“Toda a escrita é porcaria. Aqueles que saem do indefinido para tentar precisar o que quer que seja do que se passa no seu pensamento, são porcos. Toda a gente de letras é porca, especialmente a do tempo presente. Todos aqueles que têm pontos de referência no espírito, quero dizer, num certo lado da cabeça, em pontos bem localizados do seu cérebro, todos aqueles que são senhores da sua língua, todos aqueles para quem as palavras têm sentido, todos aqueles para quem existem altitudes na alma, e correntes no pensamento, aqueles que são o espírito da época, e que nomearam essas correntes de pensamento, penso nas suas tarefas exactas e nesse ranger de autômato que espalha por todo o lado o seu espírito, - são porcos.” Antonin Artaud Passe a palavra, é óbvio. Serve para ilustrar, bem entendido, que a filosofia não vale essencialmente para encher considerações de segurança. Quase toda a filosofia escrita são escadas que o sádico untou de banha. Digo disto banalidades ou passes de metáfora desconexa, “não sei e sei-o bem”. No entanto é sumamente difícil perceber que A dita cuja não vive em lombadas de livros para mostrar a visitas do facto. De-ontológica, assalta-nos na solidão das ruas e faz cair o cigarro da boca. Epifania. O estilo de prefácio em itálico acima é para o discurso e a teoria em pompa, construções lego que encaixamos em códigos narcisistas. Pois o acadêmico é narcisista substituindo a razão de Ser pelo ser da razão, envaidecendo-se nas manjedouras de conceitos, onde as pessoas, de rabo no ar, se fartam de literatos lixos. Ora, temos que evocar a verdadeira filosofia, a carga intuitiva sem imbricada demissão de erro. A papelada escrita só vem abastardar a pureza do nada positivo. As faculdades, onde se montam as tais manjedouras, não passam desse galinheiro, onde as pessoas, alienadas, são quais galinhas debicando além do literal, a profusão hipnótica de impasses. Convêm então esclarecer dois âmbitos da filosofia. Uma que se atém à afirmação categórica opinando apropriação; e outra que opera na junção intuitiva daquilo que as patas de galinha dividiram em presídios. Estúltima é uma suspensão de pensamento cognitivo, é a potência em acto de aquisição não-intencional. Filosofema dos estados naturais e não das imposições de cálculo. Chamemos-lhe um tipo de terapia ou meditação, para economia. De preferência deve-se praticar por um analfabeto iluminado, um tratador de cavalos ou qualquer demente. O que está em causa não é a desconsideração de algum produto válido na forma clássica de filosofia. Mas o ênfase numa hyper - instância, âmbito tácito que sustenta a irrupção genuína do mundo. Uma não-intenção, ao pé da qual páginas debruadas a ouro são o exagero do adjectivo rude: porcarias de milho. Porque é no âmbito e na intenção que ultimamente falhamos o graal da verdade. Aqui, a terapêutica de meditação necessita de colmatar o acto- falho de racionalidades mecânicas, pensamentos complexados que empatariam a emoção do sem-fundo. “O nome transfigura as cousas. O sonho humano alastra, como seria o Mundo sem esta máscara que lhe pusemos no rosto? Sem esta mentira que lhe introduzimos no coração? E que seria o homem despido do seu nome, na sua nudez absoluta? Conhecemos apenas as palavras, borboletas que vêm de dentro pousar um instante na boca das caveiras. Batem as asas e logo se dissolvem no Éter... Nem um rasto, nem uma nódoa... Que sei eu de mim? Apenas o meu nome. O meu nome? Não! O nome que me deram... Nós e o Mundo somos palavras e palavras... A Natureza converteu-se numa obra de retórica. É um discurso de Cícero, uma ode de Horácio. Mas tiremos o nome às cousas. Que resta? O incompreensível, o absurdo. O seu nome é a mentira que lhes dá vida e existência, o vácuo em que elas tomam corpo e actividade. Através das cousas e dos seres, topamos sempre a mentira, o sonho humano de que o Universo se embebeu.” Teixeira de Pascoaes Lamentavelmente, a posição do intelecto prostituí-se numa alegórica da caverna. Política de engordar em meia-dúzia de linhas hipotéticas. Amamos sombras e estendemos passadeiras vermelhas a sofismas, somos capatazes bigodudos de construções falaciosas. Vegetando no átrio destes prédios, assistimos impávidos ao consumo das paredes, assistimos condescendentes