Pós-Graduação

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PPG DE TEOLOGIA – 2017/1 – Geraldo De Mori
TP. 117105 – Estudos de Antropologia Teológica – A graça: história e teologia
História da teologia da graça
Como vimos, a experiência da filiação como adoção, nascer de Deus e criação,
realizada no Espírito Santo, constitui o conteúdo propriamente salvífico da noção de graça
no Novo Testamento. A adoção, o nascer de Deus e a criação foram também apreendidos
pela teologia neo-testamentária a partir de outras categorias sociais, antropológicas e
religiosas. Tais categorias darão à experiência da graça um conteúdo propriamente
soteriológico, fazendo surgir diferentes interpretações dos efeitos salvíficos do evento
cristológico para a humanidade. A história da teologia da graça será então marcada por uma
dupla tendência: 1. a que compreenderá a experiência salvífica sobretudo a partir da
perspectiva da filiação e que será pensada a partir da categoria da divinização; 2. a que será
mais influenciada pelos efeitos salvíficos da fé cristológica e que será pensada a partir das
diferentes categorias soteriológicas. A patrística grega está na origem da primeira tendência
enquanto a teologia latina será mais marcada pela segunda.
Os primeiros séculos do cristianismo foram dominados não somente pelo anúncio
da novidade do Deus crucificado, o que implicou ao mesmo tempo um debate com os
judeus e com os gregos (pagãos), mas também pelas controvérsias teológicas (trinitárias:
Niceia e Constantinopla) e cristológicas (Éfeso, Caldedônia). Essas controvérsias surgem,
porém, de uma preocupação em afirmar a perspectiva salvífica (antropológica) presente no
rito do batismo. Nos textos produzidos pelos grandes concílios dos primeiros séculos
encontramos a mesma doutrina: o Pai nos criou, o Verbo se fez carne para nos salvar e nos
dar o Espírito, que santifica. É o Espírito Santo que comanda a teologia da graça nesses
primeiros séculos. Os cristãos de então tinham consciência de viver uma vida nova,
desconhecida até então. O rito do batismo e a imposição das mãos e todos os gestos
sacramentais são ligados com o dom do Espírito Santo. A transformação operada pelo
batismo é vivida profundamente.
A leitura histórica da teologia da graça que faremos aqui tentará apresentar alguns
elementos da tradição grega, detendo-se em seguida na tradição latina, que é a que mais
influenciou a cultura e a teologia cristã ocidental.
a. A theopoiesis: teologia da divinização
A teologia, dita asiática, prolongação das perspectivas paulina e joanina, vai insistir
muito na dimensão da divinização produzida pelo tornar-se cristão. Muitos teólogos desta
tendência vão retomar e comentar 2Pd 1,4: “Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor, nos fez
participantes de sua natureza divina”. Para Inácio de Antioquia, a doutrina do Cristo é uma
doutrina de imortalidade, sua carne é um remédio de imortalidade. Quem é unido ao Cristo
pela fé ou pelo batismo, alimenta-se da eucaristia e permanece membro da Igreja unificada
pela caridade, é assegurado da salvação. Segundo Inácio, seguidor de Paulo, o Cristo vive
também nele. É, porém, santo Irineu que propõe a primeira grande síntese da teologia
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paulina e joanina da graça. Sob sua pluma surgem fórmulas que vão se tornar caras à
tradição grega e latina: “Deus se fez homem afim de que o homem tenha parte na vida
divina, afim de que ele se torne filho de Deus”; “O Cristo veio recapitular em si mesmo a
humanidade [...] refazer a obra de Deus destruída pelo pecado, [...] dar aos homens o
Espírito Santo com abundância [...] afim de que o Espírito não seja somente o hóspede de
suas almas e de seus corpos, mas um princípio de unidade interior, um penhor da vida
incorruptível, da qual já goza o Cristo ressuscitado. Este Espírito, vida de cada um dos
membros, é também a vida da Igreja, corpo de Cristo”. Em santo Irineu, a teologia da
salvação é ligada à ideia de uma providência educadora que conduz lentamente o homem
para seu fim último: “a visão de Deus, vida do homem”. “O homem não foi feito deus desde
a origem, mas ele foi feito para tornar-se Deus”. Esta doutrina é o fundamento de um
otimismo cristão que será doravante uma doutrina tradicional, embora tenha que compor,
mais tarde, com o “pessimismo agostiniano”.
Cada vez que os padres gregos falam dos efeitos do batismo, da regeneração e do
dom do Espírito Santo, eles são inesgotáveis. Orígenes também trabalha a ideia de uma
providência educadora e propõe uma verdadeira mística da presença santificante do
Espírito Santo. Ele insiste em falar da presença de Cristo nas almas e do mistério de nossa
união com Ele. Sua teologia da Igreja como corpo místico do Cristo é subordinada à teoria
da apocatástase, o que o faz dizer que, enquanto não chegar o fim dos tempos, o Cristo total
ainda não atingiu sua plena estatura. O teólogo alexandrino não deixa tampouco de abordar
também os problemas da regeneração, da adoção, do dom do Espírito Santo, da presença
ativa do mesmo Espírito nas almas e na Igreja, da identificação com o Cristo pela
comunicação ou participação na vida divina. Esses problemas encontram-se, por sua vez,
na discussão de santo Atanásio com os arianos: “se somos filhos adotivos, diz ele, é porque
existe um Filho por natureza. Se somos participantes do Verbo pelo Espírito Santo, é
porque o Verbo é Deus. Se o Verbo não é Deus, como poderemos então ser divinizados? A
criação nos fez criaturas de Deus. Pela adoção, nós nos tornamos filhos porque o Verbo
está em nós. Ele não pode vir em nós sem o Pai e o Espírito Santo”. A santificação operada
pelo batismo se faz pelo Filho e no Espírito. Na doutrina de Atanásio, a reflexão sobre o
corpo místico tem um lugar importante.
