sucesso musical, mas a prática repetitiva
deve estar unida à apreciação constante de boas interpretações, pois assim surgirá uma boa
técnica unida à boa musicalidade. O caminho para o sucesso é a firmeza em cada propósito
com energia, paciência e perseverança, e isso somente dependerá da força da vontade.
Quando a habilidade se instala no consciente e o talento se apresenta, é necessário que ele
seja educado até que se torne forte e indissolúvel. Vagarosa e incansavelmente, com intuição e
dedicação, alcança-se objetivos: “Dar-se inteiro com paciência incansável e forte perseverança;
o que chamamos Kan – intuição ou sexto sentido – é inteiramente necessário em educação”
(SUZUKI, 1983, p. 46, grifo do autor).
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Os exercícios repetitivos ganham força sem notarmos, à medida que vão se estabelecendo
no consciente, mas essa força somente virá se houver dedicação total, pois a prática
desenvolverá a intuição. “Quem não pratica o suficiente, não pode adquirir habilidades
especiais. Só o esforço que realmente assumimos traz resultados; atalhos não existem”
(SUZUKI, 1983, p. 87).
Em decorrência da repetição consciente, é inevitável que a memorização de conceitos ou
mesmo de uma peça musical aconteça. Suzuki considera a memória como o talento básico
mais importante a ser desenvolvido, pois será essa capacidade que produzirá as diversas
experiências. Ele a encara como um talento que precisa ser desenvolvido através de atividades
específicas, tais como a memorização de versos. Suzuki constatou que o desenvolvimento
da memória aumenta a capacidade de retenção, diminui o tempo de aprendizado e leva à
aquisição de uma segunda natureza através do automatismo. Ele utiliza várias brincadeiras
para testar o grau de controle na execução e as capacidades intuitivas que dependem de
uma prática consistente e uma boa memorização: “Quando elas podem responder sem parar
de tocar perfeitamente, então sei que essa capacidade está bem firmada, já se tornou uma
segunda natureza” (SUZUKI, 1983, p. 88).
As aulas coletivas de instrumento no processo de educação musical de Suzuki foram uma
inovação. Ele diz que tais aulas estimulam o aprendizado, pois o fato de as crianças estarem
em classes com alunos mais adiantados faz com que recebam uma influência positiva que
estimula o seu desenvolvimento através da imitação.
As aulas coletivas também facilitam a aplicação do lúdico na educação. Suzuki diz que “todo
tipo de educação deveria começar dando às crianças um prazer de brinquedo e o gosto de
brincar vai levá-la pelo caminho correto a seu tempo. [...] Primeiro, é preciso educar o espírito e,
depois, desenvolver habilidades” (1983, p. 86). Esta orientação de profunda sabedoria faz com
que o educador musical necessite ter um leque muito grande de estratégias lúdicas de cunho
prático para o ensino dos conteúdos, pois, do contrário, a aula pode se tornar desinteressante
para os alunos.
Enfim, o processo de educação musical de Suzuki traz conceitos muito simples de
serem entendidos e desenvolvidos: fé, autodisciplina, repetição, paciência, perseverança e
principalmente amor.
3 APLICAÇÃO DA FILOSOFIA DE SHINICHI SUZUKI AOS ADOLESCENTES EM CUMPRIMENTO DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
Depois de estudar sobre o processo de educação musical de Suzuki, passo agora a fazer um
relato pessoal de minha experiência como professor na Fundação Casa.
Durante cinco anos estive ligado à atividade de canto coral dentro da Fundação.
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Ingressei para ser pianista acompanhador das classes de canto coral das unidades
(masculinas) na Febem instalada no antigo quadrilátero no bairro Tatuapé, na cidade de São
Paulo. Até julho de 1999, tive a oportunidade de acompanhar o trabalho de três regentes
com perfis diferentes. Em agosto de 1999 tornei-me o regente dessas classes, mas o grande
número de rebeliões fez com que o trabalho regredisse. Deixei-as em dezembro do mesmo
ano para dedicar-me ao Mestrado. Em junho de 2004, retornei ao Projeto Guri como regente
da classe de canto coral na Febem do Tatuapé. Porém, como não houve adesão dos meninos,
em setembro fui transferido para a Unidade de Internação Provisória (feminina) instalada no
bairro da Moóca, em São Paulo. Lá atuei até fevereiro de 2006, deixando a UIP para assumir
as classes de canto coral do Projeto Guri (Polo aberto, ou seja, fora da Febem) na cidade de
Jundiaí. Na época, ainda não tinha conhecimento da filosofia de educação musical de Suzuki.