à incúria dos inquilinos teóricos. O problema evidente está na conjugação da existência com nominalismo. Chapéu de proxeneta que enfiam, a carolos, em crianças inocentes. A linguagem assume a analítica perversa de trair a própria Razão, enganando-a com a morfologia da providência. Concepto de um pathos irreversível que adultera o ônus da prova natural. Porque o Joaquim da mercearia não é o Joaquim empilhando caixas de banana todo o dia; não é somente a classe deste acto, é todo um viés do infinito. Outrossim, a filosofia deve ouvir o seu silêncio e deve ser mais silêncio do que línguas agitadas. Encontramos nisto o segredo inenarrável das coisas, “a noite do espírito” de nenhuma referência ou recibo para notário. Nestes segredos ainda Joanne, o parvo, alude a evacuações no caminho para a barca gloriosa. A escatologia sobrepõe-se aos palitos que medem o imensurável com boutades mentidas. Socorre-se a hegemonia dos nomes, ajeitando perucas de identidade, e o Joaquim chora no abrupto da redundância. Cria-se a função para estabelecer opiniões categoricamente, para arrumar gravetos na gaveta supérflua. Voltem os pré-socráticos por amor de deus, voltem os fragmentos obscuros e os meta-textos constituídos de lacunas. Na faculdade, inúmeras criaturas decoram grossos volumes de orgulho e preconceito, outras têm “A critica da Razão pura” como livro de cabeceira. O pragmatismo de trejeitos vai doutorar a noética mais incipiente. Uma fracção de epílogos, onde o imperativo se apostou em conceito. Imagine-se a alternativa, só por breves instantes, e compare-se com estas presunções de positivismo lógico: “Um homem desfraldado, numa poça de urina, deitado num banco de jardim fitando o vazio. O fiel depositário da filosofia da modernidade.” O academismo é porcaria porque se leva demasiado a sério, o homem comum está coberto de porcaria porque delega aos argumentos o axioma da sua liberdade. E todas estas suposições cambadas se afirmam iminências por direito, gestos ridículos de bengalas rasgando a terra. Nos caminhos bifurcados, as galinhas, levantando penas, entram na compita inútil pelo óbolo da suma: “A tristeza da existência é dar à razão a capacidade inequívoca de considerar os seus projectos como verdades de facto; é como dar ao etíope o projecto de um prato de comida sem moscas.” A terapia meditativa está mais próxima de consentir o poder efectivo da transformação sob a ética do suspenso. Profundidade ininteligível que o bordel das razões procura pôr no beco dos despejos, ao pé de mictórios abandonados. “Quanto mais contemplo o espectáculo do mundo, e o fluxo e refluxo da mutação das coisas, mais profundamente me compenetro da ficção ingénita de tudo, do prestígio falso da pompa de todas as realidades. E nesta contemplação, que a todos, que reflectem, uma ou outra vez terá sucedido, a marcha multicolor dos costumes e das modas, o caminho complexo dos progressos e das civilizações, a confusão grandiosa dos impérios e das culturas – tudo isso me aparece como um mito e uma ficção, sonhado entre sombras e esquecimentos. Mas não sei se a definição suprema de todos esses propósitos mortos, até quando conseguidos, deve estar na abdicação extática do Buda, que, ao compreender a vacuidade das coisas, se ergueu do seu êxtase dizendo “Já sei tudo”, ou na indiferença demasiado experiente do imperador Severo: “omnia fui, nihil expedit – fui tudo, nada vale a pena.” Livro do Desassossego - § 132 Parece que nada disse, ou tive essa intenção. Mas alonguei demasiado o que deveria estar resumido numa frase de honesto: “A Razão e a Filosofia devem ouvir os cegos abismos onde as extensões do tempo caem de repelão.” Não consegui. Esta reflexão, enfim, vitima também de hubris, deve ser rasgada em pedacinhos depois de lida e atirada pela retrete abaixo. Ironia, mea culpa, mea maxima culpa, ao querer dispensar as conjecturas trago a conjectura. Que me perdoe o Joaquim da mercearia que trabalha todo o dia, ensopado em suor da cabeça aos pés. O facto de me ter sentado para teclar refutações nem sequer chega para meia teoria preguiçosa. A linguagem é meu crime e cobardia. A de adiar o fim até aqui. REFLEXÃO SOBRE O TEMA DA CADEIRA: FILOSOFIA DA ESPIRITUALIDADE E TERAPIA MEDITATIVA NUNO RODRIGO VIEIRA ALUNO Nº 29520