A mesma doutrina de Atanásio se encontra na obra dos outros padres gregos. A luta
contra os macedônios conduz os padres Capadócios a se estenderem sobre o papel
santificador do Espírito Santo. Segundo Basílio, é da ação do Espírito em que podemos
deduzir sua divindade. “O Espírito Santo, fonte de santificação, nos traz a graça da adoção
e da imortalidade”, “nós somos o templo do Espírito Santo. Ele é então Deus”. Gregório de
Nissa e Gregório Nazianzeno dizem a mesma coisa. Este último chama o Espírito Santo
Deus. Este vocábulo era até então reservado ao Pai, salvaguardando assim o vocabulário da
Escritura. “Eu não creio, diz ele, que a salvação não me seja trazida por um igual. Se o
Espírito Santo não é Deus, que ele se faça Deus primeiro e que em seguida venha
divinizar-me”. “Se o Espírito Santo não deve ser adorado, como ele pode divinizar-me no
batismo?” “Se o Espírito Santo é só criatura, somos batizados em vão”. “O Espírito Santo
santifica e deifica”. Como vemos, é frequentemente a propósito do Espírito Santo ou dos
efeitos do batismo que os padres gregos expõem sua doutrina da graça. O mesmo acontece,
por exemplo, com Cirilo de Jerusalém: “o Espírito santifica e deifica ”; “o Espírito
santificador ilumina os justos”; “os batizados têm neles o Espírito do Cristo, Espírito de
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adoção que os faz gritar: abba, Pai ”; com Hilário de Poitiers: “o batismo, sacramento de
nossa regeneração, nos faz filhos adotivos”; “o Espírito Santo, dom de Deus, dom dos
fiéis”; “Espírito Santo, se em nós é o Espírito de Deus, vivifica-nos pela inabitação em nós
do Espírito do Cristo; por João Crisóstomo: “o Verbo se fez carne afim de fazer dos homens
filhos de Deus”; “o Espírito Santo, causa de nossa adoção, é verdadeiramente Deus”.
A doutrina da divinização encontra-se então em todos os padres gregos: em Arius,
Eunomius e Macedonius como naqueles que lutam contra eles. Ela é aceita em Antioquia
como em Alexandria. Cirilo de Alexandria nos dá sobre a santificação e a presença do
Espírito Santo nas almas uma doutrina magnífica, que é como que a síntese acabada da
teologia grega da theopoiesis. No momento em que esta doutrina se elabora, a controvérsia
pelagiana e a teologia agostiniana da graça começam a ocupar o centro das atenções da
teologia latina, o que fará com que a teologia de Cirilo seja durante muito tempo
desconhecida, sendo redescoberta somente no século XVII. Cirilo recorre, como seus
predecessores, à ideia de nossa filiação divina para estabelecer a divindade do Verbo e a do
Espírito Santo. “Somos filhos de Deus por graça, então Jesus é Filho por natureza”. “O
Espírito Santo nos diviniza, ele não pode então ser uma criatura”. Herdeiro de João, Paulo,
Irineu, Atanásio e dos Capadócios, Cirilo de Alexandria nos mostra no Cristo o novo Adão
que nos restabelece na nossa dignidade original e restaura em nós a imagem divina. “O
Verbo de Deus se fez homem a fim de divinizar os homens. Ao assumir uma carne
semelhante à nossa, ele encheu de sua presença a humanidade inteira”. “O Espírito Santo
desce sobre Jesus no batismo, não para ele, mas por seus irmãos, não para fazê-lo Deus,
mas para fazer de nós filhos de Deus, pois nós já estávamos nele”. “No batismo, cada
cristão renova por sua própria conta o gesto histórico do Cristo. Ele se apropria dos
efeitos desse gesto, morre e ressuscita com o Cristo. Deus vem habitar nele. Ele é feito
tempo de Deus, filho de Deus, participante da natureza divina ”. “O Espírito Santo que lhe
é dado forma nele o Cristo. O Cristo vive de fato em todos os batizados fiéis a seu batismo
e os cristãos, por sua parte, são, no Cristo, unidos entre si e com ele, como o são o Pai e o
Filho. Eles formam um só corpo, um só templo, esperando a ressurreição gloriosa que
acabará esta obra de santificação e de divinização”.
A doutrina da theopoiesis conduz, no século VI, à teologia mística de Dionísio, o
pseudo Areopagita. Esta época é marcada pela controvérsia monofisita. Dionísio expõe
com vigor uma doutrina da união com Deus. Esta união, começada pelo dom do Espírito
Santo no batismo, pode tornar-se desde aqui na terra, pela ascese e pela oração, uma
verdadeira união transformante. A salvação só é possível para os Espíritos deificados, e a
deificação é a união e a semelhança que se busca ter com Deus. Esta mística supõe os
ensinamentos da tradição sobre o papel histórico do Cristo na nossa redenção. Um século
mais tarde, Máximo, o Confessor, o adversário dos monotelitas, expõe, por sua vez, a partir
da tradição grega e dos escritos de Dionísio, uma doutrina da vida espiritual onde o
cristianismo toma emprestado aos sistemas de tendência panteísta toda sua força de
sedução. Para falar da união da alma deificada com Deus que a diviniza, Máximo recorre a
comparações: “o ar iluminado pela luz se torna ele mesmo luz, o ferro mergulhado no fogo
se transforma, por sua vez, em fogo”. Em Máximo, como em Dionísio, a teologia mística,
longe de ser cortada da eclesiologia encontra-se, ao contrário, ligada intimamente com a
doutrina do batismo e da eucaristia. É esta teologia que será retomada e repetida desde o
século VIII até nossos dias nas teologias bizantinas e ortodoxas.
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b. A teologia latina da graça: o papel de Agostinho
Agostinho é o teólogo que mais influenciou o pensamento cristão latino/ocidental,
tendo tornado possível a síntese entre a cultura greco-latina e a revelação bíblica. Vejamos
alguns dados de sua biografia e o que nela determina seu pensar antropológico.
1. Vida de Agostinho
Da Infância à conversão (354-387)
Aurélio Agostinho nasceu em Tagasta, cidade da Numídia, no norte da África, em
354. Seu pai, Patrício, era pagão, embora tenha sido batizado um pouco antes de morrer.
Sua mãe, Mônica, era uma cristã fervorosa e exerceu sobre Agostinho uma influência
religiosa importante. Em Cartago (369), onde fez seus estudos mais importantes, o jovem
Agostinho viveu sua primeira crise moral, entregando-se aos prazeres da sensualidade.
