1 ENFERMAGEM FILOSÓFICA, FILOSOFIA DA ENFERMAGEM, FILOSOFIA DO CUIDADO ____________________________________________________________________________ CARLOS ROBERTO FERNANDES ____________________________ Alunos, professores e pesquisadores de Enfermagem, em geral, desconhecem a vontade e o ideal de sistematização de saberes e de práticas dentro do que poderá ser denominado de Enfermagem Filosófica, Filosofia da Enfermagem e Filosofia do Cuidado; por isso, convém iniciar destacando as incursões de alguns pesquisadores no campo da Enfermagem Filosófica. Leopardi,1:6 expondo na aula de abertura suas concepções sobre o que proponho constituir o campo da Enfermagem Filosófica, rejeita a concepção colonizada de ciência na profissão de Enfermagem e ousa “filosofar sobre enfermagem, sem ter de pedir licença para os filósofos, sem ter de pedir desculpas por ‘entrar em seara alheia’, porque o conhecimento é uma herança da humanidade e não de alguns poucos iluminados.” E a Enfermagem Filosófica, seguindo a ousadia epistêmica da da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (EEUFSC), tem, conforme esclarece a mesma autora, dois eixos de reflexão histórico-crítico-analítico-práxica e, portanto, hermenêutica: o processo de viver ser saudável adoecer e curar (entendendo-se que conforto e cuidado de enfermagem são ações e forças terapêuticas) e o trabalho de enfermagem como modo de intervenção sobre aquele processo. A revista da EEUFSC, publica número temático em 1997 sob o título "Filosofando na Enfermagem"2, apresentando potencial fertilidade temática e crítica composta de: - reflexões filosóficas sobre arte da enfermagem, ancorados em conceitos de Florence Nightingale, da Arte e da Filosofia; - reflexão que defende o corpo como mediação das ações de enfermagem e do processo de cuidar. - reflexão sobre a cientificidade do conhecimento e do saber da enfermagem. - proposta do método fenomenológico de Martin Heidegger para a pesquisa de enfermagem. - enunciação de uma Filosofia do Cuidado a ser construída e decorrente da proposição de definição de cuidado como ação terapêutica essencial à vida e arte de cuidar como valor -mais 2 que trabalho e mais que técnica. Nesse trabalho, Filosofia do Cuidado é ciência política e ação terapêutica essencial do cuidado de enfermagem. - discussão sobre as bases do Ensino na área da Saúde e a reafirmação da importância de mudança paradigmática para a construção de um Projeto Político de Gestão Participativa coerente às necessidades sanitárias da sociedade brasileira. - revisão bibliográfica divulgadora da obra Ser e Tempo de Martin Heidegger, tida como marco fundamental da produção científica de enfermagem. - estudo sobre a medicalização da vida das populações pelo Estado – o histórico gerenciador do biopoder expresso como Controle Social. - discussão sobre crises paradigmáticas na produção do conhecimento de enfermagem. - fundamentação ético-filosófica do conceito livre vontade do usuário. - reflexão epistemológica sobre a contribuição da análise histórica para a prática de enfermagem. - reflexões sobre a contribuição da filosofia na pesquisa de enfermagem, a pesquisa sobre cuidado como abordagem filosófica para o desenvolvimento do conhecimento de enfermagem e a concepção filosófica de cuidado em Florence Nightingale. - estudo ancorado na concepção de temporalidade nafenomenologia da percepção de Maurice Merleau-Ponty subsidiando o trabalho de enfermagem psiquiátrica. - reflexões sobre a cultura da suposta dicotomia entre teoria e prática no conhecimento de enfermagem revelando internos conflitos epistêmicos e técnico-administrativos. - reflexões sobre limites das relações de cuidado, das interações de cuidado e das associações de cuidado. - reflexão filosófica crítica sobre filosofia ou filosofia como crítica do presente. - reflexão sobre a influência de Émile Durkheim, Talcott Parson e Juan César Garcia no campo da Saúde. - discussão sobre o conceito de doença na concepção médica e na concepção da pessoa em experiência de ser doente a partir do trabalho profissional na Enfermagem Comunitária e estudos na Antropologia da Saúde. 