Em 2008, iniciei uma pesquisa em educação musical ligada ao curso de doutorado na qual
pude ter contato com a filosofia de Suzuki - que, embora tenha sido concebida para aplicação
em crianças, é perfeitamente aplicável a adolescentes e adultos, tendo-se apenas que cuidar
da adequação das estratégias para cada faixa etária.
No segundo semestre de 2010, pude trabalhar como voluntário na Fundação Casa em
Jundiaí, onde desenvolvi minha pesquisa de campo utilizando a metodologia de aulas
de canto coral oferecidas aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa,
abordando aspectos técnicos – como postura, respiração, apoio, emissão, ressonância e dicção
– e também um repertório variado que permitisse a expressividade e a formação de valores.
Uma primeira impressão que se tem ao adentrar a Fundação é o ambiente de hostilidade,
clima que evitei durante o desenvolvimento das aulas, procurando manter um clima de
respeito e confiança no ser humano.
Ao tomar conhecimento da filosofia de educação musical de Suzuki, o que mais me fascinou
foi o tratamento humano dispensado ao aluno, tão necessário aos adolescentes da Fundação.
Os aspectos técnicos de seu processo educativo, por sua vez, são adequados ao ensino do
canto coral apenas em parte. Se analisarmos as bases em que está apoiada sua concepção de
educação musical, especialmente aplicadas aos adolescentes da Fundação, perceberemos que
algumas delas já fazem parte de qualquer prática de canto coral, enquanto outras deverão ser
adaptadas:
1. o talento não é inato: ao admitir que essa afirmação é verdadeira, o educador de canto
coral passará a valorizar o potencial vocal e musical de todos os adolescentes;
2. ambiente favorável: sabendo que muito provavelmente os adolescentes vieram de um
ambiente familiar hostil, e que essa hostilidade, por diversos fatores, acaba se prolongando na Fundação, o educador deverá adaptar essa base fazendo o possível para manter um “ambiente favorável” em sala de aula;
3. bons modelos musicais: os modelos musicais adotados pelos adolescentes da Fundação
são os mais diversificados possíveis, passando por uma infinidade de gêneros musicais
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ligados à cultura popular. É função do educador apresentar os diversos modelos musicais de qualidade;
4. sistema de educação eficiente, idealizado por Suzuki com base no método de ensino da
língua materna: essa base é uma constante em qualquer prática de canto coral, pois a
grande maioria canta por imitação, sem se utilizar da leitura musical;
5. participação dos pais: essa base torna-se impossível de ser aplicada aos adolescentes
da Fundação, haja visto sua condição de reclusos e seu contato limitado com pessoas
externas;
6. aulas coletivas: essa base é essencial para a prática do canto coral em qualquer situação;
7. repertório com níveis de dificuldade graduada: essa é uma base nem sempre fácil de
ser aplicada, já que o repertório deve ser escolhido a partir da bagagem do aluno e nem
sempre o gosto musical dos adolescentes é de fácil execução;
8. repetição: a repetição em canto coral torna-se extremamente desgastante se não for
objetiva, sendo sempre necessário explicar aos adolescentes o porquê de sua aplicação;
9. autodisciplina: essa base é fundamental para qualquer prática musical. Por ser uma arte
temporal, o “relaxamento” corporal fica muito evidente em seus aspectos técnicos (postura, respiração, apoio, dicção, etc.), sendo necessário a uma boa execução vocal.
Porém, todas essas bases da concepção de educação musical de Suzuki podem se
tornar ineficientes caso não seja aplicado seu segundo princípio: a utilização de educadores
com perícia e compreensão (lembrando que o primeiro princípio propõe o processo de
aprendizagem da língua materna). Uma boa formação musical, técnica e pedagógica fará com
que o educador desenvolva processos educativos que levem a resultados positivos.