Aderiu então ao maniqueísmo (373), que atribuía uma realidade substancial ao bem e ao
mal. O jovem estudante julgava achar neste dualismo a solução para o problema do mal e,
por consequência, uma justificação para sua vida. Aos poucos, porém, foi se decepcionando
com o maniqueísmo. Terminados seus estudos (376), ele ensina retórica em Cartago até
383, partindo então para Roma e Milão, onde ensinou retórica de 384 a 386. Conhece então
Ambrósio e alguns neoplatônicos, tornando-se catecúmeno e se fazendo batizar em 387.
Vida monástica e sacerdócio (388-396)
De retorno à África (388), Agostinho fundou com amigos uma comunidade
monástica, levando uma vida de pobreza, oração e estudos e envolvendo-se nos problemas
da Igreja (388-391). Ordenado padre em Hipona (391), ele continua sua vida semimonástica (391-396), assegurando ao mesmo tempo a pregação, lendo e relendo a Escritura.
Três tipos de escritos foram elaborados nesse período: obras de cunho filosófico (De
musica, De libero arbítrio); obras de teologia e catequese (De Vera Religione, De diversis
quaestinibus 83); obras destinadas a combater o maniqueísmo (De diversis quaestionibus
ad Simplicianum, Contra Fausto, etc.). Uma observação importante: no debate que teve com
Simpliciano, em 397, Agostinho explica alguns capítulos da carta aos romanos, mostrando
que a doutrina da graça e a do pecado já estava firmemente elaborada em seu pensamento.
Primeira etapa de sua vida de bispo (396-412)
Agostinho consagrou uma grande parte de seu tempo ao cuidado pastoral (Sermões,
Comentário ao Evangelho de João, Enarrationes in Psalmos) e à controvérsia contra o
Donatismo. Neste mesmo período ele redigiu ou começou a elaborar suas obras mais
importantes: Confissões (397-401), De Genesi ad litteram (401-416), De Trinitate (400420), De Civitate Dei (412-425). Esta última obra foi escrita ao longo da controvérsia
pelagiana, embora o tema que ela aborda tenha sido concebido antes. Seu alcance é, porém,
diferente (sentido da história) e a demonstração se desenvolve numa atmosfera mais serena.
Segunda etapa (412-430)
Período dominado pela controvérsia pelagiana. Agostinho morreu em 430, quando
Hipona era cercada pelos “bárbaros”. Nesta etapa ele viu-se diante de duas teses antitéticas:
a do pessimismo maniqueísta, frente à matéria, e a do otimismo pelagiano, face à natureza.
Contra os primeiros ele afirma a criação boa vinda do único criador, o que significa que é
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na história que é preciso procurar a origem do mal. Contra os últimos ele invoca a universal
necessidade da redenção do Cristo que salva todos os seres humanos de seus pecados.
2. A controvérsia pelagiana
Alguns dados da vida de Pelágio
Pelágio nasceu na Grã-Bretanha, de família cristã, mas que não o batizou enquanto
criança, seguindo o costume do tempo. Vindo a Roma (380), ele se converteu à via perfeita,
sendo batizado e consagrando-se à busca do ideal evangélico sem atenuação nem reserva.
Permanece leigo e vive como asceta na cidade de Roma. Pelo testemunho de sua vida e
escritos, exerce uma grande influência espiritual e atrai a simpatia de numerosos cristãos.
Ele critica violentamente a teoria da fé sem as obras, condenando os que pretendiam
encontrar nos ritos infalíveis um meio de pecar “securi et liberi”. Sua intransigência lhe
valeu ao mesmo tempo a adesão de discípulos entusiastas (Celestius e, mais tarde, Juliano
de Eclana e Turbantius) e também uma reserva em certos meios espirituais que começaram
a suspeitar que sua doutrina se desenvolvia à margem da reta doutrina da Igreja.
Em 410, quando Roma foi tomada por Alarico, Pelágio, acompanhado de Celestius,
vai para a África. Escreve então a Agostinho, mas não consegue encontrar-se com ele. Em
seguida, ele parte para a Palestina, onde tinha muitos amigos. Foi então que, em Cartago,
começou a controvérsia que durou de 412-418, e da qual falaremos em pormenor adiante.
Depois de ser condenado por Zózimo, em 418, Pelágio deixou a Palestina e parece
ter-se refugiado no Egito, mas não se sabe nada de seus últimos anos de vida nem de sua
morte. É quase certo que não tenha se submetido às decisões do concílio e do Papa Zózimo.
Obras de Pelágio
É difícil levantar suas obras, pois ele se negava a assumir a paternidade das mesmas.
Apresentaremos somente algumas das quais ele é certamente o autor, pois Agostinho as leu:
-
Comentário das epístolas de Paulo (escrito em Roma antes de 410);
-
Livro da vida cristã. No concílio de Dióspolis, ele desaprovou certas frases
deste tratado;
-
Carta a Demétrius;
-
Livro sobre a natureza (Líber de Natura). Esta obra foi enviada a Agostinho por
dois discípulos de Pelágio. O bispo de Hipona respondeu a esse tratado (citandoo longamente) no De Natura et Gratia;
-
Libellus fidei ad Innocentium Papam (417). Depois de sua primeira condenação
por Inocêncio, Pelágio enviou ao Papa esta Profissão de fé, junto com uma carta;
-
Du libre arbitre (4 livros). Resposta de Pelágio aos ataques de Jerônimo.
A doutrina de Pelágio
Os escritos de Pelágio são o resultado de sua conversão à vida perfeita e uma reação
contra o laxismo ambiente. Contra esta atitude, ele reivindica a necessidade de um esforço
ascético e a sinceridade de uma vida onde as obras correspondam à fé professada.
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Por outro lado, sua inspiração é profundamente religiosa. Num tempo de discussões
trinitárias e cristológicas, ele mantém firmemente os artigos do credo sobre a Trindade, a
Encarnação e a criação. Mas sua maneira de conceber a vida espiritual e a autonomia da
moral o leva a restringir o sentido da Redenção e o papel da graça.