3 - identificação de concepções pedagógicas no ensino de enfermagem no Brasil. - Reflexão sobre a relação amorosa entre enfermeiras e a enfermagem, utilizando o pensamento filosófico de Georg Wilhelm Hegel. - reflexão sobre o paradigma positivista na ciência e na cultura e a sua crise na enfermagem com a inclusão no cuidado de enfermagem da estética, da ética, da ecologia e da subjetividade da pessoa. - reflexões sobre a prática assistencial do enfermeiro e a necessidade de repensamento sobre o cuidar diante do pensar fenomenológico sobre linguagem e discurso. - entendimento sobre o conceito de autonomia em Immanuel Kant. - estudo fenomenológico da visão da equipe de saúde hospitalar sobre dependência química e dependente químico. A ciência filosófica enfermagem está apenas declarada na frase: enfermagem é “ciência que busca o sentido da existência humana”.3 Se, ao invés de busca do sentido da existência humana, reconhecer-se a condição e a situação humana estruturalmente condicionada ao cuidado, talvez historicamente pode-se constituir uma Ciência Filosófica do Cuidado e, dentro dela, uma Filosofia de Enfermagem. Todos esses trabalhos e pesquisas crítico-analíticas estão fora dos moldes assistenciais, conceituais e paradigmáticos da Enfermagem Moderna restrita ao pensamento biomédico e ao espaço hospitalar de atenção à doença; essa nova direção, sobretudo da EEUFSC, tem sido para a consolidação de uma Ciência do Cuidado, acentuadora tanto do conceito de Enfermagem Pós-Moderna ou Nova Enfermagem quanto da possibilidade a ser sistematizada de uma Ciência Filosófica do Cuidado e não de uma enfermagem moderna como ciência filosófica que busca o sentido da existência humana. Obviamente ainda não existe nenhum conhecimento sistemático produzido num campo ou subcampo Filosofia da Enfermagem ou Enfermagem Filosófica, apesar de inúmeras reflexões filosóficas comporem trabalhos publicados de enfermeir@s e de linhas de pesquisa nomeadas de Filosofia da Enfermagem, Filosofia e Enfermagem, Filosofia em Enfermagem. Tais linhas deveriam ter sido sistematizadas na área epistêmica denominada por mim de Enfermagem Filosófica, cujo advento formal pode ser convencionalmente admitido em 04 de março 1993 com a aula de abertura do Curso de Doutorado, criado pela EEUFSC. 4 Enfermagem Filosófica e Filosofia do Cuidado foram propostas derivadas de minha tese de mestrado em Enfermagem4 e sumariamente descritas em seu vínculo epistemológico com o que denomino de sistema filosófico nursing ou filosofia nursing.5 Minha tese de mestrado instituiu o conceito trajetórias e memórias de corpo: um dos desdobramentos da pesquisa e daquele conceito é a perspectiva epistemológica de possibilitar e delimitar estudos históricos sobre a Arte de Cuidado na América Latina em geral e no Brasil em particular. Tais estudos históricos se delinearam nas concepções de corpo identificadas e nomeadas de concepção de corpo no sistema nightingale; concepção de não corpo; concepção de corpo sintoma; concepção de corpo fundamento do cuidado; concepção de corpo fundamento da enfermagem; concepção de corpo da enfermeira como instrumento do trabalho; concepção histórica de corpo; nova concepção de corpo cuidador. As oito concepções de corpo, identificadas a partir da minha concepção histórica e historista de mundo, foram defendidas como memórias de corpo, formadas nas trajetórias de corpo dos terapeutas do corpo e do cuidado ou enfermeiros e enfermeiras. Por tais concepções discriminei três sistemas ou conexões de fim distintos: sistema filosófico nursing de Florence Nightingale; sistema pedagógico nightingale; sistema assistencial Enfermagem. Cada um desses sistemas, abrindo-se para diferentes e interconexas dimensões da Arte de Cuidado, fundamentou três proposições. Primeira: trajetórias de corpo referem-se às vivências e às experiências de corpo das pessoas, elas mesmas formadoras de comunidades, povos e Estados; constituem, pois, a história e são nomeados, na Escola Histórica de Pensamento de Wilhelm Guillermo Dilthey (1833-1911), de mar empírico de história, trajetória vital, trajetória de vida - todas expressões sinônimas. Segunda: memórias de corpo são as objetivações de trajetórias; constituem, pois, historiografias e são nomeados na Escola História de Dilthey, de expressão da vivência, espírito objetivado, manifestação de vida, objetivação de vida, grandes objetividades do pensamento - todas expressões sinonímias. Terceira: Partindo da constatação de que a Arte de Cuidado no Brasil não foi pesquisada na Enfermagem Moderna, apesar da tradicional declaração de que o campo da enfermagem é o da arte e ciência do cuidado. as trajetórias e memórias de corpo são o objeto epistemológico dos terapeutas do corpo e do cuidado. 