Podemos ainda fazer uma aplicação junto ao canto coral, para os adolescentes da Fundação,
dos primeiros exercícios para aquisição de habilidades no violino que Suzuki descreve em seu
livro:
1. ouve-se diariamente a gravação da peça em casa: essa prática é impossível na Fundação,
embora algumas Unidades Educacionais (locais de reclusão dos adolescentes) permitam a audição de gravações nos dormitórios. Nas Unidades nas quais essa prática não
é permitida, o educador pode solicitar a audição coletiva em ambiente escolhido pelos
agentes educacionais;
2. após a audição, tem início o ensino da peça em sala de aula: perfeitamente possível de
ser aplicado ao ensino do canto coral aos adolescentes da Fundação;
3. aprende-se o dedilhado: nesse caso podemos fazer uma analogia com a técnica vocal,
imprescindível para a prática do canto coral;
4. após aprender o dedilhado, procura-se tocar com beleza: podemos estabelecer um
paralelo dizendo que, após aprender a técnica vocal, procura-se cantar com beleza.
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Nessa situação de tanta proximidade com os adolescentes da Fundação Casa, não pude
deixar de imaginá-los sendo musicalizados pela Educação do Talento descrita no livro Educação
é amor, com vistas a serem pessoas melhores para si mesmas e para a nossa sociedade. Muito
do que Suzuki escreveu relaciona-se com a realidade daqueles adolescentes, a começar pela
capacidade de adaptação ao seu meio ambiente:
Todo ser nasce com tendências naturais. Para viver, uma criança recém-nascida se adapta ao
ambiente que a cerca e adquire assim diversas qualidades. [...] Muitas crianças nascem num
ambiente que as segura ou até danifica [sic; as seguram ou até as danificam], e em geral se acredita
que já nasceram assim danificadas. E elas mesmas, naturalmente, também acreditam nisso. Mas
isso é um erro (SUZUKI, 1983, p. 9).
Por saber que a grande maioria dos problemas dos adolescentes da Fundação têm
origem na desestrutura familiar - e que precisam desenvolver laços de afetividade para
que haja transformação de caráter, procurei ensinar com atividades lúdicas e humanidade
- desde o ensino da postura correta para cantar, passando pelo ensino da forma correta de
respirar e apoiar-se, emitir o som com musculatura relaxada e riqueza de harmônicos, até o
aperfeiçoamento da dicção.
A realidade dos adolescentes da Fundação precisa ser modificada. Não questiono aqui de
quem seria a responsabilidade de realizar tal mudança, mas cabe a cada um de nós fazer a sua
parte para vivermos em uma sociedade melhor.
Suzuki coloca a responsabilidade no Estado pela falta de condições econômicas que muitos
enfrentam em proporcionar educação musical a seus filhos, como também pela permissão
de que métodos de ensino ineficientes sejam ministrados nas escolas: “Para muitos bebês
que poderiam ter sido educados, faltaram os meios econômicos, mas, também, muitíssimos
insucessos são devidos a métodos falhos de ensino. Evitar isso deveria ser um dos encargos do
Estado” (1983, p. 94).
Em um trecho no qual Suzuki compara pessoas a plantas, imaginei a Fundação Casa como
um jardim que precisa de cuidados especiais:
As pessoas de hoje são como jardineiros que olham com tristeza e balançam a cabeça para sua
muda que não cresceu e dizem que a semente deveria ter sido má. Não consideram que a semente
vingou, mas que a maneira de cuidar é que estava errada. Ficam firmes na maneira errada e deixam
que, planta após planta, feneçam (SUZUKI, 1983, p. 95).
Não é fácil trabalhar como educador junto a adolescentes com esse perfil, mas Suzuki
desafia para a transformação do ser humano, para a aquisição de talentos e habilidades através
do trabalho com paciência e perseverança: “Nós todos nascemos com grandes possibilidades
e potencialidades e, se trabalharmos duro sobre nós mesmos, podemos tornar-nos pessoas
especiais com novos talentos e habilidades” (1983, p. 95).