Segundo Pelágio, o ser humano é plenamente livre. Ele pode, somente por suas
forças, merecer a vida eterna. Sem dúvida, o dom da liberdade é uma graça de Deus
criador. Mas, uma vez este dom recebido, é ao ser humano de discernir, de optar pelo bem
ou pelo mal. Distinguindo três momentos na liberdade, Pelágio diz que, se o poder (posse)
vem de Deus, é ao ser humano somente que pertence o querer (se decidir em favor do bem)
e de cumprir (de traduzir esta decisão em seus atos): “Nós situamos a capacidade na
natureza, o querer no livre arbítrio, o ser na execução. O primeiro momento, a capacidade,
pertence propriamente a Deus, que o conferiu à sua criatura; os outros dois, ou seja, o
querer e o ser, devem ser reportados ao ser humano, pois são decorrência do livre
arbítrio” (citado por Agostinho no De gratia Dei et peccato originali, I. 4.5). A justiça de
Deus criador e a dignidade da natureza humana exigem que o ser humano mereça sua
salvação somente por si. Uma vez recebido o dom da liberdade, o ser humano é de alguma
forma emancipado de Deus (Contra Julianum, I.178), podendo conformar-se à Lei divina.
A esta tese se liga a noção de impeccantia (impecabilidade). O ser humano pode,
por suas forças, evitar todo pecado e praticar toda justiça. O AT nos oferece o exemplo de
pessoas perfeitamente justas.
Pelágio rejeita então todo vício de natureza, todo enfraquecimento da vontade, ou
seja, toda noção de pecado original. Onde não existe ato de liberdade pessoal, não pode
haver pecado. Seria fazer do pecado uma natureza ou uma substância. Quanto à noção de
pecado transmitido por herança, ela é inaceitável, pois é contrária à justiça de Deus, que
não pode ter criado o homem para carregar um pecado do qual não seja responsável. Não
existe, portanto, nenhuma diferença entre Adão e cada ser humano, tal que ele é agora.
Com cada um começa a história de sua relação com Deus.
O que se torna nesse esquema a graça do Cristo ? Pelágio não a nega, mas a concebe
como uma graça de exemplo e não como redenção. Ela é um socorro puramente exterior
que esclarece o ser humano, mas não um socorro interior capaz de curar ou mover a
vontade, de lhe dar a força de evitar o pecado e de cumprir o bem. O ser humano não
necessita ser liberado (redimido) porque ele não é escravo.
Uma reserva, no entanto. O Cristo, pelo batismo, purifica os pecados pessoais. Mas
esta graça só é dada uma vez. Em seguida, é somente pela penitência que o ser humano
merece sua justificação.
O batismo só tem então valor eficaz para as pessoas adultas que cometeram pecados
pessoais. Pelágio não ataca, porém, o costume de batizar crianças. Elas são batizadas, no
entanto, para serem purificadas de um pecado que não cometeram, e sim para terem aberta
a porta do Reino dos céus, que os pelagianos distinguem da vida eterna.
É por causa desta questão do batismo das crianças que se desencadeia a controvérsia
pelagiana, com a condenação de Celestius, no concílio de Cartago (412).
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História da controvérsia pelagiana
A história da controvérsia pelagiana é complexa, pois a evolução do problema
doutrinal é solidária de múltiplos fatores:
- A relativa autonomia das Igrejas e dos concílios provinciais (a discussão se dá
sucessivamente na África, na Palestina, de novo na África e em Roma);
- Os pelagianos constituem uma frente dispersa: Pelágio, Celestius, Juliano de
Eclana;
- A posição pelagiana não é sempre fácil de ser captada e, apesar de as questões
serem conexas, o objeto da discussão de desloca (batismo das crianças, realidade do pecado
original, relação da graça e da liberdade, natureza da libido, possibilidade de impeccantia,
universalidade da graça do Cristo, predestinação).
Muito esquematicamente, podemos assim caracterizar as principais etapas:
Condenação de Celestius em Cartago (412)
O costume do batismo das crianças, caro à Igreja da África, tinha sido criticado por
Celestius, que não admitia que a criança pudesse ser batizada “para a remissão dos
pecados”. Levado diante do concílio de Cartago, Celestius sustenta que Adão, criado
mortal, teria morrido, quer tivesse pecado ou não; que a transmissão de um pecado original
não podia ser matéria de fé; que as crianças podiam receber o batismo, mas não para apagar
um pecado que elas não tinham cometido. Recusando a retratar-se, ele foi excomungado.
Fez então apelo a Roma, mas não se apresentou para defender-se, indo à Sicília, onde
intensificou sua propaganda e, de lá, à Éfeso, onde foi ordenado Padre. Pelágio não tinha
sido posto em causa neste momento e Agostinho tampouco se apresentou no concílio.
Conferência de Jerusalém e concílio de Dióspolis (415)
Questionado por Marcelino, legado do imperador, Agostinho responde irênicamente,
em cartas-tratados, onde examina a questão dogmática. Faz alusão a Pelágio somente de
modo indireto e com elogios.
Orósio, jovem padre espanhol, tinha passado por Hipona, ligando-se à doutrina de
Agostinho. Indo à Terra Santa, ele recebe as confidências de Jerônimo que se inquieta da
influência de Pelágio. João, bispo de Jerusalém, preocupado em restabelecer a paz, organiza
um encontro para provocar uma reconciliação. Orósio e Pelágio participaram. Pelágio se
faz evasivo. Sobre a questão da impeccantia, ele diz que o ser humano pode, em razão de
sua liberdade, ficar sem pecado “com a ajuda de Deus”. Como ninguém quisesse tomar a
responsabilidade em acusá-lo, chegou-se a uma conciliação unicamente verbal (julho de
415).
Esta conciliação só podia ser precária. Dois bispos gauleses, exilados e de fama
duvidosa, Heros e Lázaro, introduziram uma nova instância, causando grande comoção.
Um concílio com 14 bispos, presidido por Eulógio de Cesareia, reuniu-se em Dióspolis. A
acusação tornou-se mais precisa, pondo em questão textos atribuídos a Pelágio e
proposições de Celestius censuradas em Cartago. A discussão se concentrou sobre as duas
asserções relativas à liberdade e à impeccantia. Sobre a questão: “todos são governados
pela sua vontade pessoal e cada um é entregue à sua própria vontade”, Pelágio responde:
sim, “como consequência do livre arbítrio, ao qual Deus dá apoio na escolha do bem,
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enquanto que o pecador é por si mesmo em falta, em razão de sua liberdade”. À questão:
“o homem pode, se ele quer, estar sem pecado”, ele responde: “trata-se de um resultado,
nunca definitivo, adquirido simultaneamente pelos esforços pessoais e a graça de Deus”.