5 Atento às trajetórias e memórias de corpo dos povos latino-americanos em geral e dos povos do Brasil em particular, defendo: - formação de um subcampo epistêmico particular, já por mim denominado Antropologia do Cuidado,6 para a configuração e compaginação da história e da historiografia da Arte de Cuidado na América Latina em geral e no Brasil em particular. Antropologia do Cuidado é a fundamentação histórica para uma Enfermagem Filosófica ou Filosofia do Cuidado. - formação de um subcampo epistêmico particular para fundamentação filosófica da Antropologia do Cuidado por mim denominado Historística.7 E qual a relação feita por mim entre Antropologia do Cuidado, Historística e Enfermagem Filosófica ou Filosofia do Cuidado? Minha concepção histórica e historista de mundo, vinculada ao pensamento de Guillermo Dilthey, não separa antropologia história psicologia e filosofia: e esta não separação é tanto metodológica quanto epistemológica, traduzindo o princípio de Dilthey em sua Filosofia da Vida ou Filosofia Histórica: “a idéia fundamental de minha filosofia é que até agora não foi posto nunca como base da filosofia a experiência total, plena, não mutilada, quer dizer, a realidade completa e íntegra”.8:89 Em Guillermo Dilthey, a Hermenêutica é erguida à condição de Filosofia da Vida; portanto, Hermenêutica tem uma dimensão filosófica e uma dimensão metodológica. Pela concepção histórica e historista de mundo, Filosofia é "fato histórico humano",9:12 "uma função no complexo teleológico da sociedade"10:114 – função esta determinada pela própria reflexão filosófica do espírito indissociável da sociedade em que vive.9 Historicamente considerada, Filosofia "é a consciência em desenvolvimento sobre o que o homem está pensando, plasmando e atuando."9:34 Eis o fundamento e a função social e política da Filosofia, segundo o Historismo de Dilthey: fragmentando tal função indissociável, os pensadores pósDilthey inventaram arbitrariamente os subcampos Filosofia Social e Filosofia Política. O caráter arbitrário das várias especialidades do conhecimento, sobretudo após a lógica do Positivismo, vem assim resumido por Dilthey: os sistemas acham-se atravessados de contradições e de conclusões falsas: selecionam um aspecto das coisas, eliminando os demais; mutilam o vivo em virtude de uma vontade poderosa. [...] Em lugar de ver as coisas tais quais são, a maioria dos historiadores [e acrescento os filósofos e inúmeros outros cientistas] ocultam-se atrás de 9:31 uma mera seriação dos sistemas ou atrás de uniões lógicas artificiais e extrínsecas. 6 Em síntese e contrariamente à fragmentação do conhecimento, sigo a concepção historista de Dilthey para a qual Filosofia é representação conceitual de uma visão do mundo e da vida – originada tal representação numa atitude de autorreflexão do espírito: os variados e não raros contraditórios sistemas filosóficos expressam as particulares concepções e visões do mundo e da vida daqueles que os criaram;9 portanto, não compartilho da concepção metafísica e aristotélica de que filosofia "é a ciência de todas as coisas por suas causas mais elevadas, adquirida à luz natural da razão"11:13 cujo "único objetivo [é] o conhecimento; tem em vista simplesmente pesquisar a verdade em si mesma, prescindindo de eventuais utilizações práticas. A filosofia tem um objetivo puramente teórico, ou seja, contemplativo; não pesquisa por nenhuma vantagem que lhe seja estranha, mas por ela mesma";12:7 Enfermagem Filosófica, Filosofia da Enfermagem, Filosofia do Cuidado não será, pois, uma pensamento abstrato, à moda do racionalismo de Descartes, sobre a realidade humanohistórico-social. Conceitos historistas de razão histórica, consciência histórica, memória histórica e crítica da razão histórica são fundamentais para a Enfermagem Filosófica e para a Filosofia do Cuidado. Razão histórica traduz o fato de que o homem individual, como ser isolado, é mera abstração. O parentesco de sangue, a convivência local, a cooperação no trabalho, na competência e no esforço comum, as múltiplas conexões que se produzem da prosecução comum dos fins, as relações de poder no mando e a obediência, fazem do indivíduo membro da sociedade. Como esta sociedade se compõe de indivíduos estruturados, nela operam também as mesmas regularidades estruturais. A