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É preciso lembrar que a realidade dos adolescentes na Fundação Casa é bastante
diferenciada. Em minha experiência encontrei alunos analfabetos ou semialfabetizados, com
déficit de atenção, depressivos ou hiperativos. A preparação do material a ser utilizado deve
ser feita tendo em vista os diferentes perfis de alunos que podem ser encontrados. Para isso, a
utilização de vídeo, áudio e outros tipos de materiais atrativos é de fundamental importância.
“Pessoas comumente valorizam raridades mais do que o desejável, e isso se aplica a humanos
[...]” (SUZUKI, 1996, p. 9, tradução minha). Não é preciso ter alunos geniais para se fazer boa
música. Pessoas comuns podem produzir boa música, e mesmo aquelas que não aparentam
nenhum talento. É preciso investir em pessoas, quaisquer que sejam seus perfis.
Nunca será demais retomar que, segundo Suzuki, o talento não é hereditário, mas pode
ser desenvolvido! A possibilidade de que os adolescentes em cumprimento de medida
socioeducativa tenham uma gama de talentos a serem descobertos e desenvolvidos é muito
grande, mas infelizmente eles carecem de boa orientação e seus talentos acabam sendo
direcionados para o crime, devido à necessidade de suprir uma infinidade de carências. Esse
fato é uma prova de que “para sobreviver, o homem, instintivamente, adapta-se ao meio. Uma
tremenda e sublime força vital trabalha para absorver os componentes de nosso ambiente”
(SUZUKI, 1983, p. 18).
Ao oferecer a oportunidade do canto para os adolescentes da Fundação, descobri belas
vozes e compositores criativos. Também descobri, naqueles que não eram muito afinados,
excelentes percussionistas.
Suzuki diz que a aptidão cultural e musical surgirá da rápida adaptação ao ambiente com
condições favoráveis. Aqueles adolescentes trazem consigo mesmos uma formação cultural
que é resultado da adaptação ao meio onde viveram: “Não há efeito sem causa. Educação e
criação erradas produzem personalidades feias, ao passo que uma boa criação e educação
originam talentos superiores, nobreza e pureza da mente” (SUZUKI, 1983, p. 20). Suzuki não
descreve as boas condições ambientais, por isso é importante que o educador medite e
estabeleça um ideal de ambiente que se reflita no comportamento, nos pensamentos e nos
sentimentos, almejando que a educação desenvolva nos alunos uma alma nobre, um alto
senso de valores e habilidades esplêndidas.
Ao tentar desenvolver um repertório que, a meu ver, despertaria a reflexão sobre
determinados valores e fosse mais próximo da cultura do adolescente da Fundação, inicialmente
trabalhei um rap que falava sobre ecologia, e que não foi bem aceito. Tentei trabalhar também
com ritmos de baião, ciranda, rock, e igualmente não obtive grande sucesso. Depois de algum
tempo, descobri que a necessidade de expressão musical deles estava vinculada a outros
valores, à vida espiritual. Começaram a pedir que levasse música religiosa evangélica. E foi o
repertório que sentiram maior prazer em cantar.
JOSÉ FORTUNATO FERNANDES, A filosofia de Shinichi Suzuki aplicada ao canto coral para adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa
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O desenvolvimento da personalidade dos alunos, diz Suzuki, será enriquecido através da
convivência com pessoas extraordinárias, pois poderão observar e absorver suas qualidades.
Isso me faz pensar que o educador musical de um grupo de adolescentes que se enquadra
em situação de risco deve ser uma pessoa extraordinária, tanto em conhecimentos quanto
em sentimentos, para que possa se doar e estar aberto para descobrir tesouros escondidos no
interior dos seus alunos. Ele deve ter prazer em ensinar e em realizar seu trabalho.
Pelo fato do aprendizado ser vagaroso, é preciso muito tempo para se chegar a um nível
avançado, o que se consegue com paciência e repetição. No entanto, a proposta de educação
musical para adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa não almeja a formação
de virtuoses, mesmo porque o tempo de permanência de cada um na instituição correcional
não permitiria o desenvolvimento de um trabalho mais aprofundado - mas o despertar do gosto
pela música e pelas habilidades musicais que poderão ser aperfeiçoadas posteriormente, fora
da instituição. Segundo Suzuki, o treinamento, esforço e prática durante dez anos cultivarão
um talento superior.