Pelágio apresenta então suas teses de uma forma ambígua, mas ortodoxa. Nega, porém, a
paternidade dos textos que dizem ser dele (embora os mesmos tenham sido tirados da Vita
christiana), e afasta-se das posições de Celestius (sua doutrina não tinha a forma lógica e
abrupta da de Celestius). Condena enfim tudo o que, “no julgamento da Igreja, está em
contradição com a doutrina católica”, sendo com isso justificado pelo concílio. Ele vê
nesta conclusão uma vitória: “o homem pode voluntariamente viver na justiça”.
Intervenção de Agostinho e concílios africanos (416)
A sentença de Dióspolis foi vista pelos bispos africanos como uma anulação da
condenação de Cartago. Agostinho a vê como uma ameaça para a catolicidade da Igreja.
Além do mais, desde que leu o De Natura de Pelágio, ele passou a conhecer melhor as
implicações da doutrina pelagiana e a armadilha de suas fórmulas. Ele pediu então que lhe
enviassem as atas do concílio de Dióspolis e redigiu uma obra, o De gestis pelagii, na qual
denuncia o equívoco das fórmulas pelagianas (416).
No decorrer do verão de 416, 67 bispos reunidos em Cartago e 58 em Milevo
renovam a condenação contra Celestius e enviam uma carta ao papa Inocente, fazendo
apelo à sé apostólica e lhe submetendo os erros de Pelágio sobre a graça, o livre arbítrio e o
destino das crianças não batizadas.
Condenação feita por Inocente contra o pelagianismo
Na resposta aos bispos da Igreja da África, Inocente lhes dá plenamente razão e
excomunga Pelágio. Ele não julga, porém, o perigo grave e não convoca Pelágio a Roma,
pedindo-lhe somente para se retratar e arrepender para entrar de novo na comunhão da
Igreja.
Pela primeira vez Pelágio foi objeto de uma condenação pessoal. Ele escreveu a
Inocente uma carta justificativa, na qual ele nuança seu pensamento sobre as relações da
graça e da liberdade e acrescenta à mesma uma Profissão de fé (libellus Fidei) onde
reafirma sua ortodoxia, sobretudo no que diz respeito à criação, à Trindade, à Encarnação.
Ao mesmo tempo, ele redige um livro sobre o livre arbítrio, onde reconhece ao mesmo
tempo o papel da graça e rejeita o caráter pessimista da interpretação dada a certos textos
paulinos sobre a impotência da vontade. Inocente, morto em março de 417, não chegou a
receber a carta e a profissão de fé de Pelágio.
Hesitações de Zózimo e condenação do pelagianismo (417-418)
Zózimo, sucessor de Inocente, conhecia imperfeitamente a questão e era favorável
ao julgamento da Igreja do Oriente. Celestius aproveitou-se do fato de que muitos bispos
italianos eram favoráveis às teses pelagianas para retomar a ofensiva. Invocando um
argumento jurídico, ele alegou que seu apelo a Roma não tinha jamais sido escutado (ele
mesmo nunca tinha se apresentado). Por sua vez Pelágio invoca o testemunho de Pratlos,
novo bispo de Jerusalém. Zózimo, tento reunido um conselho, reconhece, na presença do
clero romano, a ortodoxia de Pelágio e suspende a condenação feita por seu antecessor.
Escreve uma carta severa ao clero africano e convoca Paulino de Milão (que tinha
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introduzido o primeiro processo de Cartago) a comparecer a Roma, sem o que a sentença de
condenação seria anulada.
A Igreja da África se defende energicamente e envia um protesto a Roma. Nesse
ínterim, Celestius, intransigente e batalhador, provoca confusão: a violência dos pelagianos
tira-lhes as simpatias. As desordens se multiplicam e Zózimo volta atrás de seu primeiro
julgamento. Celestius foge de Roma. Houve então a conjunção de três eventos:
-
30 de abril: decisão do imperador Honórius que, inquieto com o clima de
violência, ordena a expulsão dos chefes da heresia;
-
01 de maio: um concílio africano se reúne com 214 bispos, se pronunciando
contra Pelágio e promulgando em nove artigos sua doutrina sobre a graça
(Agostinho é o inspirador deste texto);
-
Zózimo, voltando atrás em suas decisões, renova a excomunhão contra Pelágio e
Celestius. Num longo documento, a Tractoria, ele resume a história do debate e
retoma os cânones do concílio africano sobre a graça, o pecado original, a
justificação pelo Cristo.
Insubmissão de Juliano de Eclana
Depois da condenação de Zózimo, não se ouve mais falar de Pelágio. Acredita-se
que ele tenha escrito alguns comentários sobre as Escrituras. Mas Celestius e, sobretudo,
Juliano de Eclana tornam-se a alma da resitência. Com este último, dezoito bispos italianos
e também diversos bispos gauleses, da Bretanha, da Ilíria rejeitam a Tractoria de Zózimo.
Nascido em 386, Juliano era filho do bispo Memor, amigo de agostinho e de
Paulino de Noles. Vindo a Roma para fazer estudos literários, ele se tornou discípulo de
Pelágio. Em 416, foi eleito e consagrado bispo de Eclana. Em 418, se recusa a subscrever a
Tractoria, escreve cartas de protestos ao papa e ao conde Valério, reclamando a
convocação de um concílio geral. Em 418, ele foi destituído de sua sede episcopal,
deixando a Itália para refugiar-se perto de Teodoro de Mopsuéstia. Escreve tratados nos
quais ataca violentamente Agostinho, erra de cidade em cidade e morre na Sicília em 454.