teleologia subjetiva e imanente dos indivíduos se manifesta na história como desenvolvimento. As regularidades psico-individuais transformam-se em regularidades da vida social.13:35 O conceito diltheyano de razão histórica diz que o eu, a inteligência, o pensamento, a individualidade, junto a todas as faculdades ou processos mentais, são formações históricas. Crítica da razão histórica, ao superar a razão metafísica de Aristóteles à Kant, se define como capacidade do homem e da mulher se (re)conhecerem históricos e de (re)conhecerem que a história e a sociedade são suas formações.8 Tanto o(re)conhecimento da historicidade da consciência humana quando do mundo social, formados pelas pessoas, formam a consciência histórica. Consciência histórica é conhecimento das 7 grandes objetividades engendradas pelo processo histórico, dos nexos finais da cultura, das nações, da humanidade mesma, da formação em que se desenvolve a vida, segundo uma lei interna [; aquelas grandes objetividades e nexos finais] atuam como forças orgânicas, de onde surge a história das lutas de poder dos estados.13:11 Consciência histórica exige, pois, memória histórica, um conceito do qual se origina o meu conceito de memória de corpo. Memória histórica é o conteúdo das vivências e experiências, formadoras do mar empírico da história em linguagem diltheyana; esse conteúdo, além de estar primariamente fixado no corpo, daí o meu conceito de memórias de corpo, tende a fixar-se em grandes objetividades do pensamento – os sistemas culturais e os sistemas de organização da sociedade. Sem memória histórica não há formação de consciência histórica nem desenvolvimento de crítica da razão histórica: se sistemas se erguem mutilando o mar empírico da história, no qual se forma a memória histórica, constróem-se sistemas a-históricos, asociais, anti-humanos Por esses quatro conceitos, o processo de conhecer das Ciências Experienciais (hoje denominadas Humanas e Sociais) têm por via de acesso a crítica da razão histórica que, segundo o Pensamento Diltheyano, é consciência histórica quando tem por objeto de análise hermenêutica das grandes objetividades do pensamento e é autognose histórica quando tem a própria consciência histórica como objeto de análise hermenêutica. A Enfermagem Filosófica, segundo minha concepção historista de mundo, parte daqueles quatro conceitos fundamentais. 8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 LEOPARDI, Maria Tereza. Por quê Filosofia em Enfermagem? Texto Contexto Enferm 1993 Jan/Jun; 2(1):5-12 2 Texto Contexto Enferm 1997 Set/Dez; 6(3): 1-347. FELI, Vanda Elisa Andres. A Construção do olhar da enfermagem sobre a sua ação social na pesquisa. Anais do 53, Congresso Brasileiro de Enfermagem; 2001 Out 9-14; Curitiba, Brasil. Curitiba: ABEn – Seção PR; 2001. p.91-104. 3 4 FERNANDES, Carlos Roberto. Concepções de corpo na enfermagem dos anos noventa no Brasil: uma abordagem com Wilhelm Guillermo Dilthey. 2003. 179p. Dissertação (Mestrado em Enfermagem). Univ. Fed. de Minas Gerais. Escola de Enfermagem da UFMG. 5 FERNANDES, Carlos Roberto; NASCIMENTO, Estelina Souto do. Historística: o campo dos fundamentos históricos da Ciência do Cuidado. Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2005f Out-Dez; 14(4):520-7 FERNANDES, Carlos Roberto. Bases teóricas da Antropologia do Cuidado ou da história e historiografia o da Arte de Cuidado no Brasil. Anais do 2 . Colóquio Latino-Americano de História da Enfermagem; 2005 Set 1215; Rio de Janeiro, Brasil. Rio de Janeiro: ABEn – Seção RJ; 2005. [CD-ROM] 6 FERNANDES, Carlos Roberto. A Formação de um paradigma de pensamento histórico para estudo da arte o e ciência do cuidado na América Latina. Anais do 2 . Colóquio Latino-Americano de História da Enfermagem; 2005 Set 12-15; Rio de Janeiro, Brasil. Rio de Janeiro: ABEn – Seção RJ; 2005. [CD-ROM] 7 8 DILTHEY, Wilhelm Guillermo. Crítica de la razón histórica. Barcelona: Península. 1986 9 DILTHEY, Wilhelm. Teoria de la concepcion del mundo. 2. ed. en español. México: Fondo de Cultura Económica. 1954 10 DILTHEY, Wilhelm. La Esencia de la Filosofia. Buenos Aires: Losada. 1952 11 LOPES, Francisco Leme. Introdução à Filosofia. 4. Ed. Rio de Janeiro: Agir. 1967 12 MONDIN, Battista. Introdução à Filosofia. São Paulo: Paulus. 1980 13 DILTHEY, Wilhem Guillermo. Introducción a las ciencias del espiritu. 2. ed. México: Fondo de Cultura Económica. 1949.