Tenho consciência de que não consegui com os adolescentes da Fundação um nível
musical satisfatório, com boa técnica de execução e expressividade, mas tenho certeza de que
consegui despertar neles o prazer de fazer música cantando. No ambiente hostil da Fundação,
momentos de prazer são raros.
Se houver real interesse em se profissionalizar, serão necessários anos de sério estudo,
com concentração e dedicação. O aperfeiçoamento dependerá da ação de cada um: é preciso
treinar até que a habilidade se estabeleça no consciente. O importante é que o educador tenha
conhecimento das capacidades que podem ser desenvolvidas em seus alunos.
A personalidade de cada pessoa, isto é, suas capacidades, sua maneira de pensar e sentir, é polida e
lapidada pelas circunstâncias e pelo ambiente. Desabrocha aos olhos de todos e [sic; o] seu caráter
interior, e, por inteiro, se faz visível. Sua história pessoal modifica-se diariamente, de acordo com os
estágios de sua vida. Assim é [a] ação sensível da vida (SUZUKI, 1983, p. 15).
Segundo Suzuki, a repetição correta torna-se o meio para se conseguir que as habilidades
se desenvolvam. Aqui temos que nos lembrar de que o processo de educação musical
desenvolvido por Suzuki foi direcionado para o estudo do violino e, posteriormente, de outros
instrumentos (estando o canto excluído desse grupo), e que quando recomenda a repetição
está se referindo aos trechos difíceis da execução instrumental. No caso da musicalização por
meio do canto coral, precisaremos adaptar esse conceito da eficiência da repetição através da
diversidade de estratégias para se ensinar um mesmo conceito. Em minhas aulas, quando era
preciso repetir o trecho de alguma música, sempre explicava por que estávamos repetindo. A
cada repetição era colocado um objetivo a ser alcançado.
O processo de educação musical de Suzuki traz conceitos muito simples de serem entendidos
e desenvolvidos: fé, autodisciplina, repetição, paciência, perseverança e principalmente amor.
São esses conceitos que, para mim, se tornam muito mais atrativos para serem aplicados ao
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canto coral para adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, pois são eles que
fazem a diferença entre a concepção de educação musical de Suzuki e a de outros educadores
musicais. Certamente, a visão de educação de um oriental tende para conceitos mais espirituais
do que a visão de um ocidental acostumado à velocidade da produção em série das indústrias.
Mas, devido à globalização, a cultura oriental está muito mais próxima de nós, ocidentais,
permitindo que haja uma fusão cultural na qual visões e conceitos orientais e ocidentais se
misturam e tornam a cultura geral mais rica.
Os alunos da educação musical são vistos por Suzuki como diamantes que precisam ser
lapidados com muito cuidado e sem pressa - ou, lembrando a comparação já feita, os alunos
são vistos como plantas cujas sementes brotaram e necessitam de cuidados especiais para que
se desenvolvam de maneira saudável.
4 CONCLUSÃO
O processo de educação musical de Suzuki, por estar vinculado desde o início à prática
de um instrumento específico, desenvolve as atividades rítmicas e melódicas relacionadas
ao instrumento. Inicia-se através da imitação de bons modelos e depois parte para a
leitura musical: “A leitura musical se pospõe até que a capacidade auditiva e as habilidades
instrumentais da criança estejam bem estabelecidas, da mesma maneira que ensinamos
as crianças a ler unicamente depois que podem falar” (INTRODUCCIÓN, 1999, p. 7, minha
tradução). Como já dissemos, a prática do canto coral com os adolescentes da Fundação Casa,
e de tantos outros lugares, já se baseia no princípio da língua materna: a leitura não é essencial
para a boa execução musical.
1. Ouvir e imitar boas gravações: “Suzuki sugeriu que os pais toquem as gravações de
música clássica repetidamente para que seus recém nascidos e crianças pequenas as
escutem” (INTRODUCCIÓN, 1999, p. 5, minha tradução). Na falta dos pais para os adolescentes da Fundação, os educadores musicais ou os agentes educacionais das Unidades
podem exercer essa função.