Mal estar dos mosteiros de Provence
Embora sendo um prolongamento da controvérsia pelagiana, as resistências que se
manifestam diante da doutrina agostiniana nos mosteiros de Hadrumeto (África) e Provence
(Marseilha e Lérins) procedem de uma outra inspiração. Esses monges foram erroneamente
qualificados de semi-pelagianos. De fato, eles não são discípulos de Pelágio, são
absolutamente fiéis à doutrina da Igreja, admitem a necessidade da graça do Cristo,
reconhecem a realidade do pecado original, professam que é impossível levar na terra uma
vida isenta de todo pecado. Eles não aceitam, porém, sem reservas a doutrina de Agostinho
que, lhes parece, desconhecer o papel da liberdade na vida espiritual.
Cassiano (365-435), formado na vida monástica pelos grandes espirituais da
Palestina, do Egito e de Constantinopla, tinha sido encarregado, no momento do exílio de
João Crisóstomo, de levar uma cara de protesto ao Papa Inocente (404). Tendo ficado uma
dezena de anos em Roma, ele foi a Marseilha em 415, onde fundou o mosteiro de São
Vítor. Por sua vez, Honorato tinha fundado o mosteiro de Lérins e foi a ele que Cassiano
dedicou o segundo volume de suas Conferências. O mosteiro de Lérins foi uma sementeira
9
de grandes bispos que, ao longo do séc. V, evangelizaram os “bárbaros” da Gália (Máximo
de Riez, Loup de Troyes, Eucher de Lyon, Hilário de Arles). Sem entrar na polêmica nem
mencionar o nome de Agostinho, eles não partilham algumas de suas teses e insistem sobre
o papel da liberdade no começo da fé (initium fidei) e para obter a perseverança. Eles não
comungam com a tese de Agostinho sobre a predestinação do número restrito dos eleitos.
3. Obras de Agostinho no decorrer da controvérsia
No decorrer da controvérsia pelagiana, todas as obras de Agostinho são escritos de
circunstância, que nasceram de uma demanda, de um ataque ou de um evento. Se, no
decorrer desta polêmica multiforme, Agostinho foi levado a precisar e, às vezes, a
endurecer sua posição, ele só desenvolve uma doutrina já exposta nas obras anteriores,
particularmente no De diversis quaestionibus ad Simplicianum, livro I, que data do
primeiro ano de seu episcopado (397).
Este texto é tão importante que ele marca um progresso decisivo no
desenvolvimento de seu pensamento (em particular sobre o começo da fé), como ele
sublinha no Retractationes, II, 1. Ele corrige o que havia escrito anteriormente na
Explicação, depois no Comentário inacabado da epístola aos romanos, enfim no De libero
arbítrio.
Podemos distinguir quatro fases no decorrer da crise pelagiana:
a) Uma fase serena (412-416). Agostinho, que guarda uma verdadeira estima por
Pelágio (que ele só conhece por ter ouvido falar), responde às questões de seus
correspondentes sobre a graça e o pecado;
b) Uma rejeição muito firme de Pelágio, depois do concílio de Dióspolis. Agostinho
não estava mais convencido da perfeita lealdade de Pelágio, denuncia sua atitude ambígua
em Dióspolis, critica explicitamente sua doutrina, ao mesmo tempo em que apresenta suas
implicações;
c) Depois da condenação de Pelágio, polêmica com Juliano de Eclana (419-430);
d) Quatro tratados foram escritos por ocasião das reservas manifestadas diretamente
pelos monges de Hadrumeto, indiretamente pelos monges de Provence (425-429).
As obras agostinianas englobando estas quatro fases são:
a) 411-412: De peccatorum meritis et remissione
412: De spiritu et littera
412 : Epistola 157 ad Hilarium (De Pelagianismo)
414 : De perfectione justitiae hominis
415 : De natura et gratia
b) 419 : De gestis Pelagiani
418: De gratia Dei et peccato originali
418-419: De natura et origine animae (relação indireta com a controvérsia)
c) 419: De nuptiis et concupiscentia
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419-420 : De correptione et gratia
421-422 : Contra Julianum
428-430 : Contra Julianum opus imperfectum
d) 425 : De gratia et de libero arbitrio (Hadrumeto)
426 : De correptione et gratia (idem)
429: De praedestinatione sanctorum (Provence)
429: De dono perseverantiae (idem)
Vejamos resumidamente o que dizem algumas dessas obras.
a) Controvérsia contra Pelágio
De peccatorum meritis et remissione (411-412)
Sem dúvida é a obra mais sintética e a menos polêmica de Agostinho no decorrer
desta controvérsia. Marcelino, legado do imperador na África, tinha interrogado o bispo de
Hipona sobre a doutrina de Pelágio e de Celestius. Em sua resposta, Agostinho, que não
tinha lido nenhuma obra de Pelágio, se contenta em expor seu próprio pensamento sobre as
ideias e os pontos controvertidos. Apresenta uma síntese na qual mostra a importância da
questão.
No primeiro livro, expõe sua tese maior a partir da Escritura. Se o Cristo veio salvar
todos os seres humanos, é porque todos pecaram (muito firme o desenvolvimento de I.
26.39 a I. 28.56). No segundo livro, Agostinho combate a tese da impeccantia. O livre
arbítrio só, não é suficiente para purificar o homem do pecado nem para lhe dar a justiça.
Agostinho admite, no entanto, que com a graça, o homem, de direito, poderia não mais
pecar, mas, de fato, ele não acredita que seja assim para nenhum homem. Tendo em
seguida lido o comentário de Pelágio sobre a epístola aos romanos, ele acrescenta um
terceiro livro para discutir a interpretação de Rm 5,12.
De spiritu et littera (412)
Este tratado prolonga o precedente. De fato, Marcelino ficou admirado. Se com a
graça de Cristo, o homem pode, de direito, não pecar, por que não o é de fato ? Agostinho
responde por esta carta-tratado. Na verdade, ele desloca a questão. O título “de spiritu et
littera” é emprestado a 2 Cor 3,6 e equivale a “de gratia et lege”. Trata-se da questão
paulina sobre o papel respectivo da Lei e da Graça na economia da salvação. Este tratado é
importante porque foi um dos que leu Lutero na época em que elaborava sua teologia. Seu
comentário à epístola aos romanos (1515-1516) contém numerosas citações desta obra
agostiniana: “eu li o De spiritu et littera de Agostinho, onde tive a surpresa de constatar
que ele interpreta a justiça de Deus de uma maneira análoga à minha, ou seja, ele entende
por ela a justiça da qual Deus nos reveste quando nos justifica. Mesmo que se exprima de
modo ainda imperfeito e não explique claramente tudo o que concerne a imputação, eu tive
a alegria de constatar que ele ajudava a compreender que a justiça de Deus é aquela pela
qual somos justificados. Melhor preparado por todas estas reflexões, eu empreendi pela
segunda vez a interpretação dos salmos” (prefácio à edição de suas obras em 1545).
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De natura et gratia (415)
Dois discípulos de Pelágio, Timásio e Tiago, ficaram perplexos com a doutrina de
seu mestre. Eles enviaram a Agostinho o tratado de Pelágio “De Natura”. Pela primeira
vez, Agostinho tem em mãos um autêntico escrito de Pelágio. Com conhecimento de causa,
ele expõe e discute então o pensamento de Pelágio sobre a relação da natureza, da liberdade
e da graça. Segundo Pelágio, a liberdade é um dom de Deus que faz aptos a cumprir
integralmente a justiça. Mas o querer e o fazer dependem unicamente de nós. E uma vez
que o pecado tem a ver com a liberdade (e não com a natureza criada por Deus), todo
homem nasce hoje na mesma condição de inocência e de integridade original que Adão.
Resposta: “não convém louvar o Criador de tal forma que se torne supérflua a
graça do Salvador” (39). Esta resposta se desenvolve em três tempos:
- Discussão dialética. É verdade que o pecado não é uma substância nem uma
natureza. Mas ele pode perverter uma natureza. O ato de liberdade recai sobre o homem
inteiro. O pecado não é um puro acidente que deixaria intactas a natureza e a liberdade elas
mesmas;
- Argumento exegético contra a impecabilidade (a possibilidade para um homem
hoje de ser justo por suas próprias forças sem a graça);
- Conflito teológico: o homem não está mais na condição de natureza, tal qual foi
criada e querida por Deus. Sua natureza foi pervertida. A graça reparadora e salvadora do
Cristo é necessária para nos tirar do pecado e nos tornar livres.
Controvérsia contra Juliano de Eclana
A discussão toma um tom muito mais polêmico. Da parte de Juliano, ressentimento
contra Agostinho e contra a Igreja da África. Da parte de Agostinho, amargura e posição
defensiva (resposta às objeções, frase por frase, que mascara a unidade da argumentação).
Além do mais, o problema se desloca. Sem dúvida sempre é questão das relações entre
graça e liberdade, das consequências do pecado de Adão e dos efeitos do batismo. Mas o
que Juliano reprova duramente a Agostinho, é de considerar a concupiscência como um mal
em si e não como um bem da natureza, ligado à bênção de Deus e à propagação da espécie
humana.
A pessoa e a obra de Juliano foram julgadas diferentemente. Alguns o vêem como
um dialético, marcado pelo exercício da lógica aristotélica, defensor apaixonado das ideias
de Pelágio. Outros o consideram como um precursor de uma teologia mais elaborada,
anunciando a síntese de Tomás de Aquino.
De nuptiis et concupiscentia (419-420)
Agostinho responde às acusações de Juliano que o acusa de denegrir o casamento.
Ele proclama a santidade do casamento, cujos três bens são a fidelidade, a geração e o
sacramento (fides, proles e sacramentum). Mas a libido, em si, é um mal: ela é perversão de
uma natureza boa. A oposição que Agostinho e Juliano se afronta em duas fórmulas nítidas:
para Juliano, aquele que “no uso da concupiscência natural guarda a medida, usa bem de
um bem; aquele que não guarda a medida, usa mal de um bem” (II. 19.34). Para
Agostinho, “aquele que faz um uso lícito desta libido, usa bem de um mal; aquele que faz
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um uso ilícito, usa mal de um mal” (II. 21.36). Para um, bom e mau uso de um bem; para o
outro, bom e mau uso de um mal.
Contra Julianum et Contra Julianum opus imperfectum
As discussões parecem fastidiosas, porque Agostinho retoma frase por frase o texto
de Juliano. Se buscamos a unidade e a coerência da argumentação, elas são esclarecedoras,
pelo fato de que, para além da polêmica, são duas concepções do homem face a Deus que
se afrontam1.
Controvérsia com os monges de Hadrumeto e Provence
Em Hadrumeto, na África, num mosteiro cujo abade era amigo de Agostinho,
alguns monges pensavam que Agostinho negava o livre arbítrio. O abade envia dois
monges ao bispo que lhe dá explicações e escreve para eles:
De gratia et libero arbítrio, onde explica, apoiando-se nos textos da Escritura, que a
vida eterna é ao mesmo tempo graça e recompensa, porque nossos méritos são eles mesmos
um dom de Deus;
De correptione et gratia. Um monge pergunta : “ se Deus nos dá o querer e o fazer,
então não se pode repreender alguém por suas faltas, mas somente orar por ele”.
Agostinho redige então este tratado. Ele lembra que o livre arbítrio não pode nada sem a
graça, mas não é tampouco abolido por ela. Ele aborda em seguida a questão da
perseverança final. Por que alguém é justificado e não um outro ? E, uma vez justificado,
por que persevera ele, não um outro ? Resposta: porque Deus elegeu uns e não separou os
outros da “massa de perdição”. Ele se apóia em Rm 9.
Mas o problema se põe a respeito de Adão, que não perseverou, embora não tenha
feito parte da “massa damnata”. É então que Agostinho estabelece a famosa distinção entre
“o socorro sem o qual não se pode perseverar” (auxilium sine quo non), que é a graça feita
a Adão, e “o socorro pelo qual se persevera” (auxiliuum quo), socorro sempre eficaz dado
aos predestinados (XII, 33 e 34).
Este tratado terá uma grande influência (demais) nas controvérsias dos séc. XVI e
levando à célebre distinção entre “graça suficiente” e “graça eficaz”. Jansenius fera
desta distinção o suporte de sua doutrina.