2. Ouvir, olhar e imitar o professor em sala de aula e depois os pais em casa: “O mestre Suzuki exerce o lavor de mentor para ambos, o pai e a criança, no estudo do instrumento –
ensinando à criança durante a lição e guiando o pai para que desenvolva as técnicas de
ensino efetivo em casa” (INTRODUCCIÓN, 1999, p. 5, minha tradução). Apenas a primeira
parte dessa atividade é possível aos adolescentes da Fundação Casa: ter o professor
como seu modelo. Fora da aula, resta a eles o apoio das boas gravações.
3. Observar as aulas de outros alunos: “As crianças podem aprender muito entre si, por
isso é recomendável que os estudantes Suzuki presenciem as lições provadas de outros
alunos” (INTRODUCCIÓN, 1999, p. 6, minha tradução). A observação de pares é extremamente enriquecedora para a educação musical. Dividir a classe de canto coral em grupos para que um tenha a oportunidade de apreciar a execução do outro, incentivar que
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os alunos de uma turma assistam à aula de outra turma, ou mesmo proporcionar uma
aula conjunta com duas turmas diferentes, enriquecerá o aprendizado musical por meio
da observação - o que é perfeitamente possível nas aulas de canto coral de adolescentes
da Fundação Casa.
4. O
repertório inicia-se com elementos musicais simples ensinados auditivamente. Posteriormente, desenvolve-se a leitura musical com um aumento gradativo das dificuldades:
“Todos os estudantes Suzuki seguem a mesma seqüência de materiais musicais para
seu instrumento de estudo, cada peça é um bloco que desenvolve cuidadosamente a
técnica. [...] As crianças reforçam os conhecimentos já adquiridos e obtém outros novos
através da repetição constante” (INTRODUCCIÓN, 1999, p. 6, minha tradução). Dizer que
“todos os estudantes Suzuki seguem a mesma sequência de materiais musicais” não
significa, porém, que no canto coral todos os grupos devam utilizar o mesmo reper­
tório. Implica, sim, no trabalho de pesquisa do educador musical para conseguir um
repertório com elementos musicais simples, que esteja vinculado à bagagem musical
de seus alunos e possa proporcionar um bom desenvolvimento tanto da aprendizagem
da leitura musical quanto da técnica vocal.
O processo de educação musical de Suzuki mostra-se muito humano, pois, com amor, vê o
homem como produto de sua adaptação ao ambiente e a música como meio de transformação
desse mesmo homem - e, consequentemente, da sociedade. Um dos benefícios da música
é a aquisição de habilidades que desenvolvam uma boa autoestima e que possam levar à
transformação do caráter.
Partindo do pressuposto de que o talento não é inato, Suzuki diz que ele pode ser adquirido
aos poucos, da mesma forma em que é desenvolvida uma língua materna, através da imitação
de bons modelos, da repetição consciente e do exercício da memória até que se alcance o
automatismo necessário para a boa execução das habilidades.
Embora não se tenha a pretensão de desenvolver habilidades instrumentais virtuosísticas
com os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, os princípios de educação
musical propostos por Suzuki parecem corresponder perfeitamente ao processo de ensino/
aprendizagem que almejamos por meio do canto coral: um processo de educação musical
coletiva no qual, através de atividades lúdicas, os alunos possam aprender uns com os outros
e com um educador que seja uma pessoa extraordinária, que possua bons conceitos para
ensinar, além dos musicais.
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REFERÊNCIAS
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Gottberg. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 1983.
______. Introducción al método Suzuki. Miami: Summy-Birchard Inc./Warner Bros. Publications,
1999.
______. Outline of Talent Education Method. In: _____. Shinichi Suzuki: his speeches and essays.
Miami [Estados Unidos da América]: Warner Bros. Pucblications, 1998, p. 37-43.
______. Young children’s talent education & its method. Miami: Warner Bros. Pucblications,1996.
WOOD, Enid. Shinichi Suzuki 1898-1998: a short biography. Disponível em <http://www.internationalsuzuki.org/shinichisuzuki.htm>. Acesso em 23.07.2009.
JOSÉ FORTUNATO FERNANDES, A filosofia de Shinichi Suzuki aplicada ao canto coral para adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa
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