XVII,
Em Provence, dois amigos muito queridos de Agostinho, Próspero da Aquitânia e
Hilário, escreveram-lhe para pô-lo ao corrente da oposição silenciosa e latente à sua
doutrina nos mosteiros de Provence. Agostinho lhes responde com esses dois opúsculos que
formam um só tratado:
De praedestinatione sanctorum, onde ele estabelece que a fé, mesmo em seu
começo, é obra da graça. Ela não é, portanto, precedida por nenhum mérito, mas ela é um
dom totalmente gratuito. Esta tese será ratificada pelos concílios. Mas a sobrecarrega,
declarando que este dom da fé não é feito a todos e que a graça dada é sempre vitoriosa.
De dono perseverantiae. Os monges de Provence estimavam que, pela fidelidade e
pela oração, o cristão poderia merecer a perseverança final. Contra esta opinião, Agostinho
1
REFOULE, « Julien d´Éclane théologien et philosophe » in RSR 1964 ; MONTCHEUIL, Y. « La polémique de
saint Augustin contre Julien d´Éclane », in RSR 1956.
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diz que a perseverança, ela também, é puro dom de Deus, totalmente gratuito e jamais
merecido. Esta graça é infalível e toda poderosa, essencialmente eficaz.
Conclusão
Historicamente, essas últimas obras darão aos baianistas e aos jansenistas um
arsenal de argumentos e fórmulas nas discussões sobre a graça: a distinção entre a graça
dada a Adão e a graça dada ao homem resgatado; a distinção entre graça suficiente e graça
eficaz; as especulações sobre a predestinação ante ou post merita, sobre a “massa damnata”
e o pequeno número dos eleitos, encontram nessas duas últimas obras as fórmulas que
alimentarão os debates.
4. A controvérsia pelagiana no curso do V século depois da morte de Agostinho
O estado da questão
A polêmica pelagiana levou a Igreja a tomar consciência do mistério da graça, tal
qual ele é revelado ao homem nas Escrituras, singularmente na epístola aos romanos. O
que, aos olhos dos pelagianos, aparecia como uma novidade, aparece ao contrário como um
ensinamento fundamental da Igreja, no centro mesmo da Revelação: “a necessidade da
graça do Cristo e da redenção para a salvação de todos os seres
humanos”.Correlativamente, a insistência sobre a realidade do pecado original, sobre a
necessidade do batismo, sobre o papel essencial da graça em toda vida espiritual
(conversão, progresso e perseverança).
Mas, por outro lado, é importante salvaguardar o valor do livre arbítrio e, numa
medida que não diminui a graça, do mérito das ações humanas. Não se pode escamotear o
que, em nós, subsiste de bom, ao menos como capacidade de responder e de aderir à graça
do Cristo. Então três questões são postas:
1. Valor do livre arbítrio. É ele completamente violado pelo pecado original ? Qual
é sua parte no ato inicial da fé, no cumprimento das boas obras, na fidelidade da graça
original?
2. Mistério da predestinação. A graça que salva é acordada ou negada por um
soberano decreto de Deus eterno e sem apelo?
3. A salvação é universal? Temos que admitir um número restrito de predestinados?
O que dizer das virtudes dos pagãos e dos que não foram iniciados na fé?
A controvérsia continuará ao longo do séc. V. O grande defensor das teses
agostinianas foi Próspero da Aquitânia. Os representantes do espírito de Lérins foram
Vicente de Lérins e Fausto de Riez. Em Roma, três papas (Celestius I, Sixto III e Leão o
Grande), na linha da doutrina agostiniana, insistem sobre a primazia da graça e sobre o
caráter gratuito e sobrenatural de todo ato que leva à salvação, mas eles mantiveram a
realidade da liberdade e atenuam o que havia de muito intransigente nas teses agostinianas.
Esta evolução deveria levar, sob a influência de Cesário de Arles, ele mesmo antigo monge
e abade de Lérins, às definições do concílio de Orange (529).
O concílio de Orange (529)
Este concílio tinha sido preparado por um primeiro concílio em Valence, no qual
Cesário (ausente, porque doente) tinha proposto um ante-projeto, que afirma plenamente a
14
doutrina da graça. Este documento, aprovado pelo concílio de Valence, foi enviado ao papa
que corroborou o conjunto dos cânones que diziam respeito à teologia da graça, os
apoiando por um conjunto de máximas agostinianas outrora recolhidas por Próspero, mas
não quis engajar sua autoridade sobre as questões muito profundas e muito difíceis (a
predestinação à salvação).
Assegurado o apoio do papa, Cesário proclama a resolução final, no dia 3 de julho
de 529 (2o concílio de Orange), em presença e com a colaboração de 13 bispos. Pode-se
distinguir três partes nesse documento:
- Oito cânones, emprestados ao projeto primitivo, que lembram a extensão das
consequências hereditárias, físicas e espirituais da prevaricação de Adão (c. 1 e 2); a
antecedência da graça em todo pensamento ou ato conduzindo à salvação e a insuficiência
radical do “vigor natural” e do livre arbítrio (c. 5 e 8).
- Uma série de sentenças agostinianas, extraídas do resumo feito por Próspero da
Aquitânia e provavelmente comunicadas por Roma (c. 11 a 25).
- Uma recapitulação, que é como o núcleo da declaração total. Tudo o que em Adão
era um bem da natureza teve, em seus descendentes, que ser reparado pela graça. Mas o
dom da graça implica o esforço leal e fiel da liberdade. Enfim, é energicamente descartada
a tese de uma predestinação ao mal imputável a Deus: “quanto à doutrina segundo a qual
certos homens seriam predestinados ao mal pela potência divina, não somente não a
admitimos, mas se existe quem queira crer tal enormidade, nós os tornamos anátemas, com
nossa inteira reprovação”. É em seguida acrescentado: “cremos também e confessamos
que, em toda boa obra, não somos nós que começamos para ser em seguida ajudados pela
misericórdia de Deus, mas que é Deus ele mesmo que, anteriormente a todo mérito de
nossa parte, nos inspira primeiro o fim e o amor por ele, a fim de que busquemos o batismo
e, depois do batismo, que sejamos capazes de fazer, com sua ajuda, o que lhe agrada”.
Cesário solicita a ratificação pela sé apostólica. Bonifácio II lha acorda e é por isso
que uma autoridade excepcional foi atribuída aos cânones de Orange que constituem uma
exposição da doutrina da Igreja. O concílio de Trento se apoiará em parte nesses textos na
elaboração dos cânones referentes ao Pecado original e à doutrina da